Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 41
A Paz e o Bem




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O mundo despertou nublado e dolorido. A cabeça lhe maltratava com pontadas, os machucados e arranhões no corpo ardiam em sua pele e o estômago se revirava pela tontura.  A visão lentamente retornava, fazendo-o enxergar novamente a luz que feria sua cabeça ainda mais, junto à confusão que aquele estado profundo de mal estar o trazia. Era como um breve retorno da doença que quase havia o levado á morte um dia, um eterno lembrete de que jamais estaria sadio novamente.

De novo não. Friedrich pensou aborrecido, já sabendo o que havia ocorrido consigo. Porém, o que havia acontecido ao seu redor antes? Começou a questionar-se ao perceber que estava em um lugar totalmente desconhecido.

Havia a revolta, Loki segurava seu braço e...

Em algum momento, ele se foi.

Ignorando a própria vertigem, Friedrich se esforçou para se sentar. Estava em um colchão improvisado que era apenas um cobertor por cima de um pouco de palha, dentro de um salão de pedra muito antigo e um tanto maltratado, que parecia ter sido improvisado como uma espécie de enfermaria. Outras pessoas estavam deitadas ou sentadas ao seu redor, algumas visivelmente doentes, outras machucadas e enfaixadas, todas sendo cuidadas por um monge.

Não foi exatamente um déjà-vu que ele sentiu naquele instante, mas algo semelhante, pois não era algo desconhecido que lhe parecia familiar e sim uma janela de seu próprio passado, como se tivesse sido transportado novamente para sua antiga vida depois de um sonho muito estranho e vívido. Um arrepio de pavor passou pelo seu corpo, enquanto questionava-se o que raios estava acontecendo e o que estava fazendo naquele lugar em específico, encarando o monge com os olhos arregalados e o corpo travado pelo susto.

Porém, logo percebeu que não era um monge da qual reconhecia como de sua ordem. Mesmo com a tonsura de auréola, os gestos silenciosos e o cinto de corda, aquele não era um frade beneditino. O hábito cinza remendado, o corpo franzino de jejum constante e os pés descalços não eram característicos da antiga ordem de Friedrich, mas de um frade franciscano.

Surpreso e ainda tentando assimilar o que acontecia, olhou ao seu redor, esperançoso em ter algum vislumbre do companheiro estando em algum lugar. Quem sabe Loki ainda estivesse em sua companhia, fosse ele tendo o levado ali ou sido encaminhado com ele pelos frades. Contudo, não havia um único fio de cabelo ruivo no recinto.

— Er... Com licença, irmão? – Resolveu indagar ao frade que refazia as bandagens da cabeça de um homem tomado por queimaduras terríveis, possivelmente do incêndio que se sucedera na vila. Mas o religioso não moveu um único músculo em sua direção, parecendo ignorá-lo. – Olá?

— Nem tente, ele é estúpido. Não reage e nem fala. – Outro homem deitado ao seu lado, com talas em uma das pernas, lhe disse em um resmungo de escárnio. No mesmo instante, uma porta rangendo os ferrolhos foi aberta, fazendo surgir outro frade no recinto.

Tratava-se de um homem alto e magro, de nariz aquilino e cabelos lisos castanhos, com os lábios finos em um sorriso simpático, dirigindo um olhar cuidadoso ao enfermo.

— Irmão Lazarus não é estúpido senhor Renier, já lhe disse que ele é surdo, por isso não pode ouvir você. – O frade explicou, mas não pareceu convencer o camponês que apenas deu de ombros e praguejou algo em francês da qual Friedrich não compreendeu.

Assim que os olhos escuros do franciscano miraram em Friedrich que estava ao lado, seu olhar tornou-se surpreso e aliviado ao vê-lo, juntando as mãos como que em prece.

— Ah! Está acordado por fim! Estávamos com medo de que tivesse batido a cabeça com muita força. Ao menos é o que achamos que lhe aconteceu, o encontramos desacordado, quase que escondido entre o chão de uma casa. Se não fosse por nossos cães, quase que não o notaríamos! Como te sentes?

Friedrich ficou com os lábios entreabertos, atônito demais com tanta informação para dizer algo antes de absorver toda a mensagem. Pelo pouco que se lembrava deveria ter convulsionado no meio da rua, de tal forma, alguém teria de tê-lo levado até tal esconderijo inusitado. Indagou-se se poderia ser Loki, e se fosse, por que fora encontrado sozinho e sem ele?

— Apenas... Um tanto confuso. Por gentileza irmão, poderia me dizer onde me encontro? – Perguntou.

— Está no Convento de São João Batista dos Frades Franciscanos Conventuais. Sou o irmão Michael e nosso abade é frei Ezéchiel. – Ele respondeu da forma orgulhosa que Friedrich conhecia tão bem entre os monges para com suas ordens, da qual ele próprio já havia feito e sentido.

— Oh, não sabia que havia um mostei- quero dizer, convento, por aqui.

— Vivemos afastados, mas ainda somos ligados ao trabalho com os fiéis da comunidade de Marseille-Castel. Foi-nos requisitada ajuda pelos acontecimentos terríveis que a revolta causou. Terrível! Terrível, demais! Há muitos desabrigados, feridos e presos... Que Deus nos ajude! Pobres almas desafortunadas... – frei Michael lamentou realizando um sinal da cruz, antes de respirar fundo e forçar uma expressão simpática para Friedrich. – Sente alguma dor? Precisas de algo?

— Estou apenas um tanto cansado, mas nada mais. Agradeço a amabilidade de tua ordem. Contudo... Gostaria de saber onde está meu companheiro, não sei se ele também está aqui ou o que pode ter ocorrido enquanto estive desacordado. – Indagou por fim, ansioso em ver um rosto conhecido e principalmente de quem mais prezava.

— Deduzo que não são daqui, pelo modo que falas.

— Somos ingleses.

— Oh claro, de toda forma todos são bem vindos nessa casa. Pax et Bonum.— frei Michael fez novamente o sinal da cruz ao dizer o lema da ordem. ‘’Paz e Bem’’, um propósito diferente do ‘’Trabalha e Reza’’ que Friedrich costumava seguir. – Quiçá esteja aqui sim, estamos abrigando muita gente aqui no convento. Como ele se chama?

— Loki. És um homem baixo, ruivo e de barba fina, parece ter uns trinta anos. – Descreveu, mesmo que não tivesse muitas esperanças de encontrá-lo ali, pois em seu íntimo tinha certeza que se caso Loki estivesse ali, com toda certeza teria ficado ao seu lado. Ou não o conhecia realmente.

— Hm... Não me parece familiar, e com certeza eu me lembraria de um nome tão... Exótico. – Friedrich podia sentir o ‘’pagão’’ entalado na garganta do religioso, tal como um dia ficou em sua própria língua. – Mas posso pedir aos outros frades, e quem sabe ao pessoal da vila se sabem de alguma coisa. Há mais alguém que conheça? Posso tentar contatar alguém que saiba seu paradeiro.

— Éramos médicos da peste, conhecemos praticamente todos os trabalhadores do hospital, mas creio que encontrará o nosso mestre, Matthieu Delair, com facilidade. Ele deve estar mais a par das notícias, quiçá saiba onde está Loki. – Respondeu um pouco mais animado, pois realmente o mestre Matthieu deveria ter alguma resposta! Ao menos esperava que o próprio também não tivesse sido afetado por toda aquela confusão.

— Ah sim, os médicos! Admiramos muito a coragem de vocês, fazem um trabalho essencial e caridoso com os doentes, estão todos em nossas orações. Mas infelizmente... Fiquei sabendo que o hospital foi interditado. Ele acabou sendo invadido não apenas pelos fugitivos que estava no ossuário, mas pelos soldados que os procuravam, acabou se tornando um completo caos. Não sei ao certo o que ocorreu com os doentes de lá... Mas peço que Deus os tenha. – Frei Michael disse desolado, fazendo os ombros de Friedrich ficarem cabisbaixos. – Contudo, eu conheço Matthieu, é um médico muito conhecido daqui. Creio que esteja bem, se não estivesse todos já saberiam, pois sabe como é, as notícias ruins sempre chegam primeiro.

— Eu ficaria imensamente grato irmão Michael, agradeço muito por toda ajuda que estás oferecendo. – Friedrich disse agarrando aquele único filete de esperança. Já havia quase perdido Loki tantas vezes que lhe seria um verdadeiro terror se tivesse de passar por aquilo novamente, ou pior, descobrir que por fim o perdera para sempre. A mera ideia já lhe arrepiava inteiro de pavor. A notícia da queda do hospital lhe entristecia profundamente, temendo pelo que seria daquela cidade com a peste estando sem qualquer controle, mas sua preocupação por Loki era o que mais lhe doía o coração.

— Não há o que agradecer meu bom fiel, estamos aqui somente com o propósito de ajudar. É o que estamos fazendo á todos – Frei Michael disse com um sorriso plácido e sincero, mas que se desfez ao ver que Friedrich já se punha a se levantar mais rápido do que deveria, cambaleando um pouco pela breve tontura que se fez em seu corpo ainda exausto. – Vá com calma! Tens de se recuperar ainda.

— Não há como eu descansar sem que o encontre, frade. – Disse notavelmente ansioso, resistindo um pouco ao religioso que o ajudava a sentar-se novamente no leito.

— Entendo tua preocupação, senhor...?

— Friedrich.

         – Frédéric. – já estava acostumado a ter o nome mal pronunciado pelos franceses, mas Friedrich ainda franzia o cenho vez ou outra ao ouvir tal pronúncia estranha com o próprio nome. – Eu também estaria afoito caso não soubesse do paradeiro de um dos meus irmãos, mas é preciso cautela neste momento. Pode deixar que eu encontre notícias dele, as trarei para tu assim que possível. Assim poderás revê-lo quando estiver em melhor estado, não seria melhor de tal forma?

Friedrich franziu os lábios, ficando sem silêncio e ainda resistente em aceitar tal proposta. Sabia que parecia ser a opção mais sensata, mas apesar de ser um homem prático, seus sentimentos á flor da pele nublavam parte de sua razão. O desespero de desconhecer o paradeiro da pessoa amada, além de se encontrar em um lugar tão semelhante ao fruto de seus tantos traumas lhe era aterrador. Jamais imaginou que pensaria tal coisa, mas estava encontrando dificuldade em confiar na palavra de um frade.

Sequer é a mesma ordem Friedrich. Acalme-se. Tentou se conscientizar, mas a visão do hábito religioso que antes lhe trouxera tanta paz agora lhe causava um pavor indescritível. Contudo teria de fazer isso, por sua saúde frágil e por Loki. Daria um passo de cada vez, esperando as notícias com paciência, ou enlouqueceria em meio às preocupações.

— Certo. – Friedrich anuiu por fim, fazendo um suspiro de alívio sair dos lábios do frade.

— Lembre-se que Deus sempre sabe o que faz Friedrich, se estás aqui é por um bom motivo. – Frei Michael declarou com a calmaria típica de um monge, fazendo um sinal com as mãos para o outro frade do recinto, chamando-o para perto. – Terei de me retirar para auxiliar as tantas pessoas carentes daqui, mas começarei a busca por tuas respostas. Enquanto isso se precisares de algo, este é frei Lazarus, que está comandando a maior parte dos cuidados com os doentes. Mesmo que não escute, ele é bom em se fazer entender mesmo que tu não saibas os sinais. Também sabe ler um pouco os lábios caso necessário, mas não lhe recomendo tentar, pois também és um tanto teimoso e não gosta da nossa língua.

Frei Lazarus franziu o cenho em uma careta descontente, mostrando que havia entendido parte da última frase. Não deveria ter mais do que vinte anos, sendo um homem baixo e franzino, com um rosto redondo e de feições angelicais, os cabelos lisos eram de um dourado opaco como mel, tendo os olhos escuros atentos a cada movimento. Prestou atenção em alguns gestos feitos por frei Michael, antes de assentir um cumprimento breve para Friedrich.

— Trarei notícias assim que possível. Fiquem com Deus. – Michael declarou e Friedrich agradeceu silenciosamente assentindo a cabeça e forçando um sorriso curto. Ele saiu pela mesma porta de antes, podendo se ouvir o eco de sua voz chamando por alguém pelos corredores, logo aparecendo outro par de monges para auxiliarem frei Lazarus com os doentes.

Friedrich tentou se deitar novamente, descansando como o frade havia lhe recomendado. Contudo, sua mente não o permitia se recuperar, pois Loki não saía de sua cabeça, o coração apertava-se pela dor de não saber onde ele se encontrava e se seria capaz de reencontrá-lo. Já havia passado por situações parecidas antes, lembrando-se do horror que havia sido sua espera em York, a fuga até a França e de todos os breves instantes em que imaginavam estar tudo acabado. Não queria passar novamente por aquilo, temendo um destino ainda mais cruel para Loki, não conseguindo conter os pensamentos trágicos a lhe envenenarem a mente. Teria de ser um engano, um mero susto que logo o traria de volta em seus braços.

Repassou suas últimas lembranças antes da crise, tentando se lembrar de qualquer pista que fosse possível. Mas era somente uma névoa composta por breves lapsos visíveis, como sempre o era depois que despertava de suas convulsões. Friedrich só se lembrava de que o druida havia dito para que não o soltasse, contudo, acabou que em certo momento foi Loki quem o largou. Sabia que não fora por querer, não se lembrava mais exatamente como, mas haviam sido separados á força.

Friedrich lamentava-se pela maldita doença da qual já possuía tanto rancor. Se não fosse por isso, poderia ter ido atrás de Loki assim que suas mãos se separaram, mas apenas havia colapsado no chão imundo enquanto o caos acontecia ao seu redor. Lembrou-se das palavras frei Michael contanto como havia sido encontrado, imaginando um Loki assustado e tentando salvá-lo em meio a todo aquele terror, perguntando-se o que poderia ter ocorrido com ele para tê-lo deixado naquele lugar. Sua garganta doía pela agonia que sentia e não se deixava chorar, tomado inteiramente por culpa e medo.

Meu bom Deus, eu imploro para que Vosso Senhor o proteja. É tudo que lhe peço. Repetia as orações de súplica em sua mente sem parar, pois só poderia confiar nas mãos do Pai Eterno àquela altura. E na honestidade de um frade desconhecido.

Sabia que não suportaria ficar inerte no meio de todos aqueles dolorosos pensamentos quanto ao amado. Acabaria abandonando tudo e procurando por Loki sozinho, mesmo que sem possuir qualquer plano ou pistas para saber seu paradeiro, quiçá realmente faria isso se frade Michael não encontrasse muita coisa. Contudo, sabia que teria mais chances em simplesmente esperar por alguma notícia, resolvendo por tentar manter-se ocupado para conter a ansiedade.

Passou a observar os frades tratando dos doentes, achando interessante a forma como todos se comunicavam devido à presença de frade Lazarus. Friedrich já havia ouvido falar sobre as línguas de sinais que eram criadas para o aprendizado dos surdos, mas nunca havia presenciado tal comunicação de perto. Todos pareciam se entender muito bem, e Friedrich achou muito atencioso da parte dos irmãos ouvintes de se comunicarem em sinais até mesmo entre si para que não excluíssem o não ouvinte. Perguntava-se sobre o que conversavam entre eles, até achando graça os olhares confusos dos camponeses ao redor que não compreendiam muito bem o que se passava.

Mas era notável que eles não estavam habituados com as artes da cura. Apesar de ser o mais jovem, Frei Lazarus parecia ser o mais estudado no caso e passava os conselhos aos outros, – que foram apresentados como frei Zacharie e frei Raphael – mas para Friedrich era notável que seu conhecimento não chegava além do básico, tratando das feridas e queimaduras terríveis dos pobres camponeses apenas com água e sabão junto de bandagens enfaixadas repetidamente. O médico ao ver aquilo não pode evitar certa agonia, não demorando a se levantar por fim e oferecer sua ajuda. O trabalho acalmaria os seus pensamentos.

Os frades ficaram hesitantes no início, porém, Friedrich parecia estar bem e realmente estavam precisando de uma ajuda mais especializada. A informação prontamente foi repassada para frei Lazarus que estava encarregado, com o próprio parecendo ficar até animado com a ideia. Friedrich pediu primeiramente que lhe mostrassem os instrumentos que possuíam, para analisar o que poderia fazer de uso, acabando por se surpreender quando Lazarus o levou em um pequeno laboratório de alquimia que possuía e parecia se orgulhar bastante.

Não era tão completo quanto o que outrora Friedrich teve no mosteiro de São Jerônimo, pois não era de se esperar algo muito requintado da ordem mais humilde de frades, mas para quem tanto improvisara para fazer os próprios experimentos nos últimos tempos para ele já era um grande achado. O próprio olhar alegre e juvenil de Lazarus o fazia se lembrar de seu eu curioso do passado, lamentando que não soubesse como dizer diretamente ao jovem frade algumas palavras para incentivar sua busca pelo conhecimento.

Mas não se deixou levar tanto pelo encanto, pois havia um trabalho a ser feito. Pediu que o restante dos irmãos procurassem por algumas ervas a serem colhidas, pelo menos um mínimo punhado de alecrim para que pudesse conter as febres, enquanto Lazarus o auxiliava nos banhos Maria para criação dos compostos para dor e queimaduras. O rapaz mesmo que não pudesse ouvir qualquer explicação, prestava total atenção no que Friedrich fazia, completamente fascinado com o que estava aprendendo. Foi inevitável á Friedrich sentir o ego aumentado a se ver naquela dinâmica como sendo o mestre do aprendiz, ensinando o rapaz da forma que gostaria de ter sido tutelado quando jovem e curioso com o mundo, mas tendo que buscar todas as suas perguntas sozinho em meio aos livros.

Contudo, por mais ocupado que permanecesse, a preocupação com o paradeiro de Loki ainda persistia em sua mente, cochichando em seus ouvidos como uma pulga implica a orelha de um cão.

— Vejo que irmão Lazarus já lhe apresentou seu covil. – Frei Michael apareceu de surpresa, tarde de noite, quando Friedrich tentava passar alguns ensinamentos ao rapaz escrevendo algumas fórmulas e preceitos ao seu lado para que pudesse guardar tais anotações. Ele exibia o sorriso simpático de sempre, mas Friedrich percebeu que olhou para Lazarus de forma sutilmente repreensiva. Surpreendentemente, em suas costas levava a bagagem de Friedrich e de Loki, algo que chamou muito a atenção do alquimista mais experiente. – Essa velharia está aí desde que o prédio era um seminário! Quem os usava anteriormente era nosso falecido irmão Séverin, que inclusive pereceu envenenado por um de seus experimentos. Ainda assim Lazarus acha interessante.

Friedrich percebeu frei Lazarus revirar os olhos e bufar irritado, pois por mais que não compreendesse exatamente o que Michael dizia, sabia que estava maldizendo mais uma vez de seus estudos.

— Oh frei Michael! Muito obrigado por encontrar nossos pertences. – Friedrich disse agradecido, levantando-se do banco em que estava sentado e se aproximando do frade que já lhe estendia as bagagens. Todas as coisas de Loki estavam ali, alguns pertences haviam quebrado e o sido dinheiro roubado, mas era evidente que o companheiro não chegou a recuperar nada deles, provando que ele não estava com mestre Matthieu. – E admito que como Lazarus também me interesso pela alquimia, aliás, afirmo que ele és um excelente pródigo.

— Não me apeteço pelo ensino erudito, pois creio que ele nos afasta de Deus e do povo. Mas quanto á Lazarus, o conhecendo bem eu sei que ficarás contente com tuas palavras. – Michael declarou, fazendo alguns sinais breves para o irmão surdo que se sobressaltou surpreso, mas em seguida deu um sorriso grato e acanhado para Friedrich como resposta. – Senhor Delair parece estar arrasado com tudo que aconteceu com o hospital, mas sua esposa foi muito atenciosa comigo. Pedi para eles informações quanto a Loki, mas me disseram que não o viam desde antes da revolta. Falaram que a maior parte dos médicos de fora amarrou as trouxas e foram embora por conta da confusão, há alguns feridos sendo tratados por eles, outros acabaram até mesmo presos por terem se acalorado com os soldados! Pergunto-me o que será dessa cidade com a peste agora...

— Por Deus! É pior do que eu imaginava. – Friedrich lamentou, tanto pelas consequências daquele motim, quanto pela falta de notícias de Loki. – Mas então... Realmente não há notícias de meu companheiro?

— Oh, bem... – O olhar tranquilo que Michael se esforçava para manter pareceu vacilar por um instante, fazendo o coração machucado de Friedrich temer pelo que ele poderia dizer, mas ainda assim afoito por qualquer que fosse a resposta. – Matthieu Delair me disse que Loki poderia estar preso junto aos outros, ele até mesmo tentou ir até o manso senhorial dos Castel para saber dos médicos presos, mas toda resposta lhe foi recusada... Como lhe prometi que traria uma resposta, assim como para tantas outras famílias que estamos ajudando aqui, fui até a casa de guarda pedir sobre os presos. Não consegui respostas muito concretas, mas pude confirmar algo... Há a presença de um prisioneiro inglês, de baixa estatura, ruivo e barbado nas masmorras. Não consegui maiores respostas quanto ao motivo da prisão, mas quiçá isso possa ser a resposta que procura.

Friedrich precisou sentar-se. As fortes emoções nublaram sua visão e consciência, pesando-lhe o corpo que só queria simplesmente sucumbir com a notícia.

— Sinto muito Friedrich, infelizmente ando carregando muitas notícias ruins. – frei Michael comentou em um tom melancólico. – Mas não tema, pois os Castel só querem parecer estar no controle para assustar o povo. Há muitos presos injustamente e por motivos torpes, com fé teu amigo logo será liberto depois que a poeira abaixar.

— Mas... Mas o que será dele?! O que posso fazer por Loki? – Indagou inconformado, enquanto Michael se punha a tocar seu ombro de forma amigável e acolhedora, mas que pouco fazia efeito naquele instante de terror para ele.

— Temo que não Friedrich. – Michael declarou cabisbaixo. – Já foi difícil para mim conseguir esse pouco de informação, estão mais fechados do que nunca... Creio que seja pela presença da Inquisição, esses ratos sujos que se tornaram desde o papado do Inocêncio errado...

Um arrepio de puro terror passou pelo corpo de Friedrich, enquanto Michael conversava brevemente com Lazarus.

A Inquisição estava debaixo de nosso nariz o tempo todo! Acredita nisso?! Esses falsários não possuem sequer a coragem de nos encarar.

Inquisição?! Desde quando? Como descobriu?

Vi seus soldados nos calabouços junto de um Inquisitor, parece ser um dominicano da Itália. Tentei descobrir mais, mas logo deram um jeito de me expulsar de lá. Devem estar sob proteção dos Castel e Ancel, por isso não os notamos.

— Por que... Por que a Inquisição está aqui? – Friedrich indagou abalado, ainda tentando discernir a notícia da prisão de Loki.

— Não sei dizer com certeza, mas arrisco que os governantes de Marseille-Castel já suspeitassem de seus próprios servos, chamando o Santo Ofício para já ter autoridades da justiça por perto. Mas não há o que temer para seu amigo Friedrich, eles só pegam os hereges.

Frei Michael poderia estar tentando acalmar o espírito de Friedrich, mas também desconhecia toda a verdade que lhe dava tal visão inocente. Por mais que sentisse vontade de chorar e gritar a plenos pulmões, Friedrich só permanecia sério e se pondo a pensar. Não sabia por que motivo Loki estava preso, mas a Inquisição estar tão perto dele era um grande perigo. Se já não tivesse sido preso pela própria, logo eles descobririam em meio aos presos.

— Sou imensamente grato por tudo que fez por mim Frei Michael, junto a teu apoio pelo meu amigo. Admito que sinto-me encurralado e completamente desolado,  mas pedirei á Deus que acalme meu espírito e me faça ser paciente.– Friedrich forçou um olhar polido, não querendo soar tão desesperado para não causar suspeitas de que o crime de Loki poderia ser mais grave que os frades imaginavam.

— Não há o que agradecer meu bom homem, afinal vejo que foi de muita utilidade neste dia para os doentes. Somos todos gratos por tua ajuda, com toda certeza contarei contigo e teu amigo em minhas orações. Se possível, caso fizermos alguma ação pelos condenados, lhe manterei informado quanto á ele – Michael declarou, antes de olhar para alguns gestos de frei Lazarus que parecia eufórico para saber o que diziam e ser incluído na conversa.

Friedrich agradeceu mais uma vez solenemente, deixando que os dois frades conversassem entre si enquanto saía para caminhar fora do convento, querendo refletir e por os pensamentos conturbados em ordem, tentando encontrar alguma esperança em meio a notícias tão aterradoras.

Não havia mais o hospital de Matthieu, lhe restando permanecer no convento junto aos demais camponeses desabrigados e feridos. Com tal notícia a lhe ferir do coração ao espírito, Friedrich não conseguia parar de imaginar em como Loki estava naquele instante. Estaria ferido? Maltratado? Sentindo-se sozinho? Via-o preso em uma masmorra escura e fria, clamando por sua ajuda e se perguntando se havia sido abandonado pelo próprio amor. Pensando o pior, lamentava-se com uma dor na alma que parecia chegar até seu corpo físico, pensando em Loki que tanto já havia sofrido na vida perecendo sozinho, tal como aquele mundo injusto e cruel se deliciaria em fazer, enquanto Friedrich choraria sem possuir sequer um túmulo para permanecer de luto.

Imaginá-lo sofrendo lhe era demais para sua alma sensível, não conseguindo conter algumas lágrimas enquanto permanecia estático em meio à relva, com o orvalho molhando suas canelas enquanto o vento lhe soprava alguns sussurros de razão naquela madrugada.

Seus lamentos não salvariam Loki, sabia bem disso. Precisava agir, mesmo naquele instante em que tudo parecia perdido, tal qual um dia pensou estar condenado á morte e guardado por soldados da Inquisição, havia conseguido escapar das garras da justiça. Poderia fazer de novo com Loki, só precisava pensar em como.

 Daquela vez Friedrich estava preso em um mosteiro, não em um calabouço, um lugar da qual conhecia e sabia se esgueirar perfeitamente. Com Loki, já lhe era difícil simplesmente chegar até ele, imagine tirá-lo de lá! Pois Loki era um mero plebeu preso na teia formada pela nobreza e o clero. Nem mesmo burgueses como os Delair ou quaisquer dos médicos que conhecessem possuíam poder o bastante para desfazer aquelas amarras. Friedrich se via há muitos muros de distância onde o amado estava contido, não tendo qualquer chance em suas mãos para que pudesse ultrapassá-la. Ninguém o ouviria daquele jeito, mesmo se ousasse tentar ele poderia acabar tendo o mesmo destino que Loki.

Mas frei Michael conseguiu adentrar. Friedrich refletiu durante o amanhecer, com o sol alaranjado ascendendo o céu fazendo de seus cabelos de palha tão dourados quanto o ouro. Sabendo por experiência própria que apenas uma classe igual ou superior à dos algozes poderia chegar até Loki.

Abandonou a visão tranquila e silenciosa da colina, retornando com passos firmes até o convento. Estava temeroso com a própria ideia, mas sabendo que era sua única chance de conseguir alcançar o druida.

— Frei Lazarus. – Friedrich interrompeu o pobre rapaz que ainda àquela hora tomava conta dos doentes, pegando-lhe pelos ombros e o fazendo prestar total atenção em suas palavras para que compreendesse o que se formava em seus lábios. – Preciso que me leve até teu abade. Eu sou irmão Friedrich, um consagrado da ordem dos frades beneditinos.

O jovem frade assentiu visivelmente atônito, onde mesmo estando em dúvida se realmente havia interpretado certo as palavras de Friedrich, ele atendeu seu pedido.


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Notas finais do capítulo

Notinhas históricas:

Papa Inocêncio IV, mencionado por frei Michael no capítulo, de inocente não tinha nada (como a maior parte dos papas da época para ser bem sincera). Foi Papa durante os anos de 1246 até 1254, sendo conhecido por conceder permissão para a Inquisição utilizar da tortura contra os seus suspeitos e condenados de heresia. Ele menciona ser ''o Inocêncio errado'', pois quem aprovou a criação da Ordem Franciscana foi outro papa de mesmo nome, Inocêncio III, considerado o mais importante da Idade Média por conta de seu número de feitos, alguns nobres, outros controversos.

Falando na ordem franciscana, ao contrário da beneditina que Friedrich fazia parte, ela era um tanto controversa nesse período. Além de ser uma ordem ''moderna'', ela era mais polêmica que a dominicana que era tão nova quanto, pois eles possuíam ideais muito diferentes dos que a Igreja pregava até então. Eles não eram adeptos a mesma hierarquia do clero da época (por isso viviam em conventos, não em mosteiros, isso se não eram andarilhos), podiam até possuir um abade que os representasse, mas que era visto como um igual em meio a todos os monges. Mas a maior intriga era por serem mais radicais quanto ao voto de pobreza e como criticavam muito o clero no geral por conta disso. Enfim, eram afrontosos pra época, então já podem imaginar as tretas.

Digam o que acharam do capítulo, suas teorias que devem estar pipocando, e deixem um voto para ajudar a história!

Aliás, se quiserem dar uma força aqui para a autora, vocês podem ler enquanto está presente no Nyah minha outra obra já finalizada ''Eu sou você. Nós somos ele'', que será lançado na amazon em e-book e livro físico dia 16!

Até o próximo capítulo!



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