Gentileza, bullying e batata frita escrita por LiKaHua


Capítulo 3
Ser ou não ser... um idiota?


Notas iniciais do capítulo

Oie, mais um capítulo aqui para vocês e, creio, será o último nessa semana porque é semana santa e eu sou católica, então guardo os dias da quinta até o domingo, por isso não vou trabalhar por esses dias. Então, só vou atualizar o conto na próxima semana quando escrever o próximo capítulo, tudo bem?



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Eu tinha dois problemas. O primeiro seria encenar a peça na semana que vem contracenando com Louise Marshall. A segunda seria dar o gosto amargo de vitória a Jason quando a convidasse para o baile e ela negasse. Comecei a me sentir um idiota por cair tão facilmente na armadilha de Jason, a raiva faz isso com a gente, ficamos tão cegos pela nossa revolta que esquecemos de raciocinar, graças a isso atraímos mais problemas para nós mesmos.

            Pensava nisso enquanto ia para casa imaginando o que faria para sair daquela enrascada. A apresentação da peça valia metade da nota do semestre e ao que parecia eu não tinha muita escolha, no dia seguinte haveria um ensaio e eu tremia nas bases só de pensar. Como se não bastasse ser zoado na escola, agora eu seria uma atração de circo sobre um palco.

            Entrei em casa e passei direto para meu quarto sem cumprimentar minha mãe como sempre fazia quando chegava da escola, não queria responder as perguntas rotineiras que ela me fazia e, acima de tudo, não queria explicar como havia terminado naquele beco sem saída, muitas vezes, por melhor que ela seja, minha mãe tem o dom de me fazer sentir ainda pior do que já me sinto rotineiramente. Não de uma forma proposital, mas de maneira inconsciente. Quando você escuta várias vezes uma mesma coisa de um determinado número de pessoas essa coisa acaba se tornando real na sua mente, mesmo que você insista em lutar contra isso. A coisa em questão era minha aparência de fera, corpo de baleia e intelecto de rato.

— Jake? — O rosto da minha mãe apareceu em uma brecha da porta entreaberta.

— Ah, cheguei.

— Aconteceu alguma coisa, querido?

— Nada. — Menti. — Só cheguei um pouco cansado e cheio de dever de casa.

— Querido, quando vai aprender que eu te conheço melhor que qualquer um para que tente me enganar? — Ela sorriu.

— Não custa tentar, não é?

— Tudo bem se não quiser conversar. Saiba que estou pronta para ouvir quando estiver pronto para falar.

Oi? Minha mãe superprotetora me dando um espaço?

— Hum... obrigado?

— O jantar está quase pronto, não demore.

— Tá bom.

            Quando ela saiu eu fiquei olhando para os lados tentando identificar se aquela era alguma realidade paralela. Pensei por horas no que poderia acontecer, no que o futuro estava me reservando, decidi que era uma idiotice me preocupar com aquilo, eu tinha simplesmente que fazer. Não importava o resultado, nada mudaria a minha situação, ninguém pararia de me chamar de gordo e idiota, era só uma peça, era só uma garota, não seria a primeira vez que eu era ridicularizado. Nem a última.

*

            Eu não conseguia parar de transpirar. As gotículas de suor desciam gélidas pela minha nuca enquanto eu esperava na coxia a minha vez de entrar. Lá eu podia ouvir as vozes de Louise e Set no palco, Set Owels era o ator principal do clube de teatro, viviam zoando ele de ser gay mesmo que ele não fosse só porque ele havia escolhido algo no qual era realmente bom. Todo mundo desconfiava que Ray Elsin tinha uma queda por ele, e Ray sim era gay, mas ninguém zoava ele por isso porque além de muito rico ele era um cara legal demais para que alguém fizesse tal coisa.

            Acho que o negócio das pessoas que praticam bullying é atacar não apenas os mais fracos do cabo de guerra, mas aqueles que não tem razão nenhuma para serem zoados e, mesmo assim, eles zoam. Juro que até hoje não consegui entender como a mente dessas pessoas funciona. Veja bem, Set Owels era um ator brilhante, as vezes até eu chorava vendo as peças dele na escola, mesmo assim só porque ele era de classe média, bonito e não amante de basquete, zoavam com a sexualidade dele, mas ninguém fazia nada com o Ray porque ele era rico e parte do primeiro grupo. Sobretudo, porque zoar o Ray não fazia sentido, ele era mesmo gay — e de nenhuma forma acho que isso seja mesmo algo para se zoar —, não é como se as piadas fossem atingi-lo. O pobre Set, por outro lado...

— E então, Mattews, pronto para dar aquele beijo no Owels? — Jason riu enquanto me lançava um olhar debochado. — Aposto que você faz o tipo dele.

— Isso deixa você enciumado, Dawson? Porque a última coisa que eu quero é me meter na relação de vocês. — Devolvi, ácido.

— Escuta aqui...

— Mattews, dois minutos! — A senhora Eagle apareceu onde estávamos. — O que faz aqui, senhor Dawson, não lembro de nenhuma serventia do senhor para artes que não envolvam uma bola e cestas furadas.

— Vim apenas desejar boa sorte, senhora Eagle. — Sorriu ele na pior atuação de Judas. — Quebre a perna, Mattews.

            E você o pescoço! Era o que queria dizer, mas não fiz. Jason saiu da coxia na direção do auditório, sabia que aquele “quebre a perna” era tão literal quanto o meu nervosismo. Eu sabia todas as falas, mas não tinha certeza de conseguir reproduzi-las verbalmente para Louise, sempre tinha a idiota postura de perder a voz, a coragem ou qualquer tipo de reação racional quando estava no mesmo lugar que ela, apesar de ser estonteante, de alguma forma Louise Marshall também era muito intimidadora, pode ser apenas um reflexo da minha insegurança, mas era um fato que eu babaria como um idiota quando ficasse diante dela vestido com roupas do século XVI.

            O vestido que ela usava era de um amarelo pálido com algumas flores bordadas da barra para metade da lateral esquerda, a saia mais ou menos armada não era muito exagerada e o decote quadrado salientava o busto dela por causa do espartilho, os cabelos ruivos caíam em cachos de babyliss em um penteado elaborado e enquanto ela caminhava com graça felina no palco entoando as falas como versos na sua voz de mezzo-soprano, vi-me tão hipnotizado pela sua sagacidade e presença que perdi minha deixa de entrar no palco e recebi uma reprimenda da senhora Eagle.

            Respirei fundo quando dei passos incertos na direção dos refletores, Louise estava parada a espera com um leque cheio de arabescos pintados, ela agitava suavemente e o mover do seu pulso era tão gracioso quanto sua apreensão e impaciência por ser deixada sozinha no palco, assim que apareci risadinhas surgiram, nada que eu já não esperasse, contudo, a tranquilidade no olhar de Louise era tão confortante que — ainda não sei como — simplesmente continuei caminhando em sua direção.

— Finalmente aqui te encontro, dama dos meus pensamentos! — Disse, a voz soando límpida e firme como eu não estava. O suor escorria gelado pelas minhas costas e rosto. — Devo presumir que aqui vieste para atender meu pedido caloroso e esperançoso de ver-te novamente antes de minha breve partida à Carta?

 — Sim, estás certo em supor que vim ao teu encontro, Ian. — Virou-se de frente para mim, a expressão cheia de determinação como pedia sua personagem. — Contudo te equivocas se crede que meu intuito é ceder a teus sentimentos.

— Que posso eu fazer para que venhas comigo? Acaso não sabes, musa dos meus sonhos, que por ti de tudo sou capaz?...

            A cena era seguida por dois monólogos meio extensos, um meu e um de Louise, se olharmos num modo geral, ambos nos saímos muito bem, embora isso fosse esperado dela. Normalmente, graças a sua memória afiada, Dave Abott faltava alguns ensaios e eu substituía-o como Ian para que os demais atores pudessem ensaiar, mas nunca tivera a pretensão de atuar em seu lugar. Mas enquanto fiquei em cena, com Louise e com os demais atores, quando senti a personagem fluindo por mim e dominando os espaços na minha mente, toda a plateia desapareceu de modo que a peça acabou, Ian morreu e passei por tudo ileso.

            Fomos aplaudidos de pé por uns dois minutos, Demeter recebeu sua cota de felicitações pela peça bem escrita e pela “genialidade de suas personagens” como disse a senhora Eagle. Na coxia, enquanto eu tentava digerir o que havia acontecido, apesar de no início ter sido difícil seguir adiante pelo nervosismo, as vaias e as risadas, me convencia a acreditar que eu conseguira encarnar o personagem e levar toda a peça adiante sem falhas, nenhuma pelo menos que não fosse meu peso fora do contexto.

— Você foi ótimo, Jake! — Cumprimentou-me Set. — Uma atuação brilhante e cheia de fibra, parabéns!

— Valeu, Set. — Agradeci humildemente.

— Bom trabalho, Jake. — Louise sorriu, segurava um buquê de rosas no braço esquerdo. — Você foi um Ian cheio de vivacidade!

            Não consegui responder, apenas assenti pasmo demais para fazer minhas cordas vocais produzirem qualquer som. Quando ela se afastou pensei em ir atrás dela para perguntar sobre o baile, mas não consegui fazer meu corpo se mover e quando finalmente recobrei a mobilidade ela estava conversando com a senhora Eagle e um grupo de pessoas, então perdi a oportunidade. No fundo, estava orgulhoso de mim mesmo por ter conseguido honrar a confiança de Dave, apesar de não ter pretensão de ser um ator, encarnar um papel em que pelo menos podia fingir que era um cara bonito e conquistador me fez muito bem.

Obrigado, Dave Abott!

*

            Ir bem na peça de teatro resolvia apenas um dos meus problemas, ainda não havia convidado Louise para o baile, não apenas pela falta completa de coragem — além da minha falta de capacidade mental quando ficava frente a frente com ela —, mas principalmente por medo da rejeição, se pretendia mesmo fazer aquilo tinha que pensar em uma forma digna de ser rejeitado.

— E aí, Mattews, conseguiu traçar o Owels ontem? — A voz de Jason me arrancou dos meus devaneios em frente ao armário.

— Sério, Dawson, você não consegue pensar em nenhuma outra atividade produtiva que não envolva esmurrar pessoas e fazer comentários absurdos? — Suspirei.

— Sabe, Mattews, pessoas como você são uma poluição visual no mundo. — Os amigos dele riram, Samuel ficava apenas no canto observando. — Já pensou em morrer?

— Mais vezes do que sua capacidade de contar permite calcular. — Devolvi sarcasticamente.

— Como foi com a Louise? — Riu ele provavelmente sem entender o meu comentário. — Ela foi educada ao te rejeitar?

— Ainda não falei com ela, mas não se preocupe, você será o primeiro a saber da novidade.

— Estou pegando leve com você esses dias, Mattews, não vou ser tão gentil daqui a uma semana e alguns dias.

            Depois de me empurrar contra o armário ele saiu com seus amigos. De que adiantava tanta beleza física se não havia qualquer atividade cerebral produtiva ali? Revirei os olhos irritado comigo mesmo, contive o desejo de esmurrar o armário e apenas joguei os livros de volta no armário e saí na direção do terraço da escola, furioso demais para ouvir mais piadas na aula.

            Quando cheguei ao topo da escada e abri a porta de latão, fui ofuscado pela claridade forte do dia ensolarado, dei um grito de frustração e chutei a porta que abria-se para dentro e provocou um ruído absurdamente alto, sentia tanta raiva que não pensei se alguém poderia ir até lá ou, ainda, que já havia alguém lá.

— Imaginei que ia te achar aqui. — Sam levantou-se de um dos grandes blocos de concreto que se espalhavam pelo telhado.

— O que tá fazendo aqui? — Inquiri, rispidamente.

— Tentando me redimir, talvez?

— Bom, veio ao confessionário errado, não estou com humor para atender pecadores hoje. — Ironizei.

— Jake... eu sei que o Jason é um idiota, mas...

— Cala a boca, Sam! — Gritei. — Que direito você acha que tem de vir até aqui me dar sermão de autoajuda quando é só um covarde que se esconde atrás dos músculos daquele cara?! Sai fora daqui!

Por um momento, Sam ficou parado, a fúria flamejando em seus olhos que me fitavam fixamente, queria dar um soco nele, queria dar um soco em todos.

— Tem razão! — Gritou de volta. — Me desculpe se eu não sou forte e evoluído como você, Jacob Mattews! Se eu achei mais fácil passar um ano na terapia e perder peso para me proteger de gente cretina como o Jason, sinto muito se fui fraco a esse ponto, mas quer saber de uma coisa? Você fica aí dizendo que o problema não é o seu peso, que não se importa com o que eles dizem, mas na verdade se importa sim! Você se odeia tanto quanto eles odeiam você e é por isso que está aqui gritando suas frustrações para o nada! Eu perdi o direito de ser seu amigo, sei disso e sinto muito! Sinto muito, Jake!

            A explosão me pegou de surpresa. Ao final, os olhos de Sam estavam cheios de lágrimas e me vi sem reação por um momento. No fundamental, Sam e eu éramos muito próximos porque compartilhávamos do mesmo problema com aparência, ele era um pouco mais gordinho que eu e por isso mais zoado, eu permanecia ao lado dele e ajudava como podia, mas quando entramos no colegial as coisas pioraram, as coisas que eu passei durante a maior parte do ensino médio, Sam não conseguiu suportar no primeiro mês, as agressões tornaram-no cada vez mais fraco e apavorado até que, sem suportar mais, ele viajou para San Diego na tentativa de que, ficar um tempo com a mãe em um lugar que ninguém o conhecesse, pudesse levar uma vida mais calma.

            Olhando para ele naquele momento, sob toda a camada de músculos definidos e altura, quase conseguia enxergar o garotinho que comia o sanduíche antes de mim e pedia metade do meu porque ainda tinha fome. Que chorava quando suas cuecas desapareciam do vestiário da educação física porque algum babaca as havia jogado na lixeira. Antes que pudesse dizer qualquer coisa — e concordar com ele porque, sabia, ele tinha razão no que dissera — Sam ergueu a cabeça e me olhou com um misto de tristeza e algo que não consegui identificar.

— Jason tentou chamar Louise para o baile. — Disse. — Ele fez todos os caras mais bonitos da escola fazerem isso, mas ela recusou. Disse que não vai ao baile e ainda mais acompanhando um imbecil. Achei que devia saber disso.

            Virou-se e deu passos firmes na direção da porta do terraço, apesar da situação em que nos encontrávamos agora, não pude deixar de me sentir mal por ter descontado minha frustração em Sam, principalmente depois de descobrir que ele fora até ali me fazer um favor. Antes que ele atravessasse a porta o chamei:

— Sam!

Ele parou, mas não virou para me olhar.

— Obrigado.

            Meneou a cabeça afirmativamente e, por um breve segundo, virou para mim e sorriu, entendi naquele momento que ele havia entendido a mensagem. Samuel Jansens escolhera não ser um idiota. Pelo menos não completamente.


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Notas finais do capítulo

Estou decidida que vai ser uma short fic. Então, esperem o fim nos próximos capítulos e, desde já, muito obrigada por estar acompanhando e comentando. Um grande abraço e até semana que vem!



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