Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 45
O Alquimista e o Arcanjo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/754466/chapter/45

Existe uma linha muito tênue entre ser gentil e ser inocente. Pois ser caridoso não significava ignorar toda a maldade do mundo, mas combate-la, estender a mão para os odiosos não era estar sendo complacente com suas atitudes, espalhar a bondade não era o mesmo que ser ingênuo e tolo. Frei Michael sabia muito bem disso. Assim, ele tentava ser um homem bom todos os dias quando acordava, porém não deixava seu senso crítico ser abalado.

Sendo assim, Michael sabia que havia algo na história de irmão Friedrich que não o convencia.

Havia se simpatizado com ele a princípio. Friedrich era um homem reservado, mas dotado de uma amabilidade cativante e de um dom pela caridade que foi provado tão logo havia se apresentado, ajudando o convento e seus feridos mesmo em meio à própria dor. Além do mais, irmão Lazarus havia gostado dele e finalmente teve com quem dividir o entusiasmo pela ciência. Para Michael um amigo de um de seus irmãos sempre era seu amigo também, e alguém plácido como aquele inglês não era difícil de chamar de irmão também.

Quando Friedrich relatou sua triste história sobre seu antigo mosteiro, Michael também se compadeceu com sua do, onde apesar de estranhar que ele não tenha revelado aquilo tão cedo, imaginou a princípio que era por conta de seus próprios medos devido á experiência traumática. A história de Friedrich poderia fazer sentido, mas a intuição de Michael começou a criar suspeitas de que havia algo em seu discurso sendo escondido a partir dali.

Com o passar dos dias, Friedrich havia permanecido com a mesma postura serena e muito devota, pondo para dormir parte de suas suspeitas conforme era enlaçado pela sua simpatia e a amizade que se formava. Ele ajudava o convento sem buscar nada em troca, além de ensinar á Lazarus o conhecimento que nenhum deles era capaz de oferecer, fazendo-o só pelo simples prazer de ensinar. Acreditando por fim que sua desconfiança anterior eram infundadas,  Michael acabou por até oferecer ajuda pelo amigo que Friedrich parecia tanto prezar, crendo que ele merecia ter a mão estendida depois do que fez por todos eles.

Foi a partir dali que as suspeitas de Michael retornaram, agora com ainda mais desconfiança.

Algo não se encaixava naquela história do amigo prisioneiro. Naquele ponto, se fosse realmente um crime leve ele já teria recebido sua punição e possivelmente sido libertado. Se fosse participante dos rebeldes, não havia o porquê de Friedrich esconder tal informação deles que não julgavam camponeses famintos. Michael concluiu que teria de ser um delito grave, algo que se provou quando frei Raphael lhe relatou completamente extasiado que Friedrich havia tido a coragem de conversar com ‘’O Bruxo’’.

Não havia qualquer motivo para o beneditino ter feito aquilo, pois ele havia aceitado o trabalho apenas com o interesse de encontrar o companheiro, logo, o herege teria de ser quem Friedrich procurava.

Frei Michael não conseguia compreender por que alguém como Friedrich que parecia ser tão devoto quanto eles estava envolvido com um condenado por heresia. Mas quiçá devesse ter desconfiado desde o princípio ao ver o quão instruído da alquimia ele era. Lazarus sempre lhe dizia para que não tivesse preconceitos com os estudos eruditos e por isso relevava os estudos do amigo, mas naquele momento sentiu que todas suas desconfianças se provavam verdadeiras. Teria de conversar com irmão Lazarus para que ele revesse seu interesse por tais artes sombrias, mas isso ele faria depois que resolvesse o problema com o intruso.

Só não sabia como prosseguir com tais suspeitas. Deveria avisar ao Abade Ezéchiel? As autoridades? O Santo Ofício? Não sabia, por que apesar de tudo, Michael não queria ser injusto, pois por mais provas que tivesse em suas mãos quanto aos segredos de irmão Friedrich, elas ainda não passavam de suspeita. Ele temia levar qualquer alma inocente – ou não – para as penitências terríveis que a justiça ordenava, quando apenas Deus era o verdadeiro Juiz do mundo. Por um tempo, Michael se pôs apenas a refletir sobre o que faria com tais informações, chegando à conclusão que antes de qualquer atitude mais drástica, uma conversa com Friedrich se fazia necessária para esclarecer melhor o que se sucedia.

Não sabia que momento seria oportuno parar abordar irmão Friedrich, mas gostaria de fazê-lo sem a presença de outros irmãos. Contudo, o conceito de privacidade em um convento era um tanto limitado, com os frades sempre fazendo todas as atividades em conjunto e estando sempre um próximo do outro. Os únicos instantes em que ficavam sozinhos era quando se isolavam por penitência ou na hora em que se recolhiam para dormir. De tal forma, Michael decidiu por abordar o beneditino em seu claustro, quando dessem as horas das Completas, mesmo que desobedecesse ao toque de recolher. Michael acreditava que Abade Ezéchiel e Deus o perdoariam por tal falta se fosse por um bem maior, compensaria com alguns rosários depois.

Ao sair de sua cela sorrateiramente, frei Michael encolheu-se dentro das próprias vestes remendadas e se arrepiou por inteiro ao sentir o frio nos pés descalços, ficando tentado em simplesmente voltar para seu leito. Contudo, prosseguiu em sua missão determinado, não sendo uma noite fria a lhe impedir de buscar respostas. Aqueles eram anos sombrios de toda forma, onde mesmo no aurore da primavera ainda se encontravam vestígios do inverno e do gelo, enfraquecendo as plantações e causando a Grande Fome que se alastrava pelos reinos quase tão rápida quanto a temível peste.

Andou até os corredores das celas de visitantes, parando diante da porta de Friedrich e batendo educadamente, esperando por uma resposta. Contudo, ninguém lhe atendeu, dessa forma, tentou outras duas vezes para ter certeza de que Friedrich realmente não lhe ouvira ali de dentro.

— Irmão Friedrich? Está aí? – Indagou num sussurro gritado, pondo os ouvidos contra a porta em busca de qualquer sinal de vida do outro frade. Ao não perceber qualquer movimentação, decidiu por fim abrir a porta – algo fácil em um convento, visto que frades nunca trancavam as próprias celas.

Frei Friedrich não se encontrava ali.

Tudo estava em seu devido lugar e intocado, como se ninguém tivesse passado os últimos dias no cômodo. O colchão de palha estava com os lençóis arrumados, os cobertores extras dobrados em cima junto de uma veste de dormir, a bacia e jarro de latão para toalete estavam limpos e secos no chão, somente com a companhia da cruz de Cristo pregada na parede a vigiar em silêncio. Frei Michael até deu alguns passos dentro, procurando qualquer vestígio de Friedrich, atônito com seu desaparecimento súbito.

Ele franziu o cenho, piscando bem os olhos para que entrasse em foco novamente. Se Friedrich não estava ali e deixara tudo tão em ordem, só podia significar que estava indo embora, de maneira sorrateira como um ladrão malicioso, denotando ainda mais suas atitudes dúbias da qual o franciscano suspeitava até então! Contudo, as Completas haviam se passado há pouco tempo, de tal forma, Friedrich ainda tinha de estar no mosteiro ou aos seus arredores.

Michael não perdeu tempo, rumou para o primeiro lugar que veio em sua mente quando se pôs a pensar onde Friedrich poderia estar: a biblioteca, mais conhecida como ‘’O laboratório de Lazarus’’. Pegou o lume do quarto, correu o máximo que podia para ainda permanecer silencioso e não apagar a vela, descendo as escadas pulando degraus e percorrendo os corredores do convento olhando vez ou outra pelas janelas caso flagrasse-o fugindo.

Conteve os passos assim que se viu diante da entrada da sala, espiando entre a porta para ver se sua dedução estava correta. E estava. Friedrich assim como ele encontrava-se de lume na mão, silencioso e muito apressado. O beneditino realmente planejava uma fuga!

Surpreso, mas muito curioso Michael se pôs a observar o que ele tramava antes de tomar qualquer atitude, querendo compreender o que ele fazia pelas sombras. Todos os instrumentos alquímicos estavam amarrotados na mesa de madeira, com potes e vasilhas repletos de plantas, minerais e outros elementos, junto de pergaminhos a ornarem aquele pequeno pedaço de caos. Mas seja lá que tipo de feitiçaria Friedrich realizava, já estava completa, visto que ele começava a limpar e colocar tudo em seu lugar de forma desajeitada por conta de sua pressa. Por fim, Friedrich pegou seus velhos pertences e guardou dentro da bagagem um frasco de vidro, preparado para partir.

Ah, não. Ele não vai! Frei Michael pensou, já sentindo o rosto vermelho de ira.

— Eu sabia! – exclamou, revelando-se por fim e dando um susto em Friedrich que tapou a própria boca para conter um grito. – Sabia que estavas escondendo algo! E não apenas isso, como está fugindo para ajudar teu amigo herege depois de ter usado de nossa boa vontade.

Friedrich ficou perplexo, abrindo a boca para defender-se, mas não conseguindo num primeiro momento retrucar nada com tanta surpresa e pavor trancando sua garganta, encarando com pesar os olhos escuros de Michael tomados de ira e desapontamento. Por fim deu um suspiro resignado.

— Ah frei Michael... Ainda que a história fosse tão simples assim!

— Que sejas! Posso não saber o que se passa inteiramente contigo, mas sei que mentiu para mim e para cada um dos irmãos que aqui vivem! Tu quebraste nossa confiança, traíste toda amizade cultivada que tínhamos, profanou este lugar com teus planos mesquinhos. Por acaso há qualquer explicação que seja capaz de justificar tamanha desfeita?! Agora chego a duvidar que tu sejas realmente frade! – Frei Michael continha-se para não gritar, não somente por ser inadequado para um monge, como por não desejar realmente brigar com Friedrich, mas naquele instante as emoções afloravam em sua pele que já não sentia o frio da noite. Friedrich encolhia-se e tinha os ombros tensos conforme ouvia as represarias, com um olhar culpado de uma criança que aprontara e fora pega pelos pais.

— Eu sinto muito irmão Michael por qualquer ofensa que tenha sentido por minha culpa, contudo, hei de me explicar que nunca menti para nenhum de vocês. Omiti, sim, isso eu o fiz pelo meu próprio bem e de meu companheiro que me espera nas masmorras, mas jamais teria conseguido enganá-los á esse ponto depois de toda piedade que me foi oferecida... E sim, eu realmente sou consagrado frade beneditino, por mais que não vista mais o hábito e nem pratique mais os preceitos da ordem além da fé em Deus. Pois antes de conhecê-los me vi completamente excluído do ofício como bem relatei, me vendo desencantado pela vida monacal... Agradeço por terem sido capazes de me provar que ainda há piedade em meio aos mensageiros de Deus, contudo, há tempos este deixou de ser o meu lugar. Eu preciso voltar para Loki, antes que o queimem de forma injusta como um dia teriam feito comigo.

Encararam-se por um breve instante, tendo frei Michael ficado completamente incrédulo com as palavras de Friedrich. Mesmo encurralado ele estampava o mesmo olhar sereno de sempre, como se não houvesse qualquer arrependimento em sua alma, os olhos azuis não lhe encaravam com ira ou frustração por estar impedindo-o, e sim estampando a mesma bondade de sempre.

— Eu... Eu não entendo. – replicou, franzindo o cenho completamente inconformado. – Diz que se sentiu tocado por nosso acolhimento, mas então por que nos dá as costas? Por que não retorna ao clero regular agora que possui a chance de retornar á vida santa, ao invés de seguir como um leigo em pecado? Não crê que este possa ser o verdadeiro plano de Deus, de lhe fazer voltar á sua verdadeira casa?

— Quiçá seja Michael, não hei de discutir os planos de Deus. Contudo, nunca me perdoarei e estarei em paz se dar as costas para a pessoa mais bondosa e querida que conheci em minha vida, o primeiro e único a me estender a mão quando todas as portas fecharam-se para mim. Tu não farias isso por alguém que ama? – Friedrich suplicou, deixando o frade sem palavras para retrucar. Michael sabia que deveria responder que faria qualquer coisa que fosse a vontade de Deus, porém, estaria mentindo, que o Altíssimo o perdoasse por tamanho pecado! Contudo, Michael sabia que por maior que fosse sua fé, ela não era tão grande quanto à de Abraão disposto a matar o próprio filho á pedido do Senhor, jamais deixaria um de seus amigos e irmãos na penúria.

Frei Michael franziu os lábios, pensativo e repleto de dúvidas. Tinha que permanecer firme em seu trabalho! Cerrou os punhos e procurou não se abater pelo tom de Friedrich.

— Sabe que não posso deixá-lo ir irmão Friedrich. Por mais nobre que seja tua intenção, ainda não é o certo a se fazer, está indo contra as leis.

— Claro que pode Michael, tu não estarias fazendo nada de errado. Mas se crê que há culpa nessa história, coloque-a toda sobre mim, já não me importo com as leis neste ponto. E sei meu amigo que tu concordas com isso, pois não és injusto. – Friedrich se aproximou devagar, repousando de forma afetuosa uma de suas mãos no ombro de Michael que lhe encarava com receio. – Por favor, Michael. Tenha piedade...

— Não quero ser injusto contigo Friedrich, mas também não posso ser com o convento... – Michael declarou com pesar, mas ganhou do outro frade apenas um sorriso triste e empático.

— Já foram injustos comigo e com meu amigo, Michael. Mas e quanto ao amanhã? Em quem mais pesará a injustiça dos desafortunados? Por quem eles poderão suplicar se não há uma única ode para eles? – Friedrich questionou acometido de grande emoção, onde inevitavelmente Michael lembrou-se de Lazarus. O garoto selvagem que chegou até eles por conta da maldade humana, e do homem sereno que se tornou, mas que ainda assim era excluído e desrespeitado, fosse pela deficiência quanto pelos seus estudos.

Estes do qual eu próprio julgo Pensou com culpa, as palavras faltando-lhe na boca e já muito distantes.

— Não deixe que façam com ele o mesmo que fizeram comigo. – Friedrich declarou como se lesse seus pensamentos. Quando em realidade, Friedrich somente via a preocupação estampada em seu olhar, assim como percebia o mesmo fado se repetir no jovem rapaz, enxergando-se a criatura inocente e sonhadora que um dia fora muito tempo atrás.

— Não deixarei irmão Friedrich. – Frei Michael aquiesceu por fim, dando um suspiro de exaustão, pois sabia que não seria capaz de prosseguir com aquela discussão. Culpar-se-ia durante toda uma vida se delatasse Friedrich, contudo não o ajudaria por conta de seus princípios.  Apenas lhe daria passagem. – Vá com Deus, meu amigo. Pax et bonum.

Friedrich afastou-se, fazendo uma breve reverência de respeito ao frade, os olhos azuis de bondade estampando toda sua gratidão.

Amem. – Declarou, antes de escapar em meio à noite com sua habilidade de ladino, mas de coração puro.

Por mais que soubesse que não devia, frei Michael torcia por ele.

***

Não sabia dizer o quão vivo ainda estava. Quiçá, só o deixavam somente o suficiente para o que desejavam fazer com ele. Dormia tanto que já não sabia dizer o que era sonho e realidade. Ás vezes ouvia Friedrich com sua voz doce e acalentadora, seu toque cheio de ternura a apaziguar suas dores. Só queria abraçá-lo, perder-se eternamente em seus braços e não dar mais importância alguma para vida longe dele.

Ouviu que tudo ficaria bem e deixando-se levar por aquele sonho, acreditou por um breve instante que sim.

Algo foi forçado em sua garganta, um líquido espesso, amargo e que queimava suas vísceras. Incomodado, ele abriu os olhos por um instante, crendo ter visto os fios de palha á sua frente, que tão brevemente apareceu, também sumiu.

Sua consciência sucumbiu mais uma vez. Preferia os sonhos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

As Completas são as horas em que os monges se retiram para dormir. Entre seis até oito da noite.
Preparados para o último capítulo? Comentem o que acharam e nos vemos em breve com o final!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ode aos desafortunados" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.