Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 4
A Lebre e as Pulgas


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal!! Trazendo aqui mais um capítulo para vocês, com mais algumas novidades. Primeiramente como podem ver eu troquei a foto de capa! Na realidade não foi bem uma troca, pois continua sendo do mesmo quadro da anterior, apenas um outro recorte e mais uma edição meio tosca por cima feita por mim, espero que não tenha ficado tão ruim ;p
Agora também estou postando Ode aos desafortunados no Wattpad, só falta eu entender como aquele site funciona haha. Uma coisa que estranhei muito foi não ter notas nos capítulos, coisa que para mim é praticamente necessário pois encho de referências sempre... Enfim, quem também tiver uma conta no site pode acompanhar também por lá.
Mais uma vez aquele agradecimento básico a todos os leitores maravilhosos que estão acompanhando, vocês me incentivam muito a continuar essa história ♥
Agora sem mais delongas, boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/754466/chapter/4

 

Friedrich acordou de um sono sem sonhos, no meio da madrugada sem razão aparente, seus olhos simplesmente se abriram e não sentiram mais qualquer espécie de cansaço. Estranhando a situação, agarrou em seu peito a cruz de madeira que havia talhado para preencher o vazio que sentia. Virou-se para o lado, vendo que Loki não estava presente. Costumavam dormir de costas um para o outro e ligeiramente próximos por conta do frio, por isso Friedrich provavelmente havia acordado ao estranhar a falta do calor dele.

Cheiro de fumaça percorreu suas narinas, fazendo sua mente despertar para o perigo iminente. Levantou-se em um salto, seguindo em direção ao som advento do crepitar das chamas. Afastando a vegetação com as mãos, não foram precisos muitos passos para descobrir que era apenas uma pequena fogueira, feita pelo homem dos cabelos de fogo.

A imagem á sua frente fez a pele de Friedrich se arrepiar, lhe causando uma sensação mista de pavor e arrebatamento. Uma lebre de cabeça decepada repousava em uma pedra lisa, com o sangue escorrendo numa vasilha de argila que Loki segurava. Não era o corpo mutilado do animal que lhe causava aquele terror, mas sim a forma como Loki olhava para os céus enquanto o líquido escarlate transbordava em suas mãos. O druida murmurava palavras inteligíveis para Friedrich, não sabendo se por conta de sua aflição ou por Loki sussurrá-las para ele mesmo. Os lábios moviam-se lentamente, pronunciando cada palavra igual uma oração. Em seguida, o feiticeiro bebeu do líquido rubro como se fosse água, manchando sua boca com a tinta fúnebre.

Friedrich se sobressaltou quando Loki olhou em sua direção, como se tivesse sentido sua presença, lhe encarando com os olhos verdes brilhando de maneira mística, sua íris cintilando igual uma estrela. Metade de seu rosto estava pintada com o sangue do animal, ainda fresco e escorrendo pelo seu pescoço. Friedrich abriu a boca para dizer algo em sua defesa, mas percebeu que Loki não parecia incomodado, voltando a olhar para a copa das árvores como se não tivesse o visto.

Suas mãos tremiam, sentiu o estômago se revirar pelo nervosismo. Afastou-se do lugar de culto de Loki aos tropeços e voltou para o singelo acampamento. Friedrich sabia exatamente o que precisava fazer, sequer precisava pensar antes, seus joelhos se dobraram e juntou as mãos, fechando os olhos buscando fugir da realidade que o assombrava.

— Ó meu Senhor, rogo por teu santíssimo nome, Deus todo misericordioso. Sabes em tua infinita sabedoria o quanto me dedico á seguir o teu caminho, por isso imploro por vossa benevolência para que perdoe minha convivência junto aos costumes hereges que blasfemam sua santidade. Que a luz divina possa iluminar a mente daqueles que ainda não abriram os olhos para a verdade e que eu seja forte o bastante para não cair nas mãos enganosas do pecado. – Friedrich rezava com confiança, as palavras saindo de maneira natural para o antigo clérigo. Respirou fundo, sentindo a fumaça que ainda percorria o lugar, fazendo-o abrir os olhos. A floresta estava quieta e Friedrich não queria permanecer em silêncio:

 Ave Maria gratia plena Dominus tecum

Benedicta tu in mulieribus

Et benedictus fructus ventris tui Jesus

Sancta Maria Mater Dei

Ora pro nobis peccatoribus

Nunc et in hora mortis nostrae

Amem.

***

Haviam passado os dias mais frios do inverno no pequeno vilarejo do qual salvaram a vida de Hector, todavia não durou mais do que dois domingos para amarrarem as trouxas e seguirem viagem. Apesar de bem recebidos, não podiam explorar a boa vontade daquele povo. Não foram pagos em moedas, mas pelos dias de abrigo e a comida oferecida para seguir viagem, algumas mulheres até se ofereceram para costurar suas roupas, e mesmo Friedrich insistindo que não era necessário (afinal ele mesmo aprendera a fazer o mesmo há muito tempo) acabaram aceitando o gesto. Sven também insistiu que ficassem com um de seus cães, afirmando que não haveria guarda melhor.

Loki já tivera cães o acompanhando, eram necessários para que não acordasse no meio da noite completamente nu e sem um tostão. Porém quando não fugiam eles raramente viviam muito tempo, pois geralmente eram mortos ao confrontarem agressores. Mas o filhote de seis meses que receberam era deveras surpreendente, tinha pernas longas como as de um cervo e o dorso forte, o focinho fino e comprido com dentes brancos e afiados, a pelagem sendo áspera e emaranhada de uma cor cinzenta. Era um caçador de lobos, um Wolfhound.

Pulguento! – Apenas um grito e Loki viu a vegetação começar a se mover conforme o cão se remexia entre as folhas, até aparecer em sua frente com o longo rabo abanando e os bigodes sujos de sangue. – Nem para dividir um pedaço, traidor.

O cão apenas lambeu o próprio nariz, satisfeito.

O druida passara a noite em claro, tentando caçar qualquer rato que fosse, pois a última caçada bem sucedida Loki resolveu dá-la em sacrifício. Mas pelo jeito, os deuses não o agraciavam quando era pro seu próprio consumo.

Entretanto, sentia-se leve como uma pena após cumprir a dívida com os deuses, mesmo que no fundo uma solidão dolorosa o perseguisse. Não havia ninguém para lhe acompanhar em suas crenças ou ouvir o que tinha a dizer, muito menos alguém para quem passar todas as histórias e conhecimento. Loki sentia que sua cultura estava desaparecendo junto dele.

Ele fora criado nos restos mortais do que um dia fora o antigo povo hibérnico, cultuando deuses do qual sequer sabia mais o nome. Seus cultos foram roubados e fatiados, os deuses condenados e os costumes alterados. As migalhas que sobraram foram passadas adiante para os poucos que ainda tinham coragem de se manterem com a mesma identidade. Porém, agora para Loki não eram poucos, era apenas ele. Único.

E caso realmente suas tradições morressem junto com ele, Loki não deixaria de aproveitar cada momento que pudesse. Mesmo com os olhos do clero católico o perseguindo por todos os lados.

E mesmo com sua única companhia tendo se tornado a criatura mais cristã de toda Grã Bretanha.

Surpreendeu-se ao ver que Friedrich ainda dormia, pois geralmente ele era o primeiro a acordar antes do próprio sol. Rondou ao seu redor por alguns segundos, com um sorriso sacana no rosto, cutucando de leve seu ombro com a ponta da bota.

— Assim você desce alguns degraus de meu conceito meu caro Friedrich. – Disse abaixando-se para chacoalhar seus ombros, sem receber qualquer resposta. – Vamos lá meu amigo, sei que não é preguiçoso.

Foi então que Loki percebeu que algo não estava certo com o companheiro, começando pela posição que se encontrava. Ele estava fora da cama improvisada com pele de carneiro, em uma postura estranha com os braços encolhidos, as pernas estiradas, a coluna torta e o rosto caído na terra. Loki moveu sua cabeça fazendo-o olhar para frente, os olhos estavam fechados, mas parecia que estava mais morto do que adormecido.

— Friedrich? Friedrich, por todos os deuses acorde! – Loki sacudia seus ombros com mais agressividade, mas o outro não reagia, estava desmaiado. Checou sua respiração e seu pulso, estavam normais. Então por que Friedrich estava daquela forma? Em todos aqueles anos como curandeiro nenhuma resposta coerente passava por sua mente.

Estava prestes a entrar em pânico, até que de repente as pálpebras de Friedrich começaram a estremecer, finalmente abrindo lentamente os olhos da cor do céu. Loki soltou um grande suspiro de alívio.

— L-Loki? – Friedrich resmungou de forma quase inteligível.  Estava confuso, mas não por Loki, ele parecia estar equivocado com o próprio despertar.

— Graças a todos os deuses, como está se sentindo? Parecia morto igual a uma pedra! – Exclamou aliviado, notando em seguida o olhar vazio e perdido de Friedrich. Demoraram vários segundos até que o loiro respondesse, parecendo encontrar forças para a própria fala.

— E-estou bem. Peço desculpas se o assustei, tenho o sono pesado. – Sua voz saía de forma apática, fazendo Loki franzir o cenho por desconfiança. Friedrich não tinha sono pesado, disso o druida sabia muito bem. Dormiam um do lado do outro e já havia notado por diversas vezes que Friedrich estava sempre atento, mesmo quando estava adormecido não demorava a acordar caso sentisse qualquer anormalidade.

Até pensou em refutar, mas duvidava muito que conseguiria extrair alguma resposta decente de Friedrich. O outro escondia seus pensamentos em muito mais do que sete palmos abaixo da terra. Por isso, mesmo insatisfeito com a explicação resolveu não estender o assunto para não causar quaisquer intrigas.

Contudo, uma voz incomoda sussurrava em seus pensamentos diferentes preocupações com o companheiro.

Durante os dois dias seguintes Friedrich agiu de maneira estranha. Permaneceu quieto e distraído, chegando até burlar a própria rotina que possuía. Além de acordar mais tarde, havia se esquecido de realizar o terço matinal e Loki até notou Friedrich borrar quase uma folha inteira enquanto escrevia. Algo parecido havia ocorrido quando ele tinha se perdido na floresta nos dias que passaram o inverno na vila, fazendo Loki refletir se era apenas o jeito do frade ou se algo estava errado.

Começou a se perguntar por quanto tempo mais Friedrich agiria de forma esquiva, mas a resposta não demorou a vir junto com uma pontada de saudades do tempo que viajava sozinho.

— Levante seu rato sórdido! – Acordou assustado e confuso com a forma brusca que Friedrich o despertou. Ele estava com uma expressão irritada, de braços cruzados á espera de uma resposta da qual Loki sequer sabia a pergunta. Em parte aquilo era um alívio, pois mostrava que Friedrich havia voltado ao normal, mas a maior porção consistia em ter paciência para aturar seu gênio difícil.

Na realidade, ambos estavam mutuamente tentando lidar com a personalidade difícil um do outro. Mas não deixe que eles saibam! Isso é um segredo de narrador para seus leitores, talvez em algum momento eles se deem conta disso.

— Que desgraça Friedrich! Onde perdeu sua cabeça?!

— Eu lhe pergunto como você ainda tem uma do jeito que está sendo devorado! Acordei esta manhã com um incômodo em minha cabeça que não sentia há muito tempo, revistei o pano em que me deitava e me deparei com isso! – Friedrich apontou para o tecido onde ambos deitavam a noite. Loki não via nada demais além de algumas folhas secas que poderiam ter grudado em suas roupas e algumas pulgas passeando. 

— Não sei se você enlouqueceu ou se devo um pedido de desculpas por não perceber o que quer dizer. – Loki deu de ombros, fazendo com que Friedrich ficasse rubro na tentativa de conter a raiva.

— Pulgas Loki! Pulgas por toda a parte! Não durmo com elas desde a infestação dos dormitórios em 1345! – Friedrich batia o pé a cada frase concluída, sentindo calafrios percorrem seu corpo só de pensar naquelas criaturas rastejando em sua pele e se alimentando de seu sangue. – Primeiramente pensei que podia ser culpa do cão, mas então dei-me conta que eu não durmo com o cão, ou ando ao lado do cão, sento ao lado do cão ou divido minhas roupas com ele!

— Por todos os deuses seu lunático, nunca conviveu com insetos antes?!

— Infelizmente por quase toda a minha vida, mas desde que aprendi a lidar com eles eu prefiro me manter longe de qualquer parasita.

— Talvez no mosteiro você conseguisse contê-los com mais facilidade, mas duvido muito que se livrará deles sendo um andarilho como eu. – Loki vestiu um sorriso presunçoso, enfrentando o olhar aborrecido de Friedrich. – Deveria ter pensado nas consequências antes de aceitar trabalhar comigo.

Friedrich estreitou os olhos claros, mordendo o lábio inferior como se segurasse para não dizer algo. Mesmo convivendo por poucas semanas, Loki se surpreendia com o fato de nunca ter ouvido o outro dizer quaisquer obscenidades, por mais irritado ou aborrecido que estivesse ele continuava mantendo certa calma.

— Venha comigo. – Disse após procurar por alguma coisa em sua bagagem, fazendo Loki erguer as sobrancelhas de surpresa.

— Está se achando a autoridade por acaso? – Loki sentia sua mão coçar de vontade em dar um soco na cara do outro.

— Não estou ordenando e sim pedindo. O que posso fazer se não quiser me escutar? – A expressão que Friedrich fez desarmou Loki que detestava o modo como o outro lidava com tudo. Afinal, não podiam simplesmente brigar ao invés de resolverem de forma pacífica?!

 – O que pensas que devo fazer depois deste ultraje contra mim?!

— Oh, então é isso! – Friedrich largou o embrulho que segurava no chão e se aproximou de Loki que continuava sentado, se abaixando para ficarem ambos da mesma altura. – Me de um soco na face então se te fará sentir-se melhor! Da maneira que fazem quando se sentem ofendidos. Pois sabes que não cresci em uma abadia, sei muito bem como o povo age.

Loki realmente cerrou o punho, mas vendo a expressão de desdém e os olhos azulados de Friedrich teve certeza que não conseguiria, não daquele jeito.

— Não é assim que as coisas funcionam seu imbecil!

— ‘’Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra’’. Mas se isto não basta, então que tal irmos para a parte em que você presta atenção no que eu digo?

Friedrich conseguia tirar Loki do sério de uma maneira que mais ninguém era capaz. Só por isso o druida sentia vontade de negar o pedido do outro, já nem lembrando direito que discussão os levou aquilo. Quiçá toda aquela intriga fosse a consequência de tanto tempo que Loki passou sem se relacionar com pessoas, o gênio teimoso dos dois, as culturas distintas ou uma mistura de tudo isso.

— Eu só ia tirar esses bichos de sua cabeça seu tolo. Não vou feri-lo, matá-lo ou acabar com sua honra. – Friedrich suspirou cansado, sentando-se ao lado de Loki que estava começando a se sentir realmente tolo. – Não gosto da ideia de discutirmos por algo tão trivial, ainda mais depois desses dias péssimos que andei tendo.

Loki olhou para ele de soslaio, surpreso ao ouvir Friedrich tocar no assunto, provavelmente o loiro não havia notado o que ele mesmo disse.

— Isso tem algo haver com o mosteiro? De por que você saiu de lá? – Loki perguntou o que estava entalado em sua garganta há dias. Friedrich se sobressaltou com a pergunta, olhando para Loki com os olhos arregalados e os desviando logo em seguida. Era difícil entender o que estava sentindo naquele momento, se estava pasmo, assustado ou ansioso.

— Sei que você deseja saber o que aconteceu, contudo eu... E-eu realmente não gosto de falar sobre isso. – Dor. Era dor que Friedrich sentia, daquela que dilacera a alma e marca sua existência. Os orbes azuis fitavam o nada, perdidos em memórias que o assombrava feito fantasmas. E o que mexeu com Loki naquele momento, foi enxergar a si mesmo naquela situação e saber exatamente o que seu amigo estava sentindo.

— Prefere voltar ás pulgas? – Loki sabia que por mais que quisesse entender a história de Friedrich, não poderia obrigá-lo a dividir seu passado. Deixaria que ele mesmo contasse quando fosse capaz de fazê-lo, da mesma forma que esperaria o momento certo para si mesmo dividir suas angústias.

— Não gosto delas também, mas precisamos dar um jeito nisso. – Friedrich sorriu de canto e Loki revirou os olhos. Era melhor enfrentar aquela situação com o que sobrava de sua dignidade.

— Faça logo antes que eu me arrependa.

Ambos se dirigiram até um riacho perto do acampamento, correndo suave pelas pedras escuras a água era iluminada por grandes feixes de luz que passavam através da vegetação rala pelo inverno. Era um abençoado dia ensolarado que apareceu depois de tanto tempo rodeados pelo céu cinzento.

Loki já suspeitava o que estava para acontecer e tudo foi comprovado quando o embrulho que Friedrich trouxe revelou ser uma barra de sabão quase nova.

— Abaixe a cabeça, por gentileza. – Friedrich disse isso com um sorriso sacana no rosto, Loki sentia que aquilo era alguma espécie de revanche.

— E a história de não afetar minha honra?

— Eu pedi com educação seu tolo.

Loki riu ao ver o cenho franzido de Friedrich, abaixando a cabeça sem mais problemas. Fechou os olhos apertando as pálpebras com força, esperando o choque frio da água percorrer seus cabelos ruivos. Quando foi derramada em sua cabeça, Loki soltou um arquejo com o contato gelado que fez todo o seu corpo estremecer.

— Está tentando matar as pulgas congeladas? – Indagou com os lábios tremendo, sendo possível sentir uma ponta de irritação em seu tom sarcástico.

— Envenenadas. – Friedrich respondeu mesmo sabendo que o outro não esperava uma resposta. Em seguida esfregou o sabão com força, revistando com cuidado a pele cheia de feridas do outro, se assustando com a quantidade de bichos que encontrava. – Há piolhos também! Está pior que um rato decrépito.

— Quem é decrépito aqui seu virgem lunático?! – Loki esbravejou, mas tendo como resultado apenas o loiro tentando conter o riso. Não é como se o druida estivesse em posição para lutar.

— Não é atoa que você criou uma infestação, do jeito que está seria mais fácil cortar tudo de uma vez.

—Você não vai cortar meu cabelo!

— Eu não disse que iria! – Friedrich se defendeu, procurando com mais avidez pelos pontinhos negros no meio daquele mar ruivo. Loki sentia os dedos longos do outro remexendo seus cabelos, fazendo cócegas conforme remexia os fios.

O processo demorou mais tempo que o antigo frei imaginava, e muito mais para a pouca paciência de Loki. O druida praguejava ao mínimo puxão, sem contar os resmungos por conta da demora. Friedrich era mais paciente, não falando muito a não ser para acalmar o outro, ficando abismado ao notar os fios antes cor de cobre se transformarem em um laranja vivo á medida que a sujeira era derramada.

— Eu não acredito que isso está acontecendo. – Loki revirou os olhos enquanto Friedrich movia seu rosto de um ângulo para o outro enquanto encarava a barba ruiva de Loki.

— Aqui. – Anunciou, pegando uma pulga escondida em meio aos fios e a amassando com os dedos. – Espero que seja a última.

— Você é pior que minha mãe. – Loki se permitiu soltar um riso por mais irritado que estivesse. Seu pescoço já estava dolorido de tanto permanecer inclinado, por isso resolveu erguer a cabeça e encarar os olhos atentos de Friedrich, que ainda percorriam seus cabelos à procura de algum ponto que poderia ter deixado para trás. – Não, pior que todas as mães.

Por mais densos que fossem os cabelos de Loki, Friedrich acreditava que havia feito um bom trabalho. Não havia mais nenhum ponto suspeito à vista e os fios antes secos e escuros estavam macios e claros como a luz do dia. Aquela cor exótica o fascinava e ao fitar os olhos esverdeados se deu conta do quanto essas duas cores se completavam.

Loki sorriu daquele jeito petulante de sempre e Friedrich quase enfeitiçado retribuiu o sorriso sem mostrar os dentes, mexendo nos cabelos ruivos apenas pelo deleite de sentir os fios em suas mãos. Sentia uma sensação estranha em seu estômago e a pele se arrepiava á medida que contornava o rosto de Loki com o polegar, sentindo a pele macia e a barba áspera até segurar seu queixo, observando com anseio seu rosto, notando detalhes que antes passavam despercebidos como as sardas que cobriam as maçãs de seu rosto.

— Friedrich...? – A voz de Loki saiu falha e seu rosto começava a ficar enrubescido.  Como se tivesse acordado de um transe, Friedrich retirou sua mão rapidamente e fechou o rosto. Loki abriu a boca para dizer algo, mas foi interrompido antes que pudesse proferir.

— Isso demorou mais do que eu esperava, preciso retomar aos meus afazeres e acredito que você também. Todavia, primeiro troque sua roupa debaixo e a mantenha afastada de qualquer outro tecido até que eu pense no que fazer. – Friedrich falou como se não houvesse ocorrido nada, apesar do coração descompassado em seu peito e a culpa alarmando seus pensamentos. Loki não questionou, mal sabia o que pensar naquele momento, vendo com perplexidade o homem á sua frente voltar para o acampamento sem olhar para trás.

Enquanto retirava as camadas de roupa que possuía, começando pelo manto colorido e tirando o cinto da túnica cinzenta, Loki não conseguia parar de pensar no que acabara de acontecer, sentindo suas veias pulsarem ao se perguntar se aquilo havia sido um galanteio. Se fosse outra pessoa a agir daquela forma, certamente Loki teria certeza que havia sido cortejado, mas se tratando de Friedrich o pobre homem não sabia ao certo o que pensar da situação, ainda mais da forma como aquela situação terminou.

Loki achava mais provável que aquela situação estranha tenha sido feita na inocência, sem Friedrich se dar conta o que a carícia parecia e sem intenções de cortejá-lo. Jamais imaginaria que seria o alvo de alguém como Friedrich, ou que ele sequer possuía alvos. O engraçado é que esse pensamento não o tranquilizava e Loki não queria descobrir o porquê.

Retirou o calção e a camisa de linho que usava como roupa íntima, ficando receoso em retirar as chausses também por conta do frio. Mas acabou por fim deixando as três peças pra trás, ficando com as pernas desnudas e a camisa de lã pinicando sua pele por baixo das roupas. Sentia-se levemente constrangido apesar de não haver ninguém ao redor e de sua túnica bater nos joelhos. Mas não é como se fosse um homem tão cheio de pudores, assim rumou até o acampamento com a postura mais confiante que conseguia.

Viu Friedrich remexer todas as cobertas, lenços, panos e as poucas roupas de sobra que possuíam. Analisando com cuidado cada peça, retirando os parasitas encontrados e batendo os tecidos fazendo poeira voar para todos os lados. Repousando em uma pedra o cão observava-o com curiosidade. Loki sentia seu rosto enrubescer só com a ideia de dirigir alguma palavra para o outro, por isso chegou sem dizer nada ou fazer qualquer contato visual, começando a ajudá-lo silenciosamente.

Loki conhecia a rotina de Friedrich tanto quanto ele, afinal o observava a repeti-la todos os dias. Ela não funcionava quando estavam caminhando pela estrada, mas quando acampavam por mais de um dia ele sempre a colocava em prática, por isso não se impressionou quando após concluírem a limpeza Friedrich pegou o terço de madeira que sempre tinha preso ao cinto e começou a rezar. Contudo para sua surpresa, Friedrich continuou as dezenas mesmo depois de completar todo o terço e continuou assim durante o resto do dia, sequer parando para comer. Vidrado em sua própria introspecção, Friedrich tentava expulsar de todas as formas toda a aflição e culpa que sentia.

Logo quando o druida pensava que estava começando a compreender a mente de seu companheiro de viagem, tudo retornava ao pó.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

A oração dita por Friedrich é Ave Maria, só que em latim. E o trecho bíblico citado pelo mesmo é de Lucas 6:29.
Eu mencionei sobre Loki pertencer a cultura hibérnia, que alguns consideram como uma das muitas tribos variadas de toda cultura celta, sendo de origem irlandesa. Como podem notar sua mitologia é bem obscura, não possuindo tantos registros como outras, já que seus ensinamentos e cultos eram passados apenas oralmente. Há alguns poucos registros feitos pelos romanos e posteriormente a Igreja Católica, e hoje em dia com os sítios arqueológicos dá pra se ter uma noção de como se comportava aquele povo. Mas mesmo assim há muito que não se sabe, por isso o que mais se tem é deduções de como era aquela região. Para essa história em específico, eu uso diversos elementos da cultura celta em geral, pra preencher um pouco das lacunas do que não se sabe da história, pois como vocês leram nem o próprio Loki sabe direito o que seu povo um dia foi.
Não sei se ficou claro como eram as vestimentas na época, mas se já estou escrevendo um grande apêndice aqui então vamos lá haha: não era comum o uso de calças propriamente dito, a não ser na parte militar se não me engano, o que os homens geralmente usavam eram meias extremamente compridas (chausses) que pegavam toda a extensão das pernas, assim como eles usavam túnicas ( praticamente camisas que iam até o joelho) dava-se a impressão de estarem apenas usando calças muito justas.
Agora vocês sabem por que nos livros de história, nas artes medievais todos os homens pareciam estar usando legging ¯_(ツ)_/¯ . Mais uma da série coisas estranhas que você pesquisa pra escrever uma história de época!
Sobre o cão, não existe mais essa raça caçadora de lobos do modo como era antigamente, mas para se ter uma noção a raça mais próxima e parecida é o Wolfhound Irlandês, caso queiram dar uma olhada.
Se gostaram comentem! Nos vemos no próximo capítulo ^-^




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ode aos desafortunados" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.