Reencontro escrita por Lucca


Capítulo 22
Capítulo 22


Notas iniciais do capítulo

Perdoem-me a falta de atualização. As últimas semanas foram trash. Esse capítulo finaliza a ideia do anterior para podermos caminhar na direção da cura física, já que o psicológico estará mais equilibrado.
Espero que gostem.
Boa leitura.



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Kurt estava decidido a não se deixar sucumbir pelo sono. Permaneceria em vigília por todo o resto da noite se fosse necessário. Seus olhos só voltariam a se fechar após Jane receber uma nova dose do remédio e isso lhe desse a certeza de que ela não passaria por alucinações tão violentas novamente.

Percorrendo cada detalhe do rosto dela que a penumbra lhe permitia, Kurt sentiu novamente a paz que sempre o invadia quando Jane estava em seus braços. No passado, tinha tão fácil adormecer ao lado dela. Tinha sido tão simples e pleno se entregar aos seus sentimentos por ela e deixar que isso pintasse o colorido do futuro possível. Mas o destino foi cruel. Eis que os dois estavam ali entregues um nos braços do outro e a paz já não existia, muito menos um futuro no horizonte podia ser vislumbrado.

Antes que ele pudesse suspirar por seus sentimentos, ela estremeceu nos seus braços e seus olhos se abriram.

— Calma, está tudo bem._ Kurt a tranquilizou.

Mesmo com a respiração sobressaltada, ela esboçou um sorriso tímido e assentiu com a cabeça.

— Você precisa de alguma coisa?_ ele perguntou calmamente.

Ela colocou sua mão sobre o peito dele e disse:

— Obrigada. Você já fez demais por mim.

— Por favor, não me agradeça... é...é tão natural pra mim quanto respirar. E, por mais que eu faça, sempre sinto que você fez mais por mim.

Ela suspirou. Qualquer outra mulher se sentiria plena em ter um homem tão apaixonado ao seu lado. Jane, porém, sentia o peso dos sentimentos do marido em seus ombros. Ele se apaixonou por uma mulher completamente inocente com relação ao seu passado tenebroso. Ao sair da bolsa na Times Square, ela carregava o vazio, mas não 30 anos de uma vida que deixou profundas cicatrizes em sua alma. Como fazê-lo entender isso? Seu silêncio não ajudaria, então ela falou:

— Há tanto de mim que você não sabe, Kurt...

— Agora você poderá me contar quando se sentir pronta pra isso.

Jane desviou o olhar para o teto. Havia tantas coisas horríveis que ela queria poder esquecer novamente... Coisas que ela não queria compartilhar...porque até mesmo o amor mais intenso e profundo tem seu limite, aquele ponto a partir do qual a decepção como o outro faz tudo se despedaçar... O resto da noite já tinha sido um desastre. Ela tinha certeza que Kurt colheu cada fragmento de seus medos e inseguranças após aquela maldita alucinação. Ela se sentia cansada e exposta, seus instintos gritavam para proteger o pouco que restava. Ela teria feito isso se fosse qualquer outra pessoa. Mas não podia agir assim com Kurt. Talvez por mais cartas à mesa fosse o mínimo que devia fazer por ele antes de insistirem naquele jogo. Afinal ele sempre esteve aberto e pronto para ser lido por ela, enquanto ela se ocultava primeiro atrás de sua amnésia e agora atrás da distância que ela criava dele.

Perceber isso foi fundamental para que Jane decidisse falar e enfrentar as consequências.

— O pai de Avery desapareceu após a primeira conversa com Shepherd. Eu disse que deveríamos esperar um momento mais adequado e enfrentá-la juntos, mas ele decidiu sem me consultar...

O assunto surpreendeu Kurt. Ele só esperava que ela se permitisse descansar um pouco mais. Aquela noite já tinha exigido muito dela. Mas, como sempre, ela o surpreendia trazendo para a pauta pontos de seu passado que ele sabia serem delicados pra ela. Determinação e coragem sempre foram a marca registrada de Jane e isso estava entre as coisas que ele mais amava nela:

—  Você sabe o quanto Shepherd pode ser assustadora. Difícil para um garoto de 16 anos. Ele devia ter te ouvido... Pior pra ele, bom pra mim_ e deu uma piscadinha pra ela tentando quebrar a tensão_ Eu não teria desistido tão fácil.

Jane tentou reagir de forma simpática ao comentário de Kurt, mas estava adentrando em detalhes sobre si mesma que não lhe permitiam sorrir.

— Shepherd não precisava assustá-lo com ameaças. Tudo o que ela fez foi revelar coisas que eu ocultei. _ ela só se deu conta das palavras após tê-las pronunciado. Tanto tempo e o mesmo erro batia à sua porta: ocultar informações sobre si mesma das pessoas que amava para protegê-los... ou na verdade seria proteger-se?

— E o que você escondeu? _ Kurt só verbalizou a pergunta porque sentia a necessidade dela de falar sobre isso.

Ela respirou e soltou de forma rápida, mas a cada palavra a revelação foi se tornando mais fria, como se ela não se importasse com tudo aquilo, seja no passado ou no presente:

— Que ele não foi o primeiro... Ela só colocou ele no meio dos outros. E ele ainda acabou contando sobre a gravidez pra Shepherd.

Kurt afagou os cabelos dela cheio de ternura. Outras pessoas talvez não entenderiam, mas sua experiência com Jane, o tempo e os desafios que enfrentaram juntos, o ensinaram a ler as entrelinhas:

— Sinto muito que você tenha que ter enfrentado essa gravidez sozinha..._ e beijo a testa dela._ Pena ele não ter percebido que não era só mais um entre outros..._ e sentiu a mão dela apertar a sua em concordância. Esse sinal foi o incentivo pra ele continuar_ Acho que você está me contando isso porque tem algo a me dizer sobre essa vasta experiência sexual de Remi aos 16 anos, não é?

Jane coçou o nariz num gesto de aflição.

— Kurt, não foi Remi. Foi Alice... Eu precisava proteger Ian...

Kurt respondeu em meio a um suspiro, carregado de pesar:

— Ah, Jane. Eu sinto muito... Eu nem sei o que dizer...Algumas vezes essa possibilidade me passou pela cabeça, mas você não se lembrava ainda, então só desejei que esse passado continuasse enterrado.

— Bem, agora não é mais uma suposição...

Preocupado, Kurt levantou o queixo dela buscando uma conexão com seu olhar para dizer:

— Janie, isso não muda nada pra mim. Eu entendo...

Os olhos de Jane marearam de lágrimas, mas ela os fechou e sacudiu a cabeça como quem precisa espantar a esperança para ser capaz de continuar:

— Não é só isso, Kurt. _ e inalou o ar que estava carregado do cheiro dele. Como ela se sentia segura e amada ali. Outras vezes ela já tinha amado e acreditava ser correspondida, mas seu passado e suas escolhas traziam finais desastrosos e ela acabava só para enfrentar as consequências. Por mais que ela sempre tenha sido uma pessoa determinada a fazer de suas experiências, boas ou ruins, degraus para alavancar sua caminhada, a ideia de perder Kurt parecia devastadora demais.

— Eu te amo...

— Eu sei...

— Então, por favor, confie no que sinto. Não tenha medo de se abrir pra mim. Prometemos não esconder nada um do outro. Você sabe que todas as vezes que sua escolha foi ocultar algo de quem você amava, as coisas não terminaram bem. Talvez essas repetidas experiências negativas tenham reforçado sua insegurança, mas você precisa falar sobre isso, então apenas deixe fluir, Jane. Eu vou continuar aqui quando tudo terminar...

Incentivada pelas palavras dele, ela abriu os olhos lentamente. Não era o mesmo olhar. Não era um olhar parecido com qualquer outro que ele já tinha visto nos olhos dela. Ela estava distante. Distante o bastante para ser capaz de relembrar. Distante o bastante para ser capaz de suportar as consequências do iria contar:

— Depois da adoção de Avery, as coisas ficaram insuportáveis na nossa casa. Eu as tornei assim. Quando acordei e vi o berço vazio, quase coloquei o quarto do hospital abaixo. Então eles me doparam. Foi por isso que assinei os papéis da adoção. Em casa, sem o efeito dos remédios, ficar sem minha filha não era algo eu aceitaria. Eu achava que se demonstrasse isso, Shepherd entenderia e voltaria atrás. Foram dias e dias de conflitos e discussões.  Um dia, ela me fez uma oferta: uma missão para eu provar que era realmente capaz de tudo pra ter minha filha de volta. Aceitei. A proposta era ridiculamente fácil de ser cumprida. Tínhamos cães de guarda. Uma das cadelas tinha 8 filhotes com cerca de 40 dias. Ela me disse para matar os cães. Ela queria me mostrar que eu não era capaz sequer de superar o trauma do coelho do orfanato. Fomos até o canil. Eu pedi a arma. Ela disse que não. Deveria quebrar os pescoços com minhas próprias mãos. Eu respirei fundo. Já tinha matado outras vezes sem nenhum propósito, então é claro que eu seria capaz de repetir isso para ter minha filha de volta. Não pensei em mais nada. Só havia a missão na minha frente, nada mais. O orfanato me ensinou bem essa lição.  Um por um eu tirei a vida daqueles filhotes. Só depois de terminar, olhei o cenário a minha volta. A cadela mãe já não rosnava mais nem latia enfurecida pra mim. Ela lambia um dos filhotes caídos ao lado dela chorando. Eu tinha sangue nas roupas e nas mãos. Shepherd permaneceu de costas o tempo todo, esperando que eu desistisse ou terminasse. Passei por ela sem dizer uma palavra, carregando uma pá. Cavei as covas e enterrei os filhotes. Entrei. Tomei um banho e nunca mais voltei a dizer que queria Avery de volta._ ela respirou fundo e continuou_ Eu era um soldado. Não uma mãe.

Kurt se sentou na cama e acendeu a luz do abajur. Jane também se sentou. Seu olhar continuava vazio. Ele se colocou em frente à ela e pegou seu rosto entre as mãos.

— Por favor, Kurt, nunca conte isso a Avery...

— Shepherd planejou tudo, Jane. Ela sabia que você se sentiria mal pelo que fez e associaria isso à sua incapacidade de ser mãe. Foi só mais uma das manipulações dela.

— Não. Eu tinha uma escolha. Eu poderia ter dito não. Não existia qualquer forma de compaixão dentro de mim, Kurt. E nenhuma criança merece uma mãe assim.

— Você sentiu todo o peso dos seus atos, Jane. E Shepherd sabia que você se sentiria um monstro por fazer aquilo e desistira de Avery, assim ela venceria.

— Não confie em mim desse jeito, Kurt. A minha mãe... a minha mãe verdadeira também já sabia que eu não valia a pena. Ela me disse.

— Quando e como?_ sentia os solavancos de seu próprio coração no peito pela angústia de não ter certeza se seria capaz de mostrar a ela a Jane que Shepherd fizera um trabalho tão meticuloso para esconder.

— Eu não me lembro direito... Era uma festa, eu acho. Eu estava com um vestido novo e deveria ficar sentada como todas as outras meninas. Mas eu saí e corri para trás das cadeiras, pisei numa poça e me sujei. Dava pra ver a decepção nos olhos dela quando disse que não valia a pena me ensinar o que era o certo porque no meu coração era seco...

— Não, Jane.Você sabe que não é verdade...

— Kurt, eu não estava arrependida! Nem diante do olhar da minha mãe. Eu continuava querendo correr e pular naquelas poças. Eu não me importava!

Ele pegou as duas mãos dela e colocou sobre seu peito para que ela sentisse seu coração pulsando.

— Como eu fiz quando garoto? Naquela história que Sarah te contou pra me envergonhar no seu primeiro jantar na minha casa, lembra? Eu também me neguei a obedecer. Isso também faz de mim uma pessoa horrível?

No olhar dela, a frieza cedeu lugar a confusão. A comparação feita por Kurt desequilibrou sua linha de lembranças que sustentou toda a lógica de seu passado. Sua maior certeza era acerca das qualidade de Kurt. Não havia qualquer possibilidade de nada quebrar isso depois de tudo que viveram. O pulsar do coração dele contra sua mão só reforçava suas convicções. Então, ela estava enganada a respeito de si mesma? Como?

— Jane, alguma vez você contou sobre isso para Shepherd?

— Na entrevista que ela fez conosco no dia que chegou ao orfanato. Eu não contei todos esses detalhes, mas disse que nem minha mãe confiaria em mim. Eu...

— Você...

— Eu era perigosa e eles precisavam saber disso logo. _ ela falou rápido. Era a verdade. Kurt precisava encarar isso o quanto antes. Essa era ela, sempre tinha sido...

— Por que eles precisavam saber que você era perigosa, Jane?

A forma como a voz dele soava, o azul dos olhos dele cheios de ternura...Ela se sentia tão protegida, tão diferente daquele dia em frente à Shepherd no orfanato. Ali, com ele, ela podia rasgar qualquer  máscara que usasse, podia ser ela mesma, podia dizer tudo que ela negou sentir...

— Para que não ousassem tocar em mim ou em Ian.

O olhar e o sorriso de Kurt continham uma compreensão que ela desconheceu por mais de 30 anos de sua vida. E suas palavras vieram em seguida, confirmando:

— Eu sei. Preste atenção, Jane. Pais erram tentando acertar. Se mostram frios quando não são. Dizem coisas duras tentando afastar os filhos de coisas perigosas ou apenas protegê-los do julgamento dos outros. Sua mãe te amava e sabia a pessoa maravilhosa que você é. Ela só estava nervosa naquele momento.  Shepherd deve ter reforçado essa sua percepção de diversas formas, pra te conduzir pelo caminho que ela queria. Você era só uma criança naquela festa. E crianças preferem pular e se sujar do que ficar sentadas em cadeiras. Não faça o que Shepherd quer. Não se veja pelo prisma que ela escolheu por você.

Num repente, ela se jogou no abraço dele. Kurt respirou aliviado enquanto acariciava as costas dela.

Jane não chorou. Ela precisava de tempo para refletir sobre tudo aquilo. Kurt tinha o dom de tocá-la onde ninguém mais era capaz. Provavelmente, ele estava certo novamente. Mas tudo naquela noite parecia migrar entre o sonho e o pesadelo. Era melhor aquietar a alma no aconchego de seu marido e dar tempo ao tempo.

Patterson e Madeline chegaram quando o dia estava amanhecendo. As novas doses de medicação garantiriam dias de tranquilidade.

Enquanto o remédio penetrava o organismo de Jane, Patterson se deitou ao lado dela na cama, substituindo Kurt que aproveitou a presença delas para dar um jeito na bagunça do quarto de hóspedes. Madeline permaneceu compenetrada na tarefa de injetar a medicação lentamente.

— A noite foi difícil, tente relaxar. _ a loira disse enrolando o dedo nos cabelos de Jane.

— Obrigada por ter vindo. _ Jane respondeu sonolenta, o efeito da medicação se somava ao cansaço da noite não dormida.

— Vocês são minha família. Poder ajudar é tudo que quero. Não vamos deixar outra noite dessas se repetir, eu prometo. O máximo que você viverá de noites difíceis será quando tivermos uma noite de jogos de tabuleiro lá em casa.

Jane sorriu.

— Jogos de tabuleiro são bons. E podemos adicionar alguns quebra-cabeças relacionados à ciências. Nós fazíamos muito isso na infância. Os meninos odiavam que eu sempre vencia. _ e bocejou fechando os olhos.

— Meninos? Quem mais jogava com você e Ian, Jane? _ a referência plural deixou Patterson intrigada.

Jane voltou a bocejar e respondeu sem abrir os olhos:

— Christofer...

— Quem é Christofer?

— Meu irmão...

— Irmão? Pensei que fossem só você e Roman.

Jane não disse mais nada. O sono a venceu.

Patterson percebeu que Madeline guardava as coisas apressadamente e parecia nervosa.

Há algo mais nisso tudo. E eu vou investigar, Jane. Fique sossegada.”— pensou a loira.


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Notas finais do capítulo

Tomara que eu tenha sido capaz de fazê-lo entender minhas escolhas. Como nessa história as memórias de Jane após o incidente da Times Square não desapareceram, mantive suas novas formas de se relacionar com os outros e trouxe a doutrinação de Shepherd apenas com relação a ela mesma.
Como sempre, comentários, críticas e sugestões são bem vindos.
Obrigada pela leitura.



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