The Kostroma Dynasty escrita por Mialee Aurestelar


Capítulo 32
O Que Se Esconde da Luz


Notas iniciais do capítulo

Oiee! Como estão? Espero que gostem e boa leitura!



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“Lover, hunter, friend and enemy

You will always be every one of these

Nothing's fair in love and war”

Love and War – Fleurie

Assim que as portas da sala do Conselho foram fechadas, Viktor se pôs a andar pelos corredores em direção ao lugar em que aguardaria até o fim da reunião. Tinha a impressão de que dessa vez teria que esperar bem mais do que as duas horas usuais.

Quando chegou na sala, não fazendo cerimônia alguma para entrar, surpreendeu-se com o fato de estar vazia. Estava certo de que tinha visto ela ali mais cedo e ouvido o som do piano alguns minutos antes. Já estava a ponto de sair, se recusando a sentir o desapontamento nascendo dentro de si, quando Aberash apareceu de trás da mesa perto da janela, com uma pilha de folhas nos braços. Devia ter estado abaixada ali, procurando algo no chão ou nas gavetas da escrivaninha.

— Viktor! Não tinha escutado você entrando — cumprimentou ela, abrindo o sorriso largo com que ele não conseguia se acostumar de jeito nenhum. Também não sabia o que pensar do fato de ela não se importar nem um pouco com a falta de resposta da parte dele. — O Conselho está tendo mais uma reunião interminável hoje?

— Sim. Está ocupada? — disse, observando-a pular as pilhas de livros e partituras no pé da mesa e ir organizar as folhas que tinha nas mãos sobre a tampa do piano de cauda no centro da sala, agora fechada.

— Uhum. Estou terminando de checar as músicas que irão tocar no baile e revisando os arranjos do que eu vou apresentar. Mas, por favor, continue aqui, eu adoraria a companhia se você não se importar em me escutar tocando a mesma coisa ad aeternum.

Como se fosse possível enjoar de ouvi-la… Não que ele fosse dizer isso. Na verdade, tudo que fez foi sair de perto da porta e se sentar na poltrona ao lado do piano, deixando as pernas descansarem pela primeira vez em várias horas.

Ele não sabia quando aquilo tinha se tornado um hábito. Mas agora era quase automático que seus pés o levassem para aquela sala nos dias de reunião, gastando as horas livres assistindo aos ensaios de Aberash, escutando-a falar sobre algo ou olhando para o piano, debatendo consigo mesmo se valeria a pena colocar os dedos sobre as teclas do instrumento, mesmo que sempre desistisse no final.

Claro, havia o fato de ser capaz de ver a janela da sala do Conselho dali, e era assim que justificava a atitude para si mesmo. Estava sendo profissional mesmo quando, em teoria, estava dispensado de seus serviços.

Sabia que fora atraído até ali pelo piano, em um magnetismo que o instrumento tinha sobre ele há anos, ficando mais forte a cada vez que ele se recusava a tocar mais do que algumas notas, fugindo da melodia e das memórias que ela suscitava. Diferente da sala de música na ala oposta do palácio, contudo, aquele cômodo não era aberto ao público. Era de Aberash e, ainda que a cantora mantivesse as portas destrancadas e abertas para quem quisesse visitar durante a maior parte do dia, estava estampado em cada canto que pertencia a ela, das estantes cheias de prêmios musicais à bagunça permanente do lugar, com as mesas sempre cheias e pilhas de livros e partituras pelos cantos. Viktor achava, às vezes, que ela passava mais tempo ali do que em seu próprio quarto. Assim, se ousasse ser sincero, o piano fora o que o atraíra, mas Aberash foi o que o fizera ficar.

A coisa toda ainda era muito estranha para ele. Fazia dez anos que Aberash estava frequentando e vivendo naquele palácio, então era lógico que Viktor sabia quem ela era. Por mais da metade daquela década, contudo, ele só tinha uma vaga noção de sua presença. Não estivera no evento em que ela foi apresentada à família real, com uma performance musical que acendeu o interesse de metade da população, nobre ou não, sobre ela. Sem curiosidade de procurar entender a agitação em torno de uma cantora desconhecida, só começou a prestar atenção de fato quando foi colocado no posto de guarda pessoal do czareviche.

Aleksei passava bastante tempo com Aberash e, por isso, Viktor começou a vê-la, ou melhor, reparar nela com mais frequência. Principiou a entender a fascinação com a mulher, com sua calma irreal, com a maneira como transitava pelos lugares com a confiança e firmeza de quem sabia para onde estava indo. Viktor não era um homem particularmente sensível e muito menos poético, mas, em algum ponto, tinha chegado à conclusão de que precisava de uma metáfora melhor para descrever a presença de Aberash. Costumavam descrevê-la como o sol ou qualquer coisa brilhante e quente, mas para ele isso era raso, genérico demais. Isso porque havia algo afiado guardado sob toda aquela gentileza, e Viktor se surpreendia com o fato de que só ele parecia enxergar aquilo.

Não que fosse possível perceber isso naquele momento, com o vento fresco entrando pelas janelas meio abertas carregando o cantarolar baixinho que ela entoava até os ouvidos do guarda, em uma melodia familiar, mas ele não conseguia reconhecê-la ainda. Era quase uma pena que ela tivesse parado para falar com Viktor.

— Você poderia tocar para mim? — Ele franziu as sobrancelhas, estranhando o pedido. Ela com certeza já tinha percebido como Viktor rondava o instrumento e devia perceber que a escolha de não tocar era deliberada. O que ela disse em seguida, para justificar o pedido, era tão descaradamente comum que ele teve certeza de que ela estava fazendo de propósito. — O arranjo é complicado demais para tocar e cantar ao mesmo tempo.

— Não. — A resposta saiu antes que ele conseguisse pensar em um jeito menos brusco de dizê-la. Não que soubesse como fazê-lo, de qualquer maneira.

— Quer olhar a partitura, pelo menos? — disse ela, inabalada. Se, de algum jeito, Viktor tinha passado a conhecer a cantora nos últimos anos, sabia que ela não costumava pedir pela mesma coisa mais de duas vezes, jamais a vira sendo insistente. Sabia que resolveria a questão com mais um “não”, mas a segunda negativa estava mais difícil de proferir.

— Tudo bem. — Acabou cedendo, se levantando para olhar a folha para a qual ela apontava. Talvez fosse um compositor que ele detestava e o “não” sairia de sua boca com a facilidade de sempre. Quando viu a música, contudo, outras questões lhe ocuparam a cabeça. — Isso… Em que momento você pretende cantar isso?

— Antes da abertura das danças, é meu presente para o Aleksei. — Ela abriu um sorriso bem-humorado. — Muito dramático para o seu gosto?

— Imagino que seja apropriado para o tema do baile — admitiu ele, mas não era bem esse o problema. — Essa música não tem um sentido romântico na obra original?

— Bom, pensando no contexto da peça, eu acho que depende do ponto de vista — respondeu, dando de ombros. — Eu particularmente acho que soa melhor separada de sentimentos românticos, e é assim que pretendo cantá-la.

— Não acho que sua intenção vá fazer diferença.

— Na verdade, faz bastante. Ou você vai me dizer que essa letra é literal o suficiente para não ter mais de uma interpretação?

Viktor abaixou os olhos para o papel mais uma vez, relendo as estrofes. As imagens que a letra conjurava eram bonitas, majestosas até, mas um tanto sombrias. Podiam ter relação com o tema do baile, mas o fato de ser um presente para o czareviche era o que não se encaixava. O que Aleksei tinha a ver com aquilo?

— Que outra mensagem sairia disso? — acabou perguntando, não entendendo a que ponto Aberash queria chegar.

— Uma de liberdade — respondeu, e soou como se ela estivesse lhe contando alguma coisa realmente importante. E ele, mesmo sem entender de fato, se percebeu concordando com ela e com o segredo debaixo do que dizia.

— Certo — disse, por fim, dando a volta no piano e se sentando no banco. Não deu explicações sobre sua mudança de ideia repentina e ela não fez mais do que abrir um sorriso animado diante de sua escolha em ajudá-la, indo procurar uma estante para colocar a partitura. Foi com certa irritação que percebeu o quanto gostou de ter causado tal reação. — Não sei por que depende de mim quando tem uma orquestra inteira disposta a te ajudar.

— Eu não posso chamá-los para um ensaio tão em cima da hora. Além do mais, sempre quis te escutar tocando, não abriria mão dessa oportunidade nem pela melhor orquestra — respondeu ela, postando-se ao lado do piano. Desconcertado com a sinceridade na voz dela, Viktor pigarreou, tentando voltar a situação para um terreno que ele conhecia um pouco melhor:

— Posso começar?

— Por favor.

Viktor achou, de verdade, que fosse ser mais difícil. Que fosse se incomodar mais de voltar a tocar justamente na companhia de outra pessoa, que as memórias de sua mãe e as aulas de música com ela viriam com um gosto amargo. Mas não. Demoraram um pouco para se ajustarem um ao outro, com a dificuldade a mais de Viktor estar tocando quase de primeira vista, mas os erros não chegavam a pesar, a atitude de Aberash, de parar, retomar do ponto em que tinham enroscado e tentar mais uma vez era um calmante potente nesse sentido. E, bem, quando entraram no mesmo ritmo, o ex-caçador quase parou de novo, admirado com a vivacidade sonora que estava ecoando pela sala.

Aberash estava certa sobre a diferença que a intenção fazia, concluiu entre uma nota e outra. Na voz dela, a letra queria dizer outra coisa, não era só uma canção de outra pessoa, era dela agora, e servia a outros propósitos. Era uma contadora de histórias excelente. Foram necessários dez anos, mas Viktor finalmente concordava com o que vinham dizendo sobre Aberash desde que fora notada pelo público: tinha um talento e habilidade que nascia uma vez a cada geração.

Só pararam várias repetições depois, e Viktor sentia as articulações dos dedos e pulsos reclamando, a dor o trazendo de volta para a terra, para longe do estado leve em que estivera. Fazia muitos anos que deixara de ter mãos de pianista para ter as mãos de um assassino, afinal. Um tipo de melancolia tão familiar quanto perigosa estava começando a se infiltrar em seu peito, mas foi impedida de se alastrar demais quando Aberash o chamou para uma mesa redonda perto da janela da direita da sala.

Sentando-se, Viktor percebeu, com certo humor, que aquele era o único canto, fora o piano no centro, que não estava cercado por pilhas de folhas no chão.

— Eu não te imaginava como uma pessoa bagunceira — disse, quando ela se sentou à frente dele, pousando o bule e as xícaras de chá que ela tinha tirado sabe-se lá de onde em cima da mesa. Não sabia por que estava dizendo isso àquela altura, depois de inúmeras visitas à sala. Mal entendia de onde aquela vontade de conversar estava vindo.

— É de família. Herdei a desorganização do meu pai e a boa memória da minha mãe. — Ela abriu os braços, mostrando seu caos particular com um orgulho muito fora de lugar. — Ou seja, nunca perco nada. Tudo perfeitamente catalogado, mesmo que esteja no chão.

Viktor olhou para ela por um segundo, incrédulo. Depois, desistindo de falar qualquer coisa, se limitou a balançar a cabeça e beber o chá, percebendo, com algum alívio, que o calor da xícara diminuía o desconforto de seus dedos enferrujados. Dava para sentir a sombra de um sorriso passando por seus lábios. Ficaram num silêncio tranquilo por alguns minutos, até Aberash se pronunciar mais uma vez:

— Obrigada por me deixar te ouvir hoje.

Ele a encarou, estranhando o agradecimento específico, não por ajudá-la ou por tocar simplesmente. O pior, contudo, era que se sentia muito mais reconhecido com essa escolha particular de palavras. Não gostava daquilo e não era a primeira vez que acontecia; como se ela visse nele mais do que os outros, assim como ele fazia com ela. Fazia Viktor perceber que estava chegando perto demais e era hora de dar dois passos para trás e sair de perto do limite que delimitara para si mesmo.

— Disponha — respondeu, e, antes que ela pudesse dizer algo mais, completou. — Preciso ir.

Ele jurou ter visto um vislumbre de tristeza na expressão dela, mas passou tão rápido quanto tinha vindo e, quando ela respondeu, já tinha seu sorriso usual no rosto.

— Vou esperar pela próxima reunião do conselho, então.

Com um aceno rápido, ele deixou a sala, se arrependendo no mesmo instante em que pisou fora da porta, mas não voltou atrás. Ainda que conseguisse ver que Aberash era mais que a tranquilidade que emanava, capaz de encarar violência sem uma única mudança de expressão, com uma naturalidade para lidar com a escuridão dos outros, ela ainda emanava luz demais para ele. E a maioria das coisas que Viktor guardava dentro de si não deveriam encarar a luz do sol jamais.

***

Elizaveta tinha tentado, de verdade, não criar expectativas. E só percebeu que acabara tendo algumas quando as viu sendo decepcionadas uma a uma a cada dia de pesquisa infrutífera.

— Kat, eu acho que já fizemos o suficiente — disse ela, fechando o quinquagésimo arquivo sobre famílias residentes da região em que nascera. — Tem algum ditado sobre admitir a derrota na hora certa e acho que a gente devia segui-lo.

Katherine tinha uma força de vontade louvável, o que, combinado com seu jeito doce de ser, acabava tornando o otimismo que ela tinha adotado naquela empreitada muito genuíno aos ouvidos de Eliza. Agora, contudo, ela mal conseguia esconder que também estava cansada daquela busca em círculos.

— Os exercícios para sua memória não estão funcionando? — perguntou ela, largando o livro de genealogia que folheava na mesa que vinham ocupando a dias em uma das salas privadas na biblioteca.

Eliza suspirou, ponderando sobre o que responder. Katherine tinha tido aquela ideia em algum momento da semana anterior, e ficara tão empolgada com a possibilidade que Elizaveta não teve coragem de recusar. Fazia um tempo que a outra estava tendo aulas de autocontrole com Aberash e tinha lhe ocorrido que a cantora talvez soubesse um jeito de remexer nas memórias enterradas de Eliza. Era um tiro no escuro, mas deu certo. Fazia uns quatro dias que Elizaveta colocava os exercícios que Aberash tinha lhe sugerido em prática, e os resultados não eram nulos, mas também não eram nada que ajudasse realmente.

— Não sei dizer muito bem. — Ela parou, procurando o jeito mais compreensível de explicar a confusão que estava rodando em seu cérebro nos últimos dias. — Antes não tinha nada e agora eu sei que existe alguma coisa ali. Mas é como se tivesse uma neblina no meio de tudo. Às vezes só escuto sons, às vezes são pedaços de imagens e nenhum faz sentido, tanto que eu começo a esquecer deles no segundo seguinte.

— No fim, talvez você precise mesmo daquele “catalisador” — concluiu Katherine, e Eliza concordou. Aberash tinha avisado que, dependendo de quão enterradas aquelas memórias estavam, Elizaveta precisaria de algo para incentivar as lembranças, alguma linha que a ligasse ao seu passado, por mais solta e desconexa que parecesse.

— E parece que não vamos encontrá-lo. Sério, Kat, quanto tempo mais podemos continuar nessa procura? Tem coisa muito melhor para fazer nesse palácio. — Era melhor desistir quando ainda podiam encarar aquela pesquisa toda com algum humor. Eliza não queria começar a ficar rabugenta por estar gastando suas horas no meio de livros, mapas e documentos digitalizados. — Eu posso finalmente te ensinar a jogar Durak, vai te divertir muito mais que isso aqui.

Katherine riu, nem tentando contestar a afirmação.

— Eu gostaria muito disso, mas tem mais uma última coisa que a gente devia tentar. — Ela olhou para o corredor, como vinha fazendo há alguns minutos. Parecia esperar alguém. — Me dei conta que talvez eu tenha superestimado o tanto de informação que estaria à nossa disposição aqui, então pedi ajuda para podermos ir um pouquinho além. Se não funcionar, eu me rendo.

Elizaveta só teve tempo de levantar uma sobrancelha diante daquela informação nova antes de Aberash despontar no corredor. Vinha na direção da sala que as duas ocupavam e estava carregando alguma coisa. Quando chegou mais perto, Eliza viu que era uma caixa retangular de papelão.

— Deu certo? — perguntou Katherine assim que a cantora entrou na sala, colocando a caixa sobre a mesa. Ela mal conseguia conter a empolgação em sua fala, o que lançou uma onda de curiosidade sobre Eliza que se intensificou diante da resposta positiva de Aberash.

— O que deu certo, exatamente?

— Estes — respondeu a cantora, colocando a mão sobre a caixa — são documentos retirados diretamente do quartel dos caçadores.

Elizaveta ficou chocada o suficiente para não saber o que responder, os olhos correndo entre a caixa, Aberash e Katherine. Como? Elas não tinham noção de perigo? Como diabos podiam ter roubado algo dos caçadores? Percebendo as perguntas estampadas em sua expressão, Aberash se adiantou para responder:

— Tenho um amigo treinando para se tornar caçador. — Elizaveta não sabia o que era mais bizarro: uma bruxa ter um amigo aspirante a caçador e ele estar disposto a roubar por ela ou o fato de parecer haver algum outro significado debaixo daquelas palavras. — Como novato, ele tem acesso a uma biblioteca de casos antigos para estudo, e conseguiu encontrar alguns documentos que poderiam ajudar no seu caso.

— Você… Você contou de mim para ele? É sério? — Eliza não queria soar tão exasperada, mas precisava saber se devia arrumar suas malas e fugir daquele palácio antes que fosse tarde demais.

— Ele é de extrema confiança. Lhe contaria mais se eu pudesse, mas, até que seja seguro, ficamos só nisso. Mesmo assim, só pedi que me desse tudo relacionado à região da sua cidade natal, não mencionei que era para você. — Eliza não estava tranquila com aquilo ainda, o que Katherine pareceu perceber, intervindo. Na verdade, sua amiga estava surpreendentemente calma; talvez tivesse conhecido Aberash o suficiente nas tais aulas para confiar nela.

— É seguro ficarmos com isso?

— Pelas próximas três horas, sim. Os caçadores novatos têm um exame amanhã, e estão usando a biblioteca em massa e mexendo em muitos arquivos. Ninguém vai dar falta desses aqui, mas tenho que devolvê-los assim que começar a escurecer. Podem trabalhar com esse prazo?

Elizaveta assentiu junto com Katherine, decidindo pular o absurdo daquilo e focar na urgência que a busca tinha agora. Não sabia exatamente por que, mas tinha muita certeza de que, se a informação que buscava não estivesse naquela caixa, não estaria em lugar nenhum. Havia, claro, a chance de ser um caso tão singular que não estivesse à disposição de caçadores novatos, mas Eliza preferia ignorar essa opção. A ideia de saber que a informação existia, ela só não poderia alcançá-la jamais, seria o suficiente para enlouquecer.

 — Vamos começar, então — disse Eliza, tirando a tampa da caixa e começando a dividir os documentos em duas pilhas enquanto Katherine desocupava a mesa lotada, empurrando os materiais que tinham até o momento para um canto.

— Elizaveta, por que você decidiu começar essa busca? — Eliza levantou os olhos do que estava fazendo, encarando Aberash por um momento. Não se incomodava de responder, mas, até então, a outra não tinha pedido uma única explicação. Por que agora?

— Quero saber quem eram meus pais. — Normalmente, ela pararia por aí, mas as razões tinham começado a ficar mais evidentes, mais pontiagudas naqueles meses no palácio. E talvez fosse justo dizê-las para a pessoa que tinha roubado dos caçadores para ajudar. — Não sei, talvez encontrar uma foto para que eu possa visualizar eles, procurar alguma coisa que indique quem eles eram, como se portavam. Saber qual é meu sobrenome de verdade seria bom também.

Não quis explicar que a coisa do sobrenome estava martelando em sua cabeça desde aquela aula de etiqueta catastrófica. Também não quis dizer que queria encontrar algum jeito de saber se seus pais estariam orgulhosos dela agora, se tinha conseguido, contra todas as circunstâncias, se tornar um pouco parecida com eles. E se isso era bom ou ruim.

A resposta pareceu agradar Aberash, que assentiu, quieta. Elizaveta nunca tinha visto a mulher tão séria.

— São motivos muito bons, mas também são motivos muito tristes. — Aberash passou os olhos pelos documentos espalhados na mesa, e Eliza não esperava ver um traço de melancolia, tão familiar quanto olhar em um espelho, na expressão da outra. Talvez por isso prestou tanta atenção no que ela disse em seguida. — Tristeza e luto fazem coisas estranhas com as pessoas, sabe?

— Claro, convivo com isso há anos.

— Compreendo, mas o jeito que você encara suas perdas vai mudar agora. Saber das coisas tem esse poder. Talvez você encontre fechamento e felicidade nisso tudo, mas pode ser que encontre raiva e coisas mais nocivas. Espero que não se esqueça do porquê começou com essa procura quando as respostas vierem.

Elizaveta não sabia se aquilo era um conselho ou uma premonição. De qualquer forma, soara grave e, o mais preocupante, verdadeiro. Eliza vinha gastando suas noites pensando no que faria caso descobrissem sobre seu passado realmente, e não se iludia achando que estaria limpo de sangue e dor. Até o momento, porém, achava que poderia passar por qualquer emoção que fosse desenterrada em silêncio, sem grandes consequências.

— Sei cuidar de mim mesma, não se preocupe — acabou respondendo, abrindo o sorriso mais convincente do qual era capaz. O sorriso que Aberash deu em resposta, concordando, ainda parecia um tanto triste.

— Vou deixar vocês trabalharem. Quando der o horário, volto para buscar a caixa, se certifiquem de colocar tudo de volta, por favor. — E, com isso, a cantora despediu-se, deixando Elizaveta e Katherine sozinhas com aquelas pilhas de relatórios.

Cientes do tempo curto, começaram a revirar os arquivos. Não podiam gastar as poucas horas de que dispunham conversando, pensando muito sobre o que Aberash tinha dito ou, pior ainda, dar muita atenção ao fato de Eliza sentir as mãos tremendo quando pegou o primeiro documento que leria.

A maioria dos registros era irrelevante, o que era esperado, uma vez que a área abarcada era grande e tinham anos de ocorrências para verificar. Também era evidente que aqueles documentos tinham sido escolhidos com pressa; alguns eram de regiões diferentes com nomes parecidos, outros só citavam a cidade de Eliza, mas falavam de outra coisa. Assim, demorou quase uma hora e meia para que Elizaveta colocasse os olhos sobre um relatório contendo algo importante.

E foi como se fogos de artifício começassem a explodir em sua mente.

Uma memória voltava a cada linha que ela lia. O catalisador tinha funcionado, e estava tudo vindo de uma vez. Conseguia perceber que Katherine estava chamando, mas não tinha condições de fazer nada além de continuar lendo.

O relatório contava sobre uma operação realizada há 16 anos em Arsen. Entre os detalhes da localização do coven e características da região, Eliza viu sua casa, viu caminhos que devia ter percorrido com seus pés minúsculos de criança. E, quando chegou à lista dos bruxos envolvidos no ocorrido, viu seus vizinhos, seus parentes e amigos de seus pais. E ela simplesmente soube quem eles eram quando viu os nomes.

Matvey e Karina Levin.

Ela conseguiu ver seus rostos e as lágrimas caíram imediatamente. Porque os olhos de sua mãe eram como os seus e tão vastos quanto o oceano, porque seu pai tinha cabelos tão loiros que poderiam ser brancos, e tão fofos quanto neve. Porque a memória deles era tão latente que ela não podia acreditar que tinha conseguido esquecer.

Elizaveta estava sentindo coisas demais. Era um amor profundo, uma saudade enorme, uma perda que não tinha fundo. E, mesmo assim, ela não conseguia parar de ler.

Descendo os olhos pela página, ela sabia exatamente pelo que estava procurando, movida por um sentimento que estava gritando mais alto do que todos os outros: ira. E, quando encontrou o que queria, soube imediatamente de quem se tratava. Soube que ele andava por aquele palácio todos os dias e isso moldou sua raiva em outra coisa: necessidade de vingança. Tão grande e tão impositiva que aquele nome, o nome do comandante da operação que tinha destruído sua vida, parecia maior do que todos os outros:

Viktor Malenkov.

 


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Notas finais do capítulo

Bom, gente, pra finalizar vou falar de uma questão que não é nem bacana nem estritamente necessária, mas senti necessidade de deixar registrado aqui de qualquer forma. Acho que vocês já devem estar sabendo da invasão russa à Ucrânia. O que isso tem a ver comigo e com essa fanfic? Na real, nada. Estou escrevendo sobre uma Rússia totalmente fictícia, me utilizando de algumas tradições culturais, alguns nomes e olhe lá. Mas, já que eu me conheço bem, sei que cada menção a guerra que eu colocar dentro da história vai me lembrar do que está acontecendo de verdade, não tem jeito. Guerra de verdade não tem graça e é muito mais violento do que eu seria capaz de representar aqui, e espero conseguir deixar isso claro quando as discussões sobre isso ficarem mais acirradas no enredo. A intenção não é, jamais, representar conflitos bélicos como algo positivo. Por enquanto, fico com esse recado/reflexão mal articulada.

Não tenho pretensões de tocar nesse assunto de novo - mesmo que estejamos longe do conflito, falar de guerra sempre dá medo, e fanfic é, geralmente, um jeito de se distrair dessas tensões lá fora. Eu só queria deixar isso registrado aqui porque, no momento, me parece importante.

É isso, minha gente! Espero que estejam bem dentro do possível e até o próximo capítulo o/



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