catch me if you can escrita por Izzy Aguecheek


Capítulo 5
V




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Na semana depois do aniversário de dezoito anos de Rori, ela e Anne-Marie não trocaram uma só palavra.

Elas ainda se viam na escola, e ainda andavam com seus amigos em comum, juntas, mas daria no mesmo se estivessem a um oceano de distância. Anne-Marie tentou captar a atenção da amiga algumas vezes, mas Rori se recusava a olhar para ela; então, tudo o que ela conseguiu fazer foi encarar a mesa e se perguntar se, depois de todos aqueles anos, era assim que a amizade delas terminava.

A data da briga fora particularmente inconveniente: Rori deveria realizar o ritual para recuperar a magia dos O’Callaghan dali a menos de quinze dias, e nada deveria distraí-la tão perto de uma data tão importante quanto aquela. Anne-Marie soube através de Skye, o irmão mais novo de Rori, que ela não havia comparecido a algumas das sessões de treino extra – todos eles tinham aula sobre magia na escola, mas Rori era a única que estava se preparando para algo tão complicado e específico –, e que, quando comparecia, parecia menos focada do que de costume. Era possível que não se tratasse só da briga com a amiga, mas também da pressão aumentando, mas Anne-Marie não conseguia deixar de se sentir culpada.

À noite, Anne-Marie frequentemente ia ao Timber Bell, e o fato de nunca encontrar Rori por lá fazia com que ela perdesse completamente o sono, convencida de que ela estava em uma das arenas, sendo atacada por algum mago mal-intencionado ou uma besta treinada para matar quem aparecesse pela frente. Na manhã seguinte, quando via Rori na escola, parecendo cansada, mas intacta, Anne-Marie só conseguia sentir alívio por um segundo antes de ser tomada pela preocupação de novo.

No sábado à noite, Anne-Marie decidiu que não valia a pena escapar para verificar o bar. O Vilareja estaria animado o suficiente para Rori arranjar diversão por ali mesmo, e, além disso, sua missão de proteger a amiga dela mesma não estava indo bem nem quando elas ainda estavam se falando, de todo jeito. Então, ela ficou em casa e tentou dormir. O plano não deu muito certo: quando ela finalmente estava pegando no sono, alguém a acordou cutucando seu ombro sem parar.

Anne-Marie se sentou, assustada, lembrando da última vez em que alguém a acordara no meio da noite. Ela já estava a meio caminho de listar mentalmente todas as coisas horríveis que poderiam ter acontecido com sua família quando reconheceu Rori, parada cuidadosamente fora de alcance, como se esperasse que Anne-Marie lhe desse um soco ou lhe lançasse um feitiço.

Por um instante, Anne-Marie relaxou, pensando que não deveria ter ficado tão surpresa. Então, ela lembrou que elas haviam brigado e franziu a testa.

— O que você tá fazendo aqui? – sussurrou, soando bem menos irritada do que gostaria. Rori ergueu as mãos com as palmas voltadas para a frente, como que para mostrar que não estava armada.

— Venha à cidade comigo – cochichou ela de volta.

Talvez fosse a surpresa, ou a confusão, ou só o fato de ainda estar parcialmente adormecida, mas Anne-Marie não protestou. Ela calçou as primeiras sapatilhas que encontrou, prendeu o longo cabelo castanho em um rabo de cavalo, pegou um casaco e seguia a amiga até a janela. Elas já haviam se esgueirado por aquela janela várias vezes ao longo dos anos, embora nunca para ir até a cidade, mas aquele não parecia ser o plano naquela noite.

Como Anne-Marie imaginara, Rori abrira o próprio portal, ao invés de usar o da rua principal; ele estava flutuando em frente à janela, perto o suficiente para ser possível alcançá-lo sem dar um salto muito grande. Normalmente, magia de transporte só vinha com facilidade para magos de origem nômade – descendentes de ciganos ou beduínos, na maioria das vezes –, mas Rori não parecia nem um pouco cansada. Ela sempre fora bastante poderosa, e estava claro que todo o treinamento extra havia surtido efeito.

Anne-Marie encarou o portal com desconfiança. O Vilareja era a última comunidade mágica do continente, e era como um bairro oculto de uma metrópole comum; não havia punição pelo Conselho por se misturar com os comuns, mas certamente havia uma proibição por parte dos pais da grande maioria dos jovens, principalmente com relação a escapulir do Vilarejo sem supervisão no meio da noite.

Rori pareceu notar sua hesitação. Ela abriu um sorriso quase triste.

— Vamos lá, Annie. Você não acha que eu já teria sido pega, a essa altura?

Anne-Marie foi obrigada a concordar. Ela aceitou a ajuda de Rori para subir no parapeito da janela e pulou no portal sem mais delongas.

Ela não sabia o que esperar do destino, mas com certeza não esperara aparecer no topo de um prédio. Ocorreu-lhe que talvez fosse por isso que Rori sempre fazia questão de usar os próprios portais: ela provavelmente não obteria acesso àquele lugar de outra forma. Vários metros abaixo, as luzes da cidade brilhavam como se as estrelas tivessem decidido fazer uma visita à Terra. Dava para ouvir o barulho distante dos carros passando, mas, fora isso, era completamente silencioso, nada parecido com a atmosfera barulhenta e carregada do Timber Bell.

Anne-Marie se virou para Rori. Ela usava apenas calça de moletom cinza e uma camiseta preta sob um casaco verde, mas, sob a luz fraca dos postes de iluminação, parecia quase tão deslumbrante quanto em seu aniversário, com o vestido caro e toda a maquiagem. Lembrava um pouco a Rori de antigamente, a que costumava dividir segredos com ela no meio da noite e rir como se não tivesse uma única preocupação no mundo.

— Então é aqui que você tem passado as noites? – perguntou Anne-Marie, em voz baixa.

Rori assentiu, o olhar fixo na paisagem lá embaixo.

— Eu nem sempre preciso de um bar cheio de estranhos. Às vezes, eu só preciso de... – Ela fez um gesto vago indicando o cenário ao seu redor. – Eu não voltei a nenhuma arena, também, se isso servir de alguma coisa. – Ela passou os braços ao redor do corpo, como se estivesse com frio, a despeito do casaco. – Se isso for fazer você acreditar que eu não estou deliberadamente tentando me matar.

Anne-Marie se aproximou dela, de modo que as duas ficassem lado a lado, apoiadas na pequena amurada que cercava a cobertura do prédio.

— O que você está tentando fazer, então? – indagou. Sua voz era quase um sussurro agora; algo naquele lugar fazia com que falar alto soasse inapropriado. – Eu tentei entender, Rori, juro que tentei, mas eu não posso fazer muita coisa se você não falar comigo.

Para a surpresa dela, Rori riu.

— Foi mal. Acho que não tô acostumada a precisar explicar as coisas pra você, de todas as pessoas.

Anne-Marie sabia o que ela queria dizer. Ela lembrou de Rori em seu aniversário de dezessete anos, parecendo ridiculamente jovem comparada à Rori que agora se apoiava na amurada, cansada e com manchas escuras sob os olhos. A única pessoa que me conhece de verdade é você, dissera ela, e, naquela noite, aquilo parecia uma coisa incrível de se ouvir. Agora, a deixava triste. Todo mundo muda no espaço de um ano, mas Rori não havia apenas mudado. Ela havia sido desmontada e reconstruída do zero. Isso complicava as coisas, mesmo que Anne-Marie tivesse estado ao lado dela durante todo o processo.

— Você não precisa entender – continuou Rori. – Eu nunca te pedi que entendesse, porque sabia que seria impossível – Ela ergueu os olhos para o céu. As estrelas eram ofuscadas pela poluição luminosa da cidade, mas ainda dava para ver uma quantidade razoável delas dali de cima. – Skye acha que entende, porque ele acha que é por causa de Sam, mas não acho que seja. Quer dizer, eu não sou a primeira pessoa do Vilarejo a ficar de luto.

— Todo mundo lida com o luto de forma diferente.

— Bem, isso é verdade – Rori ficou em silêncio por alguns instantes. – Eu me preocupo com ele. Com o Skye, quero dizer. Se eu falhar...

Sem pensar no assunto, Anne-Marie esticou o braço para segurar a mão dela.

— Rori...

— Annie, você não vê a forma como ele olha pra mim – Rori balançou a cabeça. – Se eu falhar, ele vai ficar devastado. Ele realmente acredita que eu posso fazer isso, ele tem tanta certeza de que eu não vou decepcioná-lo...

Finalmente, ela se virou para encarar a amiga. Seus olhos reluziam, e não era só o reflexo das luzes abaixo. Pela primeira vez desde que acordara, Anne-Marie percebeu que ela segurava o broche que havia ganhado de presente de aniversário, apertando-o no punho fechado como se fosse uma corda salva-vidas.

— Você perguntou por que eu continuo indo a esses bares – Ela não soava irritada. Na verdade, seu tom era completamente neutro. – Acho que é por isso. Tem uma razão pra eu sempre procurar desconhecidos. Eles não esperam nada de mim.

— Eu não espero nada de você – disse Anne-Marie, porque foi a primeira coisa que lhe veio à mente. Verdade seja dita, ela estava um pouco distraída pelo quão vulnerável Rori parecia. Ela se perguntou se outra pessoa já a vira daquele jeito antes. Você é a única pessoa que me conhece. Anne-Marie devia ter dito que a recíproca era verdadeira.

Rori se aproximou, quase imperceptivelmente.

— Não? – perguntou ela, baixinho. – Nada mesmo?

Anne-Marie não estava pensando quando puxou-a para um beijo. Começou com nada mais que um toque hesitante de lábios, mas, ao ver que Rori não ia se afastar, ela tomou coragem para segurar o rosto da amiga nas mãos e beijá-la de verdade – e se arrependeu imediatamente ao sentir as lágrimas que escorriam pelas bochechas de Rori.

Ainda assim, foi Anne-Marie quem deu um passo para trás, preocupada. Rori permaneceu onde estava, os olhos bem fechados.

— Ai, meu Deus – murmurou Anne-Marie. – Eu sinto muito, Rori. Eu não quis... Não foi um bom momento.

Rori abriu os olhos e deu uma risadinha sem graça, secando as lágrimas com a manga do casaco.

— Que forma de arruinar um primeiro beijo, hein? – Ela sacudiu a cabeça. – Eu que peço desculpas, Annie. Nada disso é culpa sua.

Demorou um tempinho para o cérebro de Anne-Marie processar a conversa.

— Então... Você não está chateada por eu ter...?

— Meu Deus, não – Rori riu de novo e esticou a mão para entrelaçar os dedos das duas. – Essa foi a parte boa. Eu estava criando coragem pra fazer isso.

Anne-Marie não conseguia acreditar. Depois de todo o tempo que ela passara com medo de dar o primeiro passo e estragar a amizade delas... Mas ela não achava que era um bom momento para falar sobre isso.

— Qual o problema, então? – perguntou, delicadamente. Além do óbvio, ficou implícito.

Rori evitou o olhar da amiga, mantendo os olhos fixos nas mãos entrelaçadas das duas.

— O problema é... E se você não me conhecer mais, Annie, não de verdade? E se eu estiver me transformando em uma pessoa tão diferente que nem você vai ser capaz de me reconhecer?

Anne-Marie pensou em fazer um piada – você andou lendo minha mente, por acaso?, ou pior do que tá não fica, né?. Ela quis dizer que aquilo era impossível, mas não acreditava de verdade nisso. Então, disse:

— Talvez eu pudesse voltar a te conhecer, se você parasse de tentar me afastar.

O canto da boca de Rori tremeu.

— Eu faço isso?

— O tempo todo. Com todo mundo. É irritante, de verdade – Delicadamente, Anne-Marie virou o rosto de Rori de forma que elas pudessem se encarar. – Só que, a essa altura, você devia saber que não vai funcionar comigo. Ou com Skye. Ou com ninguém que se importa de verdade com você. – Como Rori permaneceu em silêncio, ela continuou: - Você não precisa passar por isso sozinha, Rori. As expectativas, bem... – Anne-Marie deu de ombros. – Nós sabemos mantê-las sob controle. Nisso, você vai ter que confiar em nós.

Por um longo instante, Rori não se moveu. Mais lágrimas surgiram nos olhos dela, e ela não fez nenhum movimento para secá-las, então Anne-Marie assumiu a tarefa, porque ver a amiga daquele jeito partia seu coração. Ela estava prestes a sugerir que elas fossem para casa quando Rori a puxou para um abraço apertado.

— Eu estou tentando acreditar nisso – murmurou ela. – Eu juro, Annie, eu estou tentando.

Então, ela começou a soluçar, de um jeito que não fazia desde que recebera a notícia sobre sua irmã.

Anne-Marie afagou as costas dela, deixando que ela encharcasse sua camiseta.

— Eu sei – sussurrou em resposta. – Isso é tudo que eu estou pedindo.

E isso é tudo que nós esperamos de você, estava implícito. Que você tente. Às vezes, só tentar não basta, mas é o suficiente para nós.

Elas ficaram ali por um longo tempo, e, mesmo depois que Rori se acalmou e mudou de assunto, mesmo quando elas voltaram a conversar sobre assuntos triviais, rindo e implicando uma com a outra, não tornaram a se beijar. Mas suas mãos permaneceram entrelaçadas a noite inteira, e Rori estava sorrindo e soando quase como ela mesma de novo, e, para Anne-Marie, aquilo bastava.


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Notas finais do capítulo

Novamente: correções e críticas construtivas são muito apreciadas.



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