Morte no Espelho escrita por LudmilaH


Capítulo 1
Capítulo 1 – Notitia Criminis




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/763015/chapter/1

Emílio girou a maçaneta e a porta se abriu rangendo. O café ainda fumegava no copo em sua mão direita, mas o jornal em volta dele bloqueava a maior parte do calor. O homem recolheu o jornal com a mão livre e bebeu um gole do café forte, fazendo careta, e a porta se fechou à sua passagem.

A pequena acomodação que lhe cabia na delegacia parecia exatamente como ele a deixara na noite anterior. As mesmas pilhas de papéis se acumulando sobre a escrivaninha, os arquivos esquentando no sol quente que vinha da janela, o barulho de monomotor enferrujado que o ventilador de teto fazia – tudo parecia estar perfeitamente no lugar. O que era ótimo, claro. Um anúncio de que o dia estava pra ser o que se espera de um dia numa delegacia de cidade pequena do interior: pacato, sem emoções e nenhuma surpresa. Emílio sentou-se, suspendendo o café acima da papelada para ver o que havia ficado pendente desde ontem. O relatório sobre a prisão do dono do bar que não pagava a pensão da filha há dois meses ainda estava na metade, e a investigação sobre o veneno nas hortaliças do fazendeiro também estava por fazer. O homem, que alegava que alguém estaria sabotando suas plantações para fazê-lo vender a terra, tinha demandado um estudo profundo do caso e a proposta de uma solução.

Emílio suspirou. Desde que o detetive encarregado da cidade fora tomar posse em uma delegacia mais perto de sua cidade natal, ele como delegado tinha sido incumbido de exercer as duas funções enquanto ninguém era nomeado para ocupar o cargo. Não que estivesse reclamando ou se sentindo sobrecarregado. Não havia realmente muitos casos a serem investigados na cidade de pouco mais de dois mil habitantes, e além de tudo, talvez fosse melhor ele mesmo cuidar destes poucos do que deixar crianças inexperientes e sonhadoras levantarem hipóteses mirabolantes sobre tudo. Emílio levantou os olhos e viu, pelo vidro da parede que separava a sala da repartição, a cabeleira loira de Jéssica Arruda presa em um rabo de cavalo alto enquanto a menina encarava seriamente algum papel que estava em sua mão. Emílio suspirou outra vez.

Tinha apenas começado a redigir o relatório quando a porta se abriu de repente.

— A mulher do Canabrava está na linha 2 perguntando se os caras que assaltaram o bar no mês passado já foram presos. – declarou Valdênia da porta. Emílio estreitou os olhos para seus óculos de armações brancas, sem entender.

— Canabrava?

— O dono do bar. – respondeu ela. O delegado rolou os olhos pra cima.

— Eu já disse pra não chamar o cara assim. – Então foi Valdênia quem rolou os olhos, suspirando. – E diga à mulher dele que eles devem estar longe de Laranjal desde que os assaltaram, já disse isso a eles.

— E o que eu digo a ela quando perguntar por que você se ocupou prendendo o marido dela em vez de ir atrás deles?

— Diga que é porque ele não fugiu, agora saia! – disse o homem, ao que a gorda mulher suspirou e saiu, fechando a porta atrás de si.

Valdênia era responsável pelo setor administrativo da delegacia, o que incluía atender ao telefone e repassar os assuntos aos responsáveis. Mas ela já devia ter decorado algumas coisas, pensou Emílio. O delegado não atenderia qualquer um que questionasse suas ordens de prisão, muito menos quando eram flagrantes.

Menos de cinco minutos depois, Valdênia irrompeu novamente porta adentro.

— A Sra. Fernanda Gonçalo está na repartição querendo saber o que o senhor vai fazer com o garoto que ameaçou o filho dela na mercearia. – Emílio suspirou, fechando os olhos. E tinha torcido tanto para ser um dia calmo...

— Diga a ela que os dois já prestaram depoimento e foram liberados, sem acusações.

— Mas...

— Valdênia – o delegado interrompeu-a. – Eu estou tentando redigir um relatório, e Felipe Gonçalo não prestou acusações contra o garoto Ferreira, portanto não há o que tenhamos que fazer.

— Isso porque o senhor disse que poderia acusá-lo de lesão corporal se ele prestasse a queixa.

— E a mãe dele sabe disso?

— Não, mas...

— Precisa saber?

Valdênia encarou o homem.

— Ao que parece, não.

— Então a faça sair daqui, pelo amor de Deus!

A mulher levantou os braços, batendo as mãos nos quadris grandes em gesto de impaciência enquanto saía da sala. Emílio bufou, tentando se concentrar. Esquecera completamente o que estava escrevendo quando a mulher apareceu.

Alguns minutos depois, novamente a porta foi aberta.

— PELO AMOR DE DEUS, VALDÊNIA! – praguejou ele, sem olhar para a entrada. – Eu já não disse que estou tentando trabalhar?!

— Chefe – disse a voz grave do agente Jonathan, e Emílio finalmente olhou o rapaz. Parecia mais assustado do que ele jamais o vira. – Acho melhor o senhor vir ver isso.

Emílio franziu o cenho, preocupado, e seguiu o agente para fora da sala. Passou pela repartição, onde todos o olhavam com uma expressão estranha de medo. Franziu mais o cenho. Então, quando chegou à entrada da delegacia, entendeu tudo. Ou melhor, não entendeu nada.

O delegado chegou a dar um passo atrás ao ver a cena. Havia um corpo – alguém ensanguentado, acinzentado e imóvel demais para estar vivo – estirado nos degraus de entrada da delegacia. Já num primeiro olhar, era possível identificar sinais claros de tortura – o homem apresentava marcas de amarras nos punhos, muitos cortes na altura do abdome e do pescoço, e o rosto estava extremamente machucado. Mas, por incrível que pareça, o que mais chamava a atenção não era o fato de o corpo ter aparecido na delegacia ou o estado deplorável em que se encontrava. O que mais impressionava era o cabelo castanho começando a branquear, os olhos castanhos arregalados, o queixo pronunciado coberto com uma barba mal aparada que lhe dava um certo ar de desleixo. Até a estatura mediana, o corpo sem formas, a barriga pouco pronunciada de quem precisava começar a fazer exercícios. O corpo era exatamente igual a Emílio. O delegado engoliu em seco. Era como ver no espelho a própria morte.

Emílio desceu os degraus, desviando-se do morto. Fernanda Gonçalo engasgava ao lado da escada, chorando copiosamente cobrindo a boca com uma das mãos, a bolsa cara pendendo do braço cheio de joias.

— A Sra. Gonçalo foi quem encontrou o corpo enquanto saía da delegacia, chefe. – disse o agente. – Disse ter tropeçado no braço dele quando deixava a base.

Emílio encarava o corpo com a expressão muito séria.

— E ela não o viu quando entrou? – perguntou ele. Fernanda Gonçalo se mexeu ao seu lado.

— É claro que eu não vi um corpo ensanguentado no meu caminho enquanto entrava na delegacia! – defendeu-se ela. – Ou o senhor pensa que sou distraída a este ponto?!

Emílio fechou os olhos para não rolá-los para cima antes de se virar para a mulher.

— Eu só estou tentando entender o que aconteceu, Sra. Gonçalo – disse ele. – Pelo que me disseram, a senhora passou poucos minutos dentro da delegacia, precisamos primeiro entender como esse homem apareceu aqui.

— Porque o fato de ele ser você vai ser facilmente explicado, não é, delegado Carvalho? – alfinetou ela. Emílio encarou-a, devolvendo o olhar provocativo que a mulher lhe dirigia.

— Está bem claro que, se estou aqui falando com a senhora, com certeza não sou eu quem está estirado ali na escada, Sra. Gonçalo. Sugiro que vá pra casa e se acalme, com certeza está muito abalada.

Fernanda ainda sustentou seu olhar gélido por um segundo antes de se virar e se afastar, os saltos fazendo barulho ao bater no calçamento.

— Ah, na verdade, espere, Sra. Gonçalo. – corrigiu-se o delegado, fazendo a mulher parar e se virar para ele outra vez. – Teremos que colher seu depoimento na delegacia. A senhora é testemunha crucial do caso para descobrirmos o que aconteceu a este homem. Por favor, acompanhe o agente Jonathan enquanto isolamos a área e fotografamos o perímetro.

Fernanda voltou muito lentamente em direção a Emílio os passos que tinha se afastado. Seu olhar era de completa aversão e fúria.

— Se acha que vou ajudar a achar quem matou você, está muito enganado. – disse, cochichando. – Não sou a favor de aberrações na minha cidade. Principalmente aquelas que não sabem distinguir os figurões importantes de reles moradores da periferia. – concluiu.

— Se isto for uma ameaça, Sra. Gonçalo, posso prestar queixa contra a senhora agora mesmo. – respondeu o delegado, no mesmo tom que a mulher havia lhe falado. – Sei que a senhora gostaria que o seu filho tivesse feito a mesma coisa contra Pedro Ferreira, então entendo que a senhora conhece a gravidade do assunto.

A mulher pestanejou e não respondeu. Apenas bufou, jogando os longos cabelos pretos para o lado enquanto andava em direção ao agente, que a acompanhou enquanto ela desviava do cadáver para subir as escadas.

— Hugo, isole a área – começou Emílio, dirigindo-se à equipe, que se encontrava quase toda na calçada da delegacia. – Procure por rastros de sangue ou outras pistas, tagueie tudo e mande para análise. Não se esqueça de fotografar tudo. Carla, colha o depoimento de quem viu o corpo aqui, e lide com a Sra. Gonçalo lá dentro. Peça também as filmagens das câmeras de segurança ao pessoal da TI.

— Que câmeras? – perguntou a moça.

— Não é o meu depoimento que eu quero que você colha! – disse ele, e a menina virou os olhos antes de se dirigir para dentro da delegacia. – Jéssica – continuou ele, e a jovem detetive o encarou de volta. – Acione o IML, peça a eles para trazerem o Gato aqui, quero que ele faça a autópsia desse cara. Colha...

— ...Amostras de DNA e impressões digitais pra ver se o identificamos, ok, estou trabalhando nisso. – disse ela, enérgica. – Vai me deixar conduzir esse caso? O cara é uma cópia sua, posso alegar envolvimento pessoal e te tirar dele.

Emílio olhou para ela, sem acreditar.

— Como é?

Jéssica não pareceu se intimidar.

— Se não me deixar trabalhar, vou arranjar um jeito de me deixarem. – respondeu ela. – Ou podemos trabalhar juntos e pegar quem fez isso antes que outra coisa mais grave aconteça.

O delegado franziu ainda mais o cenho, parecendo rechaçar uma ideia absurda.

— Do que está falando...?

A moça deu um passo à frente, ficando bem próxima do homem antes de continuar.

— Um cara aparece quase esquartejado na porta da delegacia, e ele é a sua cara. Tem certeza que vai me dizer que não tem nada a ver com isso? – perguntou ela, alto apenas o suficiente para que ele ouvisse.

Emílio ainda pensou que havia muitas mulheres cochichando com ele naquela cena para que ele achasse aquilo saudável.

— Tudo bem, Arruda, vamos trabalhar juntos. – respondeu ele, dando-se por vencido. – Mas não pense que eu vou tolerar essas histórias malucas que você inventa pra conduzir a investigação, eu fui claro?

Jéssica sorriu de lado.

— Claro como água. – disse, e saiu a passos rápidos, subindo a escada pulando os degraus enquanto os outros já trabalhavam.

Emílio balançou a cabeça negativamente, e em seguida olhou mais uma vez para o homem morto na escadaria. Pensou por um instante que já vivera situações malucas na vida, mas aquela era com certeza a mais macabra de todas elas.

—--


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Oi pessoal! Quanto tempo, ne?
Deixem um comentariozíneo pra eu saber se não perdi a mão ahahahaha (ou se perdi, vai que..)

Beijos!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Morte no Espelho" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.