Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 32
Os Médicos e a Cruz


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Eu disse que não ia demorar tanto dessa vez hehe. E podem soltar os foguetes, pois este NanoWrimo está rendendo bastante e vai rolar mais atualizações ♥ Espero que gostem do capítulo, boa leitura!



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A fumaça pairava por todos os lados, os cobrindo com sua fuligem e os fazendo se retorcer com o cheiro de queimado da carne podre. Loki procurou em seu peito pelo pingente que havia recebido de Friedrich para proteger-se do fogo, mas sentiu apenas um vácuo no lugar, lembrando-se com pesar que havia se quebrado no dia em que havia sido assaltado. Teria que se forçar a ignorar as fogueiras feitas por todos os lados, fossem elas para queimar casas inteiras, ou para os corpos que já não possuíam lugar na terra para abrigá-los.

Ao conversarem com os médicos da peste, descobriram que a iniciativa de começar a cuidar dos doentes havia sido de padre Amédée, um clérigo já idoso, mas com uma vitalidade que ainda percorria suas veias anciãs. Em sua juventude havia estudado medicina na universidade de Paris, e por muito tempo serviu a comunidade não apenas como um apoio nas enfermidades espirituais, mas também nas do corpo. Quando a peste tomou conta, padre Amédée resolveu agir da melhor forma que podia com aquela doença tão mortal, usando de sua bagagem de conhecimento adquirida em todos aqueles anos para tentar combater a peste que assolava aquelas terras.

Para o druida em tal posição, seu lado mais desconfiado lhe esporeava com a ideia de trabalhar a serviço de um líder católico, mas Loki também não deixaria tal detalhe o afastar do seu desejo de ajudar aos outros. Provavelmente ficaria mais calado que o costume em alguns instantes para evitar intrigas, mas conseguiria lidar com tal convivência, ainda mais tendo Friedrich ao seu auxílio. O jeito beato do companheiro era quase que uma camuflagem para ele algumas vezes, passando despercebido a maior parte do tempo.

O trabalho de certa forma era simples, mas por conta de uma triste verdade: nenhuma daquelas pessoas tinha salvação, pois do momento que a peste adentrava em seus corpos a morte já batia em suas portas.

— Não precisamos de mais doentes, há muitas almas indo para Deus nos últimos tempos. Por isso, não façam tolices que lhe custarão à vida, pois ninguém compreende os caminhos da peste para salvá-los depois. – O padre os alertou, assim que receberam as vestes iguais aos de um ceifador da morte.

O tecido era de um linho espesso e grosseiro, feito como uma túnica a cobrir inteiramente os braços, de gola longa e apertada, com a barra quase a arrastar pelo chão. Abria-se pelos botões do tronco, e se cinturava com um cinto grande de couro bovino ainda mais escuro que o tecido já desbotado. Prendendo no cinto, levavam uma bolsa com quaisquer itens que achassem poder servir de útil, como as plantas para dor e febre que Loki levava, assim como um cantil de água, um pequeno bolso para uma faca e a bainha usada para a longa bengala que todos levavam.

Quiçá aquela estaca fosse o que mais representava aquele tortuoso trabalho ao invés das vestes cor de abutre. Seu maior propósito não poderia ser mais mórbido: diferenciar os vivos dos mortos. A maior parte dos bastões era de madeira, mas sua ponta sempre era de metal ou aço, grossa o suficiente para que não furasse a pele, mas ainda pontiaguda o bastante para conseguir qualquer reação de um sobrevivente. Contudo, ainda havia raros momentos em que sua missão poderia ser quase benevolente, amarrando-se em sua ponta qualquer alento que fosse preciso aos doentes, fosse um pedaço de pão ou uma poção para as dores e os pulmões pesados.

Apesar do cheiro de pútrido impregnado naquelas vestes, foi um consolo para o frio terrível que fazia naqueles dias. Loki já se sentia quase sufocado vestido daquela forma, mas acabou tendo o nó do cachecol mais apertado e as luvas presas firmemente com barbante por um Friedrich quase paranoico com qualquer pedaço de pele amostra naquele ambiente.

— Se haverá um dia onde hei de saber de onde surge a peste, eu não sei. Mas por enquanto, todo cuidado é pouco. – Friedrich dizia com pavor na voz, como se a personificação da doença pudesse aparecer em suas costas a qualquer instante. Por isso, Loki não se incomodou com o cuidado demasiado do parceiro, pois passou a confiar em sua intuição.

Antes de vestirem-se padre Amédée pedia que lavassem os braços e o rosto com água benta. Apesar de Loki se sentir um falsário fazendo aquilo, permaneceu calado, e até apreciou poder tirar um pouco a poeira do corpo que mal via a luz do dia desde a chegada do inverno. Também não compreendeu uma única palavra que o clérigo disse em latim quando resolveu fazer uma benção antes de iniciarem os trabalhos, mas até se esforçou para fazer um sinal da cruz.

— Fizestes ao contrário, tens de ser com a mão direita. – Friedrich o corrigiu aos sussurros enquanto começavam a adentrar as vielas infectadas, o cheiro de fumaça e de doença se intensificando com seus passos.

Eu sei. – Loki respondeu, e mesmo com o rosto parcialmente coberto, Friedrich tinha certeza que seu sorriso matreiro estava por baixo do tecido.

Antes eles pensavam que o silêncio da morte era o mais tenebroso dos sons já criados, mas naquele dia descobriram que as súplicas daqueles que estão á sua espera possuíam muito mais dor que as almas que foram poupadas daquela miserável vida. Pelas ruelas imundas, os órfãos choravam desamparados sem terem para onde ir, das casas enclausuradas ouviam-se os gemidos de dor e ofegos sôfregos do ar que já não mais entrava pela garganta, e pelo chão os ratos corriam por todos os buracos e frestas do que sobrou daquela vila.

As cruzes estavam por todas as partes. Para Friedrich, que sempre havia visto tal símbolo como um sinal de sacrifício e misericórdia de Cristo para a humanidade, um sinal de toda a benevolência divina e seu amor pela criação, agora era distorcido para o propósito da morte. Nos longos corredores de ruas encobertas pela escuridão da desgraça, seguiam-se fileiras de portas marcadas em vermelho sangue com o sinal da peste. Ali a cruz se tornou o símbolo da morte, do ceifeiro e de seus corvos, pois todo lar a receber tal sina estava fadado a padecer pela peste negra.

Ninguém poderia sair ou entrar quando a maldição se fazia naquelas portas, exceto um grupo de pessoas. Os médicos da peste adentravam aqueles pedaços do Inferno, fazendo voltar por alguns instante a luz do sol por aqueles cômodos poeirentos onde os doentes escondiam-se como ratos no esgoto. O cheiro de morte, doença e excrementos acumulados naqueles ambientes pequenos e fechados era capaz de fazer o mais forte dos homens virar-se para trás e vomitar em desgosto. Por vezes era exatamente o que faziam.

Não levavam velas ou abriam as janelas para que mais luz entrasse nos cômodos, pois nenhuma sanidade permaneceria em suas mentes se tivessem de encarar por inteiro as faces dolorosas e clamando por piedade daquelas pessoas esquecidas por Deus. Homens e mulheres de todas as idades eram reduzidos a mais pura doença, repleta de tosse sanguinolenta, dor, febre e suas feridas negras e mortas antes mesmo da alma ter a misericórdia de se desprender do corpo.

Passavam por cima daquele montante de pessoas, revirando qualquer forma que se assemelhasse a um corpo com a bengala, tornando-se morbidamente corriqueira a falta de reações e o número de vezes que chamavam por Désiré para aumentar a pilha dos mortos levados até as valas e fogueiras. Contudo, lidar com os ainda vivos que sofriam da moléstia podia ser ainda mais doloroso que enfrentar o derradeiro final daquela agonia. Com a mesma vara que procurava os mortos, oferecia-se tudo que eram capazes de levar á distância o que podia acalentar minimamente tal sina. Os médicos aproximavam-se com passos cautelosos, afastando o corpo e esticando o máximo que eram capazes a longa vara, enquanto os enfermos esticavam os braços ossudos cobertos de feridas pútridas com o resto de vitalidade que ainda lhe restava no corpo, agarrando-se de forma desesperada a qualquer sinal de piedade que fosse oferecido para aqueles exilados.

Loki movia-se na penumbra como um felino a se equilibrar nos galhos de uma árvore, os olhos de esmeralda brilhavam numa intensidade mística que apenas ele possuía, sendo a única identidade visível por baixo da escuridão que trajava. Aproximava-se dos doentes como um duende a andar cauteloso pelas sombras, tomando sempre uma distância que acreditava ser segura, mas pondo-se frequentemente de cócoras para que pudesse saber que pessoas eram aquelas que ele havia se comprometido ajudar.

Então ele ouvia suas dores, seus lamentos, onde por mais que nada pudesse evitar o terrível destino daquelas almas, Loki esforçava-se para que não sentissem que haviam sido abandonados e rejeitados como o mais infame dos monstros. Tratá-los como pessoas era o mínimo que podia fazer, mas era o que eles mais necessitavam no momento. Ele não permitiria que fossem embora daquele mundo de uma forma mais torpe que um verme, trabalharia com esforço para acalmar nem que um centésimo de suas expiações. Seria o druida ao serviço deles enquanto ainda estivessem naquele mundo.

Pois todos os acometidos por tão maldosa sina, deixavam de serem vistos como pessoas, indivíduos de alma e corpo que antes foram filhos e pais. Tornavam-se peste, e da peste ninguém desejava sequer ouvir-se dizer.

Friedrich quiçá não se lembrasse de todos mais tarde, contudo, fez questão de ouvir o nome de cada um deles. Ouviu com toda a compreensão dentro de si os medos que sentiam, buscando acalmar aquelas lágrimas frutos da agonia da dor e da morte a um mero passo de distância. Assim como um dia fez com soldados a beira da morte, conversou no seu tom cálido e afetuoso para que não temessem o fim daquela jornada, e que Deus Pai os receberia em seus braços e acabaria com toda a dor sentida pela vida. Rezaria por todos aqueles nomes e suas feridas durante a noite, nem que levasse toda a madrugada, mas jamais se deixaria esquecer-se do que havia visto e não faria se repetir o mesmo abandono passado por sua família. Os trataria com todo o respeito e amabilidade que podia expressar nos seus passos cautelosos á distância, desde que continuasse os vendo como pessoas por baixo dos bubões até o momento que seus corpos fossem levados.

E mesmo após, continuaria rezando pela paz de suas almas.

Era tarde da noite quando aquelas figuras exaustas a vestirem a cor do luto resolveram retornar para seus refúgios. Suas faces eram escondidas peça postura cabisbaixa, com os passos lentos de uma marcha fúnebre, usando as bengalas para se apoiarem na caminhada de volta. Um barão que vivia pela região havia oferecido os leitos vazios de fâmulos em seu castelo para os médicos que não possuíam aonde ir, ou que simplesmente temiam voltar para suas residências trazendo a peste agarrada em suas vestes de surpresa.

Quando Friedrich e Loki se colocaram lado a lado mais uma vez durante aquela caminhada, só conseguiam ver e sentir um tortuoso vazio em seus olhos foscos, como se fossem fantasmas de muito tempo atrás um para o outro. Por um instante, toda a desolação que os tomou naquele dia havia arrancado a individualidade deles, borrado suas personalidades e os tornando tão expressivos quanto estátuas. Uma fenda se formou em seus âmagos para lhes causar pesadelos e assombrar os pensamentos, de uma profundidade aguda demais para ser reparada. E para amenizar toda aquela tristeza, tomavam doses de apatia.

Como entraram pelos portões dos servos da fortaleza, não conseguiram apreciar a estonteante arquitetura do lugar em grandes detalhes, ainda mais sendo tarde da noite. Contudo, puderam perceber as enormes áreas verdes e os pátios tomados por fontes e estátuas em estilo romano que os enfeitavam, passando pelos labirintos de arcos que ligavam uma região á outra. Quiçá pudessem ter apreciado melhor aquele lugar se fosse outro momento, percorrido os corredores conversando sobre a vida e sorrindo-se um para o outro de forma despreocupada; mas naquele instante não conseguiam ver nenhuma beleza no mundo ao redor deles e, tudo que queriam era se livrarem das vestes pesadas e ficarem sozinhos com seus pensamentos.

Padre Amédée exigia que depois de livrarem-se das vestes e as deixando longe de qualquer outro tecido, todos lavassem os braços, as mãos, as pernas e o rosto com vinho ou vinagre, visto que havia aprendido na universidade sobre a capacidade purificadora dos derivados da uva. Loki tomou uma nota mental quanto a tal informação, não deixando tal oportunidade de saber escapar de sua astúcia.

Mas aquele ambiente tomado de um miasma sombrio era tão pesado que sequer a comida servida os apetecia naquela noite. Alguns homens mais extrovertidos como Claude tentavam reerguer um pouco o ânimo do pessoal com qualquer causo para distrair a mente, mas não demorava muito para o silêncio cair mais uma vez.

— Sobrou alguma coisa do papel que tu compraste no porto? – Loki indagou para Friedrich ao seu lado, quase num grunhido enquanto provava da sopa de ervilhas que todos compartilhavam. Friedrich já se sentia satisfeito, e em seu colo acariciava um dos vários gatos que perambulavam pelo castelo feito sentinelas, tentando compensar a falta de Peregrino que teve de ser deixado nos canis.

— Mal os toquei desde então, estão totalmente brancos.

— Me emprestaria algumas folhas?

— Oh, claro que sim. – Friedrich respondeu atônito. – O que pretende?

— Anotar o que temo esquecer mais tarde. – Loki disse de semblante sério, deixando os olhos da cor escura de um musgo. – Agora que a conheço, usarei da escrita para guardar tudo o que sempre tive medo de precisar saber e não conseguir relembrar. Tenho certeza que já perdi pacientes por conta da memória frágil que é dada aos homens.

— Tenho certeza que ainda anotará muitas informações importantes quanto ao teu ofício.

Nosso ofício, Friedrich. – Disse o druida, com um curto sorriso no rosto, o único que havia tido naquele dia.

Friedrich lhe entregou as folhas e o carvão – que o antigo copista detestava usar para escrita, contudo, era mais barato e fácil de se carregar do que tinta tradicional – mais tarde naquela mesma noite, antes de se separarem nos aposentos designados. Por mais que podia parecer até um luxo para eles terem os próprios quartos depois de tanto tempo dormindo na estrada, era um tanto estranho para eles não terem a presença um do outro próxima e acalentadora naquele inverno. Mas se havia uma coisa que eles não se arriscavam, era trazer suspeitas quanto a real relação entre eles, não fazendo qualquer conjectura quanto aquilo que em realidade era até uma cortesia.

Todavia, aqueles instantes de silêncio e solitude que Loki se encontrou parecerem impulsionar ainda mais a sua mente enérgica. Tinha apenas uma vela no quarto, e não a economizou ao deixá-la acesa enquanto escrevia em sua letra robusta cada informação sobre a peste que tinha em sua mente.

‘’ Os primeiros dois dias travestem-se de doença comum, com a letargia do corpo, a febre e os vômitos. Mas assim que os inchaços das axilas e a virilha se fazem presentes, a peste confirma-se, mas também mostra-se dominante ao corpo. O sangue se envenena nos bubões, criando as manchas negras e fazendo a febre não ser mais detida nem por banhos ou poções.

A morte se dá em cerca de uma semana, mas o corpo pode começar a falecer antes da alma partir. Os braços e pernas apodrecem e atraem as moscas devido aos bubões que se espalham por todo o corpo, por isso os unguentos deixam de aliviar a dor e a evolução das feridas.

Alguns doentes podem apresentar a tosse sanguinolenta, estes falecem ainda mais rápido, entre quatro e cinco dias. Sendo assim, poderiam os bubões ocorrerem por dentro dos órgãos? Se procurasse tratar estes casos em especial igual a outras doenças do pulmão, quiçá funcionasse se eles não morressem tão depressa.

Como um remédio poderia agir mais rápido do que a peste a levar os mortos? ‘’

 

Loki pensou com toda a força de seus miolos em tal assunto, deixando que a vela queimasse quase até o seu fim. Sentia o estômago se revirar de tanto nervoso, e a ansiedade lhe tomar o corpo que lhe fazia se levantar vez ou outra pra andar em círculos pelo quarto. Contudo, por mais que refletisse com toda sabedoria que possuía em suas mãos, não conseguia encontrar uma resposta para aquilo.

Derrotado, tentou pensar em outros tópicos.

‘’ Se em uma casa vive uma família de cinco pessoas e uma adquire a peste, os outros quatro também adoecerão. Contudo, por mais que se saiba que a presença de um infectado cria outros doentes, não há explicação para os casos que ocorrem sem a presença anterior de um enfermo. Para que aquele primeiro pestilento adquirisse a peste e a levasse até a família, teria de pegá-la de outra forma.

Onde mais a peste se esconde? ‘’

 

Loki deixou o carvão de lado e de forma tola escondeu o rosto nas mãos manchadas, sequer se dando conta da bagunça que fazia no próprio rosto. Um bufo descontente saiu de seus lábios e ao reerguer seu pescoço, um olhar furioso se fazia presente nos olhos de cobra. Suas ideias estavam bagunçadas e não conseguia encontrar lógica em lugar algum de seus pensamentos tempestuosos. Precisava de um pouco de paciência, de racionalidade, para quem sabe colocar suas ideias nos eixos.

Então saiu de seu aposento, batendo em outra porta no corredor. Esperou por um breve instante, ouvindo sutilmente o som de uma movimentação do outro lado.

— Ah, é você. – Friedrich disse num misto de alívio e surpresa, tentando arrumar a túnica posta às pressas, visto que estava quase se retirando para descansar. – Algo de errado? Espere. O que é isso em seu rosto?

— Que? – Loki indagou confuso, tocando na própria face e se dando conta do que havia feito. – Ah, apenas carvão. Tens um minuto?

— Estava para concluir minhas rezas, mas claro. – Respondeu intrigado, abrindo mais a porta para que Loki entrasse.  – O que tanto lhe aflige?

— O que aflige todos nós Freddie, a peste. – Loki disse com uma seriedade que parecia não lhe caber no rosto. – De que forma acha que ela se propaga? Além dos próprios doentes.

Friedrich ficou em silêncio por um breve instante, pensativo. Era algo que já havia matutado para si vez ou outra, mas como não esperava entrar em tal assunto naquela hora, precisou reorganizar um pouco as ideias que possuía.

— Pode ser qualquer coisa. – Disse de maneira lúgubre. – A água que tomamos, o solo que plantamos, até mesmo o ar que entra por nossos pulmões. Como hei de saber algo que não posso ver?

— Mas podemos ver Friedrich, vemos a doença, vemos os mortos! Tens de haver alguma pista no meio disso que mostre onde estamos errando! Tu que sempre procuraste estudar o porquê das coisas, não consegue ver qualquer alternativa? – Indagou numa frustração penosa, com as feições tomadas de um desespero latente. Loki havia por tanto tempo evitado envolver-se com a peste não apenas pela própria segurança, mas por saber muito bem o quão terrível sua mente ficaria a se ver de mãos atadas com algo que não podia curar. Queria entender, saber os motivos para evitá-la e as armas com que combate-la. Mas até o momento não possuíam nada além de afastar os vivos dos mortos e os sãos dos enfermos.

Os olhos de Friedrich estavam baixos, como se muito cansados, mas não era a fadiga do corpo e sim da alma. Ele deu um suspiro resignado e triste, andando até o companheiro e apoiando as mãos em seus ombros para que prestasse toda a atenção em suas palavras.

— Eu jamais parei de procurar sobre tudo Loki, mas se há algo que descobri em meio á essa jornada pelo conhecimento, é que assim como para Deus, o tempo pode não ser o mesmo para nós do que é para ele. Tenho fé que a peste possa ser compreendida, mas também a consciência que não no exato momento que precisamos.

— Não tenho a paciência para tal.

— Ainda que fosse somente uma questão de paciência, mas infelizmente nos parece muito mais complexo. Porém, ao menos procuramos ajudar da melhor forma que podemos por enquanto.

— Creio que terei de me contentar com isso então, por mais que não me conformo ainda não compreender a maior parte de tudo que meu ofício impele. – Loki relaxou os próprios ombros, resignado. – Sinto muito por interrompê-lo com minhas epifanias, irei me retirar.

— Jamais me importaria com tua presença meu caro, e só o incentivo a ir por saber que está apenas segurando o próprio cansaço. – Friedrich disse acariciando brevemente os cabelos revoltos do amante. – Tenha uma boa noite Loki.

— Boa noite. – Loki se despediu, pensando em dar um curto sorriso como sempre, mas não conseguindo. Apenas se dirigiu até a porta, parando assim que alcançou a maçaneta. – Oh, espere.

Friedrich ergueu as sobrancelhas, surpreso, mas ficou ainda mais atônito quando o druida se aproximou novamente, bem mais próximo dessa vez e plantou um beijo em seu rosto antes de sair definitivamente. Por um momento só permaneceu estático, absorvendo o que havia acontecido, até dar um curto sorriso no rosto corado antes de repousar mais uma vez.

Loki andou pelos corredores numa posição mais tranquila do que antes, mas a decepção e a melancolia ainda podiam ser vistas em seu olhar. A conversa com Friedrich não havia saído da forma que havia pensado, mas como havia ido até ele para que colocasse um pouco de realidade em suas ideias, aceitou de toda forma. Teria que se conformar que não descobriria tão cedo assim os segredos da peste, e provavelmente, sequer seria a pessoa a ter tal conhecimento primeiro. Mas era um druida de toda forma, e buscaria o auxílio dos doentes sempre que chamado, por mais que nem sempre tivesse as respostas certas.

Contudo, por mais exausto que realmente estava, não acreditava que conseguiria pegar no sono ainda. Por isso, ao invés de retornar ao quarto ele perambulou pelos jardins da propriedade, sentindo-se mais em casa no meio das árvores do que das paredes. Sentou-se no meio da grama e dos arbustos tomados por uma fina camada de neve, apenas sentindo a brisa do inverno lhe arrepiar a pele e o cheiro da terra lhe tomar o peito, enquanto as folhas secas das árvores sussurravam em sua direção e em sua companhia olhos verdes e amarelados espreitavam por todos os lados entre a escuridão.

Havia ouvido dizer dos outros médicos que o Barão Honoré passou a criar tantos gatos em seu castelo não apenas pelo amor que tinha pelos felinos, mas por ter ouvido de uma bruxa que eles o protegiam de maus espíritos. Desde então, o castelo de Honoré era uma fortaleza repleta de lendas quanto aos animais e até mesmo das crendices hereges de seu dono, mas que era protegido por seu alto título. E fosse aquilo coincidência ou não, por mais que estivesse circundado pela região tomada de peste, nem o barão, sua família ou os seus servos foram amaldiçoados pela doença.

Apesar de Loki ter sua crença baseada em toda a natureza em si, sempre havia se sentido mais a vontade e em paz no meio das árvores e folhas, contudo, jamais deixaria de ouvir os conselhos de qualquer outro irmão pagão, e passou a observar com certo fascínio os gatos a lhe rondarem. Quiçá pudesse até entender aqueles animais tal como por vezes compreendia as árvores, quase sorrindo com tal pensamento petiz.

Mas se havia parado naquele lugar para acalmar as próprias ideias, quiçá a natureza não quisesse o mesmo para ele. As árvores de galhos desnudos pareciam fechar-se ainda mais em sua própria escuridão, e os olhos dos felinos que tanto lembravam os dele próprio viravam em sua direção, logo tendo todos aqueles olhares fixos em si. Loki sentiu um arrepio pavoroso lhe percorrer o corpo, sentindo que as árvores, os gatos, o vento e a natureza em si buscavam lhe chamar a atenção para alguma coisa, algo da qual ele deveria saber, mas que não conseguia enxergar em sua existência como homem.

Até que saindo do meio das trevas, um gato cinzento de olhos amarelos como topázio saltou diante de si, segurando em suas presas um rato tão escuro quanto o fundo de um poço na madrugada, o pescoço quebrado pela mordida, as patas retorcidas e o rabo grotesco arrastando-se no chão. Parecia que o felino lhe encarava não só olho no olho, mas diretamente na alma. Loki sentia que não só o animal, mas todos os espíritos da floresta queriam lhe mostrar algo, quase implorando para que compreendesse o que diziam para ele, mas o homem somente encarou a cena atônito, não sabendo como desvendar aquele enigma.

O animal saltou para a escuridão mais uma vez, deixando-o novamente sozinho com os próprios pensamentos. E sentindo no fundo de sua existência que a resposta que tanto buscava havia aparecido diante dele, tão perto e na altura de seus olhos, contudo, frustrando-se por completo ao não conseguir entender o que a natureza havia lhe revelado. Perdendo assim, algo que nunca havia tido.

Se ao menos ele soubesse...


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Notas finais do capítulo

A Yersina pestis, bactéria causadora da Peste Negra, ou peste bubônica, e seus derivados como a peste pulmonar, é transmitida pela picada de pulgas que comumente vivem em ratos selvagens, podendo até viverem em outros mamíferos em casos muito endêmicos. Também é transmitida por secreções de infectados. Não sendo algo lá muito fácil para o pessoal conseguir se dar conta no século XIV.
Gente, deem um oizinho pelos comentários que estou me sentindo em um cemitério aqui de tantos fantasmas... Adoraria ver a carinha de vocês. Deixem uma autora mais feliz e comentem o que acharam ♥ Até breve!



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