Gentileza, bullying e batata frita escrita por LiKaHua


Capítulo 4
Gentileza, bullying e batata frita


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas! Desculpem a demora, é que eu to cheia de coisas para fazer e cursos para levar adiante. Então, esse é o penultimo capítulo do conto, sim, vai ficar curtinho mesmo. Dependendo do rumo das coisas, o capítulo que vem será o último. Ainda assim, quero agradecer a todos que leram e comentaram essa história, de coração vocês são os melhores.
Beijo especial pro JV, pra Mare essa diva maravilhosa, pra Julieta, Fallen Angel e pro Lucas.



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Faltei à aula de biologia naquele dia. A última coisa que eu queria era observar plaquetas num microscópio e estava realmente sem paciência para as piadinhas sobre a gordura no meu sangue. Sei que é muito errado, mas sempre que me sinto perturbado eu como. Estava com um pacote de batatinha frita, sentado na minha parte favorita do terraço da escola.

            A razão do terraço não ser usado pelos alunos — além da completa ignorância deles sobre a existência do lugar — é que, teoricamente, não havia permissão para ninguém ir lá em cima, isso porque, anos antes de qualquer um de nós ter nascido, um aluno se suicidara atirando-se da li. Com o passar do tempo a história trágica se tornou um artigo amarelado perdido nos arquivos, descobri isso por acaso quando fora voluntário na biblioteca municipal. Ninguém queria falar sobre o assunto, da nova geração, dos meus pais, por exemplo, só se ouviam histórias vagas e ninguém na escola comentava aquela história. Não fosse o artigo amarelado de jornal, ninguém nunca saberia da existência de Joshua Hills.

            Assim, após o acontecido, se tornou uma norma da escola a proibição do uso do terraço, proibição essa que não me sentia nem um pouco mal por quebrar. Não vou mentir dizendo que nunca pensei em me atirar ali de cima, mas sou covarde demais para isso, se eu realmente planejasse morrer — e não acredito realmente que ninguém planeje isso — usaria aquele velho método “semi-indolor” (e provavelmente essa palavra não existe!) de misturar todos os remédios que conseguisse obter e esperar entrar num estado de coma do qual nunca mais acordaria se tivesse muita sorte. Mas a questão é que, independente do quão ruim esteja a situação, do quão cansado eu esteja de tudo, viver vale a pena.

            Sempre que estava no limite da minha sanidade, desejando que o mundo inteiro explodisse, pensava na minha mãe e na minha melhor amiga sarcástica: Anne Frank. Já havia lido aquele livro tantas vezes desde que a professora de inglês passara um ensaio sobre ele no primeiro ano que, sempre que queria desistir, quase podia ouvir a voz de Anne no meu ouvido dizendo: resista seu estúpido acéfalo, ninguém disse que a vida era fácil. Quer dizer, tudo que ela passou naquele anexo, as privações, a pressão sobre sua personalidade e sua maneira de pensar, o fato de nunca ser aceita do jeito que era, aquilo me fazia sentir muito escória humana por me irritar com alguém tão pequeno como Jason Dawson.

            Muitas vezes, chegava a imaginar Jason vestido como militar da Guestapo, me caçando incansavelmente enquanto tentava me esconder atrás do armário da minha indiferença que, sinceramente, custava muito suor de sangue para manter. “Você é uma poluição visual para o mundo, Mattews, já pensou em morrer?”, não era como se ele fosse o primeiro ou o último a me dizer coisas como aquela. Havia dois anos eu me deletara de todas as redes sociais por conta de comentário grotescos como aquele, será que meu peso influenciava tanto a vida das pessoas? Me tornava uma pessoa assim tão desprezível ao ponto de me odiarem por causa disso? A pior parte é que sabia que não, escutara até mesmo de terapeutas que eu deveria emagrecer, parte de mim queria fazer isso só para calar a boca de todo mundo, outra parte me dizia que eu não tinha de me sacrificar por ninguém além de mim mesmo, se eu precisasse mudar realmente, faria isso por minha vontade, por mim e apenas por mim. E, naquele momento, não queria.

            Pus outra porção generosa de batatinhas na boca tentando afastar aqueles pensamentos. Nunca vou acreditar nessa história que dizem nos pacotes de fritas, o ar evita que as batatas quebrem? Qual é! Se isso fosse mesmo verdade todos os pacotes de fritas viriam com batatinhas intactas o que sabemos que não acontece. Para mim isso é vender menos mais caro. Coloquei o pacote vazio na mochila — eu nunca jogava lixo no chão — e comecei a me preparar psicologicamente para a próxima aula da qual, nem mesmo que quisesse conseguiria escapar: educação física. Eu estava com a tolerância no vermelho de todas as aulas que matei, eu realmente odiava educação física, não apenas por ser obrigatório, mas por ser a aula em que mais me enchiam o saco. Sempre saía da educação física furiosamente faminto, antes mesmo de a aula terminar já visualizava a generosa porção de batatas fritas com molho picante que compraria no refeitório para aliviar a tensão sofrida naqueles quarenta minutos de tortura.

            Se por um lado eu tinha sorte de os membros do time de basquete serem dispensados da educação física, por outro eu tinha azar por Jason Dawson e seus coleguinhas viciados em esteroides não serem os únicos com diploma em babaquice na escola. Estávamos no período do handebol, apesar de toda chateação dos alunos, eu era particularmente bom no handebol e no vôlei, quando meu pai era vivo nós também jogávamos futebol americano. Ele morrera de câncer quando eu tinha doze anos, nunca falo do assunto com ninguém. Louise Marshall, às vezes, transferia o horário da educação física para o meu, por causa do trabalho no jornal ela tinha dispensa em algumas aulas semanas alternadas, coincidentemente, naquele dia, eu a veria uma terceira vez na educação física.

            O sino da troca de aula soou e peguei meu caminho sem pressa, se tivesse sorte conseguiria me livrar dos alunos no vestiário, não me incomodava em receber uma chamada do treinador Kutcher pelo atraso desde que conseguisse alguns minutos de paz. Tive sorte. Todos já estavam na aula quando finalmente cheguei à quadra, não dei ouvidos a bronca do treinador e cumpri minha corrida da vergonha, três voltas na quadra enquanto acabava o primeiro jogo. Louise já estava em campo, era uma das atacantes, me perguntava se havia algo em que ela não fosse muito boa.

            Não quero que entenda mal, eu não era apaixonado por Louise Marshall. Eu a admirava demais, não havia como ser de outra forma, ela era a nossa estrela, outras pessoas podiam amá-la por sua beleza, mas eu admirava sua inteligência e sua desenvoltura em tudo que fazia. Talvez eu tivesse uma quedinha por ela, mas não algo louco como paixão, ainda que ficasse como um idiota quando ela se aproximava de mim. É mais ou menos como acontece quando você conhece o seu ídolo, faltam as palavras, você sua como um porco, enfim, tem uma síncope. Louise Marshall era meu ídolo do ensino médio.

— Muito bem, Mattews, você fica no gol hoje! — Gritou o trinador.

— Isso é injusto, treinador! — Protestou um dos alunos, Rogers. — O outo time não tem chance com ele tapando o gol inteiro!

Os outros caíram na gargalhada e apenas me limitei a revirar os olhos.

— Muito engraçado, Rogers, não consigo parar de rir. — Respondeu o treinador sarcasticamente. — Mattews, anda logo, eu não tenho a manhã toda.

            Eu ficara incumbido de ser o goleiro do time de Rogers, acredito que por implicância do senhor Kutcher, o outro goleiro, Doug Lander, tomara o lugar do time de Louise. Quando você é um alvo de bullying apesar de você não revidar as ofensas diretamente, você as revida indiretamente, pelo menos era como eu me defendia. E, o meu revidar, foi permitir que Louise e seu time marcasse mais pontos que o time de Rogers no jogo. Eu estava defendendo o gol, claro, mas a maior parte das vezes, sem querer a bola passava por mim.

— Qual seu problema, baleia?! — Irritou-se Rogers. Tão original!

— Ah, foi mal, acho que a minha pança não ocupa o gol inteiro afinal. — Dei de ombros, sarcástico. Louise riu.

            Fim do jogo. Louise venceu massacrando Rogers e seus amigos. Vou te dizer uma coisa sobre caras como Lester Rogers e Jason Dawson: perder para um cara é ofensivo. Perder para uma garota é imperdoável. Por isso, se em algum momento da minha ingenuidade eu saboreei a vitória de ter me vingado dele, eu engoliria aquele momento com a boca cheia de sangue.

*

            Sempre demorava para voltar ao vestiário, esperava que todos fossem embora para, só depois, tomava banho e ia para aula. Naquele dia, fiquei guardando as bolas e ajeitando outras coisas para “matar o tempo”, Louise fora para o chuveiro com as outras meninas e, mais ou menos no tempo de sempre, fui para o banho. Tudo estava quieto no vestiário como era costume, mas assim que liguei o chuveiro recebi uma pilha de lixo na cabeça, papel higiênico usado, restos de comida, até areia tinha no meio. Um coro de risadas e deboches choveu sobre mim, assim como cliques que, eu sabia, iam circular pela escola toda como uma epidemia. E não bastava tudo aquilo, eles ainda me trancaram no box usando um rodo para bloquear a portinha. Eu estava sozinho, na quadra vazia, rodeado de lixo e fedendo a comida podre. Tiraram minha toalha de alcance, jogaram o lixeiro de inox na minha cabeça, fiquei desorientado por algum tempo, provavelmente cortou minha cabeça porque senti algo quente descer pelo meu rosto e ainda ouvi Lester soltar algumas imprecações comigo antes de ir embora:

— Você é uma lata de lixo retardada, Mattews! Vê se morre!

            Não sei em que escola se aprende a praticar bullying, mas eles deviam ensinar o efeito que mandar alguém morrer causa junto de humilhações constantes. Chega um momento que, depois de tanto ouvir sobre aquilo, você para de tomar como uma provocação e passa a pensar no assunto como uma opção. Sozinho ali dentro, sentindo-me o menor dos caras do planeta, não senti qualquer vergonha quando chorei e gritei o mais alto que pude dando voz à minha frustração.

Só não contava que a quadra não estava tão vazia quanto pensei.

— Jake? — A voz soou um pouco longe, como se viesse da entrada do vestiário. — Jake, é você?

            Era Louise Marshall. Ótimo, uma humilhação completa. Não adiantou ficar em silêncio ou desligar o chuveiro tardiamente, ela entrou do mesmo modo ignorando que era o vestiário masculino e, não sei o que viu do lado de fora, mas ela exclamou um “Oh, meu Deus!” Ouvi batidas na porta de vidro fosco.

— Jake, você tá bem? Me responde! — A voz dela soava alarmada.

— E-eu tô bem... não se preocupa. Pode ir eu tô... — Sem roupa era o que queria dizer, mas não consegui, minha garganta simplesmente fechou, as lágrimas escorriam quentes.

— Aqui, pega essa. — Ela estendeu uma toalha limpa por cima da porta de vidro. — Como pode existir gente idiota desse jeito? Vou tirar esse rodo daqui, quer que eu chame alguém?

— Não precisa... — Forcei minha voz trêmula a espremer-se pelo nó nas cordas vocais.

— Usa outro box, tá bom? Eu vou te esperar lá fora e não vou deixar ninguém entrar, vou mentir que a faxineira tá no dia da limpeza.

            Tão gentil. Quando a gente está acostumado a ser escorraçado e agredido de todas as formas, todos os dias, a gente esquece o poder da gentileza. Aquela era a terceira vez que eu era salvo por Louise, toda a humilhação que senti antes se tornou uma onda de angústia e dor, enquanto eu lutava para me limpar, esfregando com tanta força a pele que ficava vermelha e arranhava em alguns pontos, as lágrimas caíam com a água pelo meu rosto e eu me sentia ser devorado pela tristeza e a impotência. O desejo de desistir de tudo, inclusive da vida, nunca me abatera tão violentamente quanto naquele momento. Demorei um pouco mais que o previsto na esperança que Louise fosse embora, não sabia como ia encará-la, naquele momento qualquer coragem que eu tivesse reunido no fundo da minha alma de convidá-la para o baile desapareceu completamente.

            Mesmo assim, lá estava ela na frente do vestiário masculino quando saí. Deu uma olhada analítica em mim e ficou muito triste.

— Olha só pra isso... que animais! — Exclamou furiosa. — Vamos, vou com você até a enfermaria. Foi o Lester, não foi?

            Não respondi. De que adiantaria acusar pessoas? No mundo real não existe defesa para quem sofre bullying. Professores, diretores, conselheiros, ninguém está nem aí. Lutei contra as lágrimas, havia passado por agressões durante a vida inteira, mas aquela havia sido a pior. Não queria imaginar como me sentiria quando eles começassem a passar as fotos por todo colégio como haviam feito uma vez.

— Não conta pra ninguém, tá bom?

— Jake...

— Eu me viro, tá de boa. — Parei de falar, do contrário começaria a chorar.

— Pelo menos me deixa ajudar com isso aí, tá uma ferida bem feia. — Pediu ela, docemente. — Se não me deixar fazer nem isso eu vou agora na sala do diretor.

— Tá bom. — Concordei.

            Combinamos de nos encontrar nas arquibancadas da quadra externa. Por um momento ainda pensei em ir embora, mas não consegui me mexer muito além da quadra, pela primeira vez não era por causa da minha imbecilidade habitual perto de Louise, na verdade aquele tinha sido o diálogo mais longo que tivemos desde que ela se mudara. Deixei meu corpo cair, ainda trêmulo, nas arquibancadas de madeira. Revivi mentalmente aquele momento no vestiário e tudo pareceu um pesadelo distante, eu me sentia de tal forma chocado que não conseguia sequer me dar conta da dor do corte no meu rosto.

— Desculpe a demora. — A voz de Louise me trouxe de volta à realidade. — Precisei de uma desculpa boa para tirar isso da enfermaria e fui procurar a faxineira pra limpar aquela bagunça do Lester banheiro.

            Anuí. Não conseguia falar. Louise começou a organizar as coisas e desinfetar meu ferimento, o ardor intenso que queimou meu rosto quase completamente me fez acordar, ser engolido pela realidade e tentei me concentrar nela, tentei com todas as forças me manter com a cabeça no agora, do contrário eu seria engolido e morto pelas palavras de Lester.

— Eu sinto muito, Jake. — Disse ela baixinho. — Em nome de todas as pessoas insensíveis e idiotas que já passaram pela sua vida e fizeram essas coisas com você, eu sinto muito.

— Por que se desculpa? Você nunca fez nada de mal pra mim... a falta de humanidade deles não é sua responsabilidade.

— Eu sou do outro time. — Respondeu. — O time que se oculta. De alguma forma, sou responsável pelo que você e tantos outros sofrem todos os dias. Quando a gente se omite é cúmplice do criminoso, não sabia disso?

— Mas você me ajudou...

— Eu estou em processo de ser uma pessoa melhor. — Ela sorriu. — Sabe, muita gente acha que, por causa da minha aparência ou das minhas notas, eu sou perfeita, mas isso está longe de ser verdade. Eu tenho muitos defeitos, Jake... sou uma pessoa real como qualquer outra. As notas são apenas letras num papel, a beleza é algo momentâneo, o que realmente permanece, dura, são os sentimentos que cultivamos nas pessoas, o legado que deixamos para trás quando vamos embora.  Então, por todos aqueles que se omitem, também me desculpo.

— Eu sou culpado de alguma forma também... sou do time que não se defende. — Soltei um riso nervoso e, depois, de dor quando ela aplicou alguma coisa no corte logo uns dois dedos acima da sobrancelha esquerda. — Eles escolhem pessoas vulneráveis para ser o alvo, pessoas que eles podem vencer pelo medo.

— De jeito nenhum. A culpa de nada disso é sua. Você não tem medo deles, apenas sabe que dialogar com gente estúpida é perda de tempo. — Ela colocou cuidadosamente um band-aid sobre o corte. — Prontinho. Você tá bem? Se sente enjoado ou tonto?

— Tô legal. — Consegui sorrir. — Obrigado, Louise.

— Disponha. — Ela sorriu de volta, aparentemente aliviada. — Quando precisar conversar com alguém, Jake, pode me chamar ou dar uma passada no jornal, talvez se trabalhar com a gente consiga diminuir as incidências de babaquice alheia. Vi como adaptou o livro do Demeter, você seria uma adição bem vinda.

— Vou, com certeza, cogitar a ideia.

— Pegue um formulário com a senhora Eagle. Quer que vá com você pra casa? Estou de carro.

— Não precisa, obrigado, você já fez muito por mim.

— Tem certeza? Realmente não é problema nenhum. — Insistiu.

— Tenho certeza. — Assenti. — Realmente obrigado, por tudo.

— Vejo você amanhã então. Descanse está bem?

            Ela se foi. Fiquei um tempo ainda nas arquibancadas observando o sol desaparecer lentamente atrás dos prédios altos, a gentileza de Louise abrandou um pouco a angústia que me assolara minutos antes causada pela barbárie de Lester Rogers. Pensei um pouco nas coisas que ela disse e admirei-a ainda mais. Havia, afinal, uma chance de chamar Louise Marshall para o baile, havia uma chance enorme de ela recusar, claro, afinal ela recusara todos os garotos mais bonitos da escola, mas pelo menos tinha certeza que ela seria gentil mesmo em sua recusa.

Tudo que eu precisava era de um pouco de coragem e um belo buquê de rosas.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Realmente muito obrigada pelo apoio, vejo vocês no capítulo que vem!



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