Morte no Espelho escrita por LudmilaH


Capítulo 2
Capítulo 2 – Inquérito




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Emílio observava a garota que o acompanhava com minuciosa atenção. Jéssica tinha encostado-se a um dos armários postos à parede, com os braços cruzados e a expressão sisuda encarando o nada. Não parecia desconfortável por estar numa sala de autópsia do pequeno IML local, instalado nos subterrâneos do único hospital da cidade, como Emílio talvez esperasse de uma garota. Seu cenho franzido espelhava muito mais uma expressão decidida do que assustada, amedrontada ou agoniada, e o maxilar quadrado estava ligeiramente tensionado, como se ela mastigasse uma ideia. Emílio percebeu que nunca tinha reparado realmente em Jéssica desde que ela chegara, há poucos meses. Estivera sempre evitando as ideias dela, que sempre lhe pareciam mirabolantes demais. Jéssica tinha vindo de uma cidade grande, onde os criminosos tinham criatividade e os detetives, trabalho. Laranjal não era assim; se alguém morria, ou era de infarto ou afogamento no rio, no máximo uma briga de faca. Não havia assassinatos misteriosos, com aparições repentinas e investigação profunda sobre o caso – bom, pelo menos não até agora.

Emílio virou-se para a porta quando a ouviu se abrindo. Gustavo Amaral, com sua costumeira barba perfeitamente aparada e elegância habitual, entrou na sala esterilizada e dirigiu um sorriso grande ao delegado.

— Delegado Carvalho – disse ele, cumprimentando o outro que lhe sorria de volta com um gesto enérgico de mãos.

— Fala Gato – devolveu ele, informal demais. – Tudo vivo por aí?

— Quase tudo – respondeu o outro, acompanhando o amigo numa risada. Em seguida, dirigiu-se à mulher que se levantara para cumprimentá-lo.

— Dr. Amaral – disse ela, oferecendo-lhe a mão.

— Detetive Arruda – respondeu ele com um sorriso mais contido, embora não menos bonito. Emílio viu quando um sorriso de lado escapou dos lábios da moça.

— Nunca vou me acostumar a alguém chamando você de "doutor Amaral" – comentou Emílio, ao que Gustavo soltou uma risada gostosa.

Jéssica riu também, embora bem mais contida. Tinha certeza que se acostumaria facilmente a chamar Gustavo Amaral de gato, se ela não encarasse aquilo como uma relação estritamente profissional.

 - Fomos colegas no ensino médio – disse o legista à detetive, incluindo-a no assunto. – Um dia, um dos nossos amigos reparou pela assinatura na lista de chamada que eu abreviava meus dois primeiros nomes, Gustavo e Amaral pela primeira letra, mas não o último, Toledo.

— Ainda lembro que o Bruno costumava te chamar de Gato Lindo naquela época – acrescentou Emílio, à beira de uma risada. Gustavo pareceu enrubescer um pouco, embora também sorrisse.

— Nunca mais consegui me livrar deles. Nem dos apelidos, nem dos caras.

— Ah, qual é – disse Emílio, dando um tapa no ombro do outro. – O apelido era perfeito pra você!

— Acredito que sim – disse Gustavo, a título de encerramento de conversa. Emílio riu, e Jéssica o acompanhou com um sorriso. O legista então virou-se, dirigindo-se para a mesa onde o corpo esperava. – Tenho que admitir que levei um susto ao ver esse cara, Emílio. Na hora, pensei que alguém tinha ficado realmente muito bravo com as suas gracinhas. Não seria a primeira vez.

Emílio riu.

— Bem, pelo menos ninguém me esquartejou ainda. – disse simplesmente. – E pode ter certeza que, se alguém tivesse tentado, teria pelo menos dois corpos nessa sala agora.

— É no que você se força a acreditar, não é? – perguntou Gustavo. – Diga-me qual foi a última vez que você fez um teste físico pra valer.

O delegado pensou um pouco. Realmente fazia muito tempo.

— Eu estou em forma, Gato, obrigado. – replicou ele, franzindo o cenho. – Não conseguiria fazer metade do meu trabalho se não estivesse.

— É claro que sentar atrás de uma escrivaninha e gritar com todo mundo que te interrompa é um baita exercício físico mesmo. – alfinetou ele. – Mas vamos direto ao ponto – continuou quando Emílio abriu a boca para responder. Então, o delegado calou-se, embora ainda parecesse uma criança contrariada. – Nosso desconhecido sofreu uma tortura tremenda, dessas de histórias de terror. Numa primeira análise, vi marcas de cordas nos braços e nas pernas, no pescoço, marcas de lâminas e coisas pontiagudas nos braços, tórax e coxas, parece que alguém andou brincando com fogo com as costas dele também. Não sei o que queriam, mas não pareciam estar brincando. Ou pelo menos foi o que pensei, até a minha segunda análise.

Gustavo contornou a mesa, deixando o espaço do lado oposto para que os dois se aproximassem. Em seguida, abriu a camisa do morto, mostrando os vários ferimentos a que tinha se referido.

— Como podem ver, ele está morto há vários dias, talvez semanas. E nenhum dos ferimentos apresenta nenhum tipo de cicatrização, ou inchaço, ou qualquer coisa do tipo, o que é muito estranho, porque é como se o corpo não estivesse reagindo a todos esses ataques. Agora imagine, o corpo humano, com toda a perfeição de que é composto, não reagir desesperadamente a nenhuma das dezenas de agressões que sofreu, como se estivesse inerte? Só há uma explicação plausível pra isso.

— Já estava morto quando foi torturado. – A voz de Jéssica surgiu ao lado de Emílio, que tomou um susto quando a garota falou. Seu tom compenetrado era mais grave do que ele jamais havia ouvido, e seu raciocínio lógico também o sobressaltara.

 - Exatamente, detetive. – Gustavo concluiu, encarando-a. – Nenhum dos ferimentos externos foi a causa mortis deste cidadão, isso eu posso afirmar.

— Então o que foi? – perguntou Emílio, muito sério.

— Isso eu não posso afirmar – disse o médico. – acredito que ele tenha sido envenenado, por vias aéreas, mas não tenho certeza. Enviei uma amostra de sangue para que analisassem no laboratório.

— E quanto tempo leva? – perguntou Jéssica.

— Uns dois dias, no mínimo. – respondeu ele, e tanto a detetive quanto o delegado deixaram os ombros caírem, soltando um suspiro de frustração. – Como não temos laboratório dedicado, usamos o do hospital, e uma vez que o cara está morto, não há nenhuma prioridade pra ele. Sinto muito. – resumiu Gustavo aos dois que o olhavam.

— Seria bom sabermos com o que tomar cuidado, caso seja um caso de mortes em série. – disse a mulher.

— Arruda, eu já te falei pra não inventar histórias. – gritou Emílio. – Não podemos supor um serial killer com um corpo só, pelo amor de Deus.

— Não é de um serial killer que estamos falando, delegado. – disse ela, encarando-o muito séria. – E o senhor sabe disso. Se a vítima não morreu por algo que estamos vendo, não sabemos com o que o assassino a matou. E pode ser que caiamos numa armadilha simples por causa desse detalhe mínimo. Agora, eu gostaria que o senhor me deixasse fazer meu trabalho.

Emílio olhou dela para Gustavo, que lhe encarava com um mal disfarçado sorriso de canto. Então desistiu de discutir.

— Tudo bem, o que conseguir fazer para agilizar essa análise, faça, ou estaremos perdendo tempo. E você, Gato, o que mais descobrir, nos conte. Estaremos prontos pra novas informações.

— Pode deixar – disse o homem, sorrindo, e o delegado saiu da sala de autópsia, a detetive em seu encalço.

***

 Ambos estavam em silêncio desde que tinham saído do hospital. O motor barulhento da caminhonete da delegacia embalava a viagem de poucos minutos, embora nenhum dos dois parecesse nem ligeiramente confortável na situação.

Jéssica olhou o delegado enquanto ele dirigia, muito atento e sério. Em seguida desviou os olhos novamente para a rua adiante, onde logo mais a frente estaria a base de polícia.

— Quer parar de me olhar como se eu fosse explodir, Arruda? – perguntou o homem, num tom que poderia ser para qualquer assunto. Não parecia nervoso, nem exaltado. Apenas sério. – Não vou aparecer esquartejado de repente, pode ficar tranquila.

A moça sorriu com o rosto baixo enquanto o homem estacionava o carro grande.

— Tem certeza? – perguntou ela. Emílio tirou a chave da ignição, abriu a porta e não respondeu.

Jéssica desceu do carro e seguiu-o em direção à entrada da delegacia.

— Você vai solicitar escolta? – perguntou ela.

O homem parou de repente, virando-se para trás. Jéssica parou na sua frente, encarando-o séria de volta.

— Arruda, preste bastante atenção. – pediu ele. – Eu não tenho nada a ver com este caso. Tenho certeza de que o fato de o homem ser parecido comigo não passa de mera coincidência, ok? Ninguém vai me atacar.

— Então por que acha que deixaram o homem na entrada do seu trabalho?

— Provavelmente acharam que era eu. – disse o homem.

— E alguém ia matar um cara aleatório, torturar um corpo morto e deixar na sua porta por achar que era você? – perguntou ela, e Emílio abriu a boca para responder. – Não faz o menor sentido – ela o cortou, e ele fechou a boca com um suspiro. – Emílio, precisa acreditar que pode ter sim alguém atrás de você!

— Não há motivo – ele respondeu, pausadamente.

A moça rolou os olhos e bufou.

— Eu conheço pessoas de confiança, ok? Ninguém vai nem ficar sabendo... – disse ela, sacando o celular. Então Emílio a encarou, colocando a mão em seu braço, fazendo-a encará-lo de volta.

— Jéssica, pare. – pediu ele. – Eu entendo que esteja preocupada comigo, mas nada assim nunca acontece em Laranjal. Não há perseguições, não há maníacos, só uns poucos fazendeiros paranoicos e uma elite que acha que... – então o homem parou, encarando um ponto indistinto às costas da mulher. Ela olhou para trás, mas não havia nada.

— O que foi? – perguntou ela.

— Uma elite que acha que pode tudo. – Ele terminou a frase, encarando-a. Jéssica arregalou os olhos.

— Fernanda Gonçalo encontrou o corpo. – disse ela.

— E disse que só o tinha visto na saída, mas mal passou dois minutos lá dentro, não daria tempo de alguém entregar um corpo e sumir de vista sem que ninguém notasse.

— E você ameaçou o filho dela dizendo que podia prendê-lo se ele prestasse queixa.

— Talvez ela quisesse me deixar com medo ou me dar uma lição.

Jéssica olhou para ele, parecendo assustada.

— Fernanda Gonçalo mataria uma pessoa para te deixar com medo por ter ameaçado o filho dela? Não parece um pouco demais?

Emílio parou e pensou.

— Parece – admitiu. – Mas até agora, é a melhor hipótese que temos.

Jéssica deixou os ombros caírem, um pouco frustrada. Ele tinha razão.

— Vai solicitar a escolta agora?

Emílio quase deixou um sorriso escapar por seus lábios antes de virar-se para entrar na delegacia.

***

Emílio entrou na sala e deixou-se recostar na cadeira, franzindo o cenho. Tinha deixado Jéssica na repartição para verificar as evidências colhidas, e conversar com Carla sobre a suspeita dos dois. Com certeza, ela iria agora correr atrás de antecedentes criminais da família Gonçalo, de seus empregados e de casos parecidos na cidade, e talvez até achasse alguma pista que pudesse parecer promissora. Talvez ela ficasse ocupada o suficiente, pensou Emílio.

Jéssica tinha vindo para a cidade há pouco mais de seis meses. Emílio se lembrava de sua expressão sonhadora e enérgica quando se apresentara a ele, e de como seu sorriso murchara desde então, com a sua recusa em lhe dar os casos para investigar. Emílio se lembrava de ter pensado em como uma moça tão bonita e jovem escolhia uma carreira de investigações na polícia, com todo o perigo que a profissão oferece. Lembrou-se de ter pensado que ela não sabia onde estava se metendo, e nem com que pessoas iria lidar. Lembrou-se de ter querido poupá-la, e riu. Quanta ironia da vida.

"Não devia tê-la subestimado", pensou ele, sacando o maço de cigarros que escondera de si mesmo alguns meses atrás. Jéssica passava a maior parte do tempo na delegacia, sabia de sua rotina, de seus hábitos. Com certeza já tinha ouvido pelos corredores a história do torturador de policiais que Emílio prendera uma vez, quando ainda trabalhava na capital. Ela tinha treinamento militar, e vinha de uma cidade grande onde com certeza tinha contatos. Sabia o momento de deixar um corpo na calçada sem que ninguém visse, e talvez tivesse tomado o cuidado para que Fernanda Gonçalo fosse a primeira a tropeçar nele, tornando-a uma suspeita em potencial. Jéssica queria tirar Emílio do caminho, e se não conseguisse amedrontá-lo, talvez fosse capaz de tomar medidas mais drásticas.

Emílio acendeu o cigarro e deu um trago, sentindo a fumaça inundar seus pulmões e nublar levemente seus sentidos antes de soprá-la pra fora, vendo-a espiralar e se dissolver. Realmente trilhara um caminho perigoso, pensou. Jamais devia deixar uma mulher furiosa, e já devia ter aprendido isso depois do casamento rompido. Ela queria chamar uma escolta particular, pensou ele. Por mais que tivesse "pessoas de confiança", essas pessoas estariam na cidade grande de onde ela viera, a centenas de quilômetros dali. Por que diabos eles estariam, coincidentemente, fazendo um tour por Laranjal quando ela precisasse de sua ajuda? Seria fácil atacá-lo se ele confiasse que eles estavam fazendo sua proteção, continuou. E mesmo que não o matassem, ninguém saberia o que aconteceu quando eles dissessem que não viram ninguém entrando na casa. O delegado seria afastado da delegacia por tempo indeterminado até que as investigações – das quais Jéssica seria encarregada – fossem finalizadas. Ela mesma ameaçara tirá-lo do caso por envolvimento. Por que não o faria por outros meios?

Emílio tragou o cigarro outra vez e sorriu enquanto soprava a fumaça. Como sairia dessa agora? Mesmo que não solicitasse a escolta, Jéssica já devia ter armado tudo. Sabia onde ele morava, e já devia ter achado um jeito de entrar lá. Por um momento, o delegado sentiu-se encurralado, e tragou o cigarro outra vez. Talvez pudesse ir para outro lugar, mas não sabia qual, e, de repente, pensou em Gato. Se ligasse pra ele, poderia explicar a situação e ver se era possível passar alguns dias na casa dele, até que conseguisse provar que Jéssica estava tentando sabotá-lo, ou que ela desistisse da ideia. Olhou o telefone sobre a escrivaninha, mas será que ela o teria grampeado? Não podia ficar parado. Tragou o cigarro novamente e levantou-se, indo até a porta.

— Jonathan! – chamou ele, e o agente levantou-se. – Venha até aqui por favor.

Emilio entrou novamente na sala e tragou o cigarro outra vez. Agora a sala já estava envolta em fumaça. O agente entrou e piscou um pouco, abanou a mão em frente ao rosto e tossiu.

— Sim, chefe – disse. – O senhor não tinha parado de fumar? – perguntou.

— Sim, sim – disse o delegado, sentando-se. Então, deu outro trago no cigarro. Jonathan tossiu outra vez enquanto ele soprava a fumaça.

— Me desculpe por isso, mas o caso é sério. – disse Emílio, cochichando, curvando-se por cima da mesa para que o agente conseguisse ouvi-lo. A fumaça no ar já não deixava que as pessoas do lado de fora vissem com clareza o lado de dentro.

— O que aconteceu, senhor? Está desconfiando mesmo da sra. Gonçalo? – perguntou o agente.

— Estou desconfiando de alguém daqui de dentro. – disse ele, e o outro arregalou os olhos. – Mais especificamente de um detetive daqui de dentro. – continuou, abaixando ainda mais o tom de voz.

— Da Jéssica, senhor? – perguntou o agente. Emílio colocou um dedo em riste sobre os lábios.

— Shhh – fez. – Não sei quem está ouvindo. – Jonathan acenou com a cabeça, parecendo assustado. – Preciso que me faça um favor. Fique de olho nela. Qualquer ligação estranha, qualquer comportamento que você ache esquisito, quero que me conte. Pode fazer isso?

— Sim senhor – respondeu o agente. – Mas o senhor acha que ela pode mesmo estar atrás do senhor, delegado?

— Eu não sei, Jonathan. – disse ele. – Quero muito estar errado. Mas Jéssica tem um gênio forte, cometi um erro grave ao irritá-la investigando os outros casos sozinho. Se estiver certo, preciso me resguardar.

Jonathan acenou com a cabeça, parecendo atordoado. Em seguida, encarou o delegado, acenou novamente, desta vez com uma expressão decidida, e quando estava se levantando, Emílio segurou-o pelo braço.

— E não conte a ninguém. – disse, encarando-o muito sério. – Entendeu?

— Sim senhor.

— Entendeu? – insistiu.

— Sim senhor. – repetiu o jovem.

— Ótimo. – disse, soltando o braço do homem. – Agora vá lá fora e diga o quanto estou com medo por causa dessa investigação.

Jonathan estranhou.

— Com medo, senhor?

— Sim. – disse ele. – Quanto mais acharem que eu estou com medo, mais vou pegá-los desprevenidos. E então, eles saberão com quem estão lidando.

O agente assentiu, muito sério, e saiu da sala determinado. Emílio encarou o vidro, através da fumaça que começava a se dissipar. Jéssica o olhava de lado enquanto conversava com Carla, como se achasse que ele não estava vendo. Emílio tragou o cigarro uma última vez antes de apagá-lo no cinzeiro sobre a escrivaninha. Se achavam que seria fácil tirá-lo dali, estavam todos muito enganados.

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Notas finais do capítulo

Eita!



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