Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 40
A Revolta e os Cavaleiros


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Novo update do assunto que comentei no capítulo passado.
Não irei fazer exatamente como havia dito, pois como Ode já está se aproximando de seu final, eu irei postar sim todos os capítulos aqui, então vocês ainda poderão ler o final da história aqui no Nyah mesmo ^-^ Só quando chegar as inscrições do Wattys lá por Agosto os capítulos terão de ser retirados, mas se quiserem reler Ode a história ainda estará lá no Wattpad!!
Como sempre, boa leitura! ^-^



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A vida seguiu corriqueira naqueles primeiros dias de primavera, onde o frio tornava-se sereno e se esvaía lentamente para dar lugar as gramíneas e flores, ou o mais corriqueiro que era possível para uma dupla de andarilhos, da qual a rotina dificilmente era constante. De alguns dos diversos momentos mais intrigantes que se sucederam naqueles dias, fica agora ao cargo do narrador realizar um breve sumário ao leitor:

Houve uma tarde em que ajudaram uma criança perdida na floresta a voltar para casa, para no final notarem a falta de algumas moedas e descobrirem que era um golpe;

O dia em que dois pardais perseguiram Loki por vingança depois que ele tentou abatê-los com um fundíbulo;

Quando no carnaval disputaram quem aguentava mais vinho e Loki descobriu da pior maneira sobre o quão resistente à bebida Friedrich era (estando de jejum pela quaresma ainda por cima!), ganhando assim a pior ressaca de sua vida;

O dia em que Friedrich se impressionou ao ver Loki o acompanhando á missa de domingo, até entender que era só para assistir as peças teatrais de Páscoa;

A vez em que fizeram amizade com um bardo e discutiram seriamente sobre a existência ou não de Robin Hood, do qual Loki acreditava piamente;

Quando ao tropeçar, sem querer Friedrich praguejou uma obscenidade, mas por mais que tivesse pedido perdão á Deus, não recebeu o mesmo tratamento do companheiro que caçoou e riu dele por dois dias seguidos;

O dia que Loki comemorou orgulhoso por já conseguir fazer três voltas de trança na ponta da barba, Friedrich tentou convencê-lo a cortar, mas o druida foi irredutível;

A longa briga que tiveram por Loki ter apostado dinheiro em uma justa de cavaleiros (e perdido), ficando dias sem se falarem por conta da mágoa, até se esquecerem por um breve instante por que estavam irritados um com o outro e só relembrarem quando já haviam feito amor de novo;

 A vez em que Loki tentou ensinar Friedrich a usar uma machadinha para se defender, mas o alquimista acabou a prendendo para sempre ao finca-la com muita força em uma árvore, perdendo assim a primeira arma que ganhou na vida;

O momento de glória quando Loki ficou como terceiro colocado em uma competição de arquearia e ganhou um belo arco novo como prêmio, mas no fundo ficou um tanto decepcionado por não ter recebido algo em dinheiro;

Dentre tantos outros pequenos acontecimentos a preencherem a vida inconstante dos dois andarilhos.

Passaram os últimos dias em um feudo afastado de Paris, mas ainda na região por onde passava o Sena, chamada Marseille-Castel. Era uma bela vila tomada de casas de enxaimel e porões de pedra a ornarem junto aos muros da cidade, muito bem organizada e com uma população considerável, demonstrando já ter tido muitos anos de glória, mas que parecia ter decaído muito pela presença de três cavaleiros do Apocalipse da qual todos já estavam acostumados: Fome, Peste e Morte.

Eles se juntaram com mais médicos da peste, por mais que no início o plano era apenas passarem pela cidade, acabaram conhecendo um médico formado e bem conceituado chamado Matthieu Delair, que ao conhecê-los se impressionou com todo o saber que possuíam mesmo que nunca tivessem pisado em uma universidade, logo oferecendo para eles um lugar dentre os médicos. Teriam pouso, comida e soldo, tornando-se uma oportunidade vantajosa para eles.

Matthieu era um homem robusto, de pulso firme e humor enérgico, mas que por trás da feição carrancuda possuía um coração de ouro de um homem que só queria ajudar sua cidade de origem, abandonando a chance de ganhar renome e notoriedade na grande Paris. Ele havia reaberto um velho leprosário como um hospital novo alguns poucos anos do aparecimento da peste, o comandando de forma autoritária, porém justa.

 Desde a chegada da peste eles haviam concentrado todos os doentes no hospital, que ficava mais afastado do restante da vila, em uma baixada protegida por muros de madeira defasados. Os médicos rondavam o lugar como cães de guarda, impedindo que o restante das pessoas entrasse naqueles domínios infectados.

Era difícil e doloroso ter de fechar os portões ou segurar os familiares e amigos desesperados para ter nem que um último vislumbre de seus entes queridos, ou quando precisavam arrastar á força os enfermos que lutavam para não serem trancados dentro do lugar.  Mas era um mal necessário, uma última alternativa desesperada que encontraram de conter a doença, visto que quando tentaram trancar as casas dos doentes muitos acabavam não acatando a ordem e andavam pelas ruas, pois como a peste acabava por ser uma sentença de morte, muitos dos enfermos ficavam eufóricos e tentavam aproveitar o máximo de vida que tinham com bebida e festa, mas acabando por levar outros a lhe fazerem companhia nas covas.

Era o preço que tinham de pagar pela ignorância e teimosia alheia para que todos não sucumbissem à peste negra, vestindo a máscara cruel da racionalidade e tornando o espírito frio e apático.

Aquele havia sido um dia difícil, na realidade sequer dava para se definir algum dia naquele trabalho como sendo fácil. Porém, Friedrich já se sentia esgotado por completo, percebendo que provavelmente era melhor parar pelo bem de sua sanidade, ao se sentir profundamente abalado depois de ter que assistir um homem com a filha pequena nos braços doente pela peste, chorando copiosamente enquanto a entregava aos médicos. A quantidade de tragédia havia transbordado para ele lidar, preferindo se isolar por um momento longe dos fantasmas.

Procurou Loki pelo hospital e depois de questionar alguns dos outros médicos, descobriu que ele havia saído. Imaginou que o druida também estivesse cansado e o conhecendo bem, Friedrich sabia onde poderia encontrá-lo nesses casos, o lugar para onde ele sempre rumava em busca de consolo.

Retirou toda a roupa pesada e escura de seu ofício, saindo da propriedade e rumando até o bosque que ficava além do vilarejo, que naquele dia estava em um silêncio estranho, com os camponeses o fitando de maneira desconfiada e arredia. Friedrich ficou intrigado com tal comportamento, vendo os homens do campo perambulando em bando com foices e enxadas em punho, mas não seguindo em direção aos campos. Contudo, não se deixou levar muito por esses pensamentos conforme adentrava na floresta e procurava pelo parceiro.

E como esperado, ali ele estava, como se fosse o próprio também uma entidade da floresta. Estava de costas, sentado de cócoras em uma clareira, com a luz alaranjada do crepúsculo a espiar nas frestas das árvores que mesclavam suas cores com os cabelos de fogo. O druida concentrava-se em completo silêncio a confabular com as árvores, estas que ao seu redor estavam o observando com rostos humanos que ele havia talhado em seus troncos na calada da noite.

Como se aquele lugar fosse ligado á ele, Friedrich não precisou fazer um único som para ser notado, tendo os olhos de gato o encarando vivamente em seguida. Friedrich logo notou a oferenda em sua frente, ficando impressionado, não pelo sacrifício em si que dessa vez ficou agradecido por não ser um animal morto, mas por Loki ter acendido uma pequena fogueira para isso.

Um boneco de palha era consumido pelas chamas, tão bem feito que era até uma pena ver todo aquele trabalho minucioso e delicado sendo destruído. As labaredas tomavam os braços e pernas, tornando-os negros e lentamente em cinzas, até sobrar somente uma figura deformada do que um dia pareceu representar uma pessoa. Loki voltou a olhar para a fogueira, com as esmeraldas encarando a própria criação e destruição daquela forma mística que arrepiaria a espinha de qualquer um que cruzasse seu caminho, estando ele no estado em que era mais bruxo do que homem.

O cristão conteve-se para não realizar um sinal da cruz, pois por mais que havia aprendido a conviver com o parceiro pagão, preferia permanecer a certa distância de seus ritos. Mas apesar da apreensão com o desconhecido, Friedrich sentia-se um pouco tentado a questionar o que aquilo significava exatamente, porém, não sabia se o druida queria ser interrompido, permanecendo calado. Em silêncio, observou com certo orgulho ao ver o companheiro enfrentando os próprios medos, visto que desde que havia conhecido Loki, o homem sempre protelava o máximo que podia para não estar próximo do fogo, fazendo fogueiras somente quando muito necessário.

— É pela primavera. – Loki comentou em certo momento, remexendo a figura já completamente disforme no fogo com um graveto, fazendo faíscas surgirem diante deles como uma chuva de estrelas. – É um gesto simbólico, com o fogo consumindo a figura do inverno para dar lugar á nova estação, pois assim como ele destrói e mata, é com o próprio veneno que deve ser derrotado. Mas o rito também é uma homenagem e agradecimento.

— A quem? – Friedrich indagou, mesmo que já suspeitasse o que poderia ser. Os deuses.

A Mãe. A única que apesar de também não conhecer o nome, tenho do que chamar. – respondeu antes de se pôr de pé novamente, batendo o pó das vestes. Loki deu mais uma olhada ao redor da floresta, estudando suas faces e ficando intrigado com o seu silêncio, como se tivessem medo de dizer algo. Porém, havia corvos espreitando nas sombras, os arautos da Morte, junto a uma sensação estranha de que estava sendo vigiado. Loki não conseguia dizer a certo como e onde, mas sentia fundo em suas entranhas de que não estava seguro. – Não gosto desse lugar, possui uma aura estranha. Acho melhor partimos ainda essa semana.

Virou para Friedrich em busca de uma resposta, mas encontrou o companheiro parado e com o olhar estático, encarando o nada com as pupilas minúsculas. Loki franziu os lábios, imaginando que provavelmente teria chocado o parceiro com suas crenças pagãs.

— Vamos Freddie, prometo que não irás ao Inferno por isso. – Disse começando a caminhar, mas parando ao ver que o companheiro não se movera. Achando estranho, se aproximou dele que ainda exibia a mesma postura engessada, balançando a palma na frente de seu rosto para atestar sua consciência. Nem um piscar de olhos. Ficou atônito e preocupado, não sabendo se deveria fazer alguma coisa ou simplesmente esperar que ele se recuperasse do transe.

Inde venturus et judiare vivos et mortuos... — Friedrich murmurou em determinado momento, mas de forma apática e ainda não estando presente por completo.

— Friedrich? – Loki indagou incerto se o parceiro lhe ouviria.

— Sim, Loki. – ele respondeu tranquilo de repente, como se nada tivesse acontecido e estranhando o olhar apavorado do companheiro. – Está tudo bem?

— Não com você. – declarou resoluto, enlaçando o braço de Friedrich no seu e o levando de volta para a vila. O alquimista franziu o cenho confuso, mas não demorou a se dar conta do que Loki dizia, sentindo aquele gosto estranho em sua boca que tanto temia. – Acho melhor nos darmos o resto do dia de folga.

— Certo... – Respondeu desconcertado, deixando ser levado pelo companheiro que se esticou para lhe dar um beijo afetuoso em seu rosto antes de prosseguir.

Andaram por alguns minutos através da floresta fechada, perambulando uma fina e abandonada trilha que levava de volta para a civilização. Porém, ao invés de estarem somente no meio das árvores ouvindo o canto dos pássaros tranquilamente, um cheiro de fumaça começou a tomar conta do lugar, muito forte para ser advindo da pequenina fogueira de Loki. O druida ficando temeroso segurou mais forte a mão do parceiro, que notou seu desconforto.

— Será um incêndio...? – Loki indagou, mas logo ambos se sobressaltaram com o som de gritos, junto ao de aço chocando-se, madeira quebrando-se e o fogo a crepitar em meio ao barulho de centenas de passos apressados. Friedrich estremeceu, sentindo um temor que há muito não sentia e sequer imaginava que o fosse sentir novamente, pois ele reconhecia aqueles sons, tratava-se da cantiga tenebrosa de uma batalha, o maior palco para a dança da morte!

— O feudo deve estar sendo invadido. – declarou atônito, ambos ainda estagnados no meio da floresta enquanto ouviam a desordem ao longe. Loki o segurou com mais força, em um misto de proteção e medo.

— Bobagem! Não deve ser nada demais. – Loki declarou fingindo pouco caso, por mais que não tivesse segurança em suas próprias palavras.

Friedrich não retrucou além de fitá-lo com o canto dos olhos. Ambos sabiam e sentiam que não parecia ser algo tão simples, mas não queriam expor seus medos em voz alta. Permaneceram estagnados na floresta por vários minutos, indecisos se continuavam ou não a caminhada, mesmo que soubessem que não havia realmente uma escolha. A floresta não os protegeria, pois adiante o resto dos muros feudais os isolava da real liberdade, enquanto os troncos das árvores e as folhas no chão ameaçavam espalhar o fogo com mais velocidade e os cercando por completo.

Chegaram à vila se deparando com pura fumaça negra tomando conta do lugar, com pessoas correndo de um lado para o outro tossindo e escapando do fogo. Mal dava para se enxergar um palmo de distância, tornando o caminho mais difícil, onde por vezes acabavam esbarrando em alguma coisa ou até em outras pessoas. Os pulmões e a garganta ardiam, os fazendo tossir tanto que os olhos lacrimejavam.

O cavaleiro da Guerra havia chegado para completar a profecia do Apocalipse.

— Não solte meu braço, por nada.— Loki mandou olhando da forma mais firme que conseguia para Friedrich com os olhos espremidos pela fumaça. Apesar do tom firme, o medo era notável em sua voz. Seu coração se acelerava como se prestes a rumar em fuga iminente, retumbando ainda mais forte quando a visão das chamas se fizeram presentes. Pensava que o fogo pudesse persegui-lo como uma raposa corre agilmente até sua presa, e isso o apavorava.

Sem terem outra opção, continuaram caminhando com passos cautelosos e desviando o caminho pelas ruelas para evitar o fogo. Contudo, não foram os únicos a terem tal ideia, tendo que lutarem para não serem derrubados e consequentemente pisoteados pela multidão. Aqui e ali conseguiam ouvir os gritos alheios, não conseguindo distinguir bem entre os clamores de misericórdia e palavras de desespero, mas acabaram pescando alguma informação do que havia acontecido.

O fogo! Foi ateado, eu vi com meus próprios olhos! Atearam fogo em todo feno!

— Não é um incêndio! É uma guerra! Uma guerra!

— Irão destruir a vila!

— O próprio povo daqui! Queimaram de propósito, querem matar-se e levar todos nós juntos!

— Um motim! Um motim dos fazendeiros!

Loki tropeçou ao ser empurrado com força por um homem grande e desesperado pela fuga, o druida teria desabado se o companheiro não o tivesse segurado firme. Temendo serem espremidos por aquela loucura, arriscaram retornar á central da vila, guiando-se pelos muros do feudo.

O fogo subia pelas casas de madeira e tomava seus telhados de palha, alastrando-se rapidamente. Puderam ver entre a fumaça e as chamas dezenas de soldados, alguns de armadura completa, outros com cota de malha e brasão, mas todos com arma em punho. Porém, não estavam ali para ajudar a conter o incêndio, mas ao povo, que com as armas que tinham disponíveis em punho tentavam batalhar contra as forças do Lorde.

Não era um acidente, nem invasão. Era uma revolta.

Com as espadas longas e afiadas, os soldados facilmente atravessavam o crânio e o peito dos homens que tentavam batalhar com cutelos e foices. O que os camponeses conseguiam no máximo era usar da agilidade de suas vestes leves para derrubar os oponentes que não conseguiam se reerguer rápido estando vestidos com tanto aço, aproveitando a oportunidade de um soldado caído para ter o elmo retirado e a cabeça esmagada á marteladas. Mas apesar do povo ser a maioria, não tinham nada que os protege-se e havia poucas armas para lutarem, sendo o seu sangue o que mais escoava nas ruas de pedra. Em determinado ponto, no meio da cegueira da fumaça e da emoção da batalha, aos cavaleiros já não importava mais quem aparecia por perto, se um rebelde ou camponês assustado, era degolado no mesmo instante.

O plano dos lavradores não funcionara contra as forças da cavalaria da cidade, não restando alternativa que não fosse recuar. Largavam as armas e se punham a correr de volta para seus esconderijos e perdendo-se nas ruelas. Porém, seus rostos rebeldes já estavam marcados na mente da cavalaria, que tinha a missão de conter todos os rebeldes que quebravam o juramento de servir completamente os donos da terra.

Loki tirou a machadinha que tinha atada ao cinto, firmando a mão direita que a empunhava. Concentrando-se completamente em um possível oponente, a única coisa que passava por sua mente era a própria sobrevivência e a de Friedrich. Contudo, por mais que fosse o guerreiro da história, foi Friedrich quem se atentou para um detalhe alarmante. Sem terem mais para onde irem, as pessoas corriam para um caminho muito específico e que antes tanto evitavam.

— Estão nos cercando Loki. – Friedrich disse cauteloso, enquanto escondiam-se por baixo de uma ponte de pedra enquanto o caos acontecia acima. – Não há lugar para fugirem... Olhe! Estão correndo para os caminhos sombrios daqui!

— O que está querendo dizer Friedrich? Não me lance enigmas agora!

— Estão indo para o ossuário! À casa dos mortos! – declarou com urgência nos olhos arregalados. – Devem achar que os soldados não os seguirão lá! Ou que conseguirão se esconder no meio dos labirintos. Mas ninguém pode entrar Loki, pois seu caminho está ligado ao hospital!

Um breve silêncio tomou-se entre eles enquanto Loki absorvia as palavras de Friedrich, lembrando-se do tanto de corpos mortos pela peste que haviam jogado no subterrâneo, deixando-os apodrecer lá dentro a infectar as entranhas da cidade. Os ossuários eram monumentos essenciais das cidades velhas e populosas, sendo caminhos subterrâneos que poderiam até mesmo ir além do tamanho de seus feudos, tornando-se verdadeiras cidades habitadas por fantasmas, construídos como um grande depósito de mortos que não possuíam espaço algum na vida lá em cima, assim escondendo todos os ossos diante dos pés dos vivos.

O druida arriscou espiar por entre as pedras, vendo o povo e principalmente os rebeldes fugindo para um único caminho. Quiçá em sua ignorância de leigos não acreditassem que os mortos podiam lhe fazer mal, ou que no desespero do sangue nas ruas a razão havia escapado de suas mentes apavoradas, como ovelhas assustadas com a tempestade correndo até o precipício.

— Oh deuses... – Loki exclamou atônito, prevendo a forma como aquela tragédia poderia se tornar ainda mais catastrófica. – Será que os outros médicos conseguirão segurar os portões?!

— Podem fechar o portão ligado ao hospital, mas com tantas pessoas eles terão de lutar para trancar o que se liga à cidade. Temos de voltar Loki!

Fitaram-se em um silêncio desconcertante entre eles, enquanto o mundo lá fora se acabava em caos. Havia medo em seus olhos, o temor de perderem um ao outro, mas também aquele lado honrado que ambos possuíam de não conseguirem deixar os próprios companheiros para trás. Como dariam as costas diante das pessoas que juravam proteger? Não perdoariam a si mesmos se simplesmente dessem as costas sem pelo menos tentarem.

— Nós vamos até a entrada do ossuário e vemos o que podemos fazer, mas se estiver muito ruim, damos o fora. Entendido? – Loki indagou sério para Friedrich que assentiu prontamente.

Saíram do esconderijo ás pressas, voltando a correr em meio ao fogo e da histeria coletiva. Loki ainda mantinha a machadinha empunhada, olhando para todos os lados temendo algum ataque. Com a visão periférica, chegou a notar que mais soldados apareceram para ajudar os anteriores, tentando conter com espadas e porretes a violência instaurada. As primeiras correntes já eram postas, os prisioneiros acumulados e empurrados em direção aos calabouços.

De forma sorrateira, chegaram próximos da entrada do ossuário. Tratava-se de uma cripta por baixo da terra selada com grandes portões de ferro, contudo, como raramente eram fechados, estavam sendo invadidos pelas pessoas querendo se esconder dos soldados. Com dificuldade, puderam visualizar em meio a multidão o porteiro e alguns médicos conhecidos tentando fechar os portões, mas sendo empurrados para trás e perdendo o controle do lugar. A multidão se foi, escondendo-se nos labirintos da morte enquanto eles observavam desolados com as mãos vazias por não terem nada que pudessem fazer.

Loki ainda sentia-se estremecer pelo fogo, pois não importava o quanto ele evitasse olhar para as chamas, elas pareciam persegui-lo. O caminho tranquilo da qual estavam acostumados a fazer nos últimos dias tornou-se caótico, donde de nada possuíam controle. Um cavalo as pressas passou por eles, aparecendo tão de surpresa em meio a fumaça que sequer puderam distinguir se havia ou não alguém o montando, quase os atropelando se não tivessem cada um pulado para uma lateral.

Friedrich! — Loki gritou apavorado ao visualizar á alguns passos de si o companheiro caído no chão. Aos tropeços correu até ele, percebendo os movimentos repleto de espasmos e os olhos vazios de uma convulsão. – Não, não meu amor...!

Apavorado, Loki tentou trazê-lo em seu colo, mesmo que de forma desajeitada pelos movimentos involuntários dele. Olhou para os lados temeroso que alguém tivesse testemunhado aquilo, mas o povo parecia mais preocupado na própria sobrevivência. Pegando Friedrich por baixo dos braços, passou a tentar arrastá-lo até um lugar seguro.

Acima dele janelas de vidro escuro explodiram para fora por conta do calor, expelindo fumaça negra para todos os lados. Loki não conseguiu evitar um grito de pavor, não o fazendo por querer e sim pelo medo mortal que possuía do fogo. Acabando por chamar certa atenção da qual não deveria.

Um cavaleiro que passava por ali o reconheceu como sendo um dos médicos da peste, desmontando do animal e se aproximando do camponês atordoado que parecia socorrer um ferido, esperançoso de que falando com ele quiçá conseguisse adentrar o hospital e pegar os rebeldes através de sua entrada do ossuário.

Loki posicionou Friedrich entre um vão da fundação de uma casa para ficar protegido, passando a analisá-lo com medo de que se engasgasse e parasse de respirar como acontecia por vezes. Subitamente, sentiu seu braço sendo apertado com força, ativando seus instintos mais selvagens em meio ao pavor, virando-se na hora com a machadinha em punho e amassando o elmo do cavaleiro.

O druida sequer teve tempo de pensar na besteira que havia feito, pois a espada do cavaleiro ergueu-se para ameaçar sua garganta, Loki ergueu a machadinha para conter o golpe, usando toda a força de seu braço para manter a lâmina longe. Conseguiu afastar o soldado por um breve instante, se desequilibrando para trás. Loki tentou fugir, mas foi pego pelo colarinho e derrubado pelo soldado experiente que prendeu seus braços para trás como se fosse gado.

— Temos mais um rebelde aqui! – O cavaleiro anunciou, fazendo um arrepio de pavor passar pela espinha de Loki.

Não! Seu maldito! — O druida gritou tão irado e desesperado que pronunciou em sua língua mãe. Tentava reerguer-se, mas o peso do homem acima dele parecia o mesmo que de um cavalo ou uma rocha. Esfregando o queixo na terra, virou a cabeça para todos os lados á procura do companheiro.

Loki tentou gritar por Friedrich, mas só foi arrastado para cada vez mais longe dele, ficando com o coração pesando muito mais que as correntes presas em seus pulsos.


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Notas finais do capítulo

Bem vindos ao arco final :)
Como sempre, comentem o que acharam! Até o próximo capítulo ^-^



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