Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 43
Os Traidores e a Espada




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A vida em um feudo podia ser muito enfastiante.

Ela consistia de uma eterna rotina presa no trabalho no campo e a vida nas terras pequenas e miseráveis das choupanas, com a mesma comida insossa a base de grãos, tendo o mais próximo de entretenimento apenas as missas de domingo.

As famílias se reuniam ao redor da fogueira, oito, dez, doze pessoas vivendo juntas em um único cômodo, encarando uns aos outros com os olhos mortos e sem vida. Todas as histórias que sabiam haviam sido contatas dezenas de vezes, o rosário já percorrera muitas voltas, o dia foi o mesmo de sempre, o máximo que podiam fazer era falar dos vizinhos com suas vidas tão entediantes quanto à deles. Dormiam cedo, não apenas para levantar antes do sol, mas por não haver mais nada a dizer. Em uma única cama, todos dormiam enroscados uns nos outros, para compensar a falta de pano para aquecê-los no inverno. No dia seguinte, tudo de novo.

O medo da peste e a visão dos mortos não mais lhe chocavam, a vida tornava-se desinteressante como sempre fora conforme se acostumavam com os dias ruins. A necessidade de uma novidade era pungente no espírito de todos, sedentos por qualquer centelha que os lembrasse de estarem vivos além do frio a gelar suas canelas e a fome afinando suas faces.

Presenciar uma execução em praça pública era o tipo de coisa que não se via no dia a dia. O assunto perdurava por dias, desde o dia em que era enunciado, com todos deduzindo quem seria o condenado, o seu crime, o método de execução, passando as notícias e boatos de boca em boca numa euforia que reverenciava o sangue e a morte, até o fatídico ato, onde todos se reuniam para presenciar tamanho evento.

A vila inteira se reuniu naquele dia, amontoando-se numa multidão tão densa quanto de uma procissão de Páscoa, com as crianças subindo os tetos das choupanas para poderem enxergar melhor o desfile macabro. Pois antes da decapitação, o condenado era obrigado a percorrer um longo percurso até o carrasco, sendo vaiado e humilhado pelo povo até chegar ao centro da vila.

Chegando ao palco da tragédia, o padre discursou quanto aos pecados cometidos, dando a chance para o prisioneiro se arrepender uma última vez de seus crimes e assim ter o perdão Divino no lugar do dos homens. Nesse momento, a ira e a vingança percorreu com ardor as veias empoeiradas dos camponeses a assistirem, com os discursos inflamando cada vez mais seus ânimos.

O condenado foi posto de joelhos e a cabeça apoiada, fazendo a ansiedade embalar os corpos que esticavam-se em meio á multidão para enxergarem melhor e não perderem um único segundo do espetáculo. Quando a espada do carrasco cortou o pescoço, duas, três, quatro vezes... Em uma carnificina dolorosa e angustiante até finalmente arrancar a cabeça, o povo delirou em meio aos gritos de pavor e incentivos misturados em um único coro festejando a barbárie.

Tomado pela eloquência do povo que delirava pelo sangue derramado, Louis Henri Ancel, herdeiro dos nobres da qual assistiam de forma privilegiada a execução, levantou-se de seu assento e se aproximou da cabeça decepada de Aribert, antigo servo de sua família e da qual instigara junto á tantos outros trabalhadores a se rebelarem contra seu nome. Ele pegou a cabeça pelos cabelos ensanguentados, erguendo-a na altura do rosto e encarando com satisfação o olhar sem vida e emoldurado com a face da agonia, antes de erguer acima de sua cabeça e mostrá-lo diante do povo que vibrou de pura emoção, para que todos lembrassem que aquele era o destino dos traidores.

Assustado com a multidão e o barulho, um cão trotava pelos becos á procura de um refúgio.

Provavelmente a criatura mais perdida de toda essa história, era Peregrino.

Há dias o pobre animal perambulava sem rumo pela cidade, mas por mais que procurasse por O Favorito, ou até mesmo O Outro, não conseguia encontrar nenhum dos dois homens com quem convivia e lhe alimentavam. Dias atrás ele correu para longe do fogo e do caos que o apavorou por completo, e quando por fim tomou coragem de retornar ao hospital, ele não encontrou nenhuma das mãos que lhe davam de comer.

Inclusive, fome era o que mais sentia. Os malditos ratos eram astutos demais, enfiando-se e se escondendo em frestas menores que o seu focinho, por vezes tentava se aproximar dos homens quando sentia cheiro de comida, mas acabava sendo enxotado e tendo que desviar de pedras jogadas em sua direção. Vivia de migalhas, de restos jogados ao chão, roubando de outros animais menores e mais fracos do que ele. Mas não era o bastante, o estômago ainda roncava e em seu peito sentia-se sozinho.

Querendo evitar o movimento da execução, deitou-se embaixo de alguns caixotes, ficando prostrado e deprimido, pensando onde poderia estar O Favorito – e um pouquinho O Outro – para lhe dar um afago na cabeça e um osso para roer.

Até que de repente, um pedaço pequeno de presunto surgiu inesperadamente em sua frente. Sem hesitar, Peregrino abocanhou o alimento em uma só dentada, erguendo o rosto e fitando o homem estranho que sorria em sua direção.

— Conheço bem uma cara de fome quando vejo uma. – Ele disse lhe dando um afago na cabeça que cheirava á muitos outros animais. – Tenha um bom dia criatura de Deus.

O estranho se afastou. Contudo, ao fazer a ligação entre ele e a comida, Peregrino passou a segui-lo, esperançoso em receber mais presunto e carinho na cabeça.

— Não tem uma casa? Ou a perdeu durante toda a desgraça? – O estranho indagou, lhe dando mais um afago enquanto pensava. – Bem, eu decepcionaria São Francisco lá no céu se lhe negasse ajuda. Não tenho escolha, correto?

Passou a trotar alegremente ao lado do homem estranho. Não era tão bom como estar na presença do Favorito ou do Outro, mas o homem que lhe deu de comer tinha modos que lhe faziam lembrar muito do seu humano predileto, ganhando assim sua simpatia e o rabo abanando.

— Olhe o que encontrei irmão Michael! – O homem exclamou quando chegaram até outro estranho que acompanhava uma mula carregada de sacas vazias de farinha.

— Oras Pepin! Mais um?!

— Que posso fazer se eles vêm até a mim?

— Tu que vais até eles, irmão. – frei Michael apontou-lhe o dedo, mas recebeu apenas um dar de ombros de frade Pepin. – Leve-o então, mas daqui uns dias terás de dar teu próprio prato aos bichos. Pensando bem, para continuarmos a alimentar os pobres quiçá teremos que todos fazer o mesmo.

— Já não somos todos casados com a pobreza? Que assim seja! – Pepin retrucou com um sorriso peralta no rosto, enquanto tomavam caminho e eram seguidos por um cão esfomeado e sozinho.

— Casados com a pobreza sim, mas não com a fome. – Michael resmungou, pegando no cabresto da mula e começando a guiá-la com uma feição enojada. – Vamos logo, se eu acabar vendo o corpo do condenado eu juro que vomito. Que Deus me perdoe tamanha certeza, mas é verdade que não tenho culhões para isso.

— Creio que a cabeça já esteja rolando á este ponto.

— Sem detalhes Pepin! Sem detalhes!

Ainda perdido, mas grato por ter algum rumo por fim, Peregrino os seguiu. Foi uma caminhada longa, atravessando os muros feudais e pegando uma estrada de chão em meio ao bosque, até chegarem a um longo campo aberto e subirem uma colina, passando por pastos verdejantes a balançarem com o vento. Isolado de tudo, um grande e velho mosteiro pairava no campo. O vento dançou ao redor deles, levando um cheiro muito característico para o focinho astuto do cão de caça.

O Favorito.

Peregrino correu colina acima, fazendo os dois frades que seguia se entreolharem confusos. Passou por baixo das cercas e ignorou todos os latidos de alertas dos vários cães que viviam ali, quase derrubou um monge que abria uma porta dos fundos, desviou móveis e passou por cima de doentes e desabrigados a dormirem no chão. Até por fim encontrar o que tanto procurava, não pensando duas vezes antes de saltar em cima do homem e derrubá-lo de surpresa no chão.

— Oh Deus! Que fazes aqui?! – Friedrich exclamou atônito, tentando reerguer-se, mas acabando por apenas rir enquanto o cão lhe abanava o rabo e lhe lambia o rosto completamente eufórico. – Pensei que estivesse morto, pobre coitado! Como me encontrou seu tolinho?

O cão obviamente não respondeu, mas já estava feliz o bastante em encontrá-lo, o reconheceria de todas as formas, mesmo que naquele instante ninguém mais pudesse reconhecê-lo na nova identidade. Mesmo de hábito religioso e tonsura feita, Friedrich continuaria sendo seu Favorito de todos os jeitos.

Peregrino não dava a mínima para o que havia acontecido com seu humano, mas o narrador irá contar de toda forma pelo bem da história.

Obviamente não haviam acreditado nele em primeiro momento quando se revelou como clérigo, contudo, Friedrich possuía a capacidade de provar que era – ou havia sido, pois ainda tinha dúvidas como definir seu estado – um frade beneditino. Diante do Abade Ezéchiel e de todos os outros frades, declarou em perfeito latim os principais preceitos da Regula Benedicti, as regras e filosofia dos beneditinos, um conhecimento que era exclusivo dos monges de tal ordem, onde outros clérigos no máximo saberiam trechos aqui e ali de tal escrito proibido aos olhos leigos. Isso deixou o Abade e os frades pensativos, mas ainda queriam mais provas além de trechos de um livro que poderia ter sido furtado.

— Se és beneditino, tens de escrever feito um. – Abade Ezéchiel declarou, oferecendo à Friedrich pincel, material para tinta e um pergaminho ainda rústico, desafiando-o a fazer uma iluminura. Mesmo estando longe de tal rotina há quase dois anos, tal processo era tão familiar para ele que lhe era quase instintivo. Preparou o papel, criou as tintas e com delicadeza e esmero escreveu o Credo em iluminura, arriscando até alguns desenhos para ornarem as letras, não tão perfeitos como de seu velho amigo Aedan, mas era notável seu esforço e conhecimento da técnica. Não era seu melhor trabalho, enferrujara-se e Friedrich sabia que teria sido repreendido em seu antigo mosteiro por tal trabalho, visto que já havia escrito tantos melhores, mas foi o bastante para arregalar os olhos dos franciscanos que não dominavam tal técnica.

Seu conhecimento era inegável, fruto de um nicho exclusivo demais para negar sua origem. Os franciscanos ficaram surpresos com tal revelação, mas também entusiasmados com tamanha novidade.

 Friedrich foi levado para conversar sozinho com o Abade, pois ele queria entender o que um monge fazia sozinho e portando-se como leigo. Friedrich ficou nervoso nesse instante, pois não havia pensado em todos os pormenores daquele plano insano, só agia pelo ímpeto de chegar até Loki. O medo travava-lhe a língua, mas a lembrança cruel de saber onde o companheiro encontrava-se o fez engolir o próprio trauma. Tinha de fazer aquilo, não via outra alternativa que não fosse encarar seus medos para poder salvar o amado. Assim ele contou a verdade, ou pelo menos parte dela, crendo que era o melhor caminho a se tomar e rezando para que aqueles frades continuassem tão caridosos como estavam sendo com ele até então.  

— Eu fiquei doente, gravemente doente... Ainda estou na verdade, tenho ataques de intensos tremores e desmaios que acabam assustando á todos que estão ao meu redor. Convulsiono, por vezes falo coisas sem sentido sozinho sem desejar, me movimento sem meu próprio controle... Muitas acabam interpretando meus sintomas de forma errônea. Dessa forma, fui rejeitado pelos meus próprios irmãos... Chamaram até mesmo o Santo Ofício até a mim. E apavorado, acabei fugindo de meu próprio mosteiro. Ando sozinho desde então, apenas com a companhia de um amigo andarilho que fiz em meu caminho, mas sem mais me sentir acolhido por quem eu acreditava serem meus irmãos. – Friedrich declarou tudo quase que em um sussurro, como se tivesse medo que mais alguém ouvisse sua história, por mais que só houvesse eles dois ali dentro. Suas mãos estremeciam e ele podia sentir o suor de nervosismo escorrer em sua nuca, jamais havia contato sua história a não ser para Loki que tinha toda sua confiança. Queria que o druida estivesse ao seu lado, mas não estava. Friedrich estava sozinho e precisava salvá-lo á todo custo.

— O que tanto teme meu filho? Acalme-te, Deus é o único que pode julgá-lo aqui, nós não somos nada além de Vossos servos. – Abade Ezéchiel disse com um olhar sereno e bondoso. Era um homem de idade muito avançada, de rosto comprido e pontudo, tomado de rugas da idade e os olhos já começando a se apagarem pela cegueira, já não tendo mais nada em sua cabeça além de alguns fios brancos perdidos aqui e ali. Contudo, havia uma ternura naquele olhar ancião que parecia ser capaz de acalentar até o mais assustado dos cordeiros, como Friedrich que conseguiu deixar os ombros menos tensos com aqueles olhos velhos e paternais, que até lhe fizeram lembrar-se de frei Oliver com quem sempre buscou por palavras de sabedoria e consolo. – Nosso trabalho é acolher os pobres e feridos, tratar suas dores e oferecer o conforto á suas almas perdidas. Se não fosse assim, sequer teríamos alguns de nossos frades aqui conosco! O próprio Lazarus que conhecestes, era só um menino quando impedi que fosse jogado ao rio pelo povo que acreditava que ele era algum tipo de diabo pelo jeito agressivo e impetuoso dele. Mas logo percebi que ele não escutava os sons dos sinos, e como nunca havia entendido as pessoas e nunca fora compreendido, tornou-se bárbaro e violento. Com paciência e tato, agora nem parece o mesmo de anos atrás, pois com compreensão por fim voltou-se á Deus.

E se tu também desejas retornar á ter fé na bondade Dele, jamais lhe negaremos ajuda. Não é a primeira vez que lidamos com monges errantes, ou de eremitas á voltaram das montanhas. Mesmo que um claustro lhe pareça estranho agora, espero que tu te sintas em casa.

Friedrich fungou com um sorriso solene, contendo as lágrimas que se misturavam entre as do medo de antes e as de alívio que surgiam.

— Nunca deixei de crer em Vossa bondade, irmão. Mas agradeço imensamente por me fazer confiar novamente na caridade dos homens. – Friedrich declarou emocionado, sentindo-se leve e acolhido por fim.

Foi guiado então por frei Michael – que parecia não conseguir ficar parado um único instante, estando sempre procurando algum trabalho – para que se acomodasse definitivamente como frade mais uma vez.

— Faz muitíssimo tempo que não recebemos um beneditino! Creio que eu era noviço a última vez, foi quando chamaram um de seus intelectuais para ensinar os sinais á Lazarus. Por isso me desculpo por não termos nenhum hábito negro por aqui, apenas os nossos cinzentos e remendados. Pois nesse convento seguimos a risca a regra de São Francisco! Não somos nada parecidos com esses falsos franciscanos que continuam a se aproveitar do poder e da riqueza da Igreja de forma egoísta! Pobre Francisco a ver estes falsários lá do céu! – O frade dizia acalorado, fazendo Friedrich ter que conter um curto sorriso de gracejo ao perceber o quão inflamado Michael era pela política. De forma burlesca, imaginou como seria se o colocassem com seu velho amigo Adrian para discutirem.

— Não há problema algum no que derem para vestir, pois sequer visto um hábito já faz mais de ano.

— Deve ser uma experiência única a tua! Sabe, ainda pretendo levar a palavra e seguir a ordem da forma que Francisco pensara primeiramente, de forma nômade e livre de qualquer bem á nos prender. – Michael comentou perdendo-se em pensamentos, enquanto Friedrich fechava-se em seu silêncio, voltando a lembrar-se de Loki e a sentir o aperto da angústia em seu peito. Pois realmente fora nômade e livre, mas também havia conhecido um amor da qual não conseguiria mais viver sem. Ele não o prendia como as coisas terrenas da qual o frade mencionava, pois Loki o fizera o mais feliz e verdadeiro dos espíritos, com sua ausência sendo o que lhe aprisionava a alma.

— Realmente, não foi o que planejei para minha vida, mas não mudaria um único momento. Ajudou a me levar até aqui e descobrir quem verdadeiramente sou. – Friedrich declarou solene, dando um sorriso curto que perdurou por poucos segundos. – É muita coragem tomar esta decisão por si próprio, mas torço para que realize teus sonhos e descubra tua própria jornada.

— Muito agradecido, irmão Friedrich. – Disse Michael, fazendo Friedrich estranhar a alcunha de ‘’irmão’’ saindo dos lábios de outro frade mais uma vez. Era intrigante pensar agora que já fora acostumado aquele ambiente, que já fizera parte de tal grupo, quando tudo o que desejava era estar ao lado de Loki. Seu eu do passado jamais acreditaria que seria capaz de escolher a vida ao lado de um homem pagão ao monasticismo, contudo, Friedrich realmente tivera uma experiência única como o franciscano mencionou. Havia descoberto o que era amar e ser amado.

— Soube algo mais quanto aos condenados? – Indagou para frei Michael enquanto trocava suas roupas.

— As penas mais leves já foram quase todas julgadas, muita gente perdeu o pouco que tinha para pagar seus crimes... Mais cedo na vila começaram com as decapitações dos líderes da revolta. – ele respondeu dando um suspiro de pesar. – Muita gente gosta de ver a carnificina, se abarrota no meio da cidade, sobem nos telhados e árvores para assistirem... Mas eu detesto, até passo mal vendo essas coisas.

— Entendo, pois também não me agrado. – Friedrich declarou, lhe vindo à lembrança de sua visita á York e dos corpos pendurados em seus muros.

Friedrich sentou-se em um banco, olhando para baixo para que o frade lhe auxiliasse e começasse a desfazer sua cabeleira na tonsura clerical. Lembrou-se do dia que conhecera Loki e do quão decepcionado e ferido estava com a instituição que tanto respeitou por toda vida, de como surrupiara a navalha do druida pela madrugada e arrancara cada centelha do que havia o identificado como frade um dia, sentindo um vazio profundo no peito, o medo daquele futuro desconhecido e intrigado com aquele homem estranho que lhe salvara. Agora, fitando seus fios loiros caindo no chão aos poucos para torna-lo em monge mais uma vez, Friedrich não sentia ser mais nada além de si próprio, algo que passou a ter consciência há pouco tempo.

— Pensam em realizar alguma ação com eles? – indagou no tom mais plácido que era capaz, sem tirar os olhos do chão. – Com os condenados.

— Estás preocupado com teu amigo? – Irmão Michael questionou, fazendo Friedrich se repreender mentalmente por ser tão ansioso e nada sutil em sua abordagem. Com medo de qualquer suspeita a mais, permaneceu quieto, por mais que soubesse que não havia nada que se suspeitar de um homem preocupado com alguém querido. Contudo, o medo o impelia. – Não precisa te envergonhar por ele, ou temer nosso julgamento. Pelo menos três de nós aqui já conheceram um calabouço, eu incluso! Para isso é só sair um pouco da norma... Ou arranjar briga com o bispo.

Friedrich ergueu o rosto, vendo um sorriso matreiro no rosto do frade e sentindo-se um pouco mais seguro, arriscando um riso breve. Pois o humor é um excelente recurso para acalmar os aflitos.

— Ainda não sei por que ele foi levado... Isso é o que me assusta.

— Abade Ezéchiel estava com alguns planos de levar a Palavra aos presos, convencê-los á realizar uma confissão... Coisas do ofício. Sempre faço parte de todos os trabalhos do mosteiro, ‘’labor omnia vinciti’’ como deves saber, então devem já possuir planos para que eu faça parte. Contudo, ofereço-te meu lugar se desejas encontrá-lo.

O beneditino se sobressaltou, olhando incrédulo para o frade em sua frente que lhe oferecia toda a ajuda que estava precisando naquele momento.

— Eu seria imensamente grato frei Michael, eu não tenho palavras!

— Não é preciso irmão Friedrich, não posso lhe negar algo simples como uma visita ao calabouço comparado á tua ajuda com os doentes nos últimos dias. Frei Lazarus também está exultante com tua presença, onde apesar de os estudos eruditos não me apetecerem nem um pouco, eu fico feliz ao vê-lo sentir-se incluso no que tanto aprecia. – Frei Michael respondeu com um sorriso solene no rosto simpático. – Ele é muito solitário, entende? Tentamos incluí-lo o máximo que podemos, mas ele não é capaz de escutar as missas, nem os coros, ou falar com o povo... Só lhe resta os animais, que já deves ter notado que temos muitos! E claro, os estudos, da qual apenas ele se interessa entre nós. Agradeço por dedicar-se a ensiná-lo e a dividir seus interesses, nem todos fariam o mesmo por alguém com quem não podem conversar.

— Não há o que agradecer por isso Michael. Frei Lazarus é um bom rapaz, gostaria de poder conversar melhor com ele, mas de toda forma vejo que és muito esperto e possui grande potencial nos estudos alquímicos. Digo que poderias ir até a universidade, aproveitando que Paris não está tão longe daqui. Tenho certeza que terias destaque. – Friedrich disse um pouco mais animado.

— O levarei quando peregrinar pela França. – O franciscano disse com um sorriso sonhador no rosto, já terminando de fazer a tonsura. – Tenho certeza que teu amigo ficará bem, irmão Friedrich. Não deve ser nada grave.

— Que Deus te ouça irmão, é o que rezo todo instante para ele. – Friedrich declarou ao erguer o rosto por fim, com uma pontada de otimismo no coração aflito.

Friedrich não imaginava que se acostumaria tão rápido á vida monástica mais uma vez, pois o último ano com Loki havia o mudado de forma profunda, interrompido sua tão conhecida vivência e o tornado praticamente em um novo homem. Contudo, se adaptou novamente tão bem á nova rotina que era como se nunca tivesse saído do próprio claustro, com sua única dificuldade sendo acompanhar os modos diferentes dos franciscanos.

As horas enfastiantes de oração, os cantos, os debates teológicos, as missas e o trabalho para com o mosteiro e a comunidade lhe eram todos muito familiares, quase confortadores ao seu espírito plácido e fiel. Os monges eram amigáveis, gostava de sua convivência e união, de ajudar aos necessitados, dos animais que ele criavam, de ter todo material de estudo à sua disposição e possuir foco na espiritualidade e comunhão com Deus. Era uma espécie de tentação às avessas, uma vida tranquila da qual havia sentido falta por muito tempo e agora o convidava novamente a fazer parte, continuando a ser o monge juramentado de sempre.

Mas Friedrich não podia, ou melhor, não queria isso.

Podia ainda portar-se de forma impecável como monge, mas em seu espírito já não obtinha plena paz vivendo daquela maneira. Queria percorrer o restante do mundo que pouco conhecera, pensar á sua própria maneira, estudar as doenças e tratar os desafortunados, conhecer novas pessoas e suas histórias, andar livremente e viver com a pessoa que mais amava e que tanto lhe fazia bem. O hábito e o rosário já não lhe chamavam a mesma atenção de outrora.

Loki ainda lhe tomava a maior parte de seus pensamentos, seu bem estar era a fonte de todas as suas preocupações e seu destino o motivo de seus pesadelos. Continuava a reerguer-se somente por ter a esperança de que pudesse tê-lo mais uma vez ao seu lado.

— Nós nos encontraremos de novo. Como você me encontrou. – Disse ao cão enquanto acariciava sua cabeça, olhando para o horizonte e pensando se poderia ter fé nas próprias palavras.


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Notas finais do capítulo

O ditado mencionado por frei Michael se traduz como ''O trabalho vence tudo''.

Como sempre, comentem o que acharam! E leiam ''Eu sou você. Nós somos ele'' na Amazon e ajudem a autora iniciante aqui hehe

Até semana que vem pessoal!



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