O Conto da Piedade escrita por Glasya


Capítulo 22
XXI — Heroicamente Em Apuros




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Undyne acordou zonza e com muita, muita dor de cabeça. Estava sem sua armadura, o que era um mal sinal. A temperatura do ambiente estava quente demais para o seu gosto, o que era um péssimo sinal. Ao tentar se levantar, percebeu que grossas barras de ferro a separavam de um corredor longo e espaçoso, provavelmente nos andares inferiores do castelo. Do outro lado das barras, bem fora de seu alcance, quatro aquecedores sopravam ar quente em sua direção, tornando o ambiente incômodo e pouco propício ao uso de qualquer poder que envolvesse gelo.

— Se acham que essas barrinhas vão me prender, vocês estão LOUCOS! — Undyne segurou firmemente as barras de metal e pôs-se a puxá-las com toda sua força.

Por mais descomunalmente capazes que fossem os rígidos músculos da jovem, o calor e abafamento gerados pelos aquecedores fez sua pressão baixar rapidamente e sua visão ficar turva. Asgore se aproximou pelo corredor, parando bem em frente à sua antiga aprendiz.

— É melhor não forçar a barra. — O rei deu um leve sorriso mas este logo esmoreceu, como se tomasse nota tardiamente do trocadilho nefasto que acabara de fazer. — Eu sinto muitíssimo por toda esta situação… Mas fico feliz que esteja bem. Ainda sente alguma dor?

— ME TIRA DAQUI!

— Eu temo que isso não seja possível. Entenda, você atentou contra a vida de um monstro, é mais do que natural que seja presa.

— O QUE?! AH, ENTÃO EU SOU PRESA, MAS OS HUMANOS QUE MATARAM MILHARES DOS NOSSOS FICAM IMPUNES?!

— Os humanos que fizeram isso já estão mortos há centenas de anos. E já tivemos essa conversa, Undyne… Bem recentemente, inclusive.

— PRO INFERNO SE ESTÃO MORTOS, NÓS CONTINUAMOS PRESOS AQUI!! E VOCÊ NÃO FAZ NADA, NUNCA FEZ!! VOCÊ NÃO SE IMPORTA COM OS MONSTROS!!!

— Eu sinto muito, Undyne. Eu sei que não deveria ter mentido pra você… Mas por favor, entenda… Permanecer aqui é o melhor para nosso povo. Aqui, estamos seguros… Sair significaria nossa extinção.

— HÁ! EXTINÇÃO DOS HUMANOS, SÓ SE FOR!

— Acredite em mim, Undyne… Eu estive lá.

— COMO É QUE É?!

— Assim que conseguimos a primeira alma humana, Gaster me disse que absorvê-la me daria poder o suficiente para atravessar a barreira… Como meu filho tinha feito, mesmo sem intenção. Mas é claro, pra ter poder o suficiente para quebrá-la, precisaríamos de aproximadamente sete almas ao total… Então saí para coletá-las. Como pode imaginar, a primeira coisa que um humano fez ao me ver na superfície foi gritar e correr em pânico. Pensei que se tratasse de uma simples fuga, mas ele voltou com um grupo de outros humanos, todos armados, atirando seus projéteis de metal contra mim. Os projéteis perfuraram minha armadura e me fizeram sangrar… Foi uma dor que nunca senti na vida. Queimava e perfurava ao mesmo tempo, e quanto mais eu me mexia mais fundo parecia a ferida. Eles me perseguiram pela floresta, rindo e comemorando o fato de terem me acertado. Estavam tão ávidos pela minha cabeça que tive que provocar uma grande queimada para conseguir fugir. Quando voltei para casa, após uma cirurgia para remover o projétil das minhas costelas, decidi pesquisar sobre aquilo que me atingiu…  Os humanos chamam de “arma de fogo”. Com ela, qualquer idiota pode matar alguém movendo um único dedo. Mas está longe de ser a máquina de destruição mais poderosa dos humanos… Desde a última guerra, eles têm aperfeiçoado suas técnicas de assassinato. Desenvolveram armas capazes de aniquilar cidades inteiras em poucos minutos, outras que envenenam multidões de uma só vez. Os seres humanos matam sem piedade a si mesmos e o próprio mundo onde vivem, Undyne. Matam por prazer qualquer um com quem entrem em desacordo… Seja por seguirem outra religião, ou amarem de outra forma, terem uma cor de pele diferente, ou simplesmente por morarem em outro lugar… Humanos sempre arrumam uma desculpa para o massacre. Eu não podia permitir que fôssemos suas próximas vítimas.

— Então por que não contou isso ao povo?!

— Porque o povo precisa de esperança, Undyne. Sem esperança, sem fé no “Anjo” salvador, os monstros se entregariam ao desespero, e todo o reino iria colapsar.

— Ou seja, foi tudo pra manter a sua maldita coroa.

— Não vou negar, meu trono estaria mais seguro enquanto as pessoas pudessem me ver como seu salvador. Elas tinham a esperança de serem livres, e eu a de que nenhum humano voltaria a cair aqui. Não me orgulho nem um pouco disso, eu te garanto… E sei que você tem razão em me odiar por isso. Mas eu gostaria que entendesse que o que eu fiz… Foi para proteger nosso povo, e a você também. Você foi como uma filha para mim, Undie. Ainda é. E eu não suportaria perder outra filha.

Undyne ouviu atentamente as palavras de Asgore, resistindo à vontade de abraçá-lo por entre as grades. Queria protestar, questionar as ações do rei, mas se o que ele dizia era verdade, então talvez Asgore tivesse razão; os monstros deveriam permanecer no subsolo para seu próprio bem. Se odiou por chegar nessa conclusão; não podia ceder tão fácil, tinha que ser forte, tinha que permanecer determinada! Chegara longe demais para desistir agora. Engoliu em seco a emoção que subia aos seus olhos, e voltou os pensamentos para o que interessava.

— Se o que você disse é verdade, então os humanos devem estar em um número bem reduzido agora…

— Não duvido. Quanto maior o número de humanos aglomerados em uma localidade, maior é a violência entre eles…

— Isso significa… Que AGORA é a hora certa para ATACAR!

— O quê? NÃO! Mas que droga, Undyne! Você não entendeu NADA do que eu disse!?

— Entendi que os humanos vêm se destruindo há séculos, perderam a capacidade mágica e dependem de artefatos para matar. Estão desesperados e em número reduzido, ou seja… Vulneráveis.

— Você só pode estar de brincadeira! Eu desisto de você. — Asgore se afasta das grades e aumenta levemente a potência dos aquecedores. — Fique aí e reflita sobre tudo o que eu falei. Aproveite e repense suas atitudes também.

Bufando, o rei deixa a mulher-peixe sozinha em sua cela abafada.

— EI! EEEEI! ME TIRA DAQUI! GRRRAAAAHHH! ASGOREEEE!!! MAS QUE MERDA!!

Bateu o punho contra as barras metálicas, em um misto de fúria e desespero.

— Pensa, Undyne… Pensa… Argh… Que calor infernal… Eu não consigo pensar em nada… Se Alphys estivesse aqui ela com certeza ia saber o que fazer. Merda, eu queria ser inteligente que nem ela…

Limpou o suor que escorria de sua testa e pescoço com uma das mãos, e ao ver as gotículas brilhantes em sua palma uma ideia lhe ocorreu como um raio de luz em meio à densa escuridão de sua mente. Ela não teria água o suficiente para usar perfeitamente suas habilidades, mas talvez se se concentrasse conseguiria utilizá-los bem o suficiente para pelo menos arrebentar aquelas barras de ferro.

Sentou-se no chão com as pernas cruzadas, o mais próximo que conseguia chegar dos aquecedores. Respirou fundo, fechou os olhos e esperou. Esperou. Bateu as pernas enquanto esperava. Rangeu os dentes. Tamborilou a grade. Nunca fora boa em ser paciente.

Resolveu então acelerar o processo: posicionou suas mãos em paralelo no chão e esticou as pernas, sustentando seu corpo com a ponta dos pés, dando início a uma série de flexões. Foram as flexões mais difíceis de sua vida; o calor fazia com que mal aguentasse o peso do próprio corpo, mas continuou até que suas roupas estivessem completamente ensopadas.

Tirou a camiseta e a torceu firmemente. A água que escorreu foi o suficiente para começar a preparar sua fuga. Sabia que com aquele calor só teria energia para um único ataque, então teria fazer com que ele valesse à pena. Fechou firmemente os olhos e quando os abriu, deixou fluir em um grito de fúria toda a sua determinação.

A amazona deixou escapar um arquejo de felicidade quando viu o gelo arrebentar o teto, o jardim e boa parte do forro superior do palácio. Escalou rapidamente os escombros e saltou para fora daquele buraco; pegou impulso jardim afora, protegendo o rosto com um de seus braços ao atravessar um dos enormes vitrais do castelo rumo à sua liberdade.

Amorteceu sua queda com um rolamento e seguiu seu rumo dando voltas, evitando os lugares mais movimentados do Núcleo fazendo o possível para ocultar os próprios rastros. Pensou em se esconder no laboratório real, mas tinha poucos apoiadores por aquela região e certamente toda a guarda já estava a par de sua fuga, fazendo de Alphys a primeira opção para um interrogatório a respeito de seu paradeiro. Seria melhor para ela se não soubesse de nada. Além disso, achava Terraquente um verdadeiro inferno e faria de tudo para não ficar ali por muito tempo.

Passou direto pela entrada do laboratório sem lhe dar um segundo olhar, e desceu a ribanceira até o rio. O barqueiro não estava em seu posto àquela hora, mas isso não seria um problema; uma vez na água, não demorou nem dez minutos para chegar à Cachoeira.

Quando saiu da água, já próxima à sua casa, foi acometida por um sentimento de alívio, mas também de derrota. A heroína do subsolo fora novamente derrotada, feita prisioneira e agora era uma fugitiva. A humilhação a atingia como um soco no estômago, e a exaustão começava a cobrar seu preço. Deitou-se na beira do rio e fechou os olhos, dizendo a si mesma que seria por apenas alguns minutos.

— Olha só o que que a água trouxe! Acorda pra cuspir, minha filha! — Undyne foi acordada por uma bengala que batia insistentemente em seu braço. — Te vi na TV, parece que se meteu numa baita enrascada, hein? Wah ha ha! Tira essa lama da cara, guria! Vem, vamo’ ver o que tem pra comer.

Ao abrir os olhos deparou-se com seu antigo herói de infância; Gerson, o Martelo da Justiça, desfrutava de sua aposentadoria em uma aconchegante casa na cachoeira, na qual ele regia um pequeno comércio. Undyne conseguia pensar em destinos melhores para um herói, mas o velho Gerson parecia feliz com seu novo estilo de vida bucólico. Ainda estava cansada e dolorida, e sabia que ir para casa não era seguro; hesitante, levantou-se e limpou o rosto com uma das mãos, observando a velha tartaruga que andava a passos trêmulos com sua bengala.

— Vai ficar aí ou vai vim jantar? — Gerson gritou, sem se virar.

Ainda relutante e sem entender muito bem o que se passava, Undyne resolveu seguir a tartaruga para dentro de sua loja.


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