catch me if you can escrita por Izzy Aguecheek


Capítulo 6
VI


Notas iniciais do capítulo

Queria deixar registrado que, originalmente, esse era pra ser o último capítulo... E não é, porque esse plot fugiu do meu controle. É isso.



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Nas duas semanas entre o primeiro beijo delas e o ritual, Anne-Marie e Rori passaram a maioria das noites juntas. Foi a forma que Anne-Marie encontrou de impedir que Rori voltasse ao Timber Bell, e a forma que Rori encontrou de não se sentir sozinha. As duas estavam cientes de que se apaixonar não ia resolver as coisas – em várias dessas noites, foi sobre isso que elas conversaram –, mas estavam dispostas a fazer com que isso ajudasse.

Na maior parte das vezes, Rori entrava pela janela de Anne-Marie no meio da noite e só se deitava ao lado dela, sem dizer uma palavra. Em algumas noites, suas mãos estavam fechadas em punhos, e Anne-Marie as pegava e fazia com que relaxassem; elas passavam o resto da noite assim, se encarando no escuro, até caírem no sono. Uma ou duas vezes, as duas escapuliram para o topo do prédio onde haviam se beijado pela primeira vez, e passaram horas conversando sobre nada em particular, sorrindo quando seus olhares se encontravam e fingindo que podiam passar suas vidas inteiras ali.

Na véspera do ritual, porém, a família de Rori insistiu para que ela passasse a noite com eles, e Anne-Marie não podia culpá-los; ninguém podia prever o que aconteceria no dia seguinte. Ela e sua família jantaram com os O’Callaghan, mas se despediram logo após a refeição. Anne-Marie abraçou Rori com força.

— Tente dormir um pouco – aconselhou. – E, se não conseguir dormir, tente descansar.

— Você vai estar lá, não vai? – perguntou Rori, quando as duas se separaram. – Eles disseram que você pode vir, se quiser. Qualquer um que faça eu me sentir melhor pode vir... Eu sei que não vai ser divertido, mas...

— Eu vou estar com você – interrompeu Anne-Marie. Ela tocou o rosto de Rori delicadamente. – Prometo.

Rori soltou um suspiro trêmulo, como se tivesse estado prendendo a respiração.

— Estou te pedindo demais, Annie. Eu sei disso.

— Eu vou estar lá – repetiu Anne-Marie. – Não se preocupe com isso, certo? Guarde sua energia pra outras coisas. Você vai precisar.

Nós duas vamos, eu acho. Mas ela não disse isso.

Rori a beijou suavemente nos lábios. Nenhuma das duas tinha falado com os pais sobre o que estava acontecendo entre elas, mas Anne-Marie tinha certeza de que sua família sabia; talvez a de Rori também tivesse percebido, ou talvez Rori simplesmente tivesse passado do ponto de se importar com o que eles poderiam pensar. Fosse como fosse, ninguém ao redor delas pareceu surpreso, e, se tinha algo a dizer, guardou para si mesmo.

Ao se afastar, Rori abriu um sorriso encorajador. Anne-Marie tinha quase certeza de que era forçado, mas apreciou o esforço.

— Boa noite, Annie – disse ela. – A gente se vê amanhã?

Anne-Marie assentiu.

— A gente se vê amanhã.

Mais tarde, sozinha em seu quarto, Anne-Marie simplesmente não conseguiu pegar no sono, o que não a surpreendeu. De fato, ela tinha quase certeza de que ninguém em sua casa, nem na dos O’Callaghan, dormiria muito naquela noite.

***

Na manhã seguinte, Rori foi a última a chegar ao Salão do Conselho, no prédio equivalente à prefeitura do Vilarejo, onde o ritual deveria ter início. Anne-Marie já estava se preparando para ir atrás dela e convencê-la a vir quando ela entrou pelas portas, descabelada, sem fôlego e parecendo que não fechara os olhos por um segundo na noite anterior. Usava jeans rasgados e camiseta, com o broche de sua irmã preso sobre o peito.

Ouviu-se um suspiro coletivo dos presentes no Salão: os pais de Rori, seu irmão mais novo, Skye, sua professora particular, a Conselheira-Chefe e, claro, Anne-Marie.

Rori olhou para eles e pestanejou, como estivesse surpresa em vê-los.

— Estou atrasada – disse. Soava como se tivesse acabado de se dar conta do fato.

— Tudo bem, garota – A professora, Adela, se apressou em tranquilizá-la. Era uma mulher de aparência durona, mas que sempre falava de forma suave com seus alunos. Descendente por parte de mãe de uma linhagem de origem espanhola e, por parte de pai, de uma família asteca, ela era a melhor do Vilarejo em magia relacionada à ancestralidade. Sua família materna e a família de Anne-Marie, que se originara em uma cidadezinha da França, já haviam tido algumas disputas feitas no passado, mas ela nunca dera sinal de se importar com isso. – Ninguém está com pressa. Leve o tempo que precisar.

Ninguém a contradisse, nem mesmo a Conselheira-Chefe, que observava a coisa inteira como se fosse um experimento científico bastante interessante. Anne-Marie sorriu para Rori da forma mais encorajadora que conseguiu. Rori não retribuiu o sorriso, mas seus ombros pareceram relaxar minimamente.

— Tudo bem, então – Ela olhou rapidamente na direção de Skye e de seus pais antes de fixar o olhar em Adela, com a mesma expressão determinada da noite em que prometera fazer de tudo para ajudar sua família. – Me diga o que fazer.

— Primeiro, o portal – disse Adela. – Eu vou te ajudar, mas você vai precisar fazer a conexão sozinha.

A frase não fazia sentido para Anne-Marie, mas Rori assentiu, assumindo uma posição ao lado da professora, o rosto franzido em concentração.

A ideia do ritual era bastante simples: Rori se conectaria com seus ancestrais mais antigos, os sidhe irlandeses, também conhecidos como “povo das fadas”, e tentaria fazer uma barganha com eles para que concedessem um pouco de sua magia ao resto de sua família. A parte difícil era que os sidhe não eram famosos por sua generosidade, e sim por sua habilidade em enganar mortais por puro prazer. Os ancestrais mágicos da maioria das famílias haviam desaparecido sem deixar rastros, como os de Anne-Marie. Os ancestrais da família O’Callaghan eram fáceis de se encontrar, mas era de conhecimento geral que eles não eram muito fãs de visitas.

O portal demorou mais do que o normal para ser aberto, e, quando finalmente terminou, a testa de Rori estava molhada de suor. Ela a enxugou com as costas da mão. Ela olhou para o portal, que brilhava com uma forte luz verde incomum, e, pela primeira vez desde que entrara no salão, a determinação em seu olhar pareceu vacilar.

— Então... Agora é só entrar? – perguntou ela. Adela assentiu, com simpatia.

— Acho que sim, garota.

— Ela precisa ir sozinha?

As palavras deixaram a boca de Anne-Marie antes que ela pudesse impedir. Eles haviam recebido ordens explícitas de não interferir, mas ninguém pareceu particularmente chateado com ela. Adela mordeu o lábio inferior, pensativa.

— Rori e eu já falamos sobre isso – Ela estreitou os olhos na direção da aluna. Rori não pareceu arrependida. – Não dá pra saber como os sidhe reagiriam a alguém que não é ligado a eles. Eles não são os seres mais acolhedores do mundo com os próprios parentes...

— Eu já disse, eu vou com ela – interrompeu Skye, como Anne-Marie sabia que ele faria. Ela reparou que o Sr. O’Callaghan o estava segurando pelo braço para impedi-lo de avançar e pular no portal. Aos quinze anos, ele era quase tão impulsivo quanto a irmão fora naquela idade.

— E eu já falei que de jeito nenhum – retrucou Rori, no mesmo tom que usaria para dizer a ele que não ia mudar o canal da televisão. Então, a voz dela se suavizou. – Por favor, Skye. Nós já conversamos sobre isso.

Skye parecia querer discutir, mas se permitiu ser abraçado pelo pai e mantido no lugar. Parecia uma decisão sensata. Rori estava partindo em uma missão perigosa, e, se ela não retornasse, os O’Callaghan iam precisar que pelo menos um de seus três filhos continuasse com eles.

— Eu estou disposta a arriscar – disse Anne-Marie. Não falava com Adela; seu olhar estava fixo em Rori. – Se você quiser que eu vá, quer dizer.

Se ela estivesse lendo a expressão de Rori corretamente, e provavelmente estava, ela queria. Rori disse:

— Eu não posso te pedir isso.

Anne-Marie suspirou, revirando os olhos, e se aproximou da amiga.

— Meu Deus, Rori, como você é teimosa – Ela fez um gesto na direção do portal. – Vamos logo.

Adela não pareceu muito contente com a decisão, mas não protestou. Ela só perguntou o que a família de Anne-Marie diria – eles já sabiam, respondeu a garota, e, de todo jeito, ela era maior de idade pelas leis do Vilarejo, e eles não podia impedi-la. Assim, tudo o que Adela teve a dizer foi:

— Tomem cuidado, meninas. Nós vamos estar esperando vocês.

Anne-Marie estendeu a mão; Rori a pegou sem dizer uma palavra, e, juntas, elas passaram pelo portal.

Elas acabaram em uma floresta, o que não foi uma surpresa. Parecia bastante com fotos que Anne-Marie vira em guias de viagem, mas havia algo claramente não comum naquele lugar; ela podia sentir a magia pulsando sob seus pés. A grama era tão verde que doía olhar, e a luz do sol conseguia penetrar até o solo, a despeito dos galhos se entrelaçando no alto. Aqui e ali, dava para ter vislumbres de pequenas criaturas se escondendo atrás dos troncos, seres luminosos de orelhas pontudas e risadinhas perturbadoras.

Ao olhar para baixo, Anne-Marie notou que ela e Rori estavam paradas no centro de um círculo perfeito de flores selvagens. Ela estremeceu.

— Círculo das fadas – murmurou Rori, sem parecer muito impressionada. Ela pisou nas flores ao sair do círculo, enquanto Anne-Marie saltou cuidadosamente por sobre elas. – Tudo bem. E agora?

Anne-Marie olhou em volta mais uma vez.

— Isso aqui é... A Irlanda? Escócia?

— Irlanda – respondeu Rori, em voz baixa. – Mas não a nossa.

Anne-Marie decidiu que era melhor não fazer mais perguntas depois disso. Ela notou um riacho correndo a alguns metros de distância.

— Talvez devêssemos seguir a correnteza – sugeriu. – É sempre isso que as pessoas fazem na floresta, parece.

— Bem, não é muita coisa, mas acho que é melhor do que nada – disse Rori. – Quem sabe assim nós...

Ela parou no meio da frase, a boca entreaberta, os olhos arregalados. Anne-Marie seguiu o olhar dela. Uma das figuras luminosas que se escondiam por ali estava parada perto delas, na direção oposto ao riacho. Era maior do que as outras que elas haviam visto até então, e havia algo de familiar no brilho ao seu redor, mas ela não estava perto nem nítida o suficiente para Anne-Marie entender o choque da amiga.

— Rori? – chamou ela, hesitante. – Você está bem?

— Eu não acredito – sussurrou Rori, o que não era exatamente uma resposta.

No segundo seguinte, ela estava correndo na direção da figura.

Anne-Marie hesitou por apenas um instante antes de segui-la, o coração batendo acelerado. Para a sorte delas, a figura não parecia interessada em fugir; ela permaneceu parada, deixando que as meninas se aproximassem, sem dar sinal de querer feri-las. Rori estancou de repente a poucos metros dela, os punhos cerrados ao lado do corpo.

— Sam – murmurou.

E, de fato, Anne-Marie reconheceu o cabelo preto curto e o sorriso malicioso de Samarie, a irmã mais velha de Rori. Ela tinha a mesma aura inconfundível de Rori, o que explicava por que o brilho ao seu redor parecia familiar.

Sam sorriu para a irmã mais nova.

— Até que você não demorou tanto, hein?

Ela soava tão igual a quando estava viva que Anne-Marie não conseguiu processar as palavras de imediato. Rori, porém, não se deixou abalar.

— Demorei o suficiente – retrucou ela, mas não havia irritação de verdade por trás da frase. Ela estava tremendo. – Eu... Ninguém me disse que você estaria aqui. Eu teria vindo mais cedo.

Uma sombra de tristeza passou pelo rosto de Samarie.

— Mas eu não estou, Rori. Não do jeito que você está pensando – Ela olhou para Anne-Marie e tornou a sorrir. – Eu sabia que você não ia deixá-la sozinha.

Anne-Marie só assentiu, sem ter a menor ideia do que dizer.

— Por que você está falando comigo, então? – perguntou Rori. – Se você não está aqui de verdade, se eu não posso...

A voz dela falhou, mas Anne-Marie sabia como a frase terminava, e suspeitava que Sam também. Se eu não posso salvar você.

— Para te dizer que algumas coisas não são sua responsabilidade – respondeu Sam. – Para te dizer que você não poderia me salvar, e você não poderia ter impedido o que aconteceu com Skye e nossos pais.

— Você não tem como saber disso – disse Rori. A raiva havia voltado à sua postura. – Você é um fantasma, não uma vidente.

Samarie riu. O som fez com que Anne-Marie se lembrasse de almoços na casa dos O’Callaghan, de todas as vezes em que havia entrado no quarto da amiga e a encontrado rindo ou brigando com a irmã, de como Sam sempre ajudava a irmã mais nova e sua melhor amiga a escolher roupas e fazer maquiagem. Anne-Marie era filha única; a relação de Rori com seus irmãos sempre fizera com que ela desejasse não sê-lo.

— Você não muda mesmo, Rori – disse Sam.

— Você não tem ideia – rosnou Rori. Anne-Marie pôs a mão no ombro dela.

— Rori, não é culpa dela – murmurou. – Nada disso é culpa dela.

A intenção era que só Rori conseguisse ouvir, mas, aparentemente, Sam também escutara, porque ela disse:

— E não é culpa sua, também. Você não tem a obrigação de salvá-los – Era impressão, ou Sam parecia estar se tornando translúcida? – Sua única obrigação é cuidar deles... E de si mesma. Não esqueça disso.

A raiva na expressão de Rori foi substituída por pânico.

— Espera – pediu ela. – Você não pode ir embora agora, não pode só jogar isso no ar e desaparecer...

— Eu não tenho escolha – disse Sam. Ela abriu aquele sorriso felino que era tão parecido com o da irmã. – E, como eu falei, eu nunca realmente estive aqui, não é?

E, dizendo isso, ela desapareceu, deixando para trás um amontoado de trevos de quatro folhas na grama onde seus pés haviam pisado.

Rori caiu de joelhos e permaneceu paralisada ali por algum tempo. Não havia lágrimas em seus olhos, e suas mãos pendiam frouxamente ao lado do corpo. A grama abaixo parecia se esticar para alcançá-la, mas ela não parecia se dar conta disso, de forma que Anne-Marie se perguntou se aquilo fazia parte da magia de Rori, ou se a terra dos ancestrais dela sentira sua dor e estava tentando confortá-la por conta própria.

Anne-Marie se agachou ao lado dela, tocando seu ombro com delicadeza.

— Rori – chamou, no tom mais suave que conseguiu. A amiga não deu sinal de ter ouvido. – Rori, meu bem, eu sei que é difícil, mas você precisa seguir em frente. É o que Sam teria querido.

Ela também sentia uma pontada aguda no próprio coração, mas não conseguia sequer imaginar a dor que a amiga deveria estar sentindo. Rori apenas sacudiu a cabeça. Anne-Marie suspirou e se sentou ao lado dela, de pernas cruzadas.

— Tudo bem. Nós temos tempo.

Porém, parecia que aquilo não era verdade. Assim que Anne-Marie fechou a boca, ela percebeu para onde o fantasma de Sam as havia levado. Elas estavam sentadas de frente para dois tronos elaborados feitos de troncos de árvores retorcidos juntos, nas quais se sentavam as duas figuras mais assustadoras que Anne-Marie já tinha visto.

— Ah, sim, vocês têm todo o tempo do mundo – disse a da esquerda, numa voz grave que pareceu fazer tremer o solo. – Afinal, nós não temos mais nada para fazer além de ouvir os sofrimentos de reles mortais.

Sam havia ajudado: ela as levara diretamente até os sidhe. E, ao que parecia, Rori descendia de alguns sidhe bem poderosos.


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