Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 39
Os Demônios e o Exorcista


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal!!! Preciso conversar uma coisa com vocês leitores aqui do Nyah... Senta que lá vem história.
Nesses dois anos postei Ode aos desafortunados tanto no Nyah quanto no Wattpad, onde apesar de conseguir mais visibilidade e interação no segundo, prossegui as atualizações para os leitores daqui, pois cada um de vocês para mim são importantes ♥ Inclusive, no Wattys, que é o maior concurso de escrita do Wattpad, eu não participei no último ano por conta da criação da regra de exclusividade do site. Porém, esse ano o Wattys irá ser exclusivo de histórias completas, e como Ode está próximo do seu final, pensei em inscrevê-la quando terminar... Contudo, a regra de exclusividade do Wattpad continua.
Não quero e nem pretendo retirar Ode aos desafortunados aqui do Nyah, mas provavelmente eu não postarei o final da história aqui, quem sabe até retire alguns capítulos daqui e deixo a história completa apenas no Wattpad. Vocês ainda podem ler o restante da história por lá, Ode não vai para nenhum lugar distante não kk
Se Ode não vencer, eu posto tudo aqui normalmente. Mas se por um milagre der um resultado, então terei de deixar a história incompleta por aqui.
Ainda não é nada certo, estou ainda pensando sobre isso, mas já gostaria de avisar vocês antecipadamente. Gostaria de ouvir as opiniões de vocês quanto a isso. Agradeço a compreensão ♥



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A ardência depois dos cortes podia ser ainda mais dolorosa do que o vergão em si, contudo, era isso que fazia Adrian sentir-se melhor. Daquela forma apenas se concentrava nas próprias feridas, esquecendo as dores que estavam na alma, mergulhando no próprio sangue ao invés dos tormentos dentro de si, no qual por um breve instante era capaz de sentir paz.

Por um breve e muito curto instante. Então tudo retornava.

— Flagelista estúpido... – Rosnou para si mesmo, jogando a lâmina longe que tilintou no chão de pedra, escondendo o rosto nas próprias mãos, deixando o sangue pingar no chão e em seu hábito.

Já fazia semanas que não realizava tais práticas, onde mesmo que cada dia fosse uma luta, chegou a pensar que estava melhorando. Queria causar uma boa impressão nos monges dali, desfazer com o tempo os boatos sobre sua pessoa. Mas mais uma vez, Adrian havia falhado. Sentia-se péssimo por isso, onde de forma quase sarcástica consigo mesmo tinha vontade de se torturar ainda mais.

Não podia deixar que descobrissem sua reincidência no vício, por isso, mesmo que aquela ânsia diabólica ainda sussurrasse em seu ouvido para que continuasse e assim se sentir bem mais uma vez, Adrian conteve-se e tentou da melhor forma que pode limpar seus rastros.

A maior parte de pano e tecido extra que tinha acabou usando para limpar as feridas mais salientes dos braços, mas não possuía o bastante para estancar todos os cortes. A simplicidade das celas não o favorecia com muitos suprimentos, o obrigando a ter que arriscar procurar pelos armazéns do mosteiro por bandagens, tendo que segurar alguns tecidos avulsos nos braços enquanto percorria os corredores escuros.

Andou de forma cautelosa em direção á uma das dispensas, mas deteve sua caminhada ao ouvir uma movimentação estranha vinda de lá. Começou a dar passos largos e silenciosos como os de um felino, curioso e ao mesmo tempo temendo o que raios acabaria descobrindo. Sabia muito bem que depois do toque de recolher um monge só sairia de seu claustro se fosse para fazer algo da qual não deveria. Fosse algo banal como nas vezes que teve de expulsar irmão Friedrich da biblioteca a ler livros proibidos, ou mais problemáticos como quando frei Aedan pulava as janelas para se encontrar com meretrizes.

Contudo, não foi um frade quem ele encontrou.

Adrian refletiu se deveria ou não fazer algo quanto aquilo. Sendo a força de impulsividade e revolta em pessoa, teria feito com certeza. Porém, já havia sofrido muitas consequências por se meter onde não era chamado, e por um instante hesitou. Só por um instante, pois nem no Céu ou no Inferno ele seria capaz de simplesmente aceitar um padre a revirar o território dos beneditinos!

— Já não basta o que roubam do povo, agora hei de tirar dos frades também?! – Disse de forma ríspida, tentando conter o tom para o mais baixo que conseguia. Se não estivesse na situação que estava, provavelmente faria questão de acordar o mosteiro inteiro para ver o sacrilégio diante de si!

Padre Isaaces se sobressaltou, batendo a cabeça na quina de uma das dispensas e arquejando de dor, encarando frei Adrian atônito e com uma leve irritação no olhar, arrumando os óculos que quase pularam de seu rosto.

— Que eu saiba os frades de nada podem ter propriedade, logo, como se rouba algo que não é de ninguém? – O padre ergueu as sobrancelhas em malícia, sentando-se no chão e abrindo uma garrafa de vinho, o som da rolha tomando o ambiente como a raiva subia pelo rosto do monge. – Aliás, posso ser bêbado, mas tens de admitir que és deveras suspeito vós fazeres tanto vinho para si. Vossa classe possui muito mais fama neste quesito...

Como se para implicar, Isaaces tomou um longo gole da bebida, sem tirar os olhos de Adrian que se sentia estremecer de ódio.

— Pelo visto realmente não é atoa que os padres o escondem de todos. És uma verdadeira vergonha á toda classe! Consegue fazer com que eu até sinta pena dos seculares por tê-lo ao vosso lado. Deveria se envergonhar de teus atos vis e sofrer toda a humilhação na pele como castigo! Por mim, poderiam tê-lo deixado rastejando na Igreja mais cedo. – Adrian declarou sem se importar com o veneno que escorria de seus lábios, ficando sadicamente satisfeito ao ver o homem encolher-se sem resposta por um instante.

— Tens a língua deveras afiada para a ordem mais silenciosa. – O padre retorquiu, apoiando-se em uma mesa de madeira á sua frente para se levantar, encarando determinado o frade com os olhos cinzentos. – E ignorante também, visto que de nada importa o que os seculares pensam, pois sou parte da Ordem Menor.

— Não tente esbanjar conhecimento com um frade beneditino seu herege. És exorcista, correto? Logo, teve de ser ordenado sacerdote antes de aprender tal ofício. Faz parte das duas ordens.

— Certo. Certo. – Ele revirou os olhos, olhando-o com impaciência. – Vá chamar teus irmãos, teu Abade, a Virgem Maria! Não me importo, só queria um gole depois de ficar com a garganta seca. Estarei esperando aqui junto ao vinho até que me expulsem. Carpe diem.

Adrian abriu a boca para dizer um provável ‘’É o que hei de fazer!’’, mas conteve-se, apertando mais o lenço contra o braço esquerdo, as feridas lhe ferroando enquanto sentia o sangue escorrer do outro braço desprotegido e molhando o hábito escuro. Bufou descontente, indo em silêncio vasculhar as despensas e prateleiras, sentindo-se incomodado com o olhar do padre que não parava de lhe seguir. Teve de deixar o lenço em cima da mesa para que conseguisse procurar nas prateleiras mais altas, encontrando por fim algumas bandagens separadas para emergências.

— Como te feriu tanto assim? – Isaaces indagou surpreso ao ver a quantidade de sangue a manchar o tecido. – Irá desmaiar se perder mais sangue.

Adrian o ignorou, se atentando em ficar de costas para ele enquanto enrolava sem muito jeito os curativos pelos braços, mordendo os lábios para não arquejar com a dor.

— Deixe-me ver isso... – Adrian sentiu a mão do padre a lhe tocar o ombro, se assustando e o empurrando para longe.

Não me toque!— Esbravejou apavorado e irritado, enquanto tentava esconder as feridas nas mangas grossas do hábito, mas por estas serem um tanto largas, o padre acabou espiando um pouco sua pele.

— Não seja estúpido, isso é grave! Só estou tentando fazer algo de útil.

— Não preciso da ajuda de um vagabundo feito tu, ainda mais como um hipócrita!

— Somos dois hipócritas nesse caso. Tu por me julgar e eu por tentar impedi-lo de fazer escolhas estúpidas. Se não aceitar minha ajuda, eu peço para outro o fazer. Ao menos não tenho mais reputação alguma para manter, quanto a ti... Hei de escolher. – Isaaces ameaçou cruzando os braços, enquanto Adrian se via encurralado em suas palavras, odiando se sentir impotente daquela forma. Geralmente lutava muito bem com suas palavras, mas sentia-se completamente destruído quando não mais as tinha.

Bufou descontente, mas deixou que o estranho – e de certa forma inimigo – lhe auxiliasse.

Misericordiae Domini... — Padre Isaaces exclamou atônito ao ver que aqueles cortes eram muito mais graves que outras automutilações que já havia visto. Estava esperando por uma pele cortada, não triturada como se dada a um açougueiro ou torturador da Inquisição. Como raios aquele frade franzino conseguia lidar com tanta dor?! Precisou tomar mais um gole de vinho depois disso. – Tens de ver um médico agora, seu louco!

— Não posso deixar que descubram. Por que acha que estou aqui pela madrugada? – Respondeu quase num resmungo, evitando olhar diretamente para o padre que o ajudava a fazer os curativos. Por mais que o sangue já tivesse parado de escorrer, as primeiras camadas de pano envolta dos braços ficaram ensopadas de vermelho.

— Vai cicatrizar mal se não levar pontos, a pele ficará horrenda.

— Não me importo. – Disse ríspido, afinal, o resto de seu torso e costas já eram tomados de crostas e marcas há tempos, que lhe valia poupar os membros aquele ponto?

— Flagelista? – Isaaces indagou, erguendo os olhos por cima dos óculos que haviam pendido para a ponta do nariz. Adrian se remexeu desconfortável frente à pergunta.

— Não sei mais dizer... – Adrian suspirou, cansado. Não sabia ao certo por que sequer havia respondido para aquele homem que sequer simpatizava, mas provavelmente era por que não havia ninguém mais. – Quiçá seja um demônio.

Padre Isaaces arqueou uma das sobrancelhas, intrigado, enquanto Adrian percebia a blasfêmia saindo de seus próprios lábios.

— Perdão, isso foi terrível de se dizer! – Falou assustado, fazendo um sinal da cruz desajeitado.

— Não sei, anda tendo visões? Falando línguas desconhecidas? Voz alterada? Aversão á símbolos sacros e a palavra de nosso Senhor? – Isaaces indagou, e Adrian não conseguia distinguir em sua expressão apática se estava sendo sério ou apenas jocoso.

— Não.

— Então é improvável, mas de toda forma... – Padre Isaaces pegou do bolso da batina negra um rosário de prata, fazendo o sinal da cruz ao frade. – Exsurgat Deus et dissipentur inimici eius. Et fugiant qui oderunt eum a facie eius. Sicut deficit fumus, deficiant.  Sicut fluit cera a facie ignis, sic pereant peccatores a facie Dei. Amem *.

Amem.— Adrian fez o sinal da cruz em resposta, agora com os braços bem enfaixados.  Pensou em se despedir do padre e retornar ao seu claustro, agora que já havia resolvido seu problema e se ‘’entendido’’ com o secular menor. Contudo, a lembrança dos escritos de Friedrich que havia visto aquela tarde passou por sua mente, junto às tantas lembranças antigas das vezes que padres e até mesmo exorcistas como Isaaces o haviam visitado no período de seus ataques. Frei Adrian permaneceu pensativo em silêncio por um tempo, enquanto o padre continuava a beber da garrafa sem qualquer embaraço.

‘’ Foi um julgamento injusto, até mesmo tu sabes disso. ’’ Aedan lhe assombrava, como sempre desde sua morte.

— Diga-me... – Hesitou por um instante, mas os olhos cinzentos viraram em sua direção na hora, a lente dos óculos refletindo a luz parca das velas por um instante. – Como sabes dizer se uma pessoa está realmente possuída? Que há realmente o mal em seu corpo e não... Qualquer outra coisa.

— Hm... Acho que precisaria de mais uma bebida para responder isso. – Ele respondeu, ganhando um olhar repreensivo do frade. – Apenas me acompanhe nesta última garrafa.

— Eu não...

— Tu sim. – O padre o interrompeu, já procurando por dois copos e os enchendo, levando um à direção de Adrian. – Acalme-te um pouco, ainda mais se quer trazer esses assuntos mórbidos à tona.

Adrian pegou o copo hesitante, sentindo o gosto doce do vinho e ficando levemente culpado em incentivar de certa forma os hábitos ruins do outro. Mas queria saber o que ele tinha para dizer, por isso o acompanhou, sentando-se com ele á mesa, fazendo uma promessa silenciosa a si que só o deixaria tomar mais aquele copo e nada mais.

— É um tanto difícil saber na verdade. Mas tentamos perceber se há algum padrão no comportamento dos possessos, como os que eu indaguei á ti anteriormente. É importante ter sempre certeza que é um caso verdadeiro de possessão, para não ocorrerem erros e não dar a devida ajuda a qualquer que seja o problema da vítima. – O exorcista explicou sentado á sua frente, recostando o queixo na própria palma enquanto olhava para Adrian que se sentiu um tanto incomodado ao perceber como ele ficava parecido com o falecido Aedan daquela posição descontraída. Piscou forte, querendo espantar a própria visão, visto que de semelhantes ambos só tinham o cabelo, sendo que os de Isaaces sequer eram tão encaracolados como do falecido.  – Por que pergunta?

— Um irmão de meu antigo mosteiro... Não sabíamos ao certo o que ele tinha, mas possessão era uma das suspeitas.

— O que exatamente acontecia com ele? – Isaaces indagou curioso. Frei Adrian hesitou por alguns instantes, se perguntando se seria adequado explanar aquela história tão controversa. O Mosteiro de São Jerônimo havia tentado ocultar tudo o que ocorreu com Friedrich, com todos os frades sendo recomendados a não falarem mais do caso. Adrian não tinha certeza se era devido a fuga do condenado, ou se pela dubiedade de sua sentença que sempre permeou a cabeça de tantos monges.

— Ele... Como é que diziam mesmo...? Convulsionava. Mas não foi uma ou duas vezes, era constantemente e sem motivo algum. Achavam que era dos livros que ele lia, era alquimista sabe? Ele também havia escapado da morte uma vez que ficou muito doente. Era estranho demais. Eu não tinha dúvidas que fosse algo de maligno dentro dele, mas com o passar do tempo comecei a me indagar algumas vezes se realmente fora isso...

— Isso acontecia em momentos de devoção? Ou quando estava diante de símbolos sacros?

— Bem, era um mosteiro.

— Oh, certo. Mas mesmo assim, consegue ver alguma relação? – Isaaces indagou, fazendo o frade refletir melhor sobre, tentando relembrar tudo aquilo que havia acontecido há tanto tempo atrás.

— Não necessariamente, ás vezes sim, outras não. Acho que acontecia até quando ele dormia.

— Só deveria estar doente então. Ou louco, acontece bastante com vocês frades né? – Padre Isaaces declarou, tomando mais um gole despreocupadamente, enquanto um arrepio de pavor passava por todo o corpo marcado de Adrian, sequer se atentando a última frase ofensiva.

Mesmo? – Indagou perplexo, pois no fundo não queria que tais dúvidas se tornassem verdadeiras. A ideia da injustiça contra um inocente era mais assustadora do que a justiça a um culpado.

— Não sou a voz da razão e jamais seria insolente de questionar o julgamento de outro sacerdote. Contudo, para mim, se eu fosse o encarregado deste caso que me contou... Eu não consideraria como um fruto do maligno. Precisaria de provas mais concretas, o Diabo quando deseja aparecer em pessoa o faz de forma inconfundível.

O silêncio se fez entre eles por um instante, com o padre terminando de beber seu copo, enquanto o frade que mal chegara à metade permanecia estático ao digerir as palavras do exorcista. Depois de tantas estações passadas, por fim pode compreender em quase sua totalidade a aflição do falecido irmão Aedan e até mesmo de frei Bernard com tudo que havia se sucedido com irmão Friedrich. Como se já não a tivesse em demasia, uma boa dose de culpa começou a apossar sua alma, visto que no período ele fora justamente um dos principais críticos do alquimista.

— É isso que lhe atormenta? – O padre lhe indagou, cuidadoso. Adrian ergueu os olhos para ele, desconfiado em revelar seus sentimentos á ele. Não o fazia sequer para os mais próximos, visto a vergonha e humilhação que sentia ao fazer isso. Mas sentia-se mais tentado a revelar ao exorcista, quiçá pelo mesmo motivo de se confessar com Aedan anos atrás, procurando alguém tão degenerado quanto ele para que não sentisse ser tão julgado.

— Está longe de ser o principal motivo, porém, não ajuda. – Respondeu quase que em um resmungo, dando um suspiro de exaustão, observando o secular levar a bebida mais uma vez em sua boca. – Por que bebe tanto?

— Ajuda a esquecer o que eu não quero lembrar. – Respondeu com um meio sorriso melancólico.

— Esquecer o que exatamente? – Questionou, ficando cada vez mais intrigado. Porém, o olhar estreito das íris cinzentas de Isaaces foi o bastante para o frei perceber que ele não gostaria de responder, mas mesmo assim o fez. Quiçá por solidariedade aos segredos do frade.

— Esse vazio que sinto, ele me persegue sempre que estou sóbrio. Não era tão forte antigamente, mas está aqui há muito tempo, poderia dizer que desde a infância. Não sei quem sou e para que sirvo, somente que sou o resto, a sobra, a lavagem a ser jogada aos porcos. Sou sétimo filho de uma boa linhagem... Acabei sendo jogado ao clero por não saberem onde me enfiar na sucessão. Poderia dizer que não é uma má vida estar aqui, e sou grato a Deus por não sofrer nenhuma privação como o povo... Mas é vazio, sem sentimento e dolorosamente solitário, eu não consegui extrair uma única alegria neste lugar. Talvez sequer seja meu lugar, porém, sinto que no fundo não pertenço a nada mesmo.

Adrian o ouviu atentamente, ficando um tanto surpreso ao ver tamanha semelhança entre eles, fosse à história quanto nos sentimentos. Não era uma similaridade exata, mas poderia dizer que eram frutos dos mesmos venenos daquela sociedade. A frieza pela dor do outro e a falta de amor das almas solitárias.

— Pensaram em me fazer padre, pois era fraco demais para cavaleiro, mas agora entendo mais por que escolheram o mosteiro. – Adrian declarou depois de um breve silêncio entre eles. – É mais prático, simplesmente jogar o garoto lá e não precisar olhar para trás.

— Quando tomou os votos?

— Aos treze anos. Tornei-me noviço aos nove.

— Santo Deus. – Isaaces suspirou atônito, dando um riso nervoso. – Me mandaram ao seminário quando já era homem pelo menos...

— Não é de todo ruim. – Adrian deu de ombros. – Mesmo nessa idade eu já desejava seguir a vida religiosa, não me lamento por isso. Gosto dessa vida. Tive meus momentos de dúvida e tentação, mas ainda assim tenho certeza que ser frade é minha vocação. Porém... É a única coisa que sou e tenho, minha vida inteira foi centrada na fé, me agarrei tanto a isso, mas tanto... Que um dia percebi que não sei o que sou além de frei Adrian. Sinto-me... Sozinho, em uma solidão que criei para mim mesmo.

 – Creio que entendo de certa forma. Pois o único alento que tenho e aprendi é rezar em latim para resolver as coisas.

— Como acabou de fazer comigo. – Adrian constatou, fazendo o padre dar um riso constrangido.

— Exato.

O silêncio tornou-se dominante entre eles. Somente encaravam-se de forma mórbida, bebericando o vinho de forma lenta enquanto davam por um breve instante um descanso para os pensamentos exaustos. Fosse pura coincidência ou a mão do destino, aquelas duas almas desafortunadas olhavam entre si para além de suas divergências, encontrando o reflexo de sua própria imagem nos olhos de cada um. Havia dor, apatia e uma desesperança profunda que os dominava, a falta de um propósito de prosseguirem com suas vidas. A sombra da acédia pairava sobre eles, a doença da alma no clero, uma tristeza profunda que tomava os corações devotos e exaustos como os deles.

Não tendo uma palavra de candura para acalmar seus espíritos, acabaram procurando conforto na morbidez um do outro. Som algum era preciso de seus lábios para que se compreendessem, deixando de lado a inimizade que suas ordens os incentivava a cultivar e apertando as mãos em um trato simbólico de trégua entre eles.

— Também já acreditei que meras palavras e citações poderiam retirar a mácula dentro de mim. – Adrian decidiu por fim falar, já não dando importância se fosse um Padre, Deus ou qualquer criatura que fosse o ouvindo. Estava cansado de tentar esconder as próprias cicatrizes. – Na verdade, ainda seria de minha vontade acreditar, pois sei que Deus ainda não me abandonou. Mas as palavras não mais tocam minha alma e a cada dia sinto-me mais miserável em minha busca pela própria paz.

— Tu não desejas realmente o mal para si, mas não consegue evitar senti-lo crescendo em teu interior. – o padre complementou, de forma que não parecia somente falar ao frade, mas para ambos. – A luta contra a acédia parece ser mais difícil e complicada para ser resolvida em algumas orações. É um trabalho diário, que exige de nós até o que não temos.

— O desejo é que fosse tão simples de resolver quanto um demônio qualquer. – Adrian prosseguiu, não dando a mínima se aquilo seria ou não blasfêmia.

— Quiçá um dia descubramos a sua forma de expulsão.

— Deus te ouça.

Agnus Dei, qui tollis peccata mundi – O padre recitou, fazendo Adrian erguer as sobrancelhas de surpresa com a coincidência, tendo lido tal oração naquele mesmo dia nos velhos escritos de frei Friedrich. Aos poucos, deixava de crer que seu encontro com o exorcista era mera coincidência.

dona eis réquiem**. – completou.

Adrian sabia que não demoraria para que as matinas começassem e se quisesse ter nem que algumas poucas horas de sono, era melhor levantar-se para providenciá-las. Mas seu espírito não queria sair de perto da outra companhia tão cedo e sua mente ainda estava enérgica pela conversa.

— Por acaso já presenciou uma real presença demoníaca? – Adrian indagou curioso, sentindo-se um pouco tonto. Sempre havia sido fraco com a bebida e bem por isso costumava evita-la além dos rituais.

— Uma vez que me chamaram para abençoar o gado, estavam todos assustados com o comportamento agressivo dos bichos. – Isaaces rodava o copo vazio com um leve sorriso matreiro no rosto, fazendo o bigode fino formar um arco. – Houve uma vaca em especial que me deu um trabalho daqueles, me escoiceou enquanto eu recitava a Crux Sacra. Se o Diabo não estava naquele bicho, com certeza estava na minha humilhação.

Adrian riu. Não de forma escandalosa e nem contida, apenas um gracejo leve e breve o bastante para o tamanho de seu humor. O frade nem se dera conta ou se pôs para refletir que havia feito exatamente o que ele próprio abominava, dando um último gole de sua bebida em seguida.

— Pensei ter ouvido dizer que eras o frade que nunca ria. – Isaaces apontou, fazendo Adrian entreabrir a boca de forma atônita, corando ainda mais o rosto já tingido pela embriaguez, mas logo tentando fingir uma pose despreocupada e cheia de si.

— O pecado é inerente ao homem, só cabe a nós contê-lo. Tento dar o meu melhor diariamente, mas ainda sou falho.

— Em meu caso, tentar já está sendo difícil. – Isaaces deu um sorriso melancólico, virando o copo mais uma vez e constatando estar vazio.

— Nem pense. – Adrian franziu o cenho, voltando à típica face carrancuda de sempre.

— Não disse que me serviria novamente.

— E por que confiaria em tua palavra?

— Pensei que era o que estávamos fazendo até o momento. – o padre retrucou, fazendo Adrian anuir em seu lugar. Encararam-se de forma constrangida por um breve momento, antes de Isaaces prosseguir. – Paro com os goles se também o fizer com teus cortes.

Adrian franziu as sobrancelhas, desconfiado e arredio como um gato feral encontrado na rua.

— Por que tal sugestão? Se nada sou teu e de nada tu me importa.

— Amar o próximo é o maior de todos os sacrifícios. – Padre Isaaces declarou com um sorriso solene, atenuando as expressões ranzinzas do frade.

— Marcos doze, trinta e três. – Adrian comentou, sabendo muito bem de onde vinha tal pensamento. – Ex toto intellectu et ex tota anima.***

Ficaram em silêncio, fitando-se enquanto o frade refletia tal proposta. Como poderia ter fé em outrem se sequer tinha em si mesmo? Contudo, era ali que estava a resposta, quiçá não devesse trilhar aquele caminho sinuoso sozinho como sempre o fizera. Afastar os outros só havia lhe trazido amargura até então.

— É algo que as ordens deveriam almejar entre si. – levantou-se também de seu lugar, pondo-se próximo ao padre. – Coloco-me em tuas mãos.

— E eu nas tuas. – Isaaces completou, enquanto rumavam pelo mosteiro que lentamente começava a despertar os monges de suas celas.

— Mas acima de tudo, nas de Deus.

Amem.

Aos poucos, Adrian aprenderia a se perdoar.


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Notas finais do capítulo

* Trecho em latim do Salmo 67, usado por vezes em exorcismo. ''Levanta-se Deus, eis que se dispersam seus inimigos, e fogem diante dele os que o odeiam. Eles se dissipam como a fumaça, como a cera que se derrete ao fogo. Assim perecem os maus diante de Deus."

**Oração Agnus Dei. ''Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo. Tende piedade de nós. ''

*** Marcos 12:33 '' Amar ao próximo como a si mesmo é mais importante do que todos os sacrifícios e ofertas".

Aquele contexto histórico de sempre. Já foi comentado anteriormente em capítulos com o Adrian sobre a acédia, um tipo de depressão muito característica da época e que abatia membros do clero, principalmente os frades que viviam sempre isolados.

Aqui também menciono algo que ocorria muuuito na época e que foi alvo de diversas discussões e críticas (tem até um trecho do livro Os Miseráveis mencionando esse fenômeno), que era quando filhos de famílias nobres que já não possuíam espaço para dividir a herança com o restante dos irmãos, acabavam quase que obrigados a seguirem a vida religiosa. Era um sinal óbvio para esse filhos de que eles eram as crias não planejadas e que só eram empurrados ao clero para a família se livrar deles de forma ''amigável e honrada''. Nesse caso, apesar de Adrian realmente apreciar a vida no clero, não é como se tivesse sido uma experiência boa ser praticamente descartado quando criança.

Vai demorar um bom tempo agora para vermos Adrian de novo, mas como a história já está terminando, logo mais ele retorna e por fim revela sua importância por aqui ;)



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