A Lenda de Cristal escrita por Tsu Keehl


Capítulo 43
Capítulo 42


Notas iniciais do capítulo

Olá caro leitor/a.
Antes de começar a ler, gostaria que lesse aqui.

Acho que esse foi o período maior de hiato para atualizar a fic que eu tive desde que comecei a escrevê-la. Peço sinceras desculpas por isso e ficava frustrada comigo mesma por não estar conseguindo me focar para reverter a situação.
Porém, os últimos três meses foram muito intensos e importantes na minha vida. Foram coisas que precisei lidar de cunho de saúde familiar e consequentemente ter a força e decisão de tomar as rédeas do controle da minha vida. E como consequência, eu acabei tendo muito mais coisa pra resolver, fazer e organizar. Estou com minha agenda bem carregada e tendo que priorizar algumas coisas e deixar outras em segundo plano. Mas está sendo um período muito importante e libertador pra mim.
Agora que o furacão passou e as coisas estão se começando a estabilizar, estou coneguindo retomar e reprogramar meu cronograma e voltar a uma melhor produtividade (assim espero) então peço que não desistam das minhas histórias, pois garanto que fazendo o meu melhor, as histórias seguirão com altas surpresas!
Enfim, é isso. Notas sobre este capítulo estão lá nas notas finais.
Chega de papo e boa leitura.



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~*~

  
   Diante de um monstro selvagem, feroz e ameaçador, a maioria das pessoas, impulsionadas pelo instinto de sobrevivência diante do perigo catastrófico iminente, tendiam a fugir para se precaver e buscar socorro em alguém capaz de protege-las e lidar com o perigo. Isso era uma atitude natural de todos e, portanto, não tão condenável.
   Mas Cynthia Shirona não era como todo mundo. Cynthia era alguém em que as pessoas buscavam para serem protegidas e que clamavam para que as ajudasse. Cynthia era a pessoa cujo instinto de sobrevivência impelia não a fugir do perigo catastrófico iminente, e sim ir de encontro a ele. O que as outras pessoas temiam era o que Cynthia queria enfrentar.
   Não entendia por que era assim. Por que se tornou assim. As pessoas – todas elas – viam sua postura e atitude como ousadia, coragem, caráter e consciência de quem era e por isso quais eram as atitudes a manter para com a posição que ocupava. E certamente esse era o motivo para agir de tal forma. Essa havia sido a conclusão em que havia chegado ao longo dos anos. E estava satisfeita.
  Ela não tinha essa atitude para ocultar o arrependimento vindo da fraqueza e do medo. E não enfrentava o perigo esperando pagar por sua fraqueza ou mostrar que não temia mais o que no fundo ainda temia.
  Não era por isso que agia assim. Não podia ser. Escolhera que não seria.
  Cynthia não pensava sobre isso. Não mais. Agora já sabia a sua verdade. Era a mestra da Elite4 de Sinnoh, a maior treinadora Pokémon do mundo e em breve conquistaria mais. Muito mais.
   E por isso nunca daria as costas para o perigo. O enfrentaria e venceria. E todos iriam saber e a aclamar.
  E por causa de tudo isso, diante daquele Pokémon primordial, Cynthia não hesitou.
  Quando Heatran saiu do templo, atacando uma pessoa e começando a destruir os arredores, Cynthia sabia que ele causaria mais caos e perigo para a cidade e as pessoas nela. Então, no momento em que aquilo aconteceu e o Pokémon surgiu, Cynthia rapidamente agiu.
  Correu na direção da criatura, lançando uma de suas pokébolas e liberando seu Garchomp. Mal surgiu, o grande pokémon urrou, se colocando no modo de ataque. O “canhão de guerra” de Cynthia era um feroz e grande Garchomp, de um azul tão escuro que parecia preto.   Conhecido e temido por qualquer treinador que conhecesse ou já tivesse visto sua experiência em combate.
— Garchomp, avance! Lucario, recue e proteja as civis!
   Á ordem de Cynthia, ambos Pokémon obedeceram. Lucario, assim que Heatran surgiu jogando uma pessoa de dentro do museu, havia tomado a frente para atacar, conseguindo distrair o selvagem Pokémon de lava rodeando-o com sua velocidade para que sua atenção não se voltasse para o homem que jazia desacordado sobre a neve. Mas, a ordem de sua treinadora, Lucario se afastou de Heatran, correndo para se colocar a frente de Moltres e Articuno, disposto a protegê-las.
   Cynthia acenou para Lucario e então se concentrou a frente, falando enquanto sacava uma segunda pokébola do cinto.
— Garchomp, Stealth Rock!
Os efeitos do golpe lançados pelo Pokémon atingiram o flanco rochoso de Heatran. Não causaram um dano efetivo, pois as rochas queimavam na lava quente, mas foram o suficiente para atrair a total atenção de Heatran para o combate inevitável. Assim, quando ele se moveu e avançou para Garhomp, Cynthia lançou a segunda pokébola e um belo e elegante Milotic surgiu.
   Em uma batalha comum, sob os holofotes, Cynthia jogaria dentro das regras de batalha de um contra um. Mas naquela situação, não era uma batalha qualquer, tampouco um jogo sob os holofotes. Portanto, poderia lutar e ordenar seus Pokémon sem receios ou dentro das regras.
— Garchomp, Earth Power! Milotic, Surf! Poder ao máximo!
   Heatran sentiu o poder e estrago dos golpes contra si e, furioso, contra-atacou. Lava e fogo jorraram de sua boca, derretendo tudo o que tocava. Quando Garchomp lançou novamente um Stealth Rock, Heatran disparou intensas chamas cujas labaredas tinham formatos que lembraram a Cynthia o golpe Fire Spin, provando que seu melhor Pokémon não era o melhor para aquela batalha.
  Mas isso não a preocupava.
— Milotic, Surf sem parar! Agora Garchomp, enterre essa criatura no chão com Earthquake!
  Garchomp pisou e socou o chão com força e um tremor percorreu o solo, criando rachaduras como um pequeno terremoto na direção de Heatran. Com o solo impactado, este cedeu abaixo de Heatran, enviando o Pokémon rochoso para baixo ao mesmo tempo que Milotic disparava um potente jorro de água no buraco que se abrira sobre o Pokémon de pedra.
— Mais uma vez, Milotic! Afogue-o com toda a água que você tem!
  Ver o Pokémon selvagem golfar e agoniar com o ataque aquático de seu pokemon causou um pequeno frenesi em Cynthia. Ali não era uma batalha oficial, não precisava obedecer as regras. Poderia apenas comandar seus Pokémon em busca da vitória. Da vitória contra um Pokémon ancestral, lendário e muito poderoso.
  E isso a fez pensar sobre a pokébola vazia que mantinha guardada em um dos bolsos. Ainda era cedo demais para pensar nisso. Precisava se concentrar em enfrentar aquele Pokémon, evitar que as duas turistas se machucassem e ainda resgatar o homem caído. Isso se ele ainda estivesse vivo.
— Vocês tratem de sair daqui! – Cynthia falou, olhando rapidamente para as duas mulheres. – Se abriguem e avisem para ninguém vir aqui, é arriscado demais!
— Mas...você não...
— Eu posso sim! – a loira rosnou, cortando a fala de Moltres. – Eu sou a mestra da Elite de Sinnoh. Não há aqui alguém melhor do que eu para enfrentar Heatran! Polícia e qualquer pessoa vindo aqui só vai atrapalhar! Eu vou lutar com tudo o eu tenho. Agora, VÃO!
  Cynthia sabia que Heatran seria um oponente difícil mesmo para seu time Pokémon poderoso e experiente. Mas confiava em seus Pokémon e em sua experiência e inteligência de batalha. Contanto que não precisasse se preocupar em proteger nada ou ninguém, tinha boas chances de vencer e evitar que a cidade fosse alvo.
 Cynthia assoviou para que Lucario fosse até seu lado e se aproximou da cratera em que Heatran já resfolegava para sair, o calor das chamas em seu corpo expandindo-se como se estivesse em um buraco de lava.
 
“Onde está aquele imbecil do Lance? Cheio de discursinho de vir ajudar, mas na hora que temos um problema, some! Típico de johtonianos...”

— Mas assim é melhor. – ela sussurrou. – Deixe que todos vejam e saibam que eu posso e vou resolver tudo isso sozinha!

~*~

  
   Alice remexeu-se na cama algumas vezes até se dar por vencida. Não conseguia dormir. Sua mente estava ligada, fazendo questão de lembra-la de muitas coisas antigas e pensar em tantas outras recentes.
   Se levantou e foi até a porta do quarto que dava acesso á minúscula sacada. A abriu com cuidado, para não acordar Crystal, que dormia na cama ao lado.
   O ar abafado daquele fim de noite era agradável e não viu necessidade de vestir uma blusa por cima do pijama curto. As luzes dos estabelecimentos que se estendiam por aquela região da cidade ainda estavam acesas, embora em bem menor quantidade. Era interessante como Ecruteak conseguia manter sempre aquela atmosfera tranquila. Talvez a cidade possuísse realmente uma aura mística.
   Alice gostava de admirar a noite. Olhar para o céu escuro – fosse ele estrelado ou enevoado. Ajudava a clarear a mente e o coração. E a ajudava a pensar.


   “Porra, por que o Gary fica querendo incitar sempre essa picuinha dele contra o Lawrence só pra gente brigar? Passamos ontem o dia todo juntos e estava tudo bem. Ainda que não tenha sido do jeito que ele provavelmente queria, mas caramba! Eu já tinha furado de me encontrar com o Lawrence quando nos encontramos na entrada do hotel, eu não ia furar com ele de novo! Até porque, devido a minha jornada com a Crystal, não dá pra saber quando eu podia ver ele de novo e...
Porra de novo! O Lawrence também sempre com aquele mesmo discurso de que não devemos nos envolver, que isso pode dar muitos problemas...e vem com esse papo agora, de novo, depois de termos nos agarrado! Foi assim na outra vez também...”

    Mas afinal, que relacionamento estava tendo com Lawrence?
 Começar a pensar sobre isso lhe causava uma ansiedade tal que simplesmente não conseguia se concentrar em outra coisa e até seu humor era afetado. E não conseguia parar de pensar sobre seus sentimento e dúvidas por culpa da atitude que Lawrence tivera para com ela poucas horas atrás quando haviam conversado.

   Embora o quarto estivesse silencioso, Crystal sabia que Alice não iria dormir. Desde que haviam retornado ao hotel, após saírem da capela abandonada, percebeu que a amiga estava irritada, o que era de se esperar em vista da discussão que ela tivera com Gary. Porém, quando haviam chegado ao quarto, Alice recebera uma mensagem que parecia importante, pois ela disse que Crystal poderia tomar banho primeiro.
  Crystal não fez objeção, mas enquanto estava no banheiro, pôde ouvir que Alice conversava com alguém no telefone, alguém que soube quem era quando ouviu um “senhor!” e procurou tentar não prestar atenção, pois já passara um constrangimento por ter ouvido a conversa íntima da amiga com Gary.
   Mas era impossível não ouvir aquela conversa, ainda que só pudesse ouvir o que Alice falava, pois ela ia elevando a voz conforme uma discussão com a pessoa do outro lado da linha ocorria. E por mais que Crystal dissesse a si mesma que não deveria ficar prestando atenção em uma conversa alheia, só ficou sentada ali no vaso sanitário, escutando.
 Mas quando ouviu Alice dizer uma palavra de baixo calão bem feia para quem quer que ela estivesse conversando, Crystal tratou de ligar o chuveiro e tomar seu banho, demorando um pouco até ter certeza que a amiga finalizara a ligação.
 Ao sair do banheiro, Crystal agiu como se não tivesse ouvido nada mas notou que a amiga parecia chateada e mais calada do que o normal, mesmo que tentasse disfarçar. Ficaram assim até irem se deitar após combinarem o dia seguinte, mas Crystal percebia que Alice não parecia muito bem. Então, mesmo nas luzes apagadas percebeu que Alice havia se levantado.
— Não está conseguindo dormir?
   Alice estremeceu e olhou para dentro do quarto ao ouvir a pergunta. Crystal havia sentado na cama, sonolenta. Seu cabelo estava todo despenteado e ela esfregava os olhos para conseguir se manter acordada.
— Ah, desculpa se te acordei. – Alice murmurou, voltando para o quarto. – Eu...perdi o sono.
— Mas se não dormir... – Crystal bocejou. – Vai ficar muito cansada amanhã, já que vamos retomar jornada cedinho.
— Eu sei. Mas não se preocupe, deixei o despertador ativado e sabe que eu não enrolo pra levantar. Não muito.
   Alice fechou a porta da sacada e voltou para a própria cama. Estava se ajeitando com as cobertas quando Crystal acendeu a luz do abajur.
— Pode desligar, Crys. Eu já me ajeitei...
— Quer conversar?
   Apesar da cara de sono, Crystal perguntara com disposição para ouvir.
— Conversar...sobre o quê?
— Eu posso não te conhecer há anos, mas pelo tempo que estamos em jornada juntas, convivendo praticamente 24 horas, 7 dias por semana há alguns meses, eu acho que já te conheço bem o suficiente para saber quando tem alguma coisa te incomodando e te deixando nervosa.
— Bom...eu estou um pouco...irritada mesmo. – Alice mexeu nos cabelos. – Mas não é nada de mais, logo passa! Nada como umas horinhas de sono e amanhã já fica tudo bem!
  Apesar de estar sorrindo, Crystal percebeu que o sorriso de Alice era um pouco forçado.
— ...está bem mesmo?
— S-sim! Vamos dormir que a partir de amanhã precisaremos retomar com tudo o ritmo de jornada para recuperar o tempo perdido e ir em direção a sua próxima insígnia!
— Okay... – Crystal suspirou. – Mas saiba que, se precisar conversar sobre qualquer coisa, eu tô aqui pra ouvir, tá?
— Eu sei...e você sabe que pode falar comigo sempre que precisar também!
   Deram “boa noite” e Crystal apagou a luz. Após alguns ruídos de cobertas, a penumbra e o silêncio se instauraram no quarto.
   Alice sentiu um aperto no peito. Não gostava de mentir para ninguém, principalmente para uma pessoa querida. Sabia que Crystal era uma pessoa confiável e uma amiga como há muito tempo não tinha – ou talvez nunca tivesse realmente tido. Embora pudesse gozar e se orgulhar de ter muitas amizades, Alice sabia até bem demais que haviam certas coisas, certos...segredos mais íntimos que não podia falar sobre. Era arriscado, ela sabia, e se fosse para contar, deveria ser com alguém em que pudesse realmente confiar falar sobre tal coisa.

“Gary é meu amigo de verdade. Sei que mesmo a gente ás vezes discutindo, posso confiar nele no que precisar mas...nesse caso, eu não posso falar com ele porque...”

“Eu vejo como você fica diante do seu tutor. Eu sou homem e vejo a forma como ele te olha, porque eu te olho do mesmo jeito! E o fato dele olhar dessa forma é porque pensa de um certo jeito que, vindo de quem ele é pra você...dá asco.”

  
   É...só havia uma pessoa com quem poderia falar sobre sua relação e seu sentimento para com seu tutor. E essa pessoa era a pessoa em quem mais confiava: seu tutor.
   Mas ele era outro idiota que a deixava ainda mais confusa e ansiosa com a situação em que estava e o que sentia com relação ao que já haviam feito juntos e o que já nutria por ele há mais de ano.
   Alice suspirou profundamente no silêncio, se preparando para tomar uma decisão.
— Preciso conversar.
   A luz do abajur foi imediatamente acesa e ela viu Crystal sentando-se na cama. Ela ainda estava com os cabelos parecendo um ninho de Sparrows e mesmo com a cara de sono, se mantinha disposta a ouvi-la. Ela chegou até mesmo a bater de leve na coberta, indicando que a amiga se sentasse ao seu lado.
   Alice assim o fez e Crystal esperou que a amiga começasse a falar. Tinha suas especulações e quase certezas sobre o que Alice falaria e estava disposta a tentar ajudá-la no que fosse preciso. Nem que fosse apenas para ouvi-la.
— Como ele consegue ser tão legal e perfeito e também agir como um babaca confuso? – Alice começou, mais para si do que para sua ouvinte. – Estávamos bem até agora, em vista de como estávamos antes quando eu fui embora...mas o que tivemos hoje foi...nem sei como dizer, mas foi bom e poderia ter sido melhor se a gente não fosse interrompido! Eu realmente pensei que as coisas entre nós ficariam bem e encaminhadas agora, que talvez pudéssemos, sei lá, engatar algum compromisso real em breve mesmo que fosse tipo, polêmico e...
— Pára, espera. – Crystal espalmou a mão. –Eu acho que a pessoa de quem você tá falando não é a pessoa que eu estou pensando.
— É...– Alice não sabia como começar, que dirá continuar, mas precisava tentar. - Então...eu estou, há um tempo vivendo uma...situação complicada. Lembra mais cedo, lá na rota, que conversamos sobre ficantes e você perguntou se eu já tinha me apaixonado por alguém?
   Alie colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha, sentindo-se corar.
— Então...eu estou mesmo apaixonada por uma pessoa.
— ...que não é o Gary.
— Que não é o Gary. – Alice repetiu o comentário, assentindo. – O que seria socialmente esperado e aceitável, sem qualquer surpresa a julgar pela nossa amizade. Seria muito mais fácil e fico me perguntando porque não dei um jeito de ter sido ele por quem eu me apaixonaria.
— A gente não escolhe por quem vamos nos apaixonar.
   Alice assentiu ante o comentário da amiga, desviando os olhos para as imagens de pokébolas estampadas na coberta de Crystal. Quase tudo no mundo parecia ter alguma referência a Pokémon, principalmente em itens de treinadores.
  Será que deveria mesmo revelar que estava não apenas apaixonada, mas se relacionando com seu tutor? Ainda que, perante a lei, já não tivesse mais essa definição, pois ela já era maior de idade e o envolvimento de ambos só houvesse ocorrido depois disso, ainda perante a visão de todos, dado os anos que ambos conviveram, continuavam sendo vistos como tutor e tutelada. Os boatos fofoqueiros de que ambos mantinham um relacionamento a mais já causavam opiniões negativas, que dirá o problema que seria se tais boatos se confirmassem publicamente.
   Mas após hoje, se sentia nervosa, triste, confusa e precisava desabar antes que sufocasse.
— Eu...estou apaixonada...pelo Lawrence. 
Pronto. Havia revelado. Contado para alguém que estava apaixonada por um dos homens mais poderosos do mundo. Quase treze anos mais velho. E pra polemizar mais ainda, que havia sido seu tutor desde que seus pais faleceram, quando ainda era uma pré-adolescente. Aos olhos de todos, era condenável.
— ...eu já sabia. 
   Alice arregalou os olhos e encarou a amiga.
— Já...sabia?! Oh...estava...tão na minha cara assim?!
— N-não! – Crystal se apressou em dizer. – Bom, na verdade, você admitindo agora eu estou real surpresa por minha especulação não ser uma fanfic da minha cabeça, mas...eu meio que pensei nessa possibilidade a um tempinho. Tipo, eu não ficava pensando sobre isso, principalmente depois vendo você e o Gary juntos. Porque tipo, eu acho que você e o Gary formam um belo casal. Mas na verdade, eu notei a forma como você sempre fala sobre seu tutor, a forma como vocês se olham, a forma como ele se preocupa com você e como você fica depois que se encontra com ele...
— Ohn...e eu achando que estava escondendo e disfarçando tudo isso muito bem...
  Alice murmurou, escondendo o rosto entre as mãos. Se estava “dando bandeira” sobre o que sentia por Lawrence, então as fofocas que já ficara sabendo e até mesmo lido, eram afinal indiretas bem diretas a sua pessoa mesmo e não apenas paranoia de sua parte.
  Diante da reação desesperançosa e temerosa estampadas no rosto da amiga, Crystal tentou contornar seu argumento.
— Mas olha...eu tenho certeza que essas demonstrações não são algo realmente evidentes sabe? Tipo, eu sou uma treinadora Pokémon e quando a gente é treinador, focado em participar de batalhas, torneios e tal, acabamos desenvolvendo uma...percepção, sabe...notar mais as reações dos oponentes, gestos, olhares...mesmo quando são mínimos, com o tempo a gente vai tendo uma certa experiência e...– Crystal sabia que estava se enrolando, mas precisava continuar tentando. – Isso acaba ajudando muito em batalhas, mas aí acaba que a gente fica mais perceptor em analisar qualquer pessoa, é quase que automático.
   A intenção de Crystal em sua confusa explicação era tentar tranquilizar Alice acerca do fato de que era, sim, um pouco evidente a forma como ela dava indícios de seu interesse amoroso. Mas Crystal não sabia que sua justificativa só piorava a ansiedade da amiga.

  
   “Então, se treinadores Pokémon acabam sendo mais perceptores, boa parte dos meus amigos e conhecidos, que já me viram muitas vezes junto de Lawrence, já perceberam o que eu sinto e o que está acontecendo entre nós porque...a maioria deles são treinadores...
Principalmente o Gary.”


   Alice abraçou um travesseiro e ficou assim. Já Crystal sabia que não era legal estar curiosa sobre algo íntima da vida relacional de Alice. Mas, mesmo repreendendo-se mentalmente por isso, não pôde deixar de perguntar.  
— Á quanto...tempo você gosta do seu tutor dessa...forma?
— Quanto tempo? Eu...eu não sei quando foi. Quando foi que comecei a ver ele como um “cara que me interessava”. Acho que foi gradual. Comecei a notar as qualidades dele...a forma como ele cuida, se preocupa comigo, procura sempre me agradar...e aí, comecei a notar a aparência dele e o que despertava em mim. Eu me apaixonei. As pessoas veem o Lawrence como o homem que ele parece mesmo diante de todos: orgulhoso, poderoso e até soberbo.

  “Ele realmente age como uma pessoa assim.”— Crystal pensou, lembrando-se de quando o conhecera e do pouco tempo, nas poucas vezes até então, que estivera na presença dele. Mas guardou o comentário para si.
 
— Mas eu conheço o Lawrence de um jeito que as pessoas não conhecem. Eu conheço o lado gentil, compreensivo, agradável, carinhoso, sedutor e até bem humorado. O senhor Lawrence tem muitas qualidades...
  A forma como Alice descrevia seu tutor fez Crystal ver que, mesmo se ela não dissesse, era claro que estava apaixonada.
— E você já disse á ele o que sente?
— Sim.
— ...e...?
   Crystal encarou a amiga, curiosa. E viu o rosto de Alice corar.
— É que assim...eu não cheguei a confessar com palavras...meio que...aconteceu.
— Vocês se beijaram?
— Não foram só beijos...
   Crystal encarou Alice, que a encarou de volta, comprimindo os lábios. E naquele silêncio constrangedor, lenta e gradualmente os olhos de Crystal foram se arregalando conforme ela compreendia.
— Oh... – foi a única coisa que conseguiu dizer durante um tempo. - É...uau...não pensei que...
— Havíamos chegado a esse ponto? – Alice desviou o olhar, constrangida. – Sim.
   Crystal pensou um pouco antes de falar.
— Eu sei que pode ser meio...invasivo o que vou perguntar, então já peço desculpas, mas... eu queria perguntar...você ficou sob a guarda dele desde que era menor de idade, certo? Por acaso alguma vez...
— Isso é algo que qualquer pessoa pensaria mesmo. – Alice suspirou. – Mas não...o senhor Lawrence nunca fez nada comigo antes, nunca aconteceu nada entre a gente com exceção dos últimos meses. Se ele houvesse tido qualquer atitude antes...a minha amiga e babá, a Jurema, teria percebido. Ela é muito perspicaz. Não...o senhor Lawrence sempre me respeitou, sempre foi um tutor correto e uma pessoa de caráter. Isso eu digo com certeza!
   Crystal assentiu e ambas ficaram em silêncio por alguns segundos;
— Mas ele...o que ele diz sobre isso entre vocês?
  A feição agoniada da Alice deu lugar a uma feição irritada.
— Ele diz que é complicado, que não deveríamos ter permitido isso...que não podemos continuar, que isso pode causar problemas, um monte de coisas! Fala que não é bom continuarmos assim. Mas a gente se encontra, não resistimos e mesmo que ele fale...não dá mais pra fingir que nada aconteceu! Aí agora a gente discutiu feio por telefone. Porque eu toquei no assunto sobre o que faríamos sobre nós e ele de novo veio com todo aquele discurso dele sobre as problemáticas da situação da gente se envolver e ah! Isso me deixa irritada feito um Gyarados!
  Crystal deixou que a amiga desabafasse sua irritação esganando o travesseiro. Mas quando percebeu que Crystal a olhava, Alice se constrangeu e tornou a abraçar o travesseiro.
— Olha, eu sei o quanto isso é problemático. Eu sei que o Lawrence é meu tutor, que desde a morte dos meus pais, eu fiquei sob a proteção dele, que passamos anos convivendo na mesma casa, que ele é um homem mais velho e que a gente ter se envolvido romanticamente depois de tudo isso dá margem pra um monte de especulações e julgamentos e...eu entendo como você deve estar pensando coisas péssimas sobre meu caráter!
— Que tipo de amiga eu seria de julgar seu caráter por você ter se apaixonado por alguém?
— ...mesmo eu estando apaixonada e já tendo feito coisas com meu tutor?
— Não. – Crystal falava, de forma gentil. – Ok, é uma situação bem delicada entre vocês e eu acho que entendo um pouco de todos os problemas, mas...se vocês se gostam, deveriam tentar conversar e decidir o que fazer.
— É isso que eu quero, mas com o senhor Lawrence é tão difícil! Se bem que...ao mesmo tempo que eu quero que a gente decida o que vai fazer, eu também tenho medo do que vai ser decidido. Talvez foi por isso que eu...fui embora de casa meses atrás...
   Novamente o silêncio reinou no quarto. Crystal percebia o quanto a amiga estava além de irritada, chateada com a situação em que se encontrava. Queria poder aconselhar, dar um apoio de forma eficaz, mas simplesmente não sabia o que dizer, porque nem ela própria estava conseguindo processar tudo e ser capaz de não criar pré-julgamentos sobre aquilo.
— Crys...o que eu falei pra você...eu nunca contei isso pra ninguém. É algo só entre o senhor Lawrence e eu então...por favor, não conta nem comenta nada disso pra ninguém, tá? É só isso que eu te peço.
— Não precisa pedir. Eu posso não ser uma boa conselheira, mas esse assunto daqui não sai. Minha boca é um Cofragius!
  Alice viu convicção e sinceridade nas palavras e nos olhos de Crystal.
— Acho que...comparar sua boca a um Cofragius soa meio necrófilo, sei lá.
— É...tenho de lembrar de nunca usar ele quando estiver conversando com alguém que eu queira beijar!
  As duas riram, sentindo-se um pouco mais tranquilas.

~*~

  
   Podia ouvir sons distantes. Eram estrondos, explosões, urros animalescos e gritos estridentes. Sentia o frio em seu corpo, mas ao redor, havia calor. O ar voltava aos poucos e parecia abafado.
  Era o campo de batalha? Tinha sido abatido? Como?
  Não. Preciso acordar, preciso me levantar. Preciso continuar lutando.
Lutar pelo seu povo. Seu reino. Sua família.
   Precisava se vingar.
  Alma. Precisava de seu companheiro Pokémon, sua outra metade.

  Vamos tomar o que nos pertence juntos. Vamos reinar juntos. Vamos conquistar o mundo juntos. Nosso destino é um só.
  Preciso de você. Venha a mim, Alma.

 
   O estrondo, o vento semelhante a um furacão e a neve que se espalhou feito uma explosão fez com que todos – humanos e pokémon – que estavam ali perdessem o equilíbrio e fossem lançados ao chão por uma onda de vácuo. Heatran silvou, todas as rachaduras de seu corpo expeliram vapor quente e a lava nas fissuras brilhou enquanto ele se voltava, entre a raiva e o receio, para a origem do estrondo.
   Garchomp conseguiu firmar-se no solo, fazendo uso de seu peso e garras, mas Milotic foi literalmente jogado á metros de distância. Diante do impacto iminente do Pokémon contra ela e sua irmã, Articuno instintivamente espalmou as mãos e quase pôde crer que um vento gélido a envolveu e pareceu mudar sutilmente a rota de colisão do Pokémon contra elas, fazendo-o rolar pelo declive próximo ao templo.
— Ah, essa não...!
  O murmúrio de Moltres fez Articuno esquecer o que pareceu acontecer e se focar no que a irmã olhava. E percebeu que o plano inicial que haviam combinado, fora perdido.
  Cynthia, jogada pela onda de vácuo, rolou pela neve. Aturdida, logo se levantou, afastando neve e fios de cabelo do rosto, os olhos arregalados de surpresa e raiva em tentar entender o que estava acontecendo. Foi então que viu.
 A montanha de neve que emergia há poucos metros de distância. Uma montanha de neve e gelo tão branco que reluzia naquele fim de madrugada. Mas, espera. Não era uma montanha. Aquilo se movia, estava vivo.
   Era um Pokémon. Um Pokémon branco, imenso. Cynthia esfregou os olhos com força e jogou a franja do cabelo bruscamente para trás, trincando os dentes, sentido uma raiva crescente.
   Cynthia era uma historiadora. Conhecia muito – até mais do que a maioria das pessoas – acerca da história de Sinnoh. Tinha um interesse especial na primeira dinastia, do Grande Império do rei Biruritch e seu domínio sob a antiga Kanjoh. Naquela época tão distante, o imperador foi incitado a guerrear e ser covarde e injustamente destronado por um forasteiro que dizia ser o legítimo herdeiro de Kanjoh. E na guerra que ele incitou o povo, tinha como sua maior arma, seu próprio Pokémon.
  O Pokémon lendário do maldito rei Lugia de Além-mar. A besta-fera que causara horror e destruição no antigo reino de Sinnoh, levando-o a um dos desfechos mais trágicos e violentos da história de sua pátria.
  A morte branca.
  O imenso Pokémon Lugia surgiu, silvando ameaçador não apenas contra Heatran, mas contra o templo atrás dele. Contra Sinnoh mais uma vez.
   Tudo se encaixava. Não era um civil vitimado. Era a aberração que Igni tinha como trunfo.
  Diante daquele Pokémon, Cynthia tremeu. Mas o medo era o que a motivava a nunca recuar, o que a motivava a continuar. O que alimentava a sua raiva.
  Não poderia deixar que aquele Pokémon causasse qualquer estrago na cidade. Em Sinnoh.
  Cynthia se levantou, olhando ao redor. As condições da situação não eram as melhores, mas ela daria conta. Tinha ainda cinco Pokémon aptos a lutar, dois deles já em campo e ela já pegava mais duas pokébolas. E se fosse preciso, tinha ainda um Pokémon apto a mandar tudo aquilo para os ares.

  “Vou abater esse monstro branco, capturar Heatran e proteger esta cidade. E farei isso sozinha!”

  
   Cynthia Shirona não tinha medo. Mas, quando o imenso Lugia se fez presente diante de si, com seu tamanho colossal, muito maior do que os registros Pokémon diziam que tal criatura era, olhando para Heatran e o templo enquanto o silvo ameaçador ecoava e parecia enregelar cada nervo de seu corpo, a mestra lembrou-se mais uma vez dos registros históricos que lera. E o que eles contavam que havia acontecido quando a morte branca atacou.

   E ela pensou que aquele desgraçado do mestre Lance bem que poderia aparecer agora para dar um auxílio na batalha.
   Cynthia Shirona talvez tivesse um pouco de medo.

~*~


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Notas finais do capítulo

Terminando o capítulo aqui...
Tivemos mais uma batalha pokémon, que sempre é um desafio para mim escrever. Procurei fazer o meu melhor para que a narrativa fosse relativamente agradável e desse pra passar um pouco da sensação da cena.
Podemos ver que a campeã Cynthia não é realmente a pessoa de índole que ela mostra publicamente. Eu sei que a personagem na obra original é muito estimada pelo fandom (e eu também gosto dela, tanto que fiz o cosplay recentemente) mas aqui na história estou tentando trabalhá-la de uma forma um pouco diferente do original. Assim como Lance, ela usa máscaras sociais, mas ao contrário dele, podemos começar a ver que a Cynthia é mais radical.
Agora, a parte mais trabalhosa para escrever foi a conversa entre Alice e Crystal. Eu até pensei em deixar a conversa delas mais pra frente porém, vendo o tanto de capítulo que já temos aqui, acho queestava na hora de Alice falar sobre o assunto e assim fortificar a amizade entre as duas. E para desenvolver o diálogo foi trabalhoso, foi dificil...
E que relacionamento complexo esse entre Alice e Lawrence né...embora essa ideia de shipp fosse presente desde que comecei a história (e até antes dela), atualmente, com o mundo virtual de pautas problematizadoras em cima de obras que vemos aos montes, eu sempre fico com receio de vir gente encher o saco e problematizar o casal e me cancelar de forma errônea.
Enfim, agradeço a você que continua acompanhando a história e prometo que tentarei não demorar muito para atualizar a partir de agora. (mas não posso garantir, rs).
Nos vemos no próximo capítulo.



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