Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 44
O Beneditino e os Franciscanos




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Ao chegar o dia de visitarem as masmorras e ‘’guiarem os condenados até o caminho de Deus’’, Friedrich tornou-se exultante, tendo que se conter para não soar tão óbvia sua ansiedade e acabar entregando o motivo para tanto ânimo. Não desperdiçaria a ajuda que havia recebido de frei Michael, da qual era tão grato.

Em seu antigo mosteiro, os monges marchariam juntos de um lugar para o outro em grupo, mas em completo silêncio e de olhos vidrados no chão, sequer olhando uns para os outros enquanto vagavam quase que como fantasmas pelas redondezas, símbolos da austeridade e do compromisso com Deus. Porém, os franciscanos possuíam modos diferentes, onde apesar das ordens conventuais parecerem todas iguais para os leigos, havia aquelas pequenas diferenças que entre eles parecia mudar tudo.

 Eles continuavam silenciosos e contidos como quaisquer frades, mas olhavam-se nos olhos, conversavam aos sussurros e por vezes até se podia ouvir um breve riso aqui e ali, deixando o beneditino um tanto desconcertado e até mesmo surpreso com tal ‘’liberdade’’. Pois por mais que tivesse deixado a vida clerical para trás e já não exigir de si tamanho comprometimento, naquele breve instante de retorno à santidade Friedrich sentiu-se um tanto deslocado da ordem mais recente do catolicismo, por esperar a mesma severidade de seu tempo de frade beneditino.

Não que os franciscanos tivessem uma rotina mais branda que outras ordens, eles apenas eram severos em pontos diferentes, como a pobreza extrema que tanto os caracterizava e o trabalho constante com os mais desfavorecidos. Dessa forma, eles possuíam a habilidade de andarem entre o povo de forma silenciosa e sem causar alvoroços, como geralmente acontecia na mistura de classes distintas, pois os franciscanos estavam em constante contato com a plebe. Estando entre eles, Friedrich estava praticamente invisível aos outros, tendo a vantagem de não chamar quaisquer atenção a mais que pudesse impedir seus planos.

E passando pelo povo, também conseguiam passar pelos muros que poucos tinham acesso. Ao adentrarem a casa de guarda, Friedrich sentiu um tremendo pavor ao passar pelos cavaleiros, com um medo esquisito de que suspeitassem de si por mais bem camuflado que estivesse, sentindo a tensão travando seus ombros conforme passava por seus olhares atentos por baixo dos elmos.

A fortificação dos Castel era de uma arquitetura composta de torres largas e cilíndricas, típicas das construções do século XII, de altura mais compacta do que as construções mais modernas, com poucas e pequenas janelas a espiarem por trás dos paredões de pedra. Era um edifício com o propósito de possuir uma estética mais ameaçadora e robusta do que bela, criando um ambiente tomado por temor e reverência.

Atravessaram o pátio na companhia de um padre de confiança da família nobre e uma dupla de cavaleiros, subindo as escadas de um dos edifícios a formarem o castelo, em sua porção mais próxima das muralhas do que do grande hall principal, andando por corredores labirínticos ainda escuros pela pouca luminosidade em plena manhã. Havia alguns candelabros, brasões e tapeçarias a ornarem o ambiente, mas assim que tomaram uma escadaria que progressivamente tornava-se mais estreita, começaram a se ver em paredes nuas de pedra a se fecharem cada vez mais ao redor do grupo, causando uma sensação angustiante que se intensificava com a escuridão que naquele ponto já era um completo breu, guiando-se somente pelas tochas que os cavaleiros á frente deles levavam.

Os calabouços eram vastos, tomando grande parte do subsolo do castelo, mas formado por corredores de masmorras que tornava o ambiente fechado e desolador, com as tochas espalhadas tendo de lutarem com suas chamas contra a escuridão profunda a tomar o lugar. Era difícil de respirar devido ao ar quente e abafado, recebendo vez ou outra alguns pingos de água na cabeça que vertiam das pedras úmidas do lugar feito uma caverna.

Adentrando as masmorras, havia dezenas de figuras que lembravam superficialmente pessoas, seus corpos físicos estavam ali presentes, mas a alma já parecia ter se esvaído. Ao ter a humanidade retirada de seus olhos, todos pareciam iguais um do outro. Sujos, maltrapilhos, feridos e ferozes, estavam amontoados como animais são postos em um celeiro durante o inverno, mas acorrentados á ferros que se arrastavam em meio à sujeira e a pouca palha no chão.

Friedrich já havia presenciado e vivido a miséria de tantas formas em sua vida, que muitas vezes sequer chocava-se mais com a sociedade execrável em que vivia. Contudo, naquele instante, ele sentiu um misto de repulsa e pêsame por aqueles condenados, martirizando-se ao imaginar o estado em que poderia encontrar Loki.

Rondou pelas masmorras junto aos monges, sempre procurando pelo companheiro, mas inevitavelmente acabou conversando com alguns dos condenados, não apenas para fazer seu papel em meio aos frades, mas por sempre se compadecer facilmente pelos outros. Havia todo tipo de prisioneiros ali, mas a maior parte havia aparecido devido à revolta. Friedrich até encontrou alguns de seus velhos companheiros médicos, sentindo-se compadecido por eles, mas também temeroso que o reconhecessem. Contudo, quiçá jamais imaginassem que o Friedrich que conhecesse pudesse ser um frade, percebendo alguns olhares de surpresa e indagação, mas que provavelmente não passou de um breve pensamento de ‘’Aquele monge é muito parecido com o mestre Friedrich.’’

 Muitos dos condenados tentavam suplicar dizendo-se inocentes, enquanto alguns poucos adeptos mais ferrenhos da revolta apenas execravam ainda mais os nobres que antes serviam. A maior parte sequer sabia quais seriam suas sentenças, mas o medo da decapitação que estava sendo dada aos lideres da revolta causava grande pânico entre eles que temiam serem levados juntos para tal fado.

Havia um cheiro pútrido, que destoava do restante dos outros odores de imundície do lugar. Um que Friedrich conhecia muito bem, ficando alerta e começando a procurar entre todos aqueles homens.

Ali estava, a peste.

É claro que sem o hospital, com todos aqueles dias sem um único controle, ela havia encontrado o seu jeito de se reestabelecer mais uma vez. Pelos cantos, os prisioneiros tomados pela peste gemiam de dor e tossiam sofregamente, em meio de todos os outros. Friedrich olhou para aquilo completamente atônito e revoltado, virando-se para frei Pepin.

— Há pestilentos aqui, eles não podem ficar junto aos outros! – Disse em tom de alerta, mas recebendo apenas um suspiro consternado do outro frade.

— Por aqui eles querem que ela se espalhe. É o castigo.

Friedrich ficou espantado, olhando para aquela praga aproveitando-se das condições para se espalhar, sem poder fazer absolutamente nada para impedi-la e não ter voz para atenuá-la. Por um instante, quase se esqueceu de seu motivo de estar ali, tomado por seus pensamentos de médico. Contudo, se não poderia salvar todos, que ao menos pudesse ajudar um.

Friedrich prosseguiu a se focar em sua busca, não se atentando nos prisioneiros por muito tempo como o restante dos outros frades – que deveriam não só acalmar os temores dos prisioneiros, mas principalmente tentar induzi-los á uma confissão –, contudo, não conseguia encontrar Loki em nenhuma das masmorras da qual percorria. Com o tempo, passou até a temer soar tão óbvio que estava procurando por alguém, indo de um lado para o outro, por isso resolveu indagar de uma vez para frei Raphael.

— Esses são todos os condenados a serem expiados?

— Quase todos. Os condenados á morte por traição estão nas solitárias mais ao fundo, mas também há até mesmo um condenado por bruxaria! Deus que nos perdoe, mas nenhum de nós está com coragem de encará-lo! Quiçá se irmão Michael estivesse aqui, que é mais valente, mas mesmo assim... Ouvi dizer que o bruxo é violento e tomado de sortilégios.

Friedrich não precisava saber de mais nada.

— Onde ele está?

***

Se não se mexesse, a dor tornava-se quase amena. Por isso tentava não mover um único músculo, contendo até a própria respiração se preciso. Com o passar do tempo, a dor nos braços passou, pois já havia parado de senti-los depois de tanto ter eles presos para cima, porém, os tornozelos e os joelhos ainda doíam caso tentasse se reerguer.

Encontrava-se sozinho no meio da escuridão, não sabia para onde havia ido o judeu que antes lhe acompanhava. Perdeu a noção do próprio tempo, não sabendo quantos dias ou horas se passaram, se amanhecia ou anoitecia, acabando por dormir – ou desmaiar – por quase todo período. Vez ou outra alguém aparecia para lhe forçar a tomar um caldo grosso e intragável, mas permanecia na míngua a maior parte de seu cárcere.

Já não sentia tristeza, nem esperança. Estava em um estado de completo torpor em que só esperava pelo próprio corpo sucumbir. Preferia perecer longe de seus algozes, tal como um dia costumava nunca mostrar as lágrimas aos deuses, não querendo dar o gosto da vitória para que usassem sua morte como um espetáculo. Não temia a morte, somente o fogo, com a imagem da pira em sua mente causando-lhe arrepios de pavor e lembranças pavorosas que o acompanhariam para sempre. Se havia algo da qual ainda se humilhava a pedir para os deuses, é que não fosse forçado a encarar as chamas.

A porta de sua masmorra abriu-se, rangendo os ferrolhos centenários e deixando uma mínima luz das tochas de fora entrar, fazendo-o fechar os olhos no mesmo instante para não sentir a pontada na visão desacostumada com a iluminação.

— Oh Deus... – Por um instante, Loki pensou ser somente a voz de seus próprios pensamentos, conformando-lhe com a voz do amado naquele momento tão tempestuoso e sem esperanças. – Então é verdade, realmente estás aqui...!

Loki abriu os olhos lentamente, não sabendo se o que tinha diante de si não passava de uma mera miragem fruto do desespero e da loucura de um homem condenado. Afinal, como poderia ser possível a presença de Friedrich naquele lugar sombrio, feito com sua dor e amarrado pelos seus medos, quando ele lhe era toda a luz e felicidade em sua vida? Completamente enfeitiçado e surpreso, Loki observou aquela figura que lhe causava dúvidas quanto à própria sanidade.

Pois aquele não era qualquer Friedrich, mas o retrato fidedigno de como ele havia aparecido em sua vida. Estava vestido do hábito religioso grosso e largo por todos os lados, tornando a figura do homem escondida e mirrada em meio aos panos, com a tonsura da cabeça a sinalizar sua posição clerical. A imagem alta e serena de Friedrich era parcamente iluminada por uma vela que ele trazia em um castiçal, revelando parte de seu rosto pálido e dos olhos azuis bondosos, estes em que Loki desejava mergulhar para todo sempre por já conhecer o conforto que aquele simples olhar o trazia.

Nada saiu de seus lábios, pois estava certo que se tratava de apenas uma peça pregada por sua mente nem tão lúcida, encarando a assombração emblemática á sua frente de forma apática.

— Como viestes parar aqui? Oh Deus, quão maltratado o deixaram... – Disse Friedrich lamurioso, aproximando-se gracioso como sempre mesmo naquele instante de completa penúria e tormento, tocando o rosto de Loki com cuidado e o fazendo despertar por fim de seus sonhos lúcidos. Sentiu por fim o toque quente da palma do amante, seus dedos a lhe amaciarem a barba e o afeto pungente passar para sua pele, lembrando-o de que ainda não estava morto e provando-lhe que aquele Friedrich era real.

Um breve instante de paz e candura aqueceu seu espírito ferido, tendo por fim a visão do amado que tanto desejava ter por perto. Contudo, logo tornou-se inquieto novamente, apavorando-se ao ver Friedrich da qual tanto almejava proteger estando presente naquela masmorra terrível ao seu lado.

Não, não... Que está fazendo aqui? Saia logo desse lugar, não sejas estúpido Friedrich...! – Falou ríspido e ansioso para Friedrich que não pareceu se abalar nem um pouco com suas palavras rudes.

— Estou seguro Loki, não me pegarão dessa forma. Vim buscá-lo, não suportarei vê-lo de tal forma por muito mais tempo.

 – Não, não pode! , antes que o peguem também. – Loki clamou numa voz agressiva, mas com um sofrimento ao fundo que apunhalou certeiro como um florete o coração de Friedrich que tanto já se abalara ao ver o estado do companheiro.

— Não! Recuso-me a sair daqui sem ti. – Friedrich retorquiu resoluto. – Afinal, por que foste preso? Que está fazendo aqui Loki?

Ao encarar Loki com mais atenção, percebeu como seus olhos estavam apagados e sem vida, temendo assim a resposta que teria.

— Eles me descobriram Friedrich. Pior, Descobriram-nos. Não sei como foram capazes, mas fui estúpido e deixei ser pego por um soldado que acabei enfrentando... Desculpe-me Friedrich... Eu estraguei tudo, sinto muitíssimo por isso. – Disse de uma forma chorosa que não lhe era característica, mas fruto de quem já estava no mais fundo dos poços.

— Não diga tolices Loki, que estás dizendo? Ao que foste condenado afinal?!

— À pira.

Silêncio.

Encararam-se sem dizer palavra alguma, apenas deixando a palavra pira pairar sobre eles. Assombrando-os, quebrando seus corações em milhares de pedaços como o vidro se estilhaça em cacos no chão.

Friedrich por fim compreendeu inteiramente o olhar desolado e sem esperanças de Loki. Era ali que tudo se acabava, não havia nada o que ser enfrentado, pois ninguém vence a própria morte. Tentou imaginar o quão destroçado o druida estaria, onde não somente estava fadado à pena máxima, mas a também morrer pelo seu maior medo. A ânsia em prosseguir com seu plano de fuga se fez ainda mais urgente, fazendo-o se atropelar nos próprios pensamentos enquanto tentava pensar em qualquer coisa que pudesse salvá-los daquele destino horrível.

Olhou as correntes presas aos pulsos do druida a deixarem a pele em carne viva, fortes e inquebráveis para suas mãos fracas e desarmadas, ouviu os passos dos soldados e dos outros monges pelos corredores e lembrou-se de toda a extensão dos calabouços a não possuírem uma única janela, um único atalho ou porta dos fundos. Não havia fuga possível que pudesse pensar, nenhuma chance pelo menos remota para que pudesse escapar junto ao amado, por mais gatuno e sagaz que fosse, Friedrich começava a se desesperar ao perceber que não havia forma de levar Loki com ele.

— Não posso deixar que o levem...! – Disse nervoso, analisando as correntes robustas e somente se frustrando ao não conseguir pensar em nada que os ajudasse. Havia chegado tão longe, onde por mais que tivesse agido mais no improviso do que de forma orquestrada, esperava que sua experiência em tantas fugas pudesse lhe dar uma luz naquele momento.

 – Friedrich... Por favor, deixe-me. – Loki declarou da forma mais tranquila que era capaz naquele instante. Estava assustado, no ápice do pânico e desespero, mas lutava contra o próprio espírito para que conseguisse pelo menos salvar o único que lhe importava ainda vivo naquele mundo.

Jamais irei deixa-lo! Como poderia? Como?!— Retorquiu choroso sentindo o horror da impotência, não sabendo como seria capaz de dar as costas e deixar Loki daquela forma sem quaisquer perspectivas de salvá-lo. Agarrou-se ao corpo ferido e maltrapilho do companheiro, soluçando em um pranto baixo e sofrido, preferindo ficar ali sem qualquer dignidade e arriscando a própria vida do que ter de deixar o amado para trás. Pois se não podia tirá-lo do cárcere, desejava permanecer com ele.

— Friedrich... – murmurou sentido, amaldiçoando as correntes que prendiam seus braços para cima e o impediam de abraçar o companheiro desolado. Sentia um nó doloroso se formar em sua garganta, franzindo os lábios e fechando os olhos por um breve instante para tentar conter seu lamento. Uma parte de si queria Friedrich ali consigo, para ser tomado por seu conforto e companhia, porém, sabendo o quanto isso custaria, negava seu próprio pavor e solidão pelo bem dele. – Nós tentamos, mas eles nos pegariam uma hora ou outra... Estou condenado, mas não tu! Não foste fácil fazer com que eles não fossem atrás de ti, por isso não faças meu sacrifício ser em vão meu amado, imploro-te para que ao menos um lado dessa história possa prosseguir contando-a.

Por mais assustado que tivesse ficado ao ver Friedrich naquele lugar tão nocivo, por um lado agradecia aos deuses de lhe darem a chance de vê-lo uma última vez. Havia se surpreendido ao encontrá-lo de hábito religioso depois de tanto tempo, algo que se tornou um medo em seu interior desde que se aproximaram, onde a princípio pensou que havia sido confirmado seu medo de que em qualquer oportunidade que surgisse Friedrich retornaria á vida religiosa. Contudo, Loki já não se importava mais tanto com isso quanto imaginou que ficaria. Sentia sim uma ponta de mágoa, mas conseguia ver algo de positivo em ver Friedrich como frade mais uma vez, pois pelo menos ele não ficaria sozinho em sua partida. Sabendo disso e podendo sentir um pouco de seu calor para se despedir, quase podia esquecer-se da pira que lhe aguardava para partir.

 – Não vou deixar que o queimem. Não irei Loki, eu juro por tudo que é mais sagrado. – Friedrich falou ainda resoluto, numa determinação estampada nos olhos chorosos que quase faziam o druida crer que ainda havia esperanças para ele.

— Tu és a maior benção que já tive em minha vida, Friedrich. – Ignorando as palavras de Friedrich que insistiam na negação do que ocorria, Loki declarou com um sorriso fraco e triste, fazendo a visão do frade embaçar-se com as lágrimas mais uma vez.

— Não faças disso uma despedida... Pois ainda hei de buscá-lo Loki. – Friedrich retrucou ainda irredutível, tocando suas testas em um gesto singelo de afeto antes que fosse capaz de tomar a coragem de deixar o amado nas masmorras. Pois sabia que se ficasse muito mais tempo ou seria descoberto pelos guardas e frades, ou simplesmente se entregaria á morte junto ao companheiro.

Com muita luta e pesar, Friedrich saiu sussurrando infinitos ‘’sinto muito’’, mas só tinha como resposta o sorriso amável e melancólico de Loki em sua direção, deixando-o ainda mais culpado na partida.

Ali fora Friedrich estremecia, sentindo o coração quebrado em milhares de cacos no chão. Respirando fundo e engolindo tudo o que sentia, secou as lágrimas rudemente antes de retornar aos monges da maneira mais plácida que era capaz naquele instante. Porém, mesmo que se afastasse, ainda era capaz de sentir a presença de Loki á muitos passos de si, preso naquele buraco de desolação e tormento, onde podia imaginar toda sua angústia e desespero como se suas almas prosseguissem ligadas, clamando num canto triste pela companhia um do outro novamente.

— Por Deus, tu foste corajoso irmão! Estás realmente bem depois de ter estado de face com o mau? – Frei Raphael indagou num misto de curiosidade e surpresa, notando o olhar estranho de Friedrich, mas imaginando ser por conta da terrível experiência de enfrentar um condenado por bruxaria.

— Sim... Apenas um tanto inquieto. Contudo, era a coisa certa a ser feita. – Respondeu, tentando soar confiante, parecendo convencer o outro frade que não insistiu mais no assunto ao ver seu desconforto. Porém, Friedrich temia que naquele instante de tamanha instabilidade, alguém mais atento pudesse ser capaz de perceber seu real estado.

Será que não deveria ter se despedido? E se tivesse perdido a última oportunidade de dizer para Loki que o amava? Como poderia lidar com tal peso em seu coração? Era o que Friedrich passou a se perguntar durante todo o caminho de volta, junto a toda a tristeza de ver Loki maltratado e de tudo que o impedia de ser livre. Friedrich não queria pensar de tal forma, no momento que falava com Loki, sentiu que se fizesse aquilo estaria aceitando o destino cruel em que foram colocados, por isso negou-se tanto a ver o encontro como uma última vez. Contudo, agora a dúvida lhe corroía, junto a tantos outros pesadelos.

Tornou-se completamente silencioso até seu retorno ao convento, agradecendo pelo papel de frade que fazia e que não lhe obrigava a explicar o motivo de sua solitude. Tudo o que queria naquele instante era isolar-se no claustro e se por á rezar pelo bem do companheiro que precisou deixar nas masmorras. Entretanto, assim que adentrou o velho edifício, frei Michael que tanto lhe foi solícito por sua causa, prosseguia a ser a criatura afável da qual Friedrich apesar de grato, não estava tão disposto a conviver naquele momento tão difícil. Mesmo assim, fingiu um olhar tranquilo e simpático.

— Então, como foste?! Encontraste teu amigo?

— Sim, encontrei. – Friedrich disse, não querendo mentir para Michael e cometer tal pecado depois dele ser tão solícito e amigável, não conseguindo esconder inteiramente sua tristeza.

— Vejo por tua expressão que a situação é delicada. – Frei Michael declarou com um olhar empático, de uma forma que fazia Friedrich sentir o nó em sua garganta formar-se e desejar simplesmente desabafar tudo. Contudo, sabia que por mais bondoso que o religioso pudesse ser, ele dificilmente seria compreensível quanto sua relação proibida com o homem pagão.

— Creio que é para todo prisioneiro. – Friedrich respondeu apático, sabendo que Michael estava curioso para saber o que Loki havia feito para ser preso, mas era educado demais para perguntar tão diretamente. Refletiu por um breve instante o quanto poderia dizer sem que deixasse ele ou Loki em apuros sem que mentisse, optando por simplesmente omitir certas coisas. – Ele atacou um soldado... Não sabemos como ele irá sair de lá.

Frei Michael franziu o cenho estranhando a escolha de palavras. Não era quando, mas como. Porém, ignorou aquilo em primeiro momento, acreditando que a atitude mais correta por ora era somente fornecer conforto ao seu semelhante.

 – Ao menos agora tu sabes o que aconteceu, quem sabe Deus poça lhe dar a sabedoria para ajudá-lo neste momento difícil.

— Obrigado irmão Michael, espero que esta também seja a vontade Dele.

Frei Lazarus também não demorou a aparecer, na realidade parecia já estar à espera de Friedrich, só não tendo o chamado antes de Michael por ainda não saber se comunicar bem diante dele. Poderia gritar para chamar a atenção dele como fazia por vezes em meio aos irmãos, mas apesar de não ter muita noção do que era um grito – apenas sabia que fazia os frades olharem imediatamente para ele apavorados –, sabia que não seria educado de sua parte fazer tal coisa com um mero conhecido. Contudo, precisava de ajuda do alquimista mais experiente para fazer os remédios aos doentes. A princípio Lazarus pensou que seria capaz de fazer sozinho depois de ver Friedrich fazê-lo tantas vezes, mas ainda não dominava inteiramente a área, ainda estando no patamar de aprendiz do que de verdadeiro alquimista como o frade beneditino.

Friedrich aceitou ajuda-lo, jamais negaria o próprio ofício mesmo na pior das situações, pois havia vidas a serem salvas. Pelo menos ao lado de Lazarus ele realmente poderia simplesmente ficar em silêncio e fazer seu trabalho, enquanto seu coração afundava em lamentos pela vida do amado em perigo.

Contudo, não era por frei Lazarus ser surdo que significava que ele era incapaz de perceber o que os outros sentiam. As informações podem se revelar pelo não dito, assim, apenas percebendo o olhar apático e os gestos tomados de pouco ânimo do alquimista, Lazarus podia dizer que Friedrich sofria. Queria poder dizer algo de conforto para aquele homem da qual nos últimos dias passou a vê-lo como um mestre, mas a barreira linguística não permitia. De toda forma, além de sua companhia, tentou passar nem que algumas palavras de conforto da forma que conseguia.

 Enquanto triturava alguns compostos, Friedrich percebeu um pedaço de papel sendo posto ao seu lado de forma sutil pelo franciscano, olhando curioso para a caligrafia bem feita de Lazarus que o olhava de canto de olho, ansioso por sua reação.

Não falar língua de anjos ou homens, mas grato sou por ajuda, irmão.

‘’Omnia suffert omnia credit omnia sperat omnia sustinet. ‘’

Mesmo em meio à dor, conseguiu dar um singelo sorriso de agradecimento ao jovem, dando-lhe um abraço fraterno e alguns tapinhas de incentivo nas costas que fez o rapaz sorrir acanhado. Não querendo simplesmente se desfazer daquela mensagem, Friedrich procurou pelas sacolas dele e de Loki que ainda estavam guardadas no laboratório, visto que por conta do estrito voto de pobreza dos frades ele achava desrespeitoso leva-las até o claustro em que dormia.

Não tivera o ânimo ou motivo até então de mexer nos pertences que pertenciam á eles, mas ao abri-los para guardar o bilhete, Friedrich se pôs a observar de forma melancólica e nostálgica os pertences do companheiro. Ainda podia sentir seu cheiro de plantas e fumo na túnica guardada, ver alguns fios ruivos perdidos em meio ao gorro maltrapilho, e observar sua caligrafia robusta em meio aos tantos escritos que ele fizera de forma tão eficiente quanto um copista, sentado em meio ao escuro da floresta e somente com as palavras de suas próprias ideias e pensamentos a serem copiadas. Taus lembranças apertaram ainda mais o pobre coração de Friedrich.

E ao fundo, quase que esquecidos pelo tempo e as adversidades a lhe desviarem a atenção, estavam seus velhos estudos, um tanto amarrotados pelas intempéries da viagem, mas ainda plenamente legíveis. No meio da melancolia pelos pertences do companheiro, quase que Friedrich os ignorou mais uma vez. Contudo, ao encontra-los de relance, uma ideia súbita lhe surgiu em sua mente, completamente insana para que pensasse em realizar, mas ainda assim tentadora.

Largou o bilhete de frei Lazarus dentro, pegando um tanto hesitante seus estudos antigos. Deparando-se com a resposta que tanto encontrava para livrar Loki.

Et si tradidero corpus meum ut ardeam caritatem autem non habuero nihil mihi prodest... — Murmurou inspirado pelo bilhete do aprendiz, mas absorto em profundo encantamento para suas próprias palavras escritas, refletindo se tudo aquilo que já lhe disseram ser tolo e perda de tempo quiçá pudesse servir por fim de alguma coisa, onde muitas vezes ele próprio duvidou de sua capacidade e da utilidade de tais experimentos. Agora, seus olhos vidravam-se nas palavras como se as visse pela primeira vez, quando ainda não passavam de meras ideias em sua cabeça imaginativa e sonhadora, mas que desejava trazê-las um dia para a realidade.

Sim. Ele salvaria Loki.

Mesmo que isso o levasse para o Inferno.


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Notas finais do capítulo

Os trechos em latim são ambos de Coríntios 13:

Verso escrito por Lazarus: ''tudo sofre, tudo crê, tudo espera e tudo suporta.''

Verso dito por Friedrich: "e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor*, de nada valeria!"

*A tradução pode valer tanto para amor quanto caridade, pois do latim há ambos significados.

Preparem os corações, o próximo é o penúltimo capítulo! Comentem o que acharam e até semana que vem!



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