Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 5
A Alquimia e a Cevada


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Aqui está mais um capítulo, o tamanho como podem ver justifica a demora para postar ;p Agradeço pela paciência de vocês e por todo o carinho que Ode aos desafortunados está ganhando! Sem mais demora, boa leitura!



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Não havia mais vestígios de neve, um vento sôfrego pelo fim do inverno percorria as árvores que começavam a despertar suas folhas aqui e ali, onde a terra se recuperava aos poucos com a grama de cor amarelada manifestando sua resistência. A estrada que percorriam era sinuosa, com o caminho já apagado pelo tempo de desuso, repleta de descidas com inclinações horripilantes, recheada de pedras soltas apenas esperando por um deslize de qualquer viajante mais desastrado. 

— Como consegue olhar para essa coisa e descer ao mesmo tempo?! – Loki questionou incrédulo, de braços estendidos para se equilibrar e calculando cada passo que dava. Friedrich estava vários passos à frente, já tendo percorrido o caminho mais difícil mesmo mal olhando para o chão, já que estava muito ocupado lendo diversas folhas de papel que ele próprio havia escrito.

— Equilíbrio e paz de espírito. – Respondeu sem tirar os olhos da caligrafia impecável. Loki tropeçou em uma pedra, dando três saltos desajeitados antes de chegar ao solo firme.

— O que tanto escreves afinal? – Questionou dando passos rápidos para conseguir acompanhar Friedrich. O loiro o encarou surpreso, revelando um sorriso mostrando todos os dentes que sempre escondia.

— Pensei que nunca perguntaria! – Friedrich disse empolgado, esticando o pescoço com certa arrogância que fez Loki revirar os olhos inconscientemente.

— Nunca tive motivo para fazê-lo. Contudo, agora quero entender o que faz você ficar tão vidrado com os próprios rabiscos. – Disse satírico, mas na verdade por todo esse tempo estivera curioso para saber o que Friedrich escrevia. Só não tinha o feito até aquele momento por não se sentir á vontade, pois se envergonhava da própria ignorância quando se comparava ao outro que era letrado.

— Pois bem. – Friedrich retirou o capuz que cobria sua cabeça, fazendo os olhos azuis se encontrarem com os verdes. – Eu fazia parte da Ordem Beneditina, e como muitos de meus irmãos era um copista. Resumindo a ode, eu frequentemente buscava por novas receitas de tinta na biblioteca do mosteiro. Como sinto falta daquele lugar! Eu afundava no meio de todas aquelas letras, ás vezes acordava pela madrugada e saía escondido apenas para conseguir passar mais tempo aprendendo sobre o mundo. Duvido se hei de encontrar um lugar com tanto conhecimento acumulado, só se visitar Roma ou até mesmo Paris algum dia... Oh sinto muito, perdi o curso da história! Continuá-lo-ei...

Loki sorriu ao ver Friedrich tão acalorado, apreciando a forma como o outro dividia seus gostos e ambições com tanta espontaneidade. Era um tanto raro vê-lo daquela forma, fazendo Loki se encontrar quase hipnotizado pelo seu olhar alegre, diferente da constante expressão taciturna que ele carregava constantemente.

— Não consigo vê-lo como um rebelde saindo ás escondidas pela noite, mesmo que seja meu companheiro. – Loki comentou fazendo com que o outro soltasse um breve riso, como se nem ele próprio acreditasse.

— De tanto revirar aquelas estantes acabei encontrando alguns textos alquímicos perdidos no meio da poeira. A grande parte era de difícil compreensão, com ideias mirabolantes que eu não sabia distinguir a verdade dos simbolismos. Contudo, me despertou um interesse ávido na manipulação dos metais e das reações dos elementos da natureza. Iniciei assim a anotação de minhas próprias ideias e a fazer alguns experimentos, mas infelizmente tudo isso acabou ficando no mosteiro. Agora o que me resta é apenas anotar aquilo que ainda tenho gravado em minha memória e talvez um dia eu consiga retornar para o ponto onde alcancei. – Friedrich dizia isso com um olhar repleto de júbilo enquanto o druida o ouvia com atenção.

— Isso me soa semelhante à feitiçaria que condena. – Loki comentou arqueando as sobrancelhas, vestindo o seu melhor sorriso cínico para Friedrich que ficou sério por alguns instantes.

— Certamente. Devo admitir que fui muito repreendido quando mencionava este meu interesse aos irmãos, ninguém do mosteiro apreciava os meus estudos, achavam que era uma artimanha de cunho demoníaco. Eram poucos os que assim como eu compreendiam que se tratava apenas de manifestações naturais, mas não significa que me defendiam do restante. – Friedrich permaneceu alguns segundos em silêncio, os olhos que antes encaravam o rosto de Loki se perderam por completo em algum lugar de suas memórias. Respirou fundo antes de voltar a falar. – Quando lhe conheci foi como se o papel fosse trocado, pois achava que além de Deus eu também pudesse julgá-lo. Contudo, foste tu que me mostrastes o quanto a natureza em si pode parecer uma obra de bruxaria assim como a alquimia. E isso meu amigo, não significa que seja algo perverso.

Os dois trocaram sorrisos um para o outro, enquanto passavam pelas árvores desnudas que começavam a se recuperar depois de semanas de intensa nevasca. Não havia muito a dizer naquele momento, pois ambos sabiam muito bem que a resposta estava no fato de estarem andando um ao lado do outro sem quaisquer problemas.

De repente ouviram latidos sendo propagados pelo caminho, baixos pela distância e fortes o suficiente para ainda ser ressoado entre aquelas folhas. A dupla reconheceu o brado do cão que os acompanhava, podendo deduzir que o animal encontrara alguma coisa.

— Sarnento?! – Loki chamou pelo cão que estava longe demais para ser visto.  Os latidos não cessaram.

— Melhor nos apressarmos. – Friedrich alertou e assim os dois apertaram o passo.

Encontraram o cão ladrando para uma estrada ao leste de um vale, quase que apagada pelo aglomerado formado pela ação humana. Pessoas e animais perambulavam e dava vida á uma estrutura formada por dezenas de pequenas construções como choupanas, estábulos, silos, celeiros e banquetas de comércio que circundavam uma imensa fortaleza. Campos abissais se estendiam ao longo da gigante propriedade, polvilhadas com centenas de pessoas trabalhando no arado da terra, pronta para o cultivo após o fim do inverno.

Construída de maneira rústica usando diferentes tamanhos de pedregulhos, era uma fortaleza antiga que beirava os quinhentos anos, mas tão estável quanto uma velha montanha criada pela própria natureza. Suas ameias se destoavam acima das pedras antigas, construídas em alvenaria de pedras menores. Havia pelo menos uma dúzia de torres vigiando o lugar que não possuía um formato conciso, se assemelhando á uma tentativa falha de contornar um círculo, provavelmente por conta de ser fruto de uma construção que havia sido reformada e refeita diversas vezes pelos séculos. Era dividida por dentro por uma muralha que delimitava o espaço dos camponeses e da nobreza, como geralmente eram feitos nos feudos.

— Fazia tempo que não via um vilarejo com mais de uma dúzia de habitantes. – Loki comentou enquanto começava a se despir de seu manto de cores vibrantes e o guardando junto ás quinquilharias que trazia nas costas. – Antes que pergunte, já tive experiências bem ruins com acusações de furto por causa do meu manto. É complicado negar, afinal é muito difícil conseguir uma roupa assim, minha mãe precisou economizar por muitos anos só para essa pequena peça.

— Oh, isso me fez lembrar que é melhor não gerar quaisquer dúvidas. Não sou mais frade afinal. – Friedrich disse começando a desamarrar as tiras nas costas do hábito negro, ficando assim os dois homens de túnica lisa e simples iguais a todos os camponeses.

Sequer cogitaram avançar além do manso servil e das terras comunais que ficavam ao redor de muralhas mais baixas da fortaleza, ou até mesmo fora delas. Essas áreas eram cobertas pelas cabanas de teto de palha no qual viviam os servos daquela terra, com ruelas sinuosas que se embaralhavam para todas as direções.

O manso senhorial ficava tão protegido que seus paredões não permitiam visualizar muita coisa e apesar de curiosos não ousaram atravessar esta parte, pois o pedágio estava muito alto e não podiam se dar o luxo de gastar as poucas moedas que tinham apenas para ver as grandiosas casas dos nobres. Era tão clara a separação entre as duas classes que durante os vários dias que passaram por ali o portão do castelo não havia sido aberto uma única vez.

À medida que se aproximavam mais da cidadela, sentiam os olhares firmes dos soldados acima das ameias os seguindo, tinham certeza que já haviam flechas apontadas para suas cabeças, espreitando pelas seteiras em formato de cruz da muralha.

— O Lorde anunciou para não aceitar que estranhos entrem nas terras. Já ouviram falar da peste por acaso? – Uma mulher esguia e de olhos profundos os chamou a atenção. Os cabelos negros estavam quase totalmente escondidos pela touca branca e usava um vestido escuro por baixo do avental sujo de terra. E em suas mãos ela segurava uma foice de uma forma mais ameaçadora do que a dupla gostaria.

— Somos apenas reles curandeiros, posso afirmar que não trazemos a peste conosco. – Loki respondeu tentando parecer o menos inofensivo o possível. Uma primeira impressão má interpretada poderia custar suas cabeças.

— Conseguem curar a peste? – A mulher indagou com uma sobrancelha erguida. Os dois homens apenas se encararam, sem dizer uma palavra. – Imaginei que não. Fora, agora.

— Ora Isolda, se expulsarmos todos os viajantes que aparecerem de agora em diante não vamos ter nem linho para as roupas! – Um jovem baixo e magricelo apareceu segurando uma enxada repousada em seu ombro direito. – Não me parecem doentes, parecem doentes para você? Está vendo manchas negras por acaso?

— Vai acabar nos matando Mordecai. – Isolda os encarou grosseiramente antes de dar as costas, como um sinal silencioso de que estava entregando o problema nas mãos do outro camponês.

Mordecai bufou, olhando para os dois forasteiros com um sorriso amarelo em seguida, revelando a falta de um dos dentes da frente.

— Eu sentiria muito pela falta de modos, mas creio que todos sabem como as coisas andam difíceis. Essa peste é uma verdadeira desgraça! Há algumas semanas começaram as primeiras vítimas, em pouco tempo já havíamos quinze mortos e quarenta doentes. Não é uma terra pequena, mas todo pessoa faz falta no campo, ficamos assustados que todos morressem por causa disso.

O padre não deixou que a gente os queimasse ainda vivo, então os amarramos nas árvores da floresta ao norte para que assim o próprio Deus os levasse para bem longe da gente. Não dava pra deixar todo esse povo morrer, por isso tivemos que nos livrar dos doentes. – Mordecai relatava com uma naturalidade medonha, fazendo com que a dupla sentisse um arrepio de agonia passar por suas espinhas. Friedrich sentiu um aperto em sua garganta, relembrando os horrores que haviam levado sua família e todo o seu vilarejo para a cova, mordendo o lábio inferior para conter a dor que sentia na alma com a própria dor física.

— Nunca ouvi falar de ninguém que saiu vivo depois dos bubões. É uma doença aterrorizante. – Loki comentou, tentando manter a expressão firme. Era brutal a forma que aquela vila encontrara para controlar a epidemia, contudo não se dava o direito de julgar aquela atitude. Nem ele ou Friedrich que lidavam com o mundo das pragas todos os dias sabiam como controlar aquela maldição.

— Já nos acostumamos com recepções assim por conta disso. Porém é melhor do que portões trancados ou armas apontadas para nós. – Friedrich comentou engolindo a força o nó em seu pescoço. Mordecai riu um tanto nervoso com o comentário, olhando de soslaio para as seteiras e vendo pontas de flechas ainda apontadas para a cabeça dos viajantes. O camponês fez um sinal com as mãos e as flechas ainda que hesitantes abaixaram-se, fazendo com que os ombros da dupla ficassem menos tensos.

— Belo cão, mas não deixem que chegue perto dos animais. – Mordecai alertou, já notando os olhos afoitos do cachorro encarando as galinhas que rondavam por ali. – Não temos comida nem cama para oferecer, mas são bem vindos em permanecer aqui o tempo que precisarem. Vocês parece gente decente ao menos.

Era difícil conseguir alguma espécie de caridade fora dos tempos de colheita. Se necessitassem de alguma coisa precisariam usar a língua que todo ser humano consegue compreender: o dinheiro. Contudo, estavam com poucos pences e florins em seus bolsos e mal poderiam sobreviver dois dias com suas poucas moedas.

A solução para este problema financeiro era procurar por clientes. Ambos percorreram separados em direções diferentes pelo feudo, andando por ruas estreitas e enlameadas, cobertas pelo cheiro de fumaça, dejetos, carne crua e terra molhada. Conversavam com famílias vivendo amontoadas em casebres minúsculos, dormindo na terra batida e tendo apenas uma pequena fogueira para se aquecerem. O mais deprimente sobre tudo aquilo era que eles não estranhavam aquele cenário, afinal assim como aquelas pessoas eles também viviam sem dignidade, divididos por uma muralha que os apartava do restante.

Os dois ficaram um longo tempo separados. Friedrich havia permanecido com o cão, tendo que ser amarrado para não causar problemas. Houve apenas três pessoas que foram lhe pedir ajuda, sendo uma delas uma criança com a perna quebrada que ele resolveu não cobrar pelo serviço (mas ao menos a família lhe ofereceu uma refeição por cortesia). A questão era que não havia falta de carecidos, mas a desconfiança com estranhos e a falta de dinheiro reduzia as chances de serem consultados.

Não haviam combinado de se encontrarem em qualquer lugar ou hora, por isso Friedrich imaginava que permaneceriam afastados até se encontrarem por acaso. Adormeceu encostado em um dos paredões da fortaleza e acordou com o primeiro canto das aves. Não comeu o resto de pão que tinham guardado, preferia esperar por Loki para dividirem, por isso apenas seguiu com as rezas matutinas e se pôs a trabalhar em seus próprios estudos, aproveitando um pouco o tempo de ócio.

Avistou Loki não muito tempo depois, acompanhado de uma mulher jovem de cabelos castanhos e expressão contente. Pela distância não era capaz de ouvir sobre o que conversavam, mas parecia ser no mínimo interessante pela forma que gesticulavam, denotando grande empolgação. Friedrich arqueou as sobrancelhas, um tanto surpreso e ao mesmo tempo curioso com aquilo.  

Contudo a mulher logo se afastou, provavelmente por ter diversos afazeres naquela terra, despedindo-se de Loki que se pôs a continuar caminhando sozinho. Não demorou a seus olhos vibrantes se depararem com Friedrich, começando a se aproximar segurando as alças da mochila com os polegares e vestindo um sorriso de uma ponta de uma orelha até a outra.

Quando parou bem na sua frente, Loki jogou uma bolsa de dinheiro quase vazia nos pés de Friedrich, mal tilintando pelas poucas moedas ali dentro.

— Estamos pobres. – O ruivo anunciou como se fosse uma espécie de novidade.

— E quando deixamos de ser?

— Tens razão, ao menos não morreremos de fome. – Loki sentou-se ao lado de Friedrich, jogando-se para trás com as costas encostadas na fortaleza, dando um longo bocejo em seguida. O cão que até então estava deitado, se levantou para andar até Loki, que lhe acariciou a cabeça.

— Quem era a dama que o acompanhava? – Friedrich indagou curioso, e Loki lhe olhou daquela forma presunçosa que costumava fazer antes de implicar com alguma coisa que o tirasse dos nervos.

— Espero que não esteja deduzindo coisas sórdidas de minha parte.

— Não bote palavras em minha boca Loki! Se o que acusa dizer for realidade, então retiro a pergunta, não estou interessado. – Friedrich disse ofendido com a acusação, mesmo saindo dos lábios folgazãos de Loki.

— Tu precisas aprender a me levar menos a sério. – Disse recebendo apenas um revirar de olhos de Friedrich. – Seu nome era Agathe e apesar de trabalhar nos campos ela também possuí alguns conhecimentos de cura, herdados da avó pelo que me disse. Acabei a conhecendo ontem à noite enquanto tentava controlar um caso de pulmões fracos. Ficamos trocando ideias por um longo período, pois afinal não é sempre que se conhece mais algum curandeiro por aí. Uma pena que precisou voltar para os campos, eu poderia ter a apresentado.

— Realmente uma lástima, pois também fiquei curioso com os conhecimentos que ela deve trazer. – Friedrich disse enquanto mergulhava a pena no frasco de tinta, retirando o máximo de excesso para poder economizar. – Isso é melhor do que qualquer paixão infame, fico aliviado que não sejas tão degenerado.

— Não sou cristão Friedrich, mas sou infame. Sabe muito bem disso. – Retrucou ganhando apenas um olhar de canto do olho dele, a cor de um azul gelado feito o inverno.

O que gostaria de declarar em seguida estava preso em sua língua, pois raramente revelava aos outros, por medo de mais uma condenação no meio de tantas outras. Entretanto, Friedrich não era mais um companheiro qualquer de viagem, que simplesmente seguiria seu próprio caminho em alguns dias. Sabe-se lá quanto tempo ainda passariam juntos, em algum momento o outro acabaria descobrindo isso de uma forma ou de outra.

E Loki preferia evitar quaisquer surpresas.

Ele duvidava que adiar aquilo melhoraria qualquer reação extrema, por isso já pretendia contar em algum momento. Porém, era difícil não sentir um tremendo receio, por mais que soubesse que só poderia conviver com Friedrich se não tivesse que esconder quem realmente era.

Era em momentos como aquele em que acabava sentindo falta de sua família. Com eles não havia nada a ser explicado.

— Não obstante meu caro Friedrich, não vejo as mulheres dessa maneira, pois meu interesse está apenas nos homens.

A pena parou abruptamente, uma mancha de tinta começou a se formar no papel ao redor de sua ponta enquanto Friedrich encarava abatido para o papel. Permaneceu estacado por um longo tempo, sem mudar a expressão. Quando Loki começou a se questionar se o companheiro havia tido algum tipo de paralisia, Friedrich lhe lançou um olhar grosseiro abruptamente.

— O que há mais para lhe condenar Loki?! Seu sodomita, vil e herege! Que hei de fazer com você? – Friedrich apenas não gritara para não chamar atenção das pessoas ao redor, mas de qualquer maneira ditara de forma ríspida para Loki. – Parece uma piada do destino eu me envolver com criatura tão abominável! Talvez a única solução seja cortar sua cabeça e por outra no lugar para assim finalmente se abster de qualquer pecado! Por todos os Santos, você precisará de todo perdão e penitência do mundo para que ao menos seja levado ao Purgatório ao invés de se ver direto no fogo do inferno!

Com uma vida toda de represálias nas costas Loki já estava acostumado de ser rechaçado daquela maneira, muitas vezes com até mais uso de violência. Por isso tudo o que fez foi tentar conter o riso nervoso enquanto o outro ficava mais vermelho de raiva à medida que falava. O druida até achava cômica a criatividade de retaliações que as pessoas eram capazes de inventar, mas Friedrich em si era um pouco mais imaginativo que o costume.

Contudo aquilo incomodava bem no fundo de sua alma, por mais que não quisesse admitir. Ouvir aquilo vindo de alguém que até considerava um amigo doía em seu âmago, dilacerava qualquer gota de júbilo que estivesse sentindo. As palavras em si não o atingiam, Loki não era do tipo que se abalava tão fácil, porém temia o que poderia vir depois delas:

Ver os outros se afastarem.

Loki sempre tinha em mente que uma hora ou outra as pessoas se afastariam de si, ficariam assustadas ou enojadas o bastante a ponto de não suportarem olhar mais para a sua face. Mesmo estando de acordo com o antigo frade de trabalharem juntos, sentia que em algum momento Friedrich não o toleraria mais e o abandonaria de vez.

Havia um preço a ser pago para não esconder quem realmente era. Um preço alto demais para alguém tão exausto de sua própria solidão. Era uma guerra cansativa e sem qualquer chance de trégua.

Sed libera nos a malo. — Friedrich enfim declarou após um longo suspiro, ambos se olharam por mais alguns segundos. Loki tinha um sorriso sacana no rosto apesar de suas inseguranças. O loiro apenas permaneceu sério, logo voltando seu olhar para os escritos, continuando a escrever normalmente.

— É isto? – Indagou, com seu lado pessimista não acreditando que seria apenas aquilo. Friedrich voltou a lhe olhar, dessa vez com uma expressão confusa.

— Por que questiona? Deseja que eu chame o Santo Ofício?  

— Eu não me surpreenderia.

— ‘’O hábito não faz o monge’’ Loki. Por mais que tu sejas um pecador degenerado, não posso negar que não esteja fazendo mal a mais ninguém além de si mesmo. Tudo o que farei apenas é rezar por sua alma, talvez Deus possa colocar juízo em sua mente. – Friedrich explicou, ora fitando Loki ora olhando para sua própria caligrafia. Loki não conseguiu deixar de sorrir, as palavras ofensivas nem passaram por seus ouvidos, apenas a ideia de que o outro não o deixaria.

— Por que age dessa forma? – Questionou curioso e Friedrich demorou alguns segundos para responder, pensando no que dizer.  

— Creio que a vida me fez ser assim. – Friedrich declarou mais para si do que para Loki, começando a ficar novamente absorto em seus próprios pensamentos e lembranças. Loki sabia o que aquela ruga em sua testa significava, era quando ele pensava demais. O druida deduzia que eram as lembranças que Friedrich tinha antes de se conhecerem, que por algum motivo o atormentavam.

O ruivo enlaçou os ombros do outro com seu braço, fazendo com que suas cabeças se encostassem. Loki usou seu sorriso mais sacana enquanto Friedrich apenas franzia mais o seu cenho, já podendo imaginar as peripécias do druida.

— Já que estamos tranquilos... Eu andei pensando Friedrich, minha vida amorosa anda péssima ultimamente, inexistente eu diria. Acho que você pode ter uma ideia por conta de minha situação, não é nada fácil nesse caso.

Contudo eu não sou nada inexperiente e sei algumas coisas sobre a vida, o suficiente para ajudar um caro amigo. – Loki disse com um tom malicioso, fazendo com que Friedrich começasse a sentir seu rosto queimar. Talvez pela própria vergonha, mas provavelmente sentia também por Loki que pelo jeito não possuía nenhuma.

— Meu Senhor, não havia qualquer outra pessoa para me salvar aquele dia? Por que enviou logo essa coisa? – Questionar aos céus era a única coisa que conseguia dizer no momento, pois duvidava conseguir encarar Loki naquela situação.

— Você mesmo me disse que não pode mais ser considerado monge, qual a necessidade de continuar tão puritano? Duvido que á esse ponto seus votos valham de alguma coisa – Indagou observando o rosto de Friedrich se tornar mais rubro e se divertindo com isso.

— Não fale heresias em plena manhã! Ou melhor, nem fale sobre. Quer saber? Já disse até demais! – Friedrich falou sem jeito, empurrando Loki para o lado e se levantando. O druida achava cômica a forma como o outro era mais assustadiço que um coelho.

— Para onde você vai? – Loki indagou entre risos enquanto via Friedrich começando a andar longe de si.

— Rezar pela minha alma, e á tua também!

E realmente Friedrich fez isso, subiu uma longa escadaria que levava até a igreja do vilarejo. Ajoelhou-se junto a outros fiéis e se pôs não só a rezar para Deus, mas a pedir por respostas.

O que isso quer dizer meu Deus? O que está tentando me mostrar? Em Vossa imponente sabedoria, trata-se de um teste á minha fé? Um sinal? Por todos os anjos e Santos, o que isso significa?!

Seu rosto sereno não demonstrava o desespero de seu interior.  Pois a revelação de Loki o abalara de uma forma que apenas ele mesmo compreendia, por mais que fingisse não se comover. De todas as suas perguntas, a que menos tinha resposta era quem ele próprio realmente era.

                                              ***                                                 

Muitos diriam que Loki tinha um dom, contudo ele negava isso. Não passava de conhecimento, herdado por gerações de sua família. O dom verdadeiro vinha dos deuses que fizeram da própria terra o remédio dos homens, ele apenas explorava desse segredo pouco difundido.

Um composto feito a base de agrião havia salvado a vida de uma mulher que nem mesmo o druida colocava mais fé na recuperação. A desconfiança daquele povo se desvaneceu feito névoa, derrubando a barreira invisível que ficava entre eles.

— O senhor Chambers permite uma garrafa de cerveja pra cada trabalhador no fim da colheita, também deixando que a gente estoque dois terços da farinha. Sempre trabalhamos com cevada, mas temos algumas árvores frutíferas aqui e ali, mas dão pouca coisa e quase ninguém ousa pegar os frutos que dá. – A família de Mordecai permitiu que os dois viajantes se sentassem ao redor da fogueira junto deles. Quem estava relatando era Isolda, sua irmã, que segurava uma criança pequena no colo. Era uma casa simples, de um único cômodo feita de madeira e teto de palha, mas espaçosa demais para poucas pessoas viverem.

Sinal de que ali já viveu uma grande família.

— Bem, tudo aqui é de sua dinastia afinal das contas. – Mordecai apontou o óbvio, pois mesmo sendo andarilhos tanto Loki quanto Friedrich sabiam como funcionava o sistema feudal. Aquelas terras pertenciam ao lorde, as pessoas trabalhavam para ele e tudo o que produziam era dele, além dos impostos que cobravam pelos equipamentos e moradia. O que se consumia, construía, fazia ou deixava de ser feito era sempre aprovado ou não pelo senhor feudal, que oferecia a escolha de deixar aquelas terras ou enfrentar sua guarda pessoal.

Também não podemos esquecer-nos do dízimo. Alguma parte de toda essa colheita precisa ir para a Igreja.

— Mas que ele não se invente de aumentar o pedágio para o moinho novamente. Os Chambers tentaram isso há dois anos, só que não deixamos ser pisados dessa forma! Colocamos fogo em toda a plantação e apesar das poucas provisões que tivemos naquele ano, eles aprenderam a lição de não piorar o que já está ruim. – Disse Isolda com revolta, recebendo um aceno de orgulho do irmão.

— Vocês tem mesmo certeza que não querem permanecer com a bebida, já que lhes é oferecido tão pouco? – Friedrich questionou, pois haviam ganhado uma garrafa de cerveja como pagamento. A senhora Cristine que Loki havia curado não era daquela família, mas como não possuíam economias a família de Isolda havia oferecido o pouco que tinham para ajudar.

— Imagina. Se não fosse para vocês seria para qualquer outro. Ninguém mais bota álcool nessa família, nosso pai morreu ao cair bêbado em cima de um ancinho.  Ficamos mal falados desde então. Agora pra eu conseguir a aprovação do Lorde pra me casar com minha Rosemary preciso estar limpo igual um anjo. – Contou Mordecai com um sorriso bobo no rosto.

— Além do mais, devíamos para a família de dona Cristine. Ajudaram-nos a completar o trabalho de Heitor nos dias que esteve fora da vila para caçar cervos. – Isolda disse dando uma cotovelada no marido escondido por baixo das longas abas do chapéu. – Não é mesmo querido?

— Aham. – O homem resmungou, abaixando mais ainda a aba para não ser interrompido em seu precioso sono.

— Está noivo então? Minhas felicitações! – Disse Friedrich que era sempre mais comunicativo, enquanto Loki se punha a fazer caretas para a criança que ria baixinho sem que ninguém desconfiasse dos dois brincalhões no meio daquela conversa entediante.

— Quase noivo! Já pedi a mão dela e ela aceitou, Deus foi bom comigo em ter uma mulher maravilhosa daquela gostando de um homem sem graça como eu. Pedi permissão da família e eles também aceitaram, agora só falta o consenso do Lorde Chambers. – Mordecai dizia acalorado, com um sorriso que ia de uma ponta de uma orelha á outra, revelando que não faltava apenas um e sim três dentes em sua boca. Um dominado pela cárie, outro por morder um osso mais duro que parecia e o último por um soco do pai numa briga.

— Que Deus abençoe os dois, é só por em suas mãos e ele o fará. – Friedrich disse fazendo com que um coro de Amém fosse seguido por todos, menos Loki e a criança.

Nesta noite foi permitido que dormissem em sua casa e mesmo não tendo colchões de palha sobrando, sentiam-se mais seguros dormindo com um teto sob suas cabeças. Loki verificava se nada havia sido roubado das bolsas – coisa que ele fazia com frequência – enquanto Friedrich fazia suas orações rotineiras.

— Me sinto nu sem meu manto, sempre demoro a me acostumar no verão quando fica muito quente para usá-lo. – Loki comentou encarando a veste colorida dobrada em meio aos seus frascos de medicamentos. Virou o olhar em direção a Friedrich que parecia hipnotizado pela garrafa de bebida que segurava, sem dizer nada. – Está me ouvindo?

— Desculpe? – Os olhos azuis se viraram confusos, iluminando por alguns segundos a visão de Loki. Não havia nada além da luz da lua que clareasse o ambiente, por isso viam apenas simples formas um do outro. – Disse alguma coisa Loki?

— Está segurando a garrafa? Se quiser pode beber. – Ambos falavam baixo, para não incomodar as pessoas que dormiam a alguns passos dos dois no outro extremo da moradia.

— B-bem, apenas se dividíssemos, afinal foi você que curou Cristine. E-eu não tenho o direito de... – Friedrich começou a dizer nervoso, mas foi interrompido com Loki tirando a garrafa de sua mão bruscamente e retirando a rolha, fazendo com que o som se espalhasse pelo ambiente e alguém adormecido se revirasse por conta do barulho. Loki virou a garrafa, sentindo o gosto amargo da bebida descer para seu estômago, em seguida a estendeu para Friedrich.

— Pronto, pode beber. – Disse com um sorriso no rosto. Friedrich pegou a garrafa com timidez, mas quando deu o primeiro gole um sorriso involuntário surgiu em seu rosto. Mesmo no escuro Loki fitou admirado o rosto de felicidade genuína de Friedrich, com um sorriso puro que revelava até os dentes que sempre tentava esconder, os olhos azuis faiscando no meio do breu.

— Não me digas que é um beberrão. – Comentou tentando desviar seus pensamentos insolentes.

— Não diga tolices Loki. – Friedrich disse com falsa mágoa. – Está bem, admito que a adega do mosteiro me faz um pouco de falta. Mas não sou bêbado! Não nos é... Era permitido beber além da conta, por isso nunca peguei o hábito.

— Está bem, acredito em você. – Disse tentando controlar o riso para não despertar ninguém. – Ao menos descobri o que fazer para tirar o seu mau humor.

— Ótimo, só preciso descobrir como acabar com sua patifaria. – Retrucou e ambos taparam as bocas para conterem os risos. Conforme a conversa havia ocorrido, acabaram ficando mais próximos um do outro sem que notassem, buscando por uma visão melhor um do outro em meio à escuridão.

Friedrich foi o primeiro a se dar conta disso, sentindo seu rosto enrubescer e ficar grato por estar escuro demais para que Loki notasse. Todavia, ocorreu-lhe uma vontade súbita de segurar a mão do outro, apesar de não enxergar deduzia que estava apenas alguns centímetros da sua. Até chegou a roçar seus dedos, mas a razão gritou em sua mente e rapidamente recolheu sua mão. Acabou sobrando apenas o coração descompassado e a culpa por seus pensamentos impróprios, enquanto Loki apenas imaginava que havia sido um movimento feito por engano.

— Então... Estamos bem? – Loki questionou um tanto nervoso. Friedrich se sobressaltou com a pergunta, estava perdido em seus próprios pensamentos e também não compreendia o porquê de uma questão daquelas.

— Creio que sim. Há algo que lhe incomoda para perguntar-me isso?

— O que lhe falei hoje pela manhã. Mesmo dizendo que não o faria, eu receio que pretenda afastar-se de mim ou pior... Tenho medo de qualquer que possa ser sua reação após pensar mais sobre isso. – A ansiedade de Loki era quase palpável, suas mãos suavam e sentia que até a ponta de seus fios de cabelo tremiam de nervosismo. O silêncio de Friedrich apenas colaborava para seu pânico.

— Loki... Por Nosso Senhor eu imploro para que não se sinta ameaçado por minha causa. – Friedrich estava sério, mas era possível notar certa emoção em sua voz. Ele cerrava seus dentes conforme pensava nas palavras que queria dizer, nos sentimentos que transbordavam nelas. – Mesmo após ir embora do mosteiro eu vivo apavorado. Eu sinto medo das pessoas, o que pensariam sobre de mim, do que fariam comigo. Tenho tanto medo que por vezes não sou capaz de dormir á noite. O que estou querendo dizer com isso Loki, é que eu não quero de forma alguma que você sinta sobre mim o mesmo que eu com os outros, não consigo desejar isso para o maior dos inimigos, imagine para um amigo!

As palavras de Friedrich por mais que trouxessem certa paz para Loki, ao confirmar que realmente não tinha o porquê teme-lo, lhe causavam certa angústia. Era uma daquelas situações que um pedaço do passado do frade era mencionado, porém não explicado.

— Eu lhe assusto? – Questionou intrigado e pode perceber que Friedrich se remexera incomodado com a pergunta, demorando certo tempo para responder.

— Eu não sei... É difícil explicar.

— Pois não devia. – Loki colocou suas mãos nos ombros de Friedrich, fazendo com que ele se sobressaltasse com a ação, sentindo seu corpo estremecer com o gesto inesperado. – Se é capaz de tolerar alguém como eu, que é tudo o que condena, com toda a certeza posso compreender seja lá o que tanto esconde.

Friedrich sentia alguma coisa se iluminar em sua alma, algo que há muito estava na completa escuridão como aquela noite. A capacidade de crer na caridade alheia, a esperança da bondade humana.

— Eu direi, prometo que um dia eu serei capaz de explicar o que aconteceu. – Falou determinado. Pode ver na luz fraca um singelo sorriso de Loki que dizia em silêncio que teria toda a paciência do mundo para esperar por isso.

Mas havia uma voz em Friedrich, que apareceu em seus pensamentos como um fantasma no meio da noite, sussurrando como pragas.

A menos que se torne tarde demais para qualquer explicação.

Será catastrófico.

Sabe que não pode controlar isso.

Estou condenado desde o princípio.

Friedrich não conseguiu dormir aquela noite.


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Notas finais do capítulo

Aquele contexto básico de sempre: Não há como saber certo se todas as regiões em que viviam os celtas aceitavam a homossexualidade, entretanto há alguns registros feitos por gregos e romanos de que diversas tribos não possuíam nada contra.

Sei que tá todo mundo curioso sobre o que o Friedrich tem e eu só estou aguçando mais essa curiosidade, mas tenham paciência meus caros, logo tudo fará sentido ^-^
Se gostaram comentem! Nos vemos no próximo capítulo!



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