Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 6
A Escrita e a Fome


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Mais um capítulo para vocês, boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/754466/chapter/6

 

Friedrich não tinha certeza quando foi que o interesse de Loki por sua escrita começou, mas sua apreciação ou curiosidade chegara ao ponto de se tornar um incômodo. Não conseguia se concentrar na caligrafia com aquelas esmeraldas lhe encarando, sem disfarçar de nenhum modo. Na realidade, ele suspeitava que Loki fizesse de propósito para que o notasse.

Não estavam longe um do outro. Loki estava com o torso recostado em uma pedra enquanto o resto de seu corpo estava tomado pela grama alta. Fumava um cachimbo sem deixar de contemplar Friedrich que estava sentado na própria grama, com os joelhos dobrados para servirem de apoio ás páginas que rabiscava. Os olhos de Loki se moviam conforme a pena de Friedrich dançava sobre o papel, tirando facilmente a atenção do loiro que ao invés de pensar no comportamento e reações do fogo apenas se imaginava afundando naquele mar esverdeado.

Deus me proteja de pensamentos impuros.

Parou de ornamentar as letras de estilo gótico, olhando com o canto dos olhos a reação de Loki. Como imaginava, o outro desviou o olhar fingindo estar distraído. Friedrich não era ingênuo, havia notado a curiosidade de Loki acerca das letras, mas o homem era orgulhoso demais para perguntar diretamente para ele. Ficava apenas na espreita, como se fosse pouca coisa, mas era óbvio que estava louco para saber como a escrita funcionava. E não é como se Friedrich se sentisse incomodado em apresentar esta arte para ele, mas era necessário um pouco de comunicação para que isso acontecesse.

Tolo, não há o porquê de se acanhar disso.

Decidiu finalmente fazer algo quanto aquilo. Separou alguns de seus escritos e levou a pena e tinta junto, levantando-se e indo em direção ao druida. Loki ajeitou sua postura no momento que Friedrich começou a se aproximar, até se colocando mais para o lado e permitindo que o alquimista sentasse bem do seu lado.

— Notei o quanto me observas quando escrevo. – Friedrich comentou fazendo Loki se encolher e sorrir de nervoso, coçando atrás de sua nuca por embaraço. – Me veio à ideia de que talvez se interesse pela escrita. Gostarias de se tornar letrado?

— Se não te incomodas. – Loki tentou conter seu entusiasmo, mas o seu sorriso do tamanho do mundo já delatava o quão empolgado estava. Friedrich achou aquilo deveras adorável, contudo o ensino não dava espaços para frivolidades como contemplar outro homem.

Não apenas o ensino, perdoe-me Senhor.

— Acredito que não esteja familiarizado com as letras, melhor eu te apresentar uma por uma antes de tudo. Ao menos foi dessa forma que eu aprendi. – Friedrich pegou uma de suas últimas folhas ainda em branco, começando a desenhar o alfabeto de forma simples, sem qualquer ornamento ou tentativa de iluminura, para tornar a compreensão de Loki mais fácil no começo. – Se comparar com minha caligrafia normal vai notar que é mais delineada por assim dizer. É por conta do costume, como um monge copista é praticamente uma obrigação fazer de cada letra uma obra de arte.

— Não vou precisar fazer isso, certo? – Loki questionou levantando uma das sobrancelhas. Imaginava que não ia ser fácil, contudo não gostaria que sua alfabetização se tornasse tão complexa assim. Friedrich riu com a afirmação, negando com a cabeça.

— Não é necessário, o básico já é o suficiente. – Friedrich explicou, deixando a pena de lado e mostrando o escrito para Loki, fazendo com que seus ombros se tocassem. – Está vendo isso? É um ‘’A’’, e significa exatamente como se fala, feito para formar outras sílabas com o restante das letras.

Loki não piscava enquanto Friedrich lhe apresentava o alfabeto, com as pupilas no centro da floresta percorrendo o caminho que a pena fazia para delinear cada uma das letras. Impressionava-se com o fato de que existia uma forma de tornar eterno tudo que era dito, pensado, criado. A ideia o deixava abismado, um leque de possibilidades seria aberto para um reles leigo como ele, afinal o conhecimento não podia ser tomado. O conhecimento que era realmente eterno! Loki sabia que poderiam tirar tudo de si, todo seu dinheiro, suas plantas, suas roupas, as pessoas ao seu redor, contudo nunca levariam toda a informação em sua mente. Até mesmo acabando com sua existência, queimando seu corpo, cortando sua garganta, jamais seriam capazes de reverter o que havia feito com o seu saber.

— Friedrich, tem certeza que prefere gastar suas últimas folhas comigo ao invés de usar para seus próprios assuntos? – Loki questionou ao ver a folha tomada pelas letras que o antigo frei havia escrito em um tamanho maior do que o de costume para que seu ‘’aprendiz’’ compreendesse melhor.

— Mas claro que não! Jamais me recusaria a ensinar alguém, ainda mais se tratando de um amigo. Não posso ser mesquinho ao ponto de me negar a isso, vai contra meus próprios princípios.  – Friedrich explicou sem tirar os olhos das letras negras desenhadas no papel, olhando com certo orgulho a própria caligrafia. – Agora é sua vez, Loki.

— Do que exatamente?

— Escrever oras! O que mais seria? Apenas copie o que acabei de lhe mostrar, não precisa se preocupar com a estética, estando legível é o suficiente. – Friedrich estendeu a pena já molhada de tinta para Loki. O druida sentia que estaria menos intimidado se aquilo fosse uma faca ou estaca, pegando o objeto com hesitação. – Ainda bem que escreve com o braço direito! Havia um irmão no mosteiro, frei Noah, que teimava em escrever com o esquerdo, por isso lhe amarravam o braço para não se sentir tentado a usar a mão errada. O pobre coitado tinha a pior caligrafia, por isso foi rejeitado do posto de copista.

— Por que ele não podia escrever com a mão esquerda?

— Pois Jesus senta ao lado direito de Deus. Logo, o lado esquerdo só pode ser o caminho do Diabo. – Friedrich explicou, apesar de Loki não compreender a lógica daquilo.

— Bem, eu não consigo segurar a espada com a mão esquerda. Pergunto-me como seria um combate com alguém que usa o lado esquerdo.

— Bárbaro.

— Enfadonho. – Era quase impossível para os dois estabelecerem uma conversa sem enticar um ao outro em algum momento. Tornara-se algo tão cotidiano que há muito deixaram de se ofender, estando mais para uma piada interna entre eles da qual riam baixinho enquanto fitavam-se com o canto dos olhos.

Loki tentou copiar a letra ‘’A’’ bem apessoada de Friedrich, mas o resultado saiu bem mais trêmulo e desproporcional do que imaginou em sua mente. Não estava acostumado a segurar uma pena daquela forma, não sabia como fazer a ponta se mover como gostaria. Uniu as sobrancelhas ao ver o resultado, por algum motivo aquilo o fazia se sentir como uma criança aprendendo a falar.

— Será que faço melhor com a mão esquerda? – Riu de si mesmo para tentar conter o embaraço. Friedrich o olhou de forma empática, apesar de rir com o comentário.

— Não te preocupes. Minha letra no início dos aprendizados também não era das melhores. Mas tente segurar a pena com firmeza, para o traço se tornar mais alinhado. Dessa forma. – Friedrich pegou a mão direita de Loki, envolvendo-a de forma que pudesse guiá-la com a pena. O gesto inesperado fez com que o druida sentisse seu estômago esfriar, quase como um arrepio. Sabia que não devia, mas gostava da sensação de sentir o peito de Friedrich pressionando suas costas, a respiração dele contra seu pescoço, as mãos unidas. O gesto durou apenas por alguns segundos, mas foi como se o tempo tivesse parado para ele. – Viu só? É só até você se acostumar a empunhar uma pena.

— Tens razão. Contudo, acho que seria melhor você me guiar pelo restante delas, sabe, só para eu ter certeza da ordem dos contornos. – Loki era sacana o bastante para sugerir algo assim com a voz tão calma, fingindo naturalidade enquanto pensava na malícia. Se Friedrich negasse, não se importaria, entretanto, valia a tentativa de mantê-lo mais perto daquela forma.

— Apenas uma vez cada letra. – Alertou Friedrich que notou haver algo mais naquele pedido, não sabia exatamente o que era, contudo não via o porquê de negá-lo. Mas em algum momento naquela jornada do alfabeto, Friedrich compreendeu de certa forma o pedido, pois estar próximo assim de Loki lhe causava certo júbilo.

Sua proximidade com o druida fazia-o se sentir estranho, com uma vontade abrupta de prolongar o contato entre os dois. Os cabelos revoltos de Loki faziam cócegas em seu rosto, o cheiro de plantas impregnado em sua pele inebriava-o. Desejava abraçá-lo com força, passar as mãos por seu peito e enfiar o rosto em seu cabelo ruivo, aspirando aquele cheiro doce de ervas e flores.

Pare. Censurou-se ao ver o caminho que aqueles pensamentos o levavam, sabendo o quão pecaminosos eram para condená-lo á danação eterna. Além da culpa por não levar em consideração sua amizade com Loki, pois era indecente sequer imaginar essas coisas com seu amigo. Não deveria imaginar imoralidades enquanto o ensinava!

— Pronto, agora você deve praticar sozinho.  – Friedrich se afastou de Loki na hora em que a última letra foi escrita. O druida notou o rubor em seu rosto e se perguntou se por acaso Friedrich teria adivinhado suas intenções. Com esse pensamento acabou por sentir seu próprio rosto ruborizar por vergonha, sentindo-se um tolo por ter sequer cogitado a ideia.

Agora ele não quer falar com você. Muito esperto Loki.

— Para onde está indo? – Indagou ao ver Friedrich se levantar e dar as costas. O loiro o olhou por cima dos ombros, os olhos azuis estavam opacos.

— Rezar. Se quiser posso continuar a lhe ensinar mais sobre a leitura mais tarde.

Loki permaneceu ali, sozinho. Não moveu um único músculo por um bom tempo, encarando o caminho que Friedrich percorreu até ser devorado pela floresta. O antigo frade fazia isso com certa frequência, desaparecer pela floresta e voltando mais tarde repleto de trejeitos estranhos. Contudo dessa vez era diferente, não tinha nada haver apenas com Friedrich e sim com eles dois, aquela coisa não dita e apenas sentida.

Deitou-se na relva, com os braços estendidos e a copa das árvores balançando com o vento. Suspirando enquanto discutia com si mesmo.

Não basta serem os homens, você se atrai pelo mais puritano deles. Seu tolo.

Enquanto isso com aflições semelhantes, Friedrich estava com as costas prendidas no tronco de uma árvore, tentando conter a respiração descompassada. Segurava a cruz de madeira em seu pescoço, os olhos arregalados fitando o nada, suas mãos tremiam por conta da ansiedade. Sentia-se sórdido, um pecador inconsequente. Perdão a Deus era o mínimo que deveria fazer.

— Pai Eterno, me afaste dos pensamentos impuros, das tentações do Maldito. Perdoe-me por ser fraco, ajude-me a ter forças para resistir ao pecado. Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Ideo precor beatam Mariam semper Virginem, beatum Michaelem Archangelum, beatum Joannem Baptistam, sanctos Apostolos Petrum et Paulum, omnes Sanctos, orare pro me ad Dominum Deum Nostrum. — E seguiu rezando pedindo pelo perdão e pela força para conseguir conter aqueles impulsos. Já estava familiarizado há muitos anos em conter os próprios desejos, por isso Friedrich não ousaria permitir que aquele homem de cabelos do Diabo lhe tirasse o caminho da santidade. Não deixaria ser pego pelos feitiços de Loki.

Jamais permitiria que o pecado residisse em si.

                                                                     ***

Para os pobres, as roupas ficavam grandes após o inverno devido a todo peso perdido nessa época. Pouco havia para se colher, logo não havia dinheiro, ou comida. Sobrevivia-se a base de sobras, migalhas aqui e ali, jejuando forçadamente por dias para economizar a pouca farinha guardada. Para os andarilhos que geralmente compravam a comida de fazendeiros, precisavam lidar com o aumento do preço do pão, mas também se tornava comum não encontrarem ninguém disposto a vender o pouco que tinha.

Sentiam os ombros ossudos, as costelas proeminentes, braços e pernas se enfraqueciam e os passos se tornavam lentos. Na fome, uma viagem a pé poderia perdurar pelo dobro de tempo. Havia mais sono, acordavam-se já exaustos e cada movimento era um tormento. Uma hora o estômago desistia de reclamar, ficando apenas um desconforto azedo no esôfago. Mesmo quando sedentos evitavam beber água, pois era como se o próprio corpo protestasse gritando que não era o que pedia, o estômago se embrulhava mesmo que não houvesse nada a se regurgitar.

Aquele era um dia típico inglês, nublado e com um vento cortante esvoaçando suas túnicas e abaixando os capuzes. Seguiam em direção a um filete de fumaça, proveniente de alguma casa, civilização, talvez houvesse algo para comer. Era apenas isso que conseguiam pensar. Caminhavam por uma estrada ao lado de um campo sendo arado, observando lavradores trabalhando aqui e ali pela terra. Bois puxavam o arado, enxadas eram empunhadas, o cheiro de terra úmida preenchia o lugar, com a imagem trazendo certa nostalgia em ambos de quando trabalhavam no campo.

— Sei que estamos quase chegando, mas... Poderíamos parar só por um momento? – Friedrich pediu tão baixo que se não estivessem próximos Loki não teria ouvido. Os olhos azuis dando a impressão de terem se tornado cinza por conta do rosto pálido e as grandes olheiras.

— Se pararmos perderemos o ritmo e... – Loki tentou contestar, mas Friedrich o ignorou e se sentou em uma pedra, largando a mochila no chão e afundando o rosto nas próprias mãos. – Ou descansamos um pouco, está bem.

— Desculpe, mas sinto que estou morrendo. – Friedrich deu um longo suspiro, o peito estava pesado para respirar, suas pernas doíam pelo cansaço e não tinham mais forças para seguir em frente. Loki se pôs ao seu lado, mas não ousou se sentar, pois tinha certeza que não conseguiria se levantar depois. Contudo, sabia que não deveria exigir o mesmo de Friedrich, por mais forte que o outro fosse ainda não estava completamente acostumado com a vida de peregrino.

— Posso devorá-lo após isso? Eu realmente estou faminto. – O ruivo não perdia o bom humor, por mais mórbido que fosse, mesmo nas horas mais obscuras, se permitindo dar um riso quase inaudível. Friedrich o olhou com o esboço de um sorriso em resposta.

— Não, eu quero um verdadeiro funeral cristão. Com unção e tudo mais.

— Quanto a mim deixe que meu corpo seja devorado pela terra, que a Deusa Mãe se encarregue com meu destino. – Sequer sabiam se estavam apenas conversando ou entrando na fase de delírio. Talvez estivessem realmente sentindo o corpo desfalecer cada vez mais, ou a mente começando a criar ilusões, por isso não se demoraram muito no descanso e logo seguiram caminho. Precisavam dar um jeito em toda aquela fadiga.

Pouco havia para ser oferecido naquela pequena vila, ainda mais com as poucas moedas que tinham. Todavia, uma caneca de leite era uma benção para um estômago faminto, por pouco que fosse. Se conseguissem trabalho talvez a situação melhorasse.

— Dois quartos de florim, um absurdo! Já paguei por nacos de pão neste mesmo preço. – Loki dizia isso a cada gole que dava da caneca enferrujada, sentindo o gosto metálico misturado com a bebida.

— Pagamos, não há o porquê reclamar mais. – Friedrich retrucou, deixando o copo vazio de lado e respirando fundo. Sentia-se um tanto enjoado por não ter algo mais consistente no estômago, mas não estava em posição de reclamar alguma coisa em uma época de vacas tão magras.

— Sei que isso não dá nenhuma benção, mas espero que tenha alguma alma infortunada nessa região. Precisamos de trabalho, ou seremos devorados por nosso próprio cão. – Loki deitou-se no chão, ignorando a lama impregnando seus cabelos. Friedrich revirou os olhos, não deixando de olhar de soslaio o cão que comia os restos de uma carcaça de rato atropelado por uma carroça. – Ou poderíamos devorá-lo primeiro.

— É época de plantio, podíamos tentar conseguir um serviço temporário. – Tentou sugerir, mas Loki prontamente negou com a cabeça.

— Não conte comigo, entre no sistema de servidão e nunca mais sairá. Terá que pagar a talha, banalidade, dízimo, capitação ou seja lá quais outros impostos conseguirem inventar. Mal terá dinheiro para comer e ver-se-á obrigado a trabalhar de novo, de novo, de novo e...

— Está bem, entendi. Má ideia. – Concordou descontente, sabendo que não tinha como negar que aquela era a realidade. Friedrich sabia que se caso não tivesse se tornado frade, jamais teria saído dos serviços de Lorde Harold.

Teria morrido da peste com todos eles.

— Não faça essa cara, daremos um jeito nisso. Estou nessa há muitos anos, uma hora o sol se iluminará para nós. – Loki tentou acalmá-lo, mas não sabia que não era mais nisso que Friedrich estava pensando. O loiro encarava seus próprios pés, a cabeça fervilhando de tantos pensamentos.

Não, teriam o matado antes que tivesse chance de adoecer.

— Parece que há algum evento no centro da vila, me pergunto o que será?

Será que não é só questão de tempo até se ver condenado novamente?

— Friedrich? Está me ouvindo Friedrich? – Loki se inclinou até que seus olhos encontrassem os do companheiro, fazendo com que Friedrich se sobressaltasse pelo susto. – No que tanto pensa?

— Desculpe, não era nada. – Friedrich balançou a cabeça, como se assim pudesse espantar suas próprias ideias. Com isso acabou prestando maior atenção ao próprio ambiente em si, ouvindo uma melodia baixa que vinha do final da estrada. – Conheço esse canto, é Hino á João Batista. Será que é dia santo para haver visita de monges?

— Não. – Loki pegou sua mão com firmeza, como uma criança assustada que viu um lobo na floresta. Seus olhos pareciam querer saltar da órbita, tremulando de pânico. Friedrich franziu o cenho, confuso com a reação do companheiro. Todavia, assim que olhou para onde Loki estava vidrado, sentiu um arrepio de pavor lhe percorrer a espinha.

Dois soldados segurando seus elmos embaixo dos braços e vestindo mantos brancos, bordados com a cruz do reino por cima das pesadas armaduras, paravam as pessoas que perambulavam pelas ruas para anunciar alguma coisa. Os camponeses por vezes se sobressaltavam, outros apenas assentiam com a cabeça baixa, seguindo em direção à central da vila onde o sino da igreja não parava de badalar.

— Não vejo soldados do reino há eras. Houve alguma grande revolta? – Friedrich questionou, buscando compreender a situação. Não era nenhuma grande cidade, dificilmente se viam oficiais em lugares tão inóspitos como aquele.

— O povo não me parece revoltado. – Loki concluiu com o cenho franzido. Vendo que uma criança passava por eles a puxou pela manga da túnica, fazendo-a se virar em sua direção.

— Não tenho dinheiro! – O garoto bradou suplicante, pondo as mãos para cima mostrando que não estava armado com pedra ou lâmina.

— Sabe por que há soldados do Rei aqui? – Loki questionou fazendo o menino suspirar aliviado.

— Convocação para missa senhor, haverá um julgamento ao meio dia. – A criança respondeu e assim que Loki parou de segurá-lo ele saiu apressado, provavelmente para não perder o evento.

— Última vez que vi um julgamento não foi nada agradável. Eu era o acusado afinal de contas. – Loki soltou um riso triste e Friedrich lhe fitou por alguns segundos, pensativo. Os olhos verdes lhe fitaram de volta, com um semblante sério. – Precisamos sair daqui.

— De imediato. – Friedrich completou e os dois se levantaram juntos, começando a percorrer as vielas mais obscuras para não serem vistos. Ambos já haviam passado por situações semelhantes, por isso sabiam muito bem que não era uma boa ideia seguir caminho pelas estradas principais. Contornavam as frestas entre um casebre e outro, passando pelo meio de tendas que estavam vazias, até chegarem ao interior da floresta, tomando cuidado para não serem vistos pelo povo que morava no interior.

Por mais que eles não fossem os condenados, fugiam por precaução. Os julgamentos podiam ser convocados para resolverem um delito específico, mas raramente terminavam por ali. Não havia muitas formas de justiça presentes a maior parte do tempo, dessa forma aproveitava-se ao máximo a presença da Inquisição ou do exército para resolução de crimes. A igreja pedia que confessassem os seus pecados e todos os camponeses se tornavam espiões de si mesmos, delatando uns aos outros por crimes que poderiam ou não ter cometido. Qualquer suspeito poderia ser o mais novo réu nesses dias de purificação.

E não havia nada mais suspeito dentro das muralhas feudais do que a presença de dois desconhecidos.

Loki apenas corria por sua vida, a adrenalina dominando o seu corpo cada vez mais. Se o pegassem revistariam seus pertences e confirmariam que se tratava de um druida. A pena mais branda seria a confiscação de seus bens, a máxima sua morte.

Loki não gostava de nenhuma das opções.

Friedrich corria logo ao seu lado, o pânico fez ambos se esquecerem do cansaço e da fome que os dominara há pouco tempo. Porém, o druida precisou frear os pés ao ver que Friedrich havia parado abruptamente para olhar alguma coisa, a cabeça levemente inclinada denotando dúvida e curiosidade. Loki o chamou, mas a resposta que teve foi Friedrich sinalizando para que se aproximasse.

— Está louco? E se nos alcançarem?! – Queria gritar, mas não ousava erguer a voz mesmo estando irritado com a atitude tola do parceiro. Não obstante, Friedrich possuía um semblante calmo em contraste a feição assustada de Loki.

— Não há o que temer Loki, ninguém percebeu nossa fuga e dificilmente seremos perseguidos a essa distância. Sei do que estou falando, não é o único a ser caçado por essas terras. – Friedrich explicou amenamente, seus olhos retornavam o brilho mais uma vez e suas palavras confiantes faziam os ombros de Loki relaxarem um pouco, mas o temor ainda era presente em seus pensamentos.

— Infelizmente você seria visto como meu cúmplice. Sinto muito por ter de carregar este fardo junto de mim. – Loki respirou fundo, estagnando a fala por um momento para reorganizar as ideias. Estava nervoso da mesma forma que ficava próximo ao fogo, a cruz dos uniformes e as batinas dos bispos, padres e freis lhe assombravam com imagens de um passado que jamais seria capaz de esquecer. Detestava a forma como a simples menção á Inquisição fazia com que seu corpo tremesse, como uma presa assustada a se ver encurralada pelo caçador.

— Já tenho este fardo há muito tempo Loki, por isso lhe afirmo que não há por que fugir. Se não fomos vistos, não há um alvo para eles perseguirem. – Friedrich falava como se já tivesse passado pela mesma situação, criando uma série de perguntas na mente enérgica de Loki. Apesar do medo ainda presente, com os músculos tensos e preparados para correr a qualquer sinal de perigo, o ruivo decidiu confiar na palavra de Friedrich.

— Me intriga o fato de um frade fugir da Inquisição. Eu tenho motivos óbvios, mas você Friedrich é um grande mistério para mim.

— Deixei a batina no momento que saí do mosteiro. – Friedrich disse sério, querendo desviar do assunto com urgência. – O chamei para que me explicasse o que aquela pintura significa, pois parece obra pagã.

Friedrich apontava para uma rocha quase escondida pela vegetação. No meio de duas árvores uma pintura em vermelho sangue se destacava entre cinza e verde. Era uma figura desenhada com linhas simples, feita por alguém com pouca habilidade para a arte, mas sua forma possuía algo de exótico que chamava a atenção mesmo escondida entre as folhas. Era a imagem de um homem sentado, em meio a diversos animais que lembravam cervos e lobos. Suas mãos pareciam segurar algum objeto, mas a tinta estava apagada demais para saber ao certo do que se tratava. Contudo, o que mais surpreendia na imagem eram os grandes chifres da cabeça do homem, que se parecia com os grandes galhos de uma árvore ou as armas de um alce.

— Eu creio em um deus com corpo de homem e cabeça de cervo. – Disse Loki, os olhos vidrados na pintura. Aquilo era muito mais que uma representação de sua fé, era um suspiro de vida de seu povo e suas origens. Ao menos uma vez depois de tanto tempo Loki não se sentia tão deslocado, deixando de ser um homem solitário numa terra que não o aceitava.

— Acha que talvez seja por isso que o Santo Ofício foi chamado? – Friedrich indagou fazendo com que Loki perdesse parte do brilho que por um segundo havia retornado em seus olhos. O druida mordeu inconscientemente o lábio inferior, com o rosto aflito e imaginando a floresta em chamas ao redor do deus celta. – Desculpe, fui indelicado.

— Não, você tem razão. Provavelmente seja isso. – Loki suspirou se aproximando inconscientemente de Friedrich, em busca de algum tipo de conforto, fazendo seus ombros se tocarem. Com o canto dos olhos olhou de Friedrich para a rocha, com a lembrança do primeiro encontro dos dois passando por sua mente. A princípio era uma lembrança estranha para aparecer naquela situação, mas apenas Loki compreendia o porquê disso. – Nunca lhe contei como perdi minha família, ou estou enganado?

— Foi um incêndio. – Friedrich respondeu, confuso com a escolha de assunto do outro. Loki havia lhe contado isso na noite que ele mesmo perdera sua família, fazendo com que suas histórias se entrelaçassem de certa forma.

— Não foi qualquer incêndio. – Loki franziu os lábios e negou com a cabeça, respirando fundo antes de continuar o relato. Nunca havia contado essa história a alguém e sequer imaginou que um dia contaria, mas agora Friedrich estava ali, quieto e ouvindo atentamente cada palavra. – Eu fui o único a sobreviver, pois passei dez noites na floresta caçando. Era primavera, há muitos cervos nesta época, seria bom para o sustento de todos nós, afinal éramos uma família grande. Meus irmãos e pai haviam dito que me encontrariam em alguns dias para me acompanharem, porém jamais tiveram a chance de fazê-lo.

Retornei com um filhote morto em minhas costas, encarando as cinzas do que um dia foi minha casa sem compreender o que havia se passado. Em meio ao luto eu me questionava como tudo fora tomado pelo fogo de forma tão violenta, como ninguém das doze pessoas que moravam ali não conseguiram escapar? O caso era tão estranho que até o próprio Lorde procurou investigar.

Alguns vizinhos contaram que foram despertados na madrugada com um tumulto ao redor das terras de minha família. Revestiram as paredes com palha e atearam fogo com dezenas de tochas, tudo isso enquanto todos dormiam. Em algum momento meus pais e irmãos poderiam ter acordado, mas havia toras de madeira impedindo que abrissem a porta e pedras cobrindo as janelas. Tudo havia sido orquestrado com perfeição para que ninguém saísse vivo daquela casa.

— Se houveram testemunhas, como ninguém foi capaz de impedir tamanha atrocidade?! – Friedrich questionou estupefato, os olhos arregalados com o relato horripilante de assassinato cometido á uma família inteira. Loki respirou fundo mais uma vez, tentando manter os olhos secos enquanto falava.

— Não éramos uma família querida Friedrich. Ninguém da vila nos via com bons olhos, mesmo não mostrando nossos costumes em público não era difícil notar que éramos pagãos. Não me surpreende que ninguém tenha ajudado. Provavelmente ficaram satisfeitos, com a consciência limpa de que não precisaram pecar para isso. Contudo eu posso afirmar meu caro, que suas mãos estão tão sujas de sangue quanto às daqueles que atearam o fogo.

Foi então que a Inquisição foi chamada. Pois um julgamento com penitência sem a presença da autoridade do Rei ou da Igreja é crime como bem sabe, contudo, todas aquelas pessoas estavam ali para defender umas as outras e condenar apenas a mim e meus entes falecidos. Quiçá até tenham encontrado os culpados, pois por algumas moedas qualquer um fala de seus segredos, mas o castigo fora brando, pois o Lorde não ficaria satisfeito em perder mais de seus servos.

Fui compensado com algumas libras, obsoletas para alguém que perdera as pessoas que amava. Mas o pior de tudo, foi quando o Santo Ofício descobriu o porquê da revolta contra meus familiares, souberam de minha heresia. Fui ‘’convidado’’ a ser batizado pela igreja, e mesmo sendo jovem eu já sabia muito bem que por mais que eu não quisesse aquilo eu precisava fazê-lo. Aquela era a minha condenação, como se tivesse sido um crime dos dois lados.

Disseram que eu deveria renunciar meu nome e eu apenas aceitei tudo aquilo, pois sabia que não havia uma escolha. Senti que estava traindo minha família, desonrando seus nomes enquanto era ungido. Só que eu estava com medo Friedrich, eu não queria acabar como eles, eu não queria...

Um soluço interrompeu sua fala. Ele não era o tipo de pessoa que chorava, principalmente na frente dos outros, contudo Loki mal se dera conta de todos os sentimentos entulhados dentro de si. Respirou fundo uma última vez, limpou os olhos com a manga de sua roupa e encarou o rosto de Friedrich. Seus olhos estavam marejados, mas não ousaria derrubar uma única lágrima, pois estava exausto de ser tão miserável.

— Loki, eu... – Friedrich não sabia o que dizer ao certo, apenas tinha a necessidade de confortar Loki no que fosse preciso, um sentimento forte que o fazia desejar afastar o outro de todos os males daquele mundo cruel.

— Não, deixe-me terminar. – Loki tinha o semblante sério e um olhar determinado, olhando para Friedrich diretamente nos olhos. – Foi depois disso que eu parti para nunca mais voltar. Eu me dei conta que não havia lugar nesse mundo para mim, nenhuma terra no qual eu chamaria de casa mais uma vez. Por que não estou apenas viajando Friedrich, eu estou sempre fugindo pela minha própria vida.

E é por isso que no dia que lhe conheci, antes que eu impedisse que aqueles ladrões o tirassem a vida, eu desejei por um segundo que você morresse. Sem nunca ter trocado uma única palavra ou sequer saber seu nome, eu vi apenas que você se parecia com aqueles que condenaram a mim e minha família há muito tempo atrás. Contudo eu não sou uma pessoa vingativa, e mesmo que fosse você não tinha nada haver com o que aconteceu comigo, por isso me senti terrível por simplesmente ter imaginado uma atrocidade dessas. Sinto muito por tê-lo julgado mal por mais breve que tenha sido, pois eu sei muito bem o que é ser condenado injustamente.

— Tu não precisas se justificar ou desculpar-se por algo assim Loki. Como tu mesmo disseste você sequer me conhecia, além do mais, quem deveria se redimir sou eu. O vi com maus olhos desde o princípio, não estou em posição melhor nesta situação. – Friedrich envolveu seus ombros com o braço direito, querendo acalentá-lo de alguma forma. O ruivo deu um longo suspiro sofrido, antes de deitar o rosto em seu ombro.

Ali Friedrich sentiu pela primeira vez vontade de contar tudo o que aconteceu antes de sua fuga no mosteiro. Sabia em sua alma que apesar de todas as diferenças entre eles, confiava em Loki. Havia uma conexão entre eles que fazia com que os braços do druida fossem o lugar mais seguro de todos. Queria dividir com ele todas as suas angústias enclausuradas em sua garganta, pois tinha certeza que ele não lhe faria nenhum mal.

Porém, quando Friedrich abriu a boca para dizer algo, sua mente pareceu congelar. O medo e o trauma o dominavam com mais força que sua própria razão. Mordeu os lábios em agonia, inspirando o cheiro arbóreo de Loki em busca de algum alento para a alma.

— Não seremos pegos Loki, estamos juntos agora. – Foi tudo o que conseguiu dizer e apesar de não serem as palavras que gostaria, eram as que bastavam naquele momento.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O deus ilustrado na rocha trata-se de Cernunnos, uma das divindades mais antigas da cultura celta e que estava presente em praticamente todas as tribos.
Não comentei isso antes, mas quanto as moedas da época eu não tenho tanta certeza quanto aos seus valores. Tentei pesquisar o máximo possível como funcionava na época, mas já vou deixando claro que talvez não esteja correto acerca dos valores reais das coisas. Contabilidade já é difícil, de 600 anos atrás nem se fala ;p
Se gostaram comentem! E nos vemos no próximo capítulo! ^-^



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ode aos desafortunados" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.