Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 42
A Inquisição e o Condenado




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Loki acordou com o som de água pingando, abrindo os olhos e encontrando apenas a escuridão. Mal podia sentir os próprios braços, estando atados para cima em correntes de ferro a machucarem seus pulsos, estremecendo inteiro pelo frio daquele lugar tomado de umidade. A cabeça e o corpo doíam como se tivesse levado uma surra daquelas, onde conforme as memórias confusas passavam por sua mente, lembrava-se de como havia sido trazido de forma bruta e violenta, intensificada por sua determinação em continuar lutando. Não conseguiu.

Finalmente estou aqui. Pensou, sequer ficando impressionado com seu estado e onde se encontrava. Não era o que estava destinado? Era muita inocência sua pensar que escaparia para sempre do cárcere sendo aquele espírito rebelde de sempre.

— Rébecca?  Está aí? – Uma voz sofrida soou na escuridão, junto a mais correntes tilintando uma na outra. Loki não estava sozinho, mas não conseguia dizer onde o outro homem se encontrava naquela masmorra fria.

— Não, apenas outro prisioneiro. – Loki respondeu.

— Judeu também? – O desconhecido indagou com a voz rouca e ferida.

— Não.

— Ah. – Foi a última coisa que ouviu do outro por um bom tempo.

Loki imaginava que o haviam prendido por ter atacado um oficial, era o que lembrava antes de provavelmente desmaiar com alguma pancada forte em sua cabeça, recebida depois de tanto lutar contra os soldados que tentavam contê-lo. Fora uma ideia estúpida, ele sabia disso, mas foi o que fez no desespero de proteger Friedrich. Mesmo que cada feudo e terra tivessem suas próprias leis, havia certo padrão em quase todas, com Loki não esperando uma punição que fosse além de uns dias de trabalho forçado ou umas chicotadas nas costas. Contudo, sua mente enérgica se punha a trabalhar, visto que pensar era a única coisa que conseguia fazer naquele lugar insalubre, sentindo a garganta ficar cada vez mais seca pela sede e tendo que catar pelos pingos que caiam no teto de pedra. Torcia para que não fosse o esgoto da cidade.

Se era um preso por rebeldia, deveria estar com outros rebeldes, foi o que concluiu primeiramente. Contudo, estava ao lado de um judeu. Por que de um judeu? Só poderia ser heresia. Porém, não foi por isso que havia sido preso, a não ser que descobriram algo a mais... Mas como? Havia se portado bem nos últimos tempos em meio ao povo, deixando sua verdadeira identidade para ser mostrada somente ás sombras e a solidão. Dessa forma, teria mais alguém o visto fazer os rituais além de Friedrich? Loki ficou confuso, onde apesar de estar sempre amortecido pelas calamidades de sua vida, estava assustado também com o que o futuro lhe reservava naquele ambiente tão sinistro que o fazia ter a impressão de ouvir os sussurros dos fantasmas que já passaram e sofreram naquelas paredes.

Som de ferrolho e ferro pode ser ouvido, uma chave a abrir uma grande fechadura e em seguida o ranger estridente das grades. Loki mirou para a tocha que surgiu, mesmo com os olhos sofrendo com a luz que se desacostumara, tentando interpretar o ambiente á sua volta. Paredes de pedra negra, chão enlameado de terra e dejetos, com os ratos a se esconderem pelos cantos. O cavaleiro que segurava a tocha se aproximou dele, o rosto coberto inteiramente por um elmo quadrado, armado de uma longa e afiada espada atada ao cinto que segurava o manto branco por cima da armadura...

O manto de um cavaleiro da Inquisição.

Loki arregalou os olhos de gato, sentindo o pavor percorrendo todo o seu corpo, permanecendo em choque enquanto seus braços eram soltos. Sem dizer nada, o oficial o obrigou a andar ao puxar suas algemas, tal como faria com o cabresto de um bicho. Os braços amortecidos progressivamente começavam a doer cada vez mais, fazendo com que o druida retorcesse o rosto de agonia e mal conseguisse pensar sobre o que estava acontecendo enquanto era arrastado pelos labirintos escuros e frios do calabouço. Se estivesse mais forte e menos ferido, quiçá tivesse lutado e praguejado obscenidades ao cavaleiro, mas contido daquela forma apenas seguiu caminho.

Chegaram até uma sala ampla, mas disfarçada pela escuridão que tomava seus cantos, sendo iluminada por algumas poucas tochas e lumes. Loki foi prensado contra uma parede novamente, não tendo forças para lutar contra – e mesmo que o tivesse, sabia que seria estupidez algo do tipo em sua situação –, tendo os braços prendidos em posição de cruz, e dessa vez os pés afastados para serem presos á mais correntes, lhe deixando com mínima mobilidade e fazendo seus músculos queimarem por dentro pela atrofia.

O cavaleiro se pôs ao seu lado, permanecendo de guarda enquanto esperavam por algo da qual Loki não se encontrava interessado em descobrir.

É una brutta giornata per gli eretici.* – O cavaleiro comentou com um riso curto e maldoso, sendo respondido somente com uma encarada pelo canto dos olhos de bruxo.

O pobre druida não sabia o que seria de si, mas o narrador com sua onisciência sabe muito bem. Acompanhem-me e prestem atenção à seguinte figura que irei mostrá-los, estando apenas alguns poucos salões de distância de onde Loki se encontrava, revirando uma série de pergaminhos e documentos espalhados em uma mesa de scriptorium.

Frei Ambrosius de Savona estava pensando em voltar para Itália depois de quase dois anos comandando julgamentos e inquisições pela Europa, quando foi requisitado pelos governantes de Marseille-Castel – uma cidade composta de terras e feudos de três famílias nobres a comandarem a cidade, Castel, Ansel e Cabanel, mas com os Castel possuindo maior influência por terem a maior porção das terras –, desde que passaram a sentir certa tensão entre seus servos, resolvendo se prevenir chamando uma autoridade da justiça para investigar sua origem e culpados, não querendo sofrer o mesmo destino que diversos feudos ultimamente andavam tendo, sendo completamente destroçados pela ira dos camponeses. 

Tratava-se de um frade dominicano que já regia como Inquisitor há quase vinte anos, com seus registros podendo ser contados perto dos mil casos julgados. Os cátaros haviam lhe dado muito trabalho nos últimos tempos, e os flagelantes andavam se multiplicando como ratos justo quando já se julgava estarem controlados. Inquisições não faltavam naqueles tempos sombrios e perversos.

Era considerado um ótimo Inquisitor, tinha somente quarenta e nove condenados á fogueira, pois conseguia convencer muito bem os hereges a admitirem seus pecados e se entregarem ao Altíssimo. Até por que, variedades de punições eram o que mais havia, ele achava mais cristão e misericordioso de sua parte uns pagamentos, pelourinhos e prisões do que levar as almas pecadoras de volta para Deus. Só precisava que o condenado colaborasse com seus conselhos, e dessa forma fazia justiça.

Havia chegado à cidade francesa há cerca de duas semanas. Sua chegada havia sido discreta, não sendo avisado sequer aos frades franciscanos que por ali viviam – pois franciscanos eram famosos no meio do clero por causarem problemas, Ambrosius preferia não chamar a atenção daquela ordem deveras implicante.— Passou a investigar de longe o povo, com alguns espiões a passearem pela cidade e conversando com as pessoas, além de pedir aos padres locais que incentivasse mais a confissão dos pecados dos fiéis.

A situação era péssima. Muitos foram os mortos de peste, poucos foram os sadios para trabalharem nas colheitas que andavam fracas nos últimos anos. A cidade se endividara, a cota de grãos e farinha diminuía dia após dia entre o povo, causando a discórdia. O frei indicou que os Castel fizessem algo para acalmar o povo, ou sofreriam as consequências de sua fúria.

Mas antes que pudessem tomar qualquer atitude, o povo fora mais rápido. Com a intenção de invadir os silos de grãos que ficavam na proteção do manso senhorial, tentaram desviar a atenção dos guardas colocando fogo em todo feno que se espalhou pela cidade. Apesar de serem impedidos, os nobres ficaram assustados com a ousadia de seus servos e temiam que o restante seguisse pelo mesmo caminho. Prenderam os rebeldes e fariam as devidas punições à eles para assustar o povo e repelir quaisquer ideias de rebelião, mas quiçá isso não fosse o bastante por muito tempo. Naqueles tempos difíceis, a fome e a raiva sempre falariam mais alto.

O que poderiam fazer? Mudar o tratamento e a postura com os servos? Deixar que ditassem o que queriam? Não, seria ridículo, aquele sistema funcionava bem há muito tempo para eles, não havia porquê de muda-lo. Era o que ocorria há pelo menos novecentos anos! Haveria de ter outra forma de convencer o povo a permanecer manso novamente, como sempre fora.

A rebeldia vinha de maus pensamentos, este que advinha do pecado. O pecado envenena tudo, adoecendo o povo e trazendo assim mais ódio á suas almas. Era uma questão óbvia. Haveriam de descobrir a fonte que irradiava tamanha negatividade e podridão naquele lugar, e quando descobrissem, mostrariam aos servos para que soubessem que não havia mais o que se preocupar. A bruxa e o diabo foram derrotados, podem dormir tranquilos mais uma vez.

Muitos dos presos foram analisados, sendo encontrado inclusive um casal judeu que há meses havia jurado ter se convertido ao catolicismo, mas havia sido pego a fazerem seus ritos hereges. Contudo, uma figura em especial havia chamado muito mais a atenção do Inquisitor, figura esta da qual você caro leitor deve estar muito familiarizado.

Para começar, não era francês. No início julgou ser irlandês por suas feições, mas logo com seu inglês bem falado provou ser súdito do rei Eduardo III. Por ser um estranho, de um reino inimigo ainda por cima, havia sido vigiado nos últimos dias e flagrado fazendo alguns ritos pagãos antigos na floresta da qual já se julgavam estarem extintos da Europa desde a conversão dos celtas. Frei Ambrosius ficou no mínimo curioso ao descobrir a presença daqueles costumes mortos há uns quatrocentos anos no mínimo, mas em sua cabeça lhe pareceu uma confirmação de que o Diabo andava pervertendo com ainda mais força a cabeça dos homens nos últimos anos, fazendo voltar tradições sombrias que há muito tempo pensavam terem derrotado.

Ele também tinha um companheiro de viagem, mas que parecia ser mais discreto que ele, não sendo possível comprovar se ele conhecia ou não tal lado herege do vigiado. A única coisa que os espiões relataram, era a suspeita de que eles viviam em pecado de sodomia por tamanha proximidade que tinham. Eram próximos de uma forma mais intima que uma amizade, mas ao mesmo tempo não soava como um amor fraterno, por mais que nunca tivessem sido flagrados em atos mais comprometedores que um dar de mãos ou um abraço mais longo. Frei Ambrosius preferia sempre provas concretas, mas não descartaria tão cedo tal acusação em uma figura já tão controversa. 

 Mas junto de tal histórico, sua aparência por algum motivo não lhe era estranha. A estatura baixa, os cabelos de fogo espantados, a barba a se afinar no queixo, os olhos de um verde brilhante que sequer pareciam de uma pessoa. Intrigado, o Inquisitor resolveu revirar alguns autos, cartas e registros que possuía consigo.

 

Carta aos Inquisitores quanto aos procurados do Santo Ofício a residirem nas Ilhas Bretanhas

 

Em tal carta que já datava de alguns meses, um relato em específico lhe chamou a atenção, lembrando-se por fim o porquê daquela figura não lhe ser estranha:

 

O Feiticeiro de Yorkshire

Também conhecido como ‘’ O Druida ‘’, ‘’O Demônio dos Olhos de Gato‘’, ou ‘’O Andarilho Ruivo. ‘’

Procurado por heresia, artifícios das trevas, pacto com o Diabo, culto ao satanismo, corrupção da população e foco da Peste Negra.

Flagrado em pelo menos quatro condados da Inglaterra

Há relatos de que anda acompanhado.

Último registro de aparição advento do porto de Bishop Lynn, por um lanceiro local.

Se encontrado, deve ser julgado pelo Santo Ofício por seus crimes e resistência a se entregar nas mãos da Inquisição.

 

O que parecia ser apenas uma breve visita em um feudo em crise, Frei Ambrosius percebeu que acabaria lhe dando o tipo de trabalho difícil que não possuía há muitos anos. Já havia julgado muitas seitas contrárias às leis da igreja, indagadores, feiticeiros, mas todos com algum nível de crença no cristianismo que se tornara deturpado em algum ponto. Quando não, geralmente tratava-se de crenças em outras religiões Abraâmicas, feito os judeus e muçulmanos, ou suas semelhantes monoteístas como os zoroastras.

Mas um pagão completo do tipo que não se via desde o século IV, antes dos santos Patrício e Columba converterem até os mais isolados povos da Hibérnia? Era um achado e tanto. Se aquele homem fosse um animal a ser pego por um caçador, com certeza seria empalhado e exibido como um grande troféu raro.

Contudo, por mais intrigante que fosse o Inquisitor também achava perigoso. Tratava-se de uma cultura antiga que Frei Ambrosius há muito tempo estudara em seu tempo de jovem frade em meio aos livros, sentindo-se horrorizado com os relatos quanto aos sacrifícios humanos que eles costumavam realizar, regados com canibalismo e violência generalizada, dançando nus pela floresta e depravando uns aos outros como os demônios agiam no Inferno. Tratava-se de povos antigos comandados por seus reis e druidas em reinos construídos pilhando ossos e bebendo sangue humano.

Seria uma conversão no mínimo interessante. Foi o que pensou enquanto rumava junto a dois outros sacerdotes até o calabouço que o tal herege encontrava-se, andando em passos lentos por conta de sua idade avançada, sobressaltando-se de surpresa ao ver o que se passava na câmara.

Dio santo, desamarre esse homem! O que acha que sou? Pareço exorcista por acaso? Vamos, vamos, arrume essa bagunça. – Repreendeu o soldado ao ver o condenado amarrado como uma besta. Nunca que conseguiria tirar qualquer palavra da criatura daquela forma, era experiente o bastante para isso. Além do mais, era proibido usar a tortura mais que uma vez, não podia desperdiçar a chance de tal forma.

Visivelmente constrangido e a contragosto, o cavaleiro soltou o condenado da parede e tirando parte das correntes, mantendo preso apenas as algemas dos tornozelos e dos pulsos. O homem remexeu as articulações doloridas com o pouco de liberdade, sem tirar os olhos do chão.

— Vamos, sente-se meu filho. – Indicou um banco do lado oposto da mesa de madeira da qual faria as perguntas. Frei Ambrosius logo se sentou na própria cadeira, agradecendo o apoio para as costas doloridas e os joelhos fracos, sendo imitado pelos outros dois clérigos.  Eles só estavam ali para vigiar e testemunhar o que aconteceria, podendo dar a própria opinião se achassem pertinente, mas como Inquisitor mais velho e respeitado, Ambrosius era quem comandaria a maior parte da inquisição.

O herege lhe olhou desconfiado com o canto dos olhos, verdes e brilhantes como o fogo em meio à penumbra, provando o porquê de tal característica lhe ser tão conhecida. Ele hesitou por alguns segundos, antes de se mover de forma dura pelos movimentos limitados e sentar-se, permanecendo de cabeça baixa e o olhando como um animal arisco prestes a atacar se tocado.

Loki sê druí, maed?*— Indagou na língua mãe dele, imaginando que assim a conversa fluiria melhor. – Eu sou Frei Inquisitor Ambrosius, e estes são o Bispo Gaspar e o Padre Inquisitor Jacques-Baptiste. Acredito que sabes por que estamos aqui, mas peço para que não temas. Pois não estamos aqui para condená-lo, mas para ajudá-lo a encontrar o caminho certo para a remissão de teus pecados.

Loki mal ergueu os olhos para fita-lo, permanecendo em completo silêncio.

— O silêncio não significa inocência meu caro, muitas vezes apenas consente. – Frei Ambrosius declarou, ainda sem receber um único erguer de olhos de Loki. – Vamos meu filho, só queremos conversar.

Loki limpou a garganta, de uma forma exagerada e barulhenta, cuspindo o ranho que quase chegou a atingir as autoridades. O Bispo e o padre se sobressaltaram enojados, mas o frade Inquisitor permaneceu sério e com o mesmo olhar sereno.

— Seu selvagem imundo, responda ás autoridades! Inglês estúpido! – Padre Jacques esbravejou, batendo com o punho na mesa.

— Oh, não é preciso atitudes pífias como essa, padre. Vejo que temos um homem esperto aqui escondido nos modos ariscos. – Ambrosius disse, fazendo Jacques lhe encarar atônito e com certa mágoa pela repreensão. Porém, eles tinham naquele instante um prisioneiro difícil de lidar, o Inquisitor mais experiente sabia que os métodos comuns não o assustariam. – Porém, em seu interior ele sabes bem pelo que és incriminado. Contudo, não hei de sermos injustos e cruéis, pois os braços do Pai se estendem á todos que vem pela Vossa misericórdia. Somente confesse teus pecados e ofensas, Loki, para que dessa forma possa receber o perdão e a penitência dignos.

Silêncio novamente. O condenado ao mesmo tempo em que não se incriminava não se punha também a defender a si mesmo, numa birra quase que infantil diante das autoridades da justiça. Ambrosius via com o canto dos olhos os olhares em expectativa dos outros sacerdotes para que desse um comando que acreditavam que o faria falar. Contudo, o Inquisitor podia perceber a selvageria que percorria as veias do homem em sua frente. A dor não o faria falar, mas o atiçaria a se rebelar ainda mais feito uma besta que prefere morrer a ser domada.

— Vejo que não está disposto a falar neste momento. Por isso, lhe daremos tempo para pensar. Sir Angiolello, per favore.— Frei Ambrosius sinalizou para que o cavaleiro levasse o prisioneiro de volta, começando a levantar-se com dificuldade de sua cadeira. Queria que pudesse resolver tudo em um único dia, mas sabia que alguns condenados requeriam uma dose a mais de paciência. – O jejum é essencial para purificar a alma.

Loki se viu sendo arrastado de volta para sua masmorra, sendo mais uma vez trancado na escuridão e preso de braços para cima sem conseguir se mexer. Os pingos retornaram a incomodar sua cabeça.

— O ‘’Outro Prisioneiro’’ novamente? – Ouviu novamente seu companheiro de cela.

— O próprio. – Respondeu num bufo raivoso, não conseguindo enxergar o outro prisioneiro, mas podendo dividir com ele os mesmos sentimentos de desolação e terror, junto à vontade de estar em qualquer outra companhia que a de um desconhecido ou de um carrasco.

Loki não soube quanto tempo exatamente permaneceu trancado e preso daquela forma miserável e atroz, mas foi o tempo o bastante para dormir de exaustão, parar de sentir os próprios braços e sentir as pernas formigarem pela falta de movimento. Não havia água além dos pingos da pedra úmida caindo de sua cabeça, tomando assim menos água do que realmente precisava, com a fome passando a lhe doer as entranhas e enfraquecer cada vez mais seu corpo.

Quando se sentiu mais fraco que um fiapo, foi quando lhe soltaram para lhe colocar frente a frente com os inquisitores mais uma vez.

— Esperamos ter uma discussão mais produtiva daqui em diante, tendo refletido teus pecados. – Frei Ambrosius declarou com um sorriso curto e cínico para Loki, que permaneceu em silêncio, mas em dúvida do que deveria fazer. Seu lado teimoso e resiliente queria prosseguir com seu silencioso protesto, contudo, passou a refletir suas opções. Se permanecesse calado, o manteriam na míngua até que estivesse debilitado e desesperado demais para pensar com cuidado, ficando mais vulnerável á quaisquer perguntas que pudessem lhe fazer.

— Por que não confessas? Julga-te inocente? – Ambrosius indagou mais uma vez.

— Que há para confessar? – Indagou seco por fim, a voz saindo rouca pela garganta seca e o tempo passado no frio e na umidade. Precisaria ser astuto, balanceando as próprias respostas e o que estaria disposto a contar para que não fosse castigado.

— Temos um compilado de crimes heréticos cometidos por tua pessoa, como os cultos à Satanás que cometia na calada da noite. Que tens a dizer em tua defesa? – O bispo inqueriu.

— Só estava na floresta.

— Não é o que dizem as testemunhas. – O padre retrucou, fazendo Loki franzir o cenho num misto de incredulidade e raiva.

— Eram vocês quem me observavam então? – Indagou irritado, mas como uma curta vingança pelo que havia feito até então, ninguém respondeu sua pergunta.

— Explique-te, ou admita a culpa – O padre ditou. Mas diante de tal pedido incriminador, não recebeu uma única reação de Loki que se escondeu mais uma vez no próprio silêncio. – Não queira fazer o uso da força para nos contar a verdade.

— Tenho nada a explicar além do que já disse. – Respondeu simplesmente, não parecendo se abalar pelas ameaças, confabulando com si próprio alguma maneira de desviar as perguntas.

Porém, o Inquisitor mais experiente já sabia que não era por essa tortura que atiçaria o herege.

— Ouvi dizer que andas acompanhado. – Comentou, ficando satisfeito ao perceber os olhos verdes se levantando de forma instantânea. Loki podia sentir o pavor lhe acelerar o peito, pois não estava esperando qualquer menção ao companheiro, apenas acusações contra si. – Frédéric? Creio ser este o nome. Ele também era praticante de sortilégios?

— É um homem bom e cristão. – Loki respondeu seco, tentando não parecer abalado. Mas Ambrosius podia sentir a fúria do bruxo sobre si, lutando para não contorcer o rosto em puro desgosto e lançar milhares de maldições á ele.

— Se é o que diz, creio que poderia considerá-lo uma boa testemunha para si? Poderíamos requisitá-lo.

— Não sei onde ele está. – Disse rápido e nervoso, desviando os olhos e amaldiçoando a si e aos inquisitores milhares de vezes dentro de sua cabeça.

— Podemos encontrá-lo.

— Não, não podem. – Loki retrucou rapidamente, tentando pensar em qualquer coisa que os fizessem parar de mencionar Friedrich. – Ele está morto.

A verdade é que o druida não fazia ideia do paradeiro de Friedrich. Apenas sabia que precisava tirá-lo de foco dos olhos temíveis da Inquisição. Que fizessem qualquer outra coisa de si, mas jamais poderia permitir que tocassem em um único fio de cabelo dele!

Era notável a desconfiança dos inquisitores com aquela declaração, afinal, seu próprio nome significava mentira. Contudo, Loki tinha a esperança de que nem eles soubessem onde Friedrich se encontrava e torcia para que o companheiro fosse astuto o bastante para se manter longe deles, fugindo tal como fizera há quase dois anos atrás no seu tempo de frade.

— Como? – Ambrosius indagou quase num tom irônico. Contudo, realmente também não sabia se o outro indivíduo estava vivo ou não. Havia cometido o deslize de revelar indiretamente que não possuía seu contato, dando certa vantagem ao prisioneiro, mas ao mesmo tempo, não acreditava que tal sentença fosse verdade pela forma repentina que o prisioneiro trouxe aquilo á tona.

— Foi atingido durante a revolta, se foi na hora. Por que motivo crê que ataquei o maldito soldado? – Inqueriu colocando toda a raiva que sentia naquela sentença, para parecer ainda mais verdadeiro, o que não lhe era difícil. Os inquisitores olharam-se, como se falassem um com o outro de maneira silenciosa em suas mentes.

Os clérigos começaram a falar entre si em latim, deixando Loki totalmente por fora do que confabulavam. Um arrepio de pavor passou por sua espinha, o coração lhe saltava no peito de puro pavor e ansiedade, usando toda sua força para permanecer com um semblante tranquilo. Não podia se demonstrar abalado naquele momento, não poderia deixar que descobrissem que Friedrich era seu ponto fraco! Se o fizesse, usariam isso contra ele, se é que já não suspeitassem disso.

— Claramente lhe és alguém querido, visto tua fúria no momento. – Ambrosius declarou, sereno como um lobo fantasiado de carneiro no rebanho.

— É o que se espera de um amigo leal

— Uma amizade deveras exótica, eu diria. – O Inquisitor estreitou os olhos, mirando Loki com uma eloquência capaz de lhe transmitir a mensagem ‘’Eu já sei de tudo‘’. O prisioneiro sentiu a boca ficar ainda mais seca, tentando conter os pulsos que teimavam em estremecer de pavor e fazendo tilintar as correntes que lhe prendiam. O maldito clérigo estava rondando seus pensamentos, fazendo sua cabeça para que se sentisse cada vez mais desesperado e provasse de vez que suas suspeitas eram corretas. Para que o Inquisitor pudesse ao menos suspeitar da relação deles, teria de tê-los observado com muita atenção. A ideia de que havia sido espionado por todo aquele tempo lhe enojava, mas enfurecia-se e temia de todo coração ao pensar que fizeram o mesmo com Friedrich, alguém tão puro e bondoso e que não merecia uma única fagulha de dor em sua vida.

— Que estás insinuando? – Loki não queria perdurar aquele assunto, pois temia que caso estendessem demais aquele interrogatório sobre o companheiro, acabaria revelando algo. Tinha de fazê-los se esquecer dele, torna-lo insignificante. Mas não sabia como. Só não podia deixar que pegassem Friedrich, não podia deixar que arrancassem mais uma vez sua família!

— Os pagãos celtas nunca deram atenção à autoridade de Deus e nem a do Sagrado Matrimônio, não temiam o pecado da sodomia. Creio que entende o que quero dizer. – O frei declarou, fazendo os outros dois clérigos ficarem surpresos com sua acusação, passando a olhar para Loki com ainda mais ódio e asco do que antes.

Loki tinha de conter a respiração descompassada, junto ao nó de angústia em sua garganta. Se continuasse de tal forma, eles procurariam Friedrich por todo canto e o trariam ali junto dele, usando-o como isca para confissões e assim teriam mais um condenado para maltratar e por a culpa em todos os pecados do mundo.

Preferia ser condenado sozinho por todos os crimes possíveis, de forma horrenda e cruel como a típica execução inglesa de ‘’Enforcar, arrastar e esquartejar’’, desde que Friedrich pudesse sair ileso.

Quiçá, fosse sua única alternativa.

Loki por fim, ergueu o olhar, não como um mero condenado à heresia, mas como o próprio herege.

Quando criança, Loki tinha medo das histórias que seu pai contava. Fosse sobre guerreiros a devorarem as carnes de seus inimigos para extrair a força de suas almas. Ou a Dama da Morte lavando a roupa dos condenados a morte, cantando uma canção triste e chorosa da qual apenas eles eram capazes de ouvir até seu último suspiro. Dos esqueletos de guerreiros a erguerem-se dos túmulos por conta de seus espíritos traídos, vagando na calada da noite em busca daqueles que lhe trouxeram a morte. Das fadas a beberem sangue humano enfeitiçando os homens e abrindo suas gargantas. Dos cavaleiros decapitados cavalgando na calada da noite segurando a própria cabeça. Dentre tantas outras lendas de sua cultura capazes de apavorar o mais valente dos homens. Quiçá a criança dentro de si ainda temesse tais lendas, mas naquele instante, seu pavor o inspirava dando forças de prosseguir com seu insano discurso, lembrando-se dos próprios medos religiosos de Friedrich e misturando-os em sua mente de uma forma grotesca.

— Ah, entendo bem. Não há autoridade alguma para esse teu deus, pois não és o nome que ouço quando pergunto ás árvores. – Declarou exibindo o sorriso de vigarista e os olhos verdes brilhavam na penumbra. – Podem continuar a me prender aqui, contudo os espíritos da terra ainda sussurram vossos segredos ao meu espírito que segue livre pela noite! Estes que exigem o respeito com a entrega de carne e sangue regando a terra.

        – Então confessa ser um feiticeiro á cultuar demônios? – Padre Jacques inqueriu, os olhos escuros tão esbugalhados que poderiam quase sair de sua órbita. O sorriso de Loki cresceu ainda mais, mostrando os caninos afiados como um louco.

— Confessar? Não há o que confessar o que não escondo! Sou o próprio Diabo! Não és um padre medíocre que seria capaz de conter o poder que urge das raízes e do espírito dos mortos! Pois eu bebo o sangue dos lobos por sua força, devoro os olhos das corujas por sua sabedoria e me apeteço com o coração dos homens pela sua maldade que alimenta minhas veias sedentas! – Loki declarava aos brados, erguendo-se e pondo as mãos algemadas na mesa, inclinando-se para olhar no fundo dos olhos dos inquisitores.

Já chega. – Frei Ambrosius ditou impassível, com Loki sendo agarrado pelo soldado a lhe prender à cadeira. – Deixe dessa farsa! Tuas palavras não assustam ninguém aqui.

— Não? Então por que me prendem á correntes como uma fera? – Loki inqueriu, lutando contra o cavaleiro que tentava lhe conter, não se importando com a truculência e os golpes que levava. – Não hão de me conter! Pois ouço o canto da morte e ela revela que serão afogados no próprio sangue, da qual beberei em homenagem aos deuses que me protegem em agradecimento. Podem levar-me a vida, mas jamais pegarão minha alma a bailar no Inferno, onde arrastarei cada um de vós!

— Contenha-o Angiolello, mas sem derramar sangue. Pode solicitar os carrascos. – Ambrosius declarou, fazendo o cavaleiro arrastar Loki de volta contra a parede, prendendo-o novamente. Contudo, desta vez não era contra a pedra fria, mas sim á uma estranha tábua de madeira, tendo os braços e as pernas amarrados.

Frei Ambrosius aproximou-se do prisioneiro, encarando-o face a face em silêncio como se o desafiasse. Os olhos escuros e enérgicos do clérigo contra o verde vivo e místico do druida, enfrentando-se num duelo silencioso.

Tão logo chegou dois homens de vestes negras, fortes e ameaçadores que se colocaram cada um em um lado de Loki, segurando cada um uma roldana que eram ligadas ás cordas que prendiam o druida.

— Deixe de sandices e diga somente a verdade daqui em diante.

— Pediram tanto por uma confissão para agora não ficarem satisfeitos com meu testemunho? Não era o que esperavam ouvir? Creio que é por que temem demais a presença de um bruxo, de quais maldições sou capaz de realizar e por isso negam o que estás diante de teus olhos. – Loki indagou ardiloso, se aprazendo ao ver o olhar irado do clérigo á sua frente.

— Então admite tuas práticas de sortilégios e de envenenar esta cidade com maldições e encantos?

— Por que achas que sempre estive tão próximo da peste? – Loki declarou completamente dissimulado.

— Um bruxo e herege deve ser condenado, mas também levado novamente á luz como todo filho de Deus tem direito. Se te converter meu filho, terás uma penitência mais digna. – O frade Inquisitor declarou, fazendo Loki soltar um riso curto que não fora capaz de conter. Converter-se quiçá o fizesse escapar da morte ao fogo, mas prosseguiria nas mãos deles, sendo questionado, mandado, condenado e o obrigando a revelar todos os seus pecados. Não apenas negando sua própria identidade, mas dedurando Friedrich e o levando á condenação junto á ele.

Jamais.

Frei Ambrosius olhou para os carrascos, assentindo para que prosseguissem. Assim começando a moverem a roldava de correntes que prendiam os membros de Loki, puxando seus braços e pernas até que seus músculos se distendessem, torcendo os tornozelos, estalando as rótulas dos joelhos, esticando os ligamentos e os músculos até que queimassem dentro de si.

Loki lutou com todo seu orgulho e virilidade para não gritar, mas sem poder conter tamanho sofrimento, sua garganta soltou um urro de dor que atravessou as paredes e chegou até o restante dos prisioneiros, apavorando-os e os fazendo temer pelo próprio julgamento.

Até que em um instante que pareceu uma eternidade, o Inquisitor fez sinal para que os algozes parassem. As roldanas pararam, mas o corpo de Loki prosseguia esticado de forma inumana, fazendo-o estremecer de dor e mal conseguir respirar, com lágrimas quentes derramando-lhe o rosto.

— Ainda possui a chance de rever teus pecados e livrar-te desse peso em tua alma. Converta-te? – Ambrosius questionou sério e com frieza. Loki o encarou da forma mais firme que era capaz em meio ao próprio sofrimento.

Mesmo com o interior de seus ossos e músculos destroçados, Loki ainda teve forças e ânimo para sorrir feito um vigarista, os olhos verdes e místicos brilhando de diabrura.

— Já tentaram esse mesmo jogo comigo, frade. Sabe onde enfiei o meu nome de batizo? – Loki questionou ainda sorrindo em meio ao sofrimento, permanecendo por um breve instante de silêncio somente encarando o olhar de juiz do Inquisitor. – In culus.

Ele respondeu cuspindo na face do velho, orgulhoso da única expressão em latim que fazia questão de conhecer.

— Prendam-no.

Cinquenta foi o número de condenados á fogueira que o Inquisitor Ambrosius de Savona passou a ter.


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Notas finais do capítulo

* Do italiano ''É um péssimo dia para os hereges. ''
** Do inglês antigo ''Loki o Druida, certo? ''

Muitas e muitas notas históricas:

Tentei seguir aqui da maneira mais fidedigna um julgamento pela Inquisição, mas claro que não é uma representação exata. Contudo, alguns elementos essenciais para a Inquisição era o objetivo de conseguir uma confissão, conversão caso fosse um não católico, seguido da pena que ao contrário do que a cultura popular fala, a morte na fogueira geralmente era em últimos casos, os mais comuns eram:

Confiscação de bens; Trabalho forçado; Obrigar o condenado a ter algum símbolo costurado em suas roupas que sinalizasse que era um pecador julgado pela Inquisição, causando humilhação pública constantemente (sim, igual ''A Letra Escarlate. ''); Prisão no pelourinho ou em alguma marmorra; dentre outros diversos visto que a justiça na Idade Média não era nem um pouco consistente.

A morte na fogueira era a pena máxima, feita quando o condenado se recusava a confessar seus pecados e/ou converter-se, ou se foi cometido um crime muito grave como assassinato, traição á coroa, etc.

O uso de tortura era permitido, mas com restrições. Podia-se usar uma vez e de forma que não derramasse sangue (pois assim seria pecado... não me perguntem sobre lógica medieval). O método usado nesse capítulo por exemplo era um dos mais comuns, por vezes chamado de balcão da tortura. Era capaz de causar muita dor, mas não derramava sangue, pois todo o dano ficava internamente, geralmente ossos quebrados.

Lembrando que isso eram as condenações feitas pela Igreja. As realizadas pelos senhores feudais podiam ser até piores, visto que não haviam restrições e tudo ia de acordo com o que os nobres achavam pertinente, como o ''enforcar, arrastar e esquartejar'' que é mencionado no capítulo, que quando muito ''inspirados'' por vezes incrementavam castração, estripamento e decapitação. O corpo ficando á mostra durante dias era quase regra.

Quanto a cultura celta e seus ritos, sim, há registros de antropofagia e sacrifício humano em algumas tribos. Contudo, não é possível saber o quão frequente e em que proporção isso ocorria, visto que a maior parte desses registros vem da... Igreja Católica. Mas também há descrições de tais ritos desde os romanos, o que comprova que não era só invenção da Igreja só para demonizar os celtas como muitas vezes ocorria. Obviamente Loki não comete canibalismo, assim como Friedrich não queima pessoas na fogueira ¯_(ツ)_/¯

Listinha dos mitos celtas mencionados no capítulo para quem quiser saber: Banshee o espírito da morte; Revenant os corpos que voltam dos mortos; Baobhan sith a fada vampira; Dullahan o espírito sem cabeça.

Sinto que vocês querem correr atrás de mim com tochas e ancinhos, mas peço mais uma vez que comentem o que acharam! Nos vemos no próximo capítulo. Creio que de agora em diante eu consiga postar um capítulo por semana ;)



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