Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 8
O Trabalho e a Reza


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Demorei horrores para postar esse capítulo? Sim, demorei, mas como podem ver pelo tamanho dele creio que a demora é justificável. Espero que essas mais de 7000 palavras compensem a espera.
Boa leitura pessoal!



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Ora et labora

Tudo começou com esse verso, o sumo da Regra de São Bento, a razão de viver dada a cada um dos monásticos. Desde que deixara de ser noviço, Friedrich sempre despertava ciente da sua missão, sentindo essas palavras percorrendo suas veias, o chamado divino para a devoção até o fim de sua vida. Ao vestir o hábito negro, concordara com todos os preceitos e leis que deveria seguir, de praticar a santa obediência, renunciar os próprios desejos, abraçar ao silêncio, a caridade e a mansidão, mas acima de tudo rogar ao Senhor.

Acordava com seus irmãos de hábito antes mesmo do nascer do sol. Fazia suas orações matutinas, de joelhos dobrados na pedra fria da paróquia enquanto segurava o terço talhado de devoção. Em seguida seguiam-se os trabalhos da manhã, o cuidado com os animais, a limpeza dos grandes corredores, a troca das velas que cobriam os batentes com cera. No meio da manhã sempre havia um espaço do trabalho braçal para as atividades beatificadas, com o canto gregoriano levando os louvores á todos os ouvintes assim como a leitura da Palavra.

O almoço deveria ser silencioso, pois um monge que não goste de falar é o ambicionado. Mas de toda forma era difícil escapar dos sussurros adventos das dezenas de monges sentados um do lado do outro, sendo impossível não se ouvir sequer um cumprimento entre eles.

Friedrich costumava se sentar ao lado de Bernard, que fora noviço junto com ele, e Aedan que acabara se juntando aos dois pelo seu carisma incorrigível, no qual frequentemente era repreendido pelo riso tão proibido. Por vezes dependendo do humor até Adrian o Ranzinza se juntava a eles, com conversas murmuradas que variavam de questões filosóficas, do espírito e comunhão com Deus, das técnicas de iluminura e em raros casos assuntos banais como o furo na batina que o irmão Gerald não havia notado. Pois desde cedo aprendiam a evitar assuntos frívolos ao máximo, afinal, falar já era um risco para o pecado, quem dirá quando se tratava de conversas ordinárias.

Ás vezes Friedrich gostava de se sentar próximo ao irmão Oliver, um ancião entre todos os frades que quase se tornara abade. Pois ele falava sobre o mundo e as pessoas lá fora, da fome do povo, das guerras contra os franceses, da corrupção do clero e da ignorância dos nobres. Discutiam sobre os boatos de uma praga mortal que se alastrava nos países vizinhos, com histórias a dizerem que se tratava de um dos castigos de Deus contra os pecados da humanidade. Era quando Friedrich buscava um pouco da realidade, do que acontecia fora das portas do mosteiro e que atingia o povo que clamava por piedade, seja a dos homens ou de Deus.

Além do mais, Oliver era um dos poucos irmãos que não o julgava por suas pesquisas alquímicas, por vezes até se interessava. Entretanto, o velho frade dificilmente estendia esses assuntos por muito tempo, por mais que Friedrich estivesse disposto a compartilhá-los, pois não ousaria colocar suas mãos no fogo. A aceitação completa de suas ideias ainda era uma tarefa difícil em tal ambiente.

Após mais uma breve leitura das escrituras – que na realidade não era nada breve, mas para os parâmetros dos monges cerca de três horas não é praticamente nada quando se tratava de louvar a Deus e todos os santos - os frades se dirigiam aos seus trabalhos designados, com a sua suma maioria sendo os copistas. Friedrich era um deles.

Cada um possuía seu próprio posto e o de Friedrich ficava bem centralizado ao redor de todos seus irmãos copistas. Mas isso não o atrapalhava, pois o frade emergia no próprio trabalho de uma forma que o isolava do resto do mundo. Por horas mergulhava no universo de suas próprias iluminuras, absorto em seus traços, desenhando rostos, imagens e alinhando cada palavra e figuras com perfeição. Usava as tintas com o máximo de zelo, sabendo dosar a quantidade certa de cada cor. Como cada copista deveria fazer as próprias tintas, Friedrich sabia por experiência própria o quão escassas algumas cores poderiam ser. Como o azul criado por cristais e o dourado feito de ouro.

Nos primeiros anos como frade Friedrich costumava a contar o número de bíblias, livros e documentos que havia escrito. Contudo com o passar do tempo a lista havia crescido demais para que pudesse contabilizar. Com tantos dias e horas passados com pena e pincel na mão, não dava para saber o número de prateleiras preenchidas ou documentos enviados para a nobreza e o bispado. Além do mais, nunca ficava com nenhuma folha que escrevia, pois lhe era proibido pela Ordem possuir qualquer coisa que fosse somente sua.

Rezavam antes da última refeição (quando não era época de jejum), e o faziam até a hora de recolherem-se em seus aposentos. Para no dia seguinte, fazer tudo novamente.

Seus dias passavam-se quase sempre os mesmos. Vez ou outra visitando outros ducados, ou promovendo alguma ação para os pobres. Porém nada desviava do curso da vida do clero, nem mesmo suas pesquisas alquímicas. E por mais duro e monótono que fosse, Friedrich não reclamava, pois aquela era a vida da qual estava destinado e jurara seguir. O silêncio, a obediência e o temor a Deus era tudo no que Friedrich acreditava.

Trabalha e reza.

E nada teria mudado se Friedrich não tivesse sido convocado para a França.

A guerra estava a um fio de ganhar uma trégua por culpa da peste que se alastrava por todos os cantos. Mas as duas dinastias estavam determinadas a persistirem na luta pelo trono do reino francês, ainda mais com a vitória do lado inglês na batalha de Sluys seus ânimos estavam elevados, enquanto os franceses estavam sedentos por uma revanche. Desde então a região de Calais no norte da França estava um verdadeiro caos pelas batalhas e os corpos se empilhavam um nos outros por conta dos intensos combates.

Não é como se Friedrich fosse pegar em armas, mesmo quando era um mero servo de um feudo as únicas armas que aprendeu a usar foram os próprios punhos. Ele era um monge, isso significava que ele sabia das coisas, mais especificamente da área médica que era o que mais costumava estudar além da alquimia. Não havia pisado em alguma universidade, mas vivia em uma sociedade em que controlar uma febre já podia ser considerado médico. Seguindo esse parâmetro, Friedrich não era um simples médico, ele era um dos bons ainda por cima!

Ele não podia simplesmente negar o pedido do Abade, que havia requisitado sua contribuição ao reino pessoalmente, coisa que não era do feitio do líder da ordem monástica. Por mais que Friedrich não apreciasse a ideia de partir sem nenhum rosto amigo, acompanhado apenas de estranhos soldados e nobres, Friedrich foi embora. Pois apesar de ás vezes se esquecer por estar preso naquela eterna rotina, ele não era apenas servo de Deus, mas também do Reino da Inglaterra.

— Nunca me disse que esteve na guerra. – Loki interrompeu o fluxo da história, fazendo Friedrich se dar conta de como sua boca estava seca. Esticou o braço até alcançar o cantil em um canto, dando grandes goles antes de continuar.

— Não estive em um campo de batalha, jamais sobreviveria se estivesse em um, eu era apenas o médico. Contudo, ainda não é um lugar de boas lembranças, além do mais, tenho motivos que levam a crer que foi ali a origem de meu problema. – Friedrich tentava permanecer com a compostura mais séria possível, porém vez ou outra seu cenho franzido denotava certa dor com as lembranças como naquele momento. E foram com essas mesmas feições que ele continuou a contar sobre seu passado.

Seu trabalho consistia em andar pelos campos de batalha quando os exércitos já haviam se retirado em debandada ou massacrado um ao outro o suficiente para distinguir uma vitória ou uma derrota. Friedrich procurava entre tantos corpos por sobreviventes feridos o bastante para não conseguirem voltar ao acampamento. Tratava as feridas mais urgentes ali mesmo ao redor dos outros corpos, antes de ajudar os soldados a se reerguerem, ás vezes tendo que carregá-los em suas costas. Contudo, frequentemente era tarde demais, e tudo o que restava era uma unção improvisada pelo frade.

Nem sempre o êxtase de uma vitória conseguia mascarar todo o horror da guerra. Aqueles minutos de realização extrema eram postos por terra quando a chuva levava o sangue dos amigos e inimigos aos seus pés, os corpos empilhados e postos ao fogo tornavam-se seus funerais e a miséria do resto do povo berrava logo ao seu lado. Era um vinho sem gosto algum.

Friedrich sentia-se deslocado naquele lugar, até inútil de certa forma. Pois não era o soldado que brandia a espada, ansioso para sujar sua lâmina de rubro, nem um nobre á espera do triunfo de suas casas. Sequer se sentia parte do clero naquele momento, pois estava distante dos créditos dados á Igreja naquele jogo entre os reinos. Com mais unções do que curas sentia-se mais como o Anjo da Morte, um ceifador de almas.

Ora et labora, era o que Friedrich dizia para si mesmo para assim conseguir seguir em frente. Fazer só o que lhe era mandado era mais fácil do que realmente pensar.

Conviver com o povo que vivia a espreita daquele campo de guerra ajudava-lhe a recuperar um pouco de sua fé abalada. As casas de tenda, as canções cheias de rima e o gosto da farinha de aveia o faziam se lembrar de casa. Não do mosteiro, e sim daquela que evitava lembrar, mas que sempre voltava para acalentá-lo de uma forma ou outra. Por um momento deixava de ser apenas o médico e o frade, tornava-se Friedrich mais uma vez.

Só que ele não deixava de ser um arauto da morte.

A sorte de sobreviver ao campo de batalha não foi o suficiente para vários soldados, que misteriosamente começaram a sucumbir dia após dia.

Uma febre se alastrou na base militar. Por um momento pensavam que se tratava da peste, tamanha era a mortalidade, mas Friedrich logo notara que os sintomas não se equivaliam, tratava-se de outra enfermidade. Mesmo com uma contagem de cinco mortos em uma semana, ele e outros monges e médicos ainda tentavam inutilmente encontrar uma forma de ajudar os doentes. Só foram dar-se conta do perigo do contágio, quando um médico e frade tornou-se paciente.

Friedrich tentou ignorar a dor de cabeça e o frio que sentia em pleno verão, mas não pode resistir à doença por muito tempo. A febre tomou conta de todo seu corpo, o incapacitando até não conseguir mais abrir os próprios olhos. Tornou-se tão fraco que não foi capaz de presenciar o caos e o pânico que se instaurou no lugar, pois sua mente ficara nublada a ponto de se questionar vez ou outra se já não estava morto.

Ao verem que não havia oração ou sangria que curasse, começaram a apenas esperar a morte dos infectados. Deram a Unção dos Mortos para Friedrich, mandaram uma carta anunciando sua morte para seu Abade, e esperaram sua alma se desprender do corpo.

Dos quarenta doentes, só um sobreviveu.

Friedrich havia aberto os olhos diversas vezes desde que entrara em coma, mas só fora recuperar toda sua consciência em cima de uma carroça, indo em direção ao Canal da Mancha. Não tinha ideia de quantos dias haviam se passado, mas pela reação dos outros frades que o acompanhavam pelo jeito haviam sido vários. A quantidade de lágrimas derramadas e o nome de Deus sendo pronunciado em agradecimento foram o bastante para parecer que estavam na frente de um milagre. Na realidade a única explicação que tinham para o caso de Friedrich era essa, um milagre.

O ritmo das batalhas naquela temporada havia diminuído, não sendo necessária a ajuda de tantos médicos. Já havia muitos feridos e uma peste batendo em suas portas, para o exército um monge debilitado era tudo o que eles não precisavam, por isso não foi difícil a decisão de liberarem Friedrich de seu serviço á coroa.

Mesmo com o corpo exaurido pela doença que quase o levou, Friedrich não pensou duas vezes em pegar o primeiro barco de volta á Inglaterra. Seu francês era péssimo e não se sentiria confortável vivendo em outro seminário da região até que se recuperasse por completo. Além do mais, sentia falta de seus amigos e do posto de copista que deixara para trás. A única lembrança que levou daqueles dias turbulentos na França, foi uma cruz de ouro e prata que lhe presentearam após sua melhora.

— Uma pena que você teve de se desfazer daquele pingente, apesar de valioso era também bonito. E olha que sequer sou cristão. – Loki comentou tentando acalmar os nervos. Notava que Friedrich começava a ficar mais nervoso à medida que a história avançava. Estava apenas chegando ao início de seu tormento.

—–Eu devia tê-lo recusado desde o princípio, pois fiz voto de pobreza. Contudo não havia ganância alguma em tê-lo comigo, por isso o mantive, não achei que faria mal. Talvez estivesse traçado em meu destino permanecer com ele desde o princípio, dado a ajuda que me dera quando fugi do mosteiro. – Friedrich divagou dando um longo suspiro. Estava exausto, em parte por conta da convulsão, mas também pelo tempo que já estava falando. Havia revirado aquelas memórias por tanto tempo que conseguia relatá-las sem vacilar uma palavra, tão uniforme quanto os parágrafos de um livro. Acabava por não notar o quanto já tinha dito.

— Se estiver cansado, posso esperar mais um pouco, só me garanta que esteja bem. – Loki o interrompeu antes que continuasse, os olhos esverdeados pareciam prestes a saltar das órbitas desde que o colapso acontecera. Havia grande preocupação em seu olhar, que não se desviava de Friedrich um segundo sequer.

— Está tudo bem. Sinto-me cansado claro, mas não ao ponto de não conseguir contar minha história. Agora que comecei, duvido que consiga parar, nunca imaginei que estivesse tão afoito a compartilhar esses lamentos. – Respondeu, fazendo Loki relaxar os ombros tensos. O druida tinha milhares de perguntas em sua mente, contudo sabia que só seriam respondidas caso deixasse Friedrich contar toda a história. Por mais longa que fosse.

— Farei chá enquanto você continua, usarei algo para acalmar suas dores. – Loki disse se levantando e começando a revirar no meio de sua bagunça, sem tirar os olhos de Friedrich.

Qualquer espécie de atividade que lembrasse uma festa era estritamente proibida pela ordem. Não podia haver barulho, divertimento, riso ou qualquer outra banalidade que retirasse os frades de seus deveres. Por isso Friedrich ao voltar para casa imaginou que seu retorno não traria muito alarde. Contudo, houve um aviso de sua morte, mas não ocorreu o mesmo sobre sua melhora, sendo praticamente impossível conter a agitação assim que chegou. Friedrich era o milagre em pessoa e com isso provocou alguns desmaios e lágrimas assim que pôs os pés mais uma vez no mosteiro.

Mesmo com aquele tumulto por conta de seu ‘’retorno dos mortos’’, Friedrich sentiu-se em casa mais uma vez. Foi recebido com abraços calorosos por todos os amigos mais próximos, sua cela ainda estava da mesma forma que deixou quando partiu e a mesa de copista continuava no lugar de sempre lhe esperando, junto aos seus livros e pincéis.

Estava grato por estar vivo e sentia-se ainda mais próximo de Deus. Pois que outra explicação havia para sua recuperação senão a mão divina? As dores da guerra e sua luta pela vida tornaram-se lições que o fizeram crer mais ainda em seu santo ofício, pois via tudo àquilo como um sinal para continuar com ainda mais afinco a busca pela santidade, dando mais sentido em sua missão como monge. Se Friedrich já era um frade que procurava seguir piamente as leis de Deus e a Igreja, a partir dali toda sua fé tornou-se ainda mais sólida, de uma forma que ele pensava que nada poderia derrubar aqueles preceitos que prometera seguir.

Pobre frade que sequer imaginava o tormento que seguiria.

Tudo começou em sua própria cela, de como ás vezes acordava exausto e extremamente dolorido, despertando com seu corpo em posições estranhas da qual nunca havia se acostumado deitar. Por vezes dormia em sua cama para acordar horas depois esparramado no chão, com os braços e abdômen repletos de roxos misteriosos. Também vez ou outra encontrava vergonhosamente o colchão molhado de urina, por mais que nunca tivesse feito algo do tipo nem quando criança. O bizarro chegava ao ponto de algumas vezes despertar repleto de sangue em sua boca, por conta da língua mordida, manchando todas as suas vestes e os lençóis.

Friedrich pediu ajuda e conselhos aos irmãos acerca de seus problemas noturnos, mesmo que não fossem frequentes esses episódios ele ficava intrigado. Aedan recomendara que fosse adormecer mais cedo, Bernard dissera para rezar pela proteção dos Arcanjos, enquanto Adrian o aconselhara a fazer a oração de São Bento toda noite para expulsar qualquer tipo de mal. Já Oliver o aconselhara deixar a alquimia por um tempo, pois talvez suas escapadas noturnas e os metais que manipulava estivessem abatendo seu corpo.

Decidiu fazer tudo isso, sem pestanejar.

‘’ Crux Sacra Sihi mihi lux.

Non draco sihi mihi dux

Vade retro satana

Nunquan suad mihi vana

Sunt mala quae libas

Ipse venena bibas ‘’

Era o que rezava todas as noites, com os joelhos desnudos dobrados na pedra fria, crente de que tudo voltaria ao seu curso normal. Só que seu problema não era com a noite, como pensava.

No dia de seu privado Juízo Final, apesar de ter acordado com um gosto amargo em sua boca, parecido com ferro, que teimou em incomodá-lo junto á uma pitada de fadiga, Friedrich ainda assim não suspeitava o que aconteceria naquela manhã.

A vida monástica era dura e agudamente regrada, não havia lugar para trivialidades e qualquer espécie de alteração em sua rotina. O coral era um dos momentos onde mais se exigia essa disciplina. Com o tão desejado silêncio sendo ornado apenas com as vozes devotas dos frades, o eco das canções sendo espalhado pelos grandiosos arcos magistralmente esculpidos da catedral. O timbre deveria chegar ao nível da perfeição digna dos anjos, nem que para isso era preciso corrigir um a um até chegar a uma ode digna ao Senhor. 

Na hora dos cânticos Friedrich acompanhara os irmãos sem dificuldade como sempre, sua voz a princípio não denotava nenhuma alteração e não ocorreu nenhuma dificuldade em lembrar-se de qualquer verso, Friedrich dificilmente precisava consultar o livro de cantos por conta de sua ótima memória.  Contudo, em algum momento entre o terceiro e quarto canto Friedrich sentiu sua mente enevoar-se aos poucos, fazendo com que parasse de cantar por um momento. Os monges ao seu redor lhe encararam com o canto dos olhos, sem interromper a própria voz.

‘’Esquecesses-te dos versos?’’ Bernard arriscou questionar aos sussurros, porém Friedrich não respondeu, pois esta foi a última coisa que ouviu antes de perder a própria mente e desabar ao chão, tendo o corpo entregue para as convulsões.

Friedrich não se lembrava de um segundo sequer do que aconteceu após isso, porém o mosteiro não esqueceria daquilo tão cedo. Ao verem a forma como ele se retorcia sem o controle do próprio corpo, foi o suficiente para gritos de pavor e misericórdia substituírem a música. O caos que se instaurou no salão chamou a atenção de outros frades espalhados pelos prédios do mosteiro, que foram correndo ao encontro daquele pandemônio para ver o que acontecia. Questionavam uns aos outros o que fazer, rezavam pela piedade divina ou simplesmente se apavoravam correndo de um lado para o outro.

A princípio ninguém teve coragem de tocar ou se aproximar de Friedrich assim que sua crise terminou, sendo deixado desacordado no chão frio da catedral por vários minutos até que o irmão Oliver o examinasse e o levasse para seus próprios aposentos com a ajuda de outros irmãos. Enquanto o Abade em uma tentativa de acalmar a tensão dos frades aconselhou-os a rezar por Friedrich até que ele despertasse.

Se acordasse, pois naquele momento todos estavam com as mesmas dúvidas que depois preencheriam a mente de certo ruivo.

‘’Se debatia sem controle algum!’’

‘’Parecia falar a língua dos demônios!’’

‘’Não havia alma lá! Era apenas carne e ossos se contorcendo. ’’

A descrição de sua crise feita pelos irmãos não fora nada afável, deixando um Friedrich recém-desperto ainda mais atemorizado. Dezenas eram as hipóteses ditas pelos frades: doença, desequilíbrio de humores, loucura e até possessão de demônios. Pela Virgem Maria, nem Friedrich dito como o médico conseguia explicar o que aconteceu com si mesmo!

O episódio tomou tamanhas proporções que o próprio Abade viera ter com Friedrich, lhe recomendando orações para expulsão de trevas e o aconselhando praticar sessões mais longas de comunhão com o Senhor, até permitindo-o se abster de algumas tarefas por alguns dias para que seu corpo e espírito se recuperassem.

Esteve tenso por vários dias, receava que um colapso retornasse a assombrar ele e todos os outros monges. Mal pregara os olhos durante as noites seguintes tentando compreender o que havia acontecido consigo mesmo, não lhe chegando qualquer explicação menos pavorosa. Para começar, teria relação com seus problemas à noite? Seria a Besta o corrompendo? O desequilíbrio de seus fluídos? A insanidade a lhe tomar o corpo? Nenhum livro descrevia qualquer coisa semelhante para elucidar suas dúvidas, lhe restando apenas seguir os conselhos dos irmãos e do Abade de praticar uma longa comunhão com Deus, para assim purificar a alma maculada pelo mal.

Com o passar das semanas a história de sua crise no meio da abadia começou a raramente ser mencionada, com a lembrança em si tornando-se uma memória longínqua para Friedrich. Porventura fosse apenas caso aparte, um desequilíbrio momentâneo. Ele achou por um breve momento que pudesse voltar verdadeiramente para sua rotina, aquela que tinha antes de participar das batalhas.

Cerca de três luas depois ocorreu novamente, no refeitório alguns instantes antes do jantar. Com ainda mais presentes, a histeria fora generalizada e os temores e dúvidas se intensificaram ainda mais ao verem que oração ou jejum algum ajudaram no quadro de Friedrich.

Dez dias depois aconteceu mais uma. Não, duas crises! Em um mesmo dia e com poucas horas de diferença, dando a impressão que seu quadro só se agravava. Então como uma piada de mau gosto feita pela vida, Friedrich passara o restante dos dias completamente assustado e tenso, esperando iminentemente uma convulsão que só aparecera um mês depois.

Compreendera que seus problemas à noite não se passavam de colapsos enquanto dormia, contudo com o passar do tempo passou a temer relatar isso aos irmãos ou ao Abade para evitar reações exaltadas. Aquele caminho tornava-se cada vez mais sinuoso.

Começaram as tentativas para livrá-lo daquela maldição. Horas passadas pedindo perdão a Deus por seus pecados, exorcismos exasperados e sangrias que lhe extraiam fluído o suficiente para não permanecer mais em pé. Havia cortes por todo seu corpo, por vezes profundos o bastante para Friedrich ter a certeza que se tornariam cicatrizes tais como as que Adrian o Ranzinza possuía por suas penitências exageradas.

Até chegaram sugerir abrir sua cabeça, para expulsar os maus espíritos e equilibrar seus humores, mas o próprio Friedrich era o único que sabia fazer este método (mesmo que nunca tivesse o feito na prática, apenas estudara sobre). Ele não apreciava a ideia de ter seu crânio perfurado e muito menos arriscaria fazer o procedimento em si mesmo, conseguindo se livrar assim de ao menos uma das ideias absurdas para curá-lo.

O mandavam falar com padres, diáconos e outros membros do clero em busca de conselhos. Se não lhe falavam a mesma conversa de seus irmãos, apontavam para seus erros. Afinal, por que Deus permitiria uma maldição dessas se ele não a merecesse? Assim como afirmavam que a peste se alastrava por conta dos pecados da humanidade, quiçá todo seu sofrimento não passasse de sua culpa.

As orações por mais que fossem cada vez mais ferrenhas e morosas, ele não era capaz de sentir o Espírito Santo agir, por mais crente que fosse Friedrich sentia que algo estava faltando no mistério de sua existência. Mais se perguntava ao Senhor o porquê daquele fardo do que realmente buscar uma solução. Não conseguia pensar em nada tão maligno que pudesse ter feito para merecer tal maldição, começando a questionar a si mesmo incansavelmente.

Seria o desejo abominável que por mais devoto que fosse vez ou outra ainda assombrava seus pensamentos? Mesmo que ainda fosse puro, sem nunca ter cogitado atender esses pensamentos, jamais quebrando os votos, Friedrich começara a culpar ainda mais sua própria natureza.

Evidentemente esta parte em específico ele não relatou para Loki, sentia muito constrangimento para tal.

E à medida que aqueles dias maçantes passavam, Friedrich sentia sua disposição se esvair cada vez mais, não sendo inteiramente por causa de suas crises, mas pelo medo que começara a crescer em seu interior. Medo daqueles que antes considerava como irmãos, do lugar que via como sua morada, de quaisquer outras práticas que pensassem em realizar para acabarem com o dito problema dele.  

Friedrich não precisou se afastar de ninguém, todo mundo o fez sem que dissesse uma única palavra. Os monges evitavam lhe dirigir a palavra, andar ao seu lado ou se sentarem próximo a ele. Tiraram-lhe o cargo de copista que tanto amava, dando a desculpa de que era por sua saúde, porém Friedrich sabia que era por que os irmãos ficavam desconfortáveis com sua presença na sala. Já lhe havia sido proibido realizar a alquimia e ler os livros da biblioteca, ao tirarem seu ofício Friedrich sentiu-se mais desolado do que nunca.

Não havia sobrado sequer os amigos mais próximos. Todos temiam a maldição que Friedrich carregava. Afinal se fosse demônio não desejariam confrontar tal perversidade, se fosse doença não ousavam arriscar suas vidas. Vez ou outra Aedan ainda o cumprimentava e trocava algumas palavras, porém de forma distante, pois temia por si e pelo julgamento dos outros. O velho Oliver ainda mantinha certo contato, contudo mais como um mentor do que o amigo que costumava ser, provavelmente o clero o instruíra a agir daquela forma.

Friedrich passou a se sentir como um fantasma, uma entidade fora daquele plano que apenas observava o tempo passar. Não podendo exercer mais nenhum de seus ofícios, acabou se tornando cada vez mais apático. Era comum no mosteiro falarem que ‘’Mente vazia, oficina do Diabo’’, por isso era um tanto irônico lhe encorajarem permanecer em ócio. A verdade é que ninguém mais sabia o que fazer com ele, começando a ignorarem sua existência para se sentirem melhor. Talvez isso até funcionasse por um tempo, mas pouco durava após uma convulsão repentina de Friedrich que sempre despertava o pavor em todos os irmãos.

Não sabia dizer qual das atitudes era pior, se as tentativas de curas desgastantes ou o abandono completo. Por que havia sido amaldiçoado daquela forma? Esta era a dúvida que mais permeava seus pensamentos.

Contudo, ganhara muito tempo livre para colocar as ideias em ordem, buscando por auxílio consigo mesmo. Não sabia como se livrar das crises, mas uma ideia de como ela surgira brotou em sua mente. Quem sabe não fosse peste ou castigo divino, e sim uma consequência por ter vencido a própria morte, como se algo tivesse desequilibrado seu corpo. Porém, por mais que essas ideias deixassem a si mesmo mais esclarecido, ele não era capaz de convencer todos os monges e suas crenças ferrenhas.

Aedan veio ao seu encontro em um dia que estava sentado nos jardins do mosteiro, rezando em silêncio, já que Deus havia se tornado a única pessoa com quem pudesse conversar. Friedrich se surpreendeu com a aproximação do outro, por conta dos últimos acontecimentos se tornou mais desconfiado, já imaginando que o irmão não se encontraria com ele por um motivo fútil.

‘’Sei que é errado ouvir por trás de paredes, porém não pude evitar ao escutar seu nome sendo mencionado. O Abade convocou a Inquisição para julgá-lo. ’’

Aquilo ia além de tudo o que Friedrich acreditava poder suportar. Tentou dizer a si mesmo que aquilo podia ser uma confusão feita por Aedan, mas não arriscou ignorar tal aviso. Na mesma noite procurou pelo irmão Oliver, que sendo mais velho comumente era mais respeitado e tinha o conhecimento de tudo que se passava no mosteiro.

‘’ Jamais iria testemunhar contra ti meu filho, contudo essas paredes não são feitas de apenas um monge. Sinto em lhe dizer que a convocação da Inquisição é verdadeira, há uma preocupação aguda quanto o pavor causado nos outros irmãos, não sobrando melhores alternativas com o qual pudesse defendê-lo. 

Gostaria de ter palavras mais otimistas para ti, porém são tempos difíceis e o povo anseia por algo para colocar a culpa dos males que o cercam. Se tu foste o alvo escolhido, infelizmente tudo que nos resta é pedir pela misericórdia divina e esperar pelo destino que Ele o reserva. ‘’

Em sua cela chorou em silêncio, um misto de raiva e pavor de sua futura sentença. Dizia-se que Deus jamais colocava um fardo do qual não pudéssemos carregar, mas se recebesse a sentença máxima Friedrich sabia que não podia combater a morte.

Friedrich gostaria de ter a serenidade e a calma de um sábio naquele momento, que lidaria com o destino terrível de forma plácida e honrosa, aceitando com bonança a pena injusta que lhe fora imposta para se mostrar acima de seus delatores, para assim aceitar o destino que Deus Pai lhe reservara para se juntar a Ele. Porém não era assim que seus sentimentos se comportavam, perdia a fé na instituição, enraivecia-se com a traição daqueles que antes admirava e temia a morte a sua frente como qualquer ser humano.

Não podia lutar muito mais além de tentar receber uma pena branda, como uma excomunhão. Tinha certo conhecimento em dialética, porém ao se deparar com as vestes vermelhas de sangue, bordadas a ouro, com suas joias e crucifixos de pedras preciosas que estampavam os rostos austeros dos inquisitores, Friedrich sentira-se menor que uma formiga no grande salão de pedra. As autoridades sentavam-se em uma posição de semicírculo, com o acusado permanecendo em pé ao meio, podendo ser analisado por todos os presentes.  

Introduziram o seu caso descrevendo Friedrich nos mínimos detalhes. Das suas origens que deveriam ter sido esquecidas ao se tornar monge, dos ofícios que costumava realizar e a rotina que costumava obedecer. Fazendo com que o frade se assustasse com a forma com que fora observado. Só para no fim descrever com detalhes cada uma das diversas crises que tivera, de uma forma um tanto exagerada se comparasse com a realidade, porém Friedrich não era permitido contestar.

‘’ Do que acreditas que seja o fruto de suas manifestações demoníacas, meu irmão?’’ Perguntara um dos inquisitores, apoiando o rosto em uma das mãos enrugadas repleta de anéis de ouro e pedra. Friedrich tentava permanecer calmo durante o julgamento, mas não conseguia conter por completo o tremor de todo seu corpo.

‘’ Cerca de dezoito meses atrás fui convocado para exercer como médico na França, no qual quase sucumbi por conta de uma terrível doença. Creio que minhas crises sejam consequência desse episódio que abalou meu corpo por completo. ‘’ Respondera com o máximo de confiança que podia encontrar naquele momento. Os inquisitores se entreolharam, cochichando uns para os outros o que cada um pensava sobre o caso, por vezes falando em voz alta mesmo.

‘’ Seu Abade relatou que lhe foi dado à unção e que sua morte era certeira. Como pode explicar tal recuperação repentina? Teria usado quaisquer artifícios para reverter seu quadro? Afinal, médicos são aqueles que tentam desviar a natureza das coisas, mudar o destino que Deus reservou. ’’

Friedrich se demorou tempo demais naquela pergunta, surpreso demais com o que pensavam em acusá-lo. Não era ignorante de pensar que seu trabalho sempre seria visto com bons olhos, sabia que muitos conhecimentos médicos eram vetados por indicação de heresia, contudo não estava esperando que aquilo decidisse o rumo de sua sentença.

‘’ Não Vossa Reverendíssima, pois não sei como criar tal milagre. Além de que estive doente demais para conseguir cuidar de mim mesmo por muito tempo, não possuo qualquer outra explicação se não a própria mão divina. ‘’ Não era uma má resposta, mas temia que sua hesitação tivesse prejudicado sua imagem já maculada pelo próprio histórico.

‘’ Foi nos notificado sobre seus interesses em artes obscuras, desde quando trabalha com tais atividades hereges? Há uma dúvida entre nós se possuis somente um só crime. ‘’

Demorou alguns segundos para se dar conta que falavam da alquimia que estudava. Havia parado com seus trabalhos há tanto tempo que não imaginava que pudesse revivê-los. Não teve escolha alguma a não ser contar a verdade, pois não ousava enganar tais autoridades, mas sua explicação perante seus trabalhos não pareceram agradar os inquisitores. Por muito tempo Friedrich acreditava ter se portado como um bom frade, não imaginando que sua reles curiosidade poderia acabar com sua vida daquela forma.

Não conseguia ver qualquer perversidade em seus estudos, tratava-se de coisas da própria natureza de Deus, que mal haveria nisso? Poderia estar ele tão errado a este ponto? Ou era apenas incompreendido? Como acusado naquele momento, era mais difícil concordar com todos os preceitos da Igreja, por mais que tivesse jurado segui-la.

Sentia-se diminuir cada vez mais à medida que o julgamento avançava. O rosto sereno que tentara vestir no começo acabou se transformando no medo que sentia percorrer suas veias. Um nó se formava em sua garganta, tornando sua fala cada vez mais tensa e menos polida do que antes. Sentia aqueles olhares fervorosos como se perfurassem sua carne igual a espinhos, sendo dissecado lentamente.

‘’ Meu filho, se fosse de sua autoridade escolher, de que forma gostaria de ser morto? Tarde e imerso no pecado enroscado nos braços de Satanás, ou engolido pela chama divina a levá-lo aos braços de Deus? ‘’ Fora uma das últimas perguntas feitas para ele e Friedrich respondeu com nervosismo pela segunda opção, mesmo sabendo que se tratava de sua sentença final.

Foi levado a sua cela com dois soldados o escoltando, como se fosse um criminoso. Oh não, ele realmente o era, por mais inacreditável que fosse. O colocaram em sua cela e o prenderam, com a chave sofrendo para trancar aquela porta que há muito tempo não era fechada.

Seria queimado na fogueira no dia seguinte, ao crepúsculo, depois de uma longa missa de redenção pelos seus pecados.

Por mais que a temesse, não imaginou que realmente acabasse pegando a máxima sentença, visto que havia diversos outros tipos de penas mais brandas e mais utilizadas, jamais imaginando seu caso ser tão grave a esse ponto. Ao se ver trancado em seu próprio quarto, ficou vários segundos apenas encarando a porta de madeira, perguntando-se se aquilo tudo não passava de um terrível pesadelo. A roupa de condenado o esperava estendida em sua cama, completamente branca para simbolizar a pureza dos pecados sendo lavados. Friedrich chegou a pegá-la para observar, mas acabou largando-a em um canto sem qualquer tipo de ânimo.

Ficou andando de um lado para o outro do minúsculo aposento por vários minutos. Culpando-se, rezando ou apenas lamentando por sua vida com destino traçado. Apesar de teoricamente ter de ansiar pelo encontro com o Senhor, Friedrich não era capaz de sentir tal exultação. Não sabia se era dúvida da existência, por mais que jamais questionara com tal heresia, ou se era o forte instinto de sobrevivência presente em qualquer ser vivo em face com a morte. Só sabia que não queria morrer.

Com o passar das horas, a ruga em sua testa apenas se intensificava à medida que sua cabeça fervilhava de tantos pensamentos. Tivera tanta pena de si mesmo nos últimos dias que já estava exausto de tanta miséria, pois costumava ser mais forte do que aquilo. Ao invés disso, seus sentimentos começaram a variar de indignação á injustiça, pois aquela não era a vida que havia imaginado para si, acabando por ser tratado como o pior dos hereges.

Havia sobrevivido a tudo aquilo que dizimava a humanidade: fome, guerra e doença. Era quase uma piada de mau gosto de o próprio destino fazê-lo morrer daquela forma estúpida, condenado pelo crime de sua mera existência. Era um ultraje aceitar tal futuro pífio, não deixando qualquer legado além do medo que provocara com suas crises.

Ele também sentia pela mãe que não teve o que desejava ao filho, por mais que ela nunca descobrisse seu destino, Friedrich sentia-se mal em desapontar a família mesmo de tão longe. Aquilo já se tornava uma questão de honra rejeitar aquele destino.

Isso é um mosteiro, não uma prisão. Havia pensado enquanto encarava a alta e minúscula janela de seu quarto.

Tinha que tomar cuidado para não chamar a atenção dos guardas á sua porta, a sorte é que sendo um monge Friedrich aprendera a ser silencioso feito uma pena pousando no chão. Posicionou um banco de madeira logo abaixo da janela, o único móvel que tinha além da própria cama, e ficou de pé em cima dele. O primeiro salto fora muito baixo, o segundo quase o fizera cair, e o terceiro realmente fez com que caísse no chão, virando o banco.

Ficou estático, no chão mesmo, temendo que o barulho causasse suspeita nos guardas. Quiçá eles tivessem achado estranha a movimentação, mas jamais imaginariam que um frade era capaz de tamanha audácia. Mas ele não era um frade qualquer. Diziam que um monge precisava esquecer seu passado assim que fazia seus votos, porém isso não apagava toda a experiência que Friedrich acumulara com uma vida de trabalho pesado.

Recompôs-se após alguns minutos de silêncio. O próximo salto foi alto o suficiente para Friedrich agarrar o batente com suas mãos. Não era qualquer um que teria força o suficiente para erguer-se daquela maneira, mas Friedrich conseguia, mesmo soltando alguns arquejos de dor e sentindo sua carne queimar pelo esforço. A janela era muito estreita, e apesar dele ser um homem esguio, não havia muito espaço para se movimentar ao seu redor. Com dificuldade e muito cuidado, ele deu um giro com seu corpo para poder ficar com os braços para acima. Respirou fundo, sabendo que precisaria de muita energia para esse próximo passo, já podendo sentir o frescor da noite batendo em sua nuca.

Impulsionou-se para cima uma última vez, agarrando as telhas de argila e rastejando até encontrar todo o corpo no teto dos dormitórios. Aquilo o fez lembrar-se de sua infância, quando suas irmãs se aventuravam a andar pelas ameias da fortaleza, sendo o mais velho e responsável Friedrich sempre era quem precisava resgatá-las.

Nós voamos! Voamos, pois somos pássaros! Elas cantarolavam, sem se importarem com o perigo da queda daquela muralha.

Friedrich não se sentia como um pássaro. A noite o impedia de enxergar poucos passos á sua frente, as telhas cilíndricas o desequilibrava e o medo percorria por suas veias. Andava temendo cair, porém mesmo no escuro e nos ares Friedrich ainda conhecia aquele lugar com a palma de sua mão. Percorreu pelo teto do mosteiro, evitando se aproximar da entrada ou a porta da cozinha, pois precisava sair por um lugar não convencional se não quisesse ser visto.

Saltou para o celeiro como se fosse um reles degrau, alcançando o chão logo em seguida. Olhou para todos os lados, temendo que alguém pudesse vê-lo, mas felizmente só havia as estrelas a observá-lo naquela noite. Elas estavam belíssimas, porém o frade não tinha naquele momento o privilégio de apreciá-las.

Mesmo um mosteiro precisava de proteção, porém suas muralhas não eram tão altas quanto de outras propriedades se colocado em comparação. Precisou apenas empilhar alguns montantes de feno para conseguir alcançar as ameias, acabando por ralar os joelhos e sofrendo impacto nos tornozelos ao chegar ao solo do outro lado. Contudo mal dera atenção para as injúrias, sequer as notou enquanto seu sangue bombeava velozmente por seu corpo tomado pelo medo.

Correu até sentir o coração pulsar nos ouvidos e os pulmões quererem sair pela boca, temendo que o flagrassem andando pelo campo aberto em alguma das janelas e vidraças do mosteiro. Ao adentrar nos primeiros passos da floresta, parou segurando os joelhos para recuperar o fôlego. Olhou para trás, vendo por entre as árvores para o lugar que chamou de casa por tantos anos, onde aprendeu sobre o mundo real e espiritual, onde acreditava ter tido os melhores amigos e onde um dia já se sentiu protegido. O lugar do qual sempre soube ser a sua vida.

Se aquele não era o destino que lhe fora imposto desde o nascimento, então qual seria?

— Pela Mãe e todos seus filhos e deuses.  – Loki proferiu estupefato ao fim do relato. Ambos permaneceram com os olhares fixados um no outro, calados por vários segundos sem saber como expressarem em meras palavras todo o turbilhão de sentimentos que sentiam. Friedrich sentia suas mãos estremecerem e o coração palpitar dentro de seu peito, consequência por relembrar toda aquela história e por saber que agora Loki conhecia seu segredo.

— Creio que meus motivos de ocultar essa história tenham ficado claros. – Friedrich lutava para seu nervosismo não soar tão óbvio, mas só o fato de abraçar os próprios joelhos igual a uma criança assustada já delatava todos os seus medos. Pois para ele não era mais Loki que estava em sua frente, era só mais um dos muitos que o renegaram ao se deparar com sua maldição. – Entenderei caso preferir se afastar, não é algo simples com que se lidar.

Loki arqueou as sobrancelhas, as unindo logo em seguida e cruzando os braços, parecendo aborrecido. Friedrich encolheu os ombros mais ainda e afastando o olhar, já esperando por qualquer tipo de represália.

— Seria uma traição expulsá-lo de tal forma após todo esse tempo e por tudo que já passamos. Que tipo de honra me sobraria se fizesse algo tão vil? Sou um homem leal Friedrich, é praticamente um insulto á minha pessoa deduzir tamanha perversidade. Não seria capaz de realizar tal ato. – Essas não eram as palavras que Friedrich esperava. Voltou os olhos na direção do ruivo, ainda desconfiado com seus dizeres, mas ainda assim com um fino fio de esperança.

— Não será apenas hoje Loki, infelizmente eu lhe afirmo que haverá outras vezes. Pode ser que demore ao ponto de esquecer a maldição, ou talvez seja cedo demais para que esteja preparado. E você terá medo, e vai ter pesadelos ao ficar imaginando a próxima vez. Sem haver o alento de existir qualquer cura nesse mundo terreno, pois Deus ainda não a revelou para qualquer mente brilhante. Você diz isso, pois é só a primeira vez Loki, tu não fazes ideia do fardo que carrego. – Retrucou e apesar de parecer desejar que Loki o deixasse, o que queria era exatamente o contrário. Aquelas palavras eram apenas o reflexo de tudo que vivenciara, do que esperava das pessoas, até daquelas mais queridas e próximas.

Loki ficou calado por alguns segundos, sentando-se ao lado de Friedrich que não contestou com a aproximação. Fitou por um momento o rosto submerso em ansiedade do outro, como se pudesse entender seus sentimentos perdidos naquele enigma.

— Pode parecer um erro de o destino ter nos colocado juntos, mas afirmo-te que não Friedrich. Nós somos dois desafortunados, apenas tendo a perder neste mundo que cospe em nosso rosto e pisa em nossas carnes! Não há nada mais certo do que estarmos ajudando um ao outro, dessa mesma forma que estávamos fazendo até o momento. Juntos somos capazes de lutar contra tudo aquilo que nos caça, conseguir percorrer todas as estradas mais tortuosas desse mundo. Não será você a me derrubar Friedrich, e sim quem me dará forças, pois eu também estarei aqui sempre que precisar de meu auxílio. – Loki proferiu com tamanha emoção na voz que Friedrich teve a impressão de sentir as paredes de pedra vibrar. Ou talvez fosse somente ele próprio, não sabendo lidar com o montante de sentimentos que o inundava. Felicidade, alívio, segurança, passaria um longo tempo os nomeando.

— Tu falas muito bem para alguém que nunca teve dialética Loki. – Foi apenas o que conseguiu dizer, pois não tinha palavras para expressar sua gratidão. Resolveu abraçar Loki, contornando seu pescoço com os braços, sentindo mais de perto seu aroma de ervas. O ruivo já não tinha entendido o que ele dissera, após aquilo podia jurar que esqueceu até do próprio nome. Acabou por retornar o gesto, sentindo o coração descompassado ao tê-lo próximo daquela forma e aliviado por saber que não o havia perdido. – Obrigado Loki.

— Não fiz nada, apenas estava aqui. – Contestou, sentindo o calor dos braços de Friedrich se afastar para que pudesse vê-lo, revelando o sorriso mais belo que já havia visto. Não dava a mínima para os dentes afastados, pois a felicidade genuína de Friedrich era o que fazia com que seu coração falhasse as batidas.

— É o bastante.

Lá fora uma tempestade ruidosa estava chegando, mas entre os dois apenas havia calmaria.


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Notas finais do capítulo

Aquela parte de contexto histórico que vocês já conhecem:
—A batalha da qual Friedrich participou fez parte das muitas que aconteceram durante a tal Guerra dos Cem Anos.
—Cela é o nome dado ao quarto dos monges por serem muito pequenos.
— A oração citada por Friedrich é a oração de São Bento
— Sangria era um procedimento ''médico'' antigamente que consistia em fazer cortes no corpo para retirar sangue. Acreditava-se que isso ajudava para recuperação de doenças, pois regulava os ''humores'', uma espécie de fluídos que nessa época acreditavam existir para manter o equilíbrio do corpo.
— A doença que acometeu o acampamento militar e que quase matou Friedrich foi a meningite, que na época obviamente não tinha nome e muito menos tratamento. Justamente por essa falta de tratamento que apesar de ter conseguido se recuperar, Friedrich sofreu algumas sequelas como a epilepsia.
Se tiver mais alguma dúvida me avisem!
Se isso fosse uma série seria o fim da primeira temporada, se uma peça teatral o fim do primeiro ato, mas como é um ''livro'' apenas digo que é o fim da primeira parte.
Bem pessoal, primeiramente quero agradecer a todo o pessoal que está acompanhando a história, comentando e favoritando, vocês são sensacionais e agradeço imensamente a cada um de vocês por me darem forças para continuar essa história!
Segundamente, o de sempre, comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo! ^-^



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