Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 31
O Manco e os Infantes


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Não me joguem pedras, por favor! Esse foi o maior hiatus que a história já sofreu? Foi, mas por um bom motivo, pois estou com vários projetos além dos que eu posto aqui na internet que acabaram sugando parte do meu tempo para revisar os capítulos já prontos, seja pela faculdade, ou por uma antologia de contos que estou fazendo parte (yay! Vou ter um conto meu em um livro físico!!) e como não gosto de lançar capítulos não betados a demora foi de quase dois meses... Pretendo compensar vocês em Novembro com o NanoWrimo, pois apesar de eu criar uma história pro desafio (podem já checar ela no meu perfil, hehe) quero me dedicar bastante a Ode aos desafortunados. Por que não usei ode pro Nano? Simples, pelos meus cálculos a história não tem mais 50 000 palavras restantes, creio que no máximo umas 30 000 e olha lá.
Sim, podem começar a se preparar para o fim desse belezinha aqui, admito que também estou sofrendo antecipadamente ;;-;;
Espero que entendam, e como sempre boa leitura para vocês ♥



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— E Ele virá! Mais breve do que nunca! Pois foste dito em vossa santíssima palavra sobre o retorno de nosso Senhor Jesus Cristo á terra! Os sinais estão claros, a terra se corrói pelo desespero da Besta diante da chegada do Altíssimo! Deus disse que virão as pragas, toda a morte, tristeza e fome tomarão a terra! E o sofrimento corromperá as almas daqueles que não aceitaram a verdade de suas palavras, mas aqueles que lutam pelo amor de Jesus Cristo permanecerão fortes e serão agraciados em Vossa glória! – Quem esbravejava era um velho homem moribundo, de túnica esfarrapada e rosto enrugado, barbudo e coberto por um longo capuz, deixando os olhos claros chamarem a atenção pelo brilho ávido que tinha conforme gritava suas palavras acalorados. Não estava em um púlpito, nem possuía uma plateia concisa, era apenas um homem desequilibrado falando no meio do povo passando pra lá e para cá ignorando a presença dele, no máximo o encarando com estranheza por um breve momento.  Não o ignoravam por suas palavras cheias de alerta, pois ironicamente, quase todos concordavam com tais ideias daqueles dias cheios de tormenta, só não estavam no mesmo nível de pavor que se encontrava naquele desconhecido. De alguma forma, todos simplesmente seguiam suas vidas com o temor em suas costas.

Loki fitava aquela cena incomum com curiosidade, as sobrancelhas ruivas quase se abraçavam conforme franzia o cenho em incredulidade, mal prestando atenção na barganha que Friedrich tentava conseguir para conseguirem um pouco de fava e aveia.

— Todos os cristãos pensam assim? – Loki indagou quando Friedrich já havia resolvido as contas e guardado o saco de suprimentos, começando os dois a andaram lado a lado pelo vilarejo que há poucas horas haviam chegado.

— Assim como?

— Que o mundo está acabando. – Respondeu, fazendo Friedrich franzir os lábios, matutando sobre como poderia começar a explicar para o companheiro sem que começasse uma homília diante dele.

— É um pouco mais complexo que isso... – Tentou começar a explicar, ficando com seu semblante típico de quando estava pensando em demasia. – Entenda, para nós é uma certeza que haverá uma segunda e última vinda de Nosso Senhor até a terra. Onde os bons e fiéis se juntarão á Ele e este mundo será destruído e extinguido de todo o mal que já existiu. Haverá sinais que antecedem sua vinda, trazendo calamidade ao mundo e no coração dos fracos, mas não há como saber ao certo quando isso irá ocorrer.

— Então, como tudo que anda acontecendo é um verdadeiro horror, muitos de vocês acreditam que o fim está próximo?

 – De certa forma.

— Também acreditas nisso?

— Não sei dizer, o livro de Apocalipse é um dos maiores desafios a serem decifrados por nós-quero dizer, pelos clérigos. Há ainda muitos outros sinais a antecederem a vinda de Cristo. – Friedrich disse pensativo, mergulhando de volta em suas memórias sobre o mosteiro, de quando ainda fazia parte daquele universo regrado e isolado da sociedade. Eram lembranças que agora pareciam muito distantes, mas que por vezes ele ainda podia sentir como se ainda estivesse prestes a despertar e tomar o seu lugar em meio aos outros copistas. – Há dias que acredito que sim, mas muitas vezes também creio que não. Mas duvido que esteja realmente interessado em saber os pensamentos filosóficos que já estudei quanto á isso.

— Nem um pouco. – Loki disse resoluto, acabando por parar a caminhada ao ver que estavam diante do topo de uma pequena escadaria. O caminho levava á uma ruela onde dezenas de casas estavam com o símbolo da morte em suas portas, a cruz em vermelho sangue da peste. O silêncio sepulcral daquele lugar e o vazio de sua rua arrepiava a pele dos mais valentes. Ambos fitaram o lugar por um breve momento, com um olhar pesado de tristeza. – Mas entendo o apelo, por vezes, parece que o fim de tudo é a única esperança que resta. Apesar de não ser o que eu creio.

— E no que crê exatamente? – Friedrich perguntou com um tanto de desdém, mas também curioso quanto aos pensamentos hereges do druida. Deram uma última olhada para o lugar amaldiçoado, seguindo em frente pelo caminho.

— Basicamente, na natureza em si. – Respondeu, ficando em silêncio por alguns instantes para pensar como poderia explicar suas ideias para o companheiro. – Uma árvore um dia já foi uma semente, um rio pode ter seu curso alterado, quem sabe se irá chover ou não amanhã? Mesmo quando eu não estiver mais aqui um dia, o mundo a minha volta continuará vivo. E quem sabe, minha alma não volte para outra existência, assim como todas as outras.

— Como Heráclito dizia, ‘’panta rei’’. O mundo está sempre em movimento. – Friedrich comentou, ficando com um ar avoado nos olhos por alguns instantes, refletindo quanto às ideias divergentes entre eles. Lembrou-se do início da convivência deles, do quão estranho e absurdo era estar dividindo a vida com alguém como Loki, sendo o tipo de gente da qual sempre haviam lhe alertado para que se afastasse. Mas agora, não conseguia mais se ver com companhia melhor que a do druida, por maiores que fossem os muros de suas divergências eles acabaram por construir diversas pontes entre aquela relação, se familiarizando aos poucos com o mundo de cada um. Pensava sobre o que havia deixado para trás, mas também sobre tudo que possuía naquele instante enquanto fitava aqueles olhos místicos que ainda lhe enfeitiçavam.

— Sente falta dos livros? – Loki indagou, com um olhar incerto como se temesse a resposta do companheiro. Aborrecia-se com tal insegurança que vez ou outra sentia, de que Friedrich quiçá preferisse a vida antiga e sacra á viver com ele daquele jeito instável e repleto de perigos. Ainda lhe custava confiar por completa nas pessoas, até mesmo em Friedrich que era tudo para si.

— Não serei desonesto, claro que sim. Muito, aliás. – Friedrich deu um riso seco, fitando Loki com o canto dos olhos de uma forma afetuosa que foi o bastante para o tranquilizar. – Sinto falta de muitas coisas, assim como acredito que tu sintas o mesmo. Contudo, mesmo que nem sempre o destino esteja ao nosso favor, há certos eventos que eu jamais mudaria de toda forma.

Loki sorriu de volta para Friedrich, sentindo um calor prazeroso em seu peito, tendo a vontade de tomar o parceiro nos braços e lhe demonstrar todo o amor que sentia recobrindo sua alma. Mas apenas o deu um olhar sutil de afeto, pois no meio do povo daquela forma precisavam ser os mais discretos possíveis. Apesar dele não olhar de volta em sua direção, pode notar um sorriso solene em Friedrich, refletindo parte da candura que sentia.

Andavam atentos pelo burgo daquela vila, no sudeste da província de Normandie, passando os olhos pelo comércio e ressarcindo os suprimentos que precisavam. Uma das primeiras coisas que puderam notar de diferente entre a França e a Inglaterra era a densidade de pessoas, onde mesmo tendo o povo tomado por guerra, fome e peste ainda assim persistia como o reino mais populoso da Europa. Encontravam vilarejos densos como aquele em uma frequência que os admirava, o contrário do que estavam tão acostumados, com feudos pequenos de choupanas espaçadas umas das outras de sua terra natal.

Loki prontamente se pôs a procurar algum herborista ou boticário pelas tendas e mesas de comércio, querendo repor e expandir ainda mais seu estoque de plantas e dos remédios que fazia delas. Via todas aquelas formas, cores e cheiros e queria levar tudo para si, criar a própria botica particular e ter todas aquelas maravilhas da natureza á sua disposição como o bom druida que era e merecia. Contudo, além de precisar se conter para não tornar sua bolsa de moedas muito leve, seria difícil arranjar tanto espaço em sua bagagem. Por isso escolhia tudo com sabedoria.

Quanto a Friedrich, deixou que Loki se regalasse no meio de tantas variedades e foi em busca de algum poço para reabastecer a água. Já haviam passado por um anteriormente e era onde estava se dirigindo no momento, esperando que o companheiro o encontrasse ali depois.

Por mais vivaz que aquela vila tentava se mostrar em um primeiro instante, Friedrich podia notar passeando pelas ruelas alguns dos traços de desolação que aqueles tempos difíceis traziam. Os franceses já conheciam a peste há mais tempo que eles, tendo tal moléstia se alastrado por todos os lados e ceifando a alma de milhares de almas. Podia notar o vazio daquelas ruas largas, as casas abandonadas e os órfãos minguados andando sem rumo pelos cantos. O olhar lúgubre e assustado estampava o rosto de todos os transeuntes, tendo de deixarem suas casas dos lugares debandados e verem seus vizinhos e filhos morrerem um a um.

Friedrich ouvia os guinchos dos corvos e abutres, voando em círculos pelo céu e espreitando nos batentes dos telhados e torres, observando as pessoas atentamente, como se conversassem uns com os outros quem seria o próximo a cair para que pudessem provar de sua carne. Deduzia que quase metade daquele lugar havia sido abandonado por conta dos doentes, causando um pouco de falsa impressão de multidão que havia no início. As pessoas passaram a se entulhar, procurando por algum espaço longe da morte.

Quando estava chegando até um dos poços, pode perceber que pelo vazio do resto das ruas laterais logo estaria quase nos domínios da peste. Mesmo notando tal detalhe, ainda assim se impressionou ligeiramente ao ver aquela figura mórbida, vestida de negro dos pés até a cabeça e com a longa bengala descansando no chão enquanto puxava a roldana do poço. Friedrich permaneceu parado, apenas observando curiosamente o que se passava com o médico da peste.

Surpreendeu-se ver passar um grupo de crianças que antes esperavam a espreita, saindo das choupanas e debaixo das estrebarias como lobos a saltarem de surpresa numa corsa. Davam-se as mãozinhas sujas em uma roda, dançando em seus trajes remendados de linho enquanto cantavam em troça para o homem vestido de morte:

Senhor Corvo, Senhor Corvo

Como está o cordeiro sem dono?

Não pode andar

Já dói para respirar

Seu rebanho morreu

Do caminho se perdeu

Por que não o leva para junto de Deus?

O médico praguejou em francês e cambaleou com dificuldade alguns passos até as crianças, pegando de volta a bengala e ameaçando os pequenos que correram aos risos e gritos sem ainda parar com a melodia. Friedrich observou espantado aquilo, não conseguindo dizer se os infantes não entendiam todo o peso da morte, ou se na verdade a conheciam demais para terem se habituado em sua presença.

Vendo a pose infeliz do homem de negro, Friedrich se aproximou com cautela, ficando do lado paralelo do poço e arrumando os baldes casualmente para içar. Por educação, cumprimentou o estranho que respondeu de forma surpresa ao seu ‘’Bonjour’’.

 — Novo na cidade? – O médico indagou, desenrolando um pouco o cachecol cinzento que usava e mostrando mais do rosto simpático e sardento, quase antagônico a imagem fúnebre que representava num primeiro instante.

— Apenas de passagem.

— Ah, então não és comerciante. Sempre tivemos muitos passando pelo burgo, mas ultimamente o povo anda mais receoso. Deves imaginar o porquê. Donde és? Arrisco ser britânico pelo jeito que falas.

 – Isso, Inglaterra. – Disse um tanto receoso, dado toda a rivalidade entre os reinos que havia se instaurado pelas guerras, por mais que a nacionalidade de um andarilho na maior parte das vezes era quase que fútil.

— Para estar aqui creio que a peste já tenha chegado até vocês.

— Já deve estar na Escócia a essa altura. – Comentou enquanto dava os últimos esforços para retornar o balde de água. – Friedrich de Hampshire.

— Claude o Aleijado, já deves imaginar por que. –Cumprimentou apenas com um aceno de cabeça, visto o risco óbvio que um toque de suas luvas cheias de peste poderia causar.

— Quantos doentes?

— Não sei ao certo a conta, o padre deve saber, mas creio ser em torno dos duzentos. Estamos tentando separar os vivos dos mortos e nos livrar dos corpos, mas temos pouca gente e o trabalho cansa os braços e a alma. – Claude respondeu lúgubre, posicionando os baldes com água para levar em seus ombros. – Mas que veio fazer em Saint Benedictus? Creio que não para encontrar a peste.

— Eu e meu companheiro de estrada ganhamos a vida como curandeiros, contudo, nem nós ou ninguém descobriu a cura para o que tanto precisamos.

— Oh, de toda forma continuam de grande ajuda. A peste não é o único problema do povo... Eu trabalhava para um boticário, sabe? Acabei aprendendo algumas coisas, e agora resolvi ajudar a cuidar dos doentes, pois se deixarmos os corpos a peste persistirá, não dá pra deixar essa cidade morrer. Aonde o povo irá se perder tudo? Eu já perdi demais, por isso quero tentar salvar o que ainda posso. – Claude disse com um olhar melancólico, mas com um fundo de esperança no olhar, duma persistência típica daqueles que ainda vê algum traço de alegria no mundo. Como um eremita no deserto a persistir em sua caminha buscando o oásis. – Mas é um trabalho sujo, e perigoso também, apesar de só termos perdido cinco dos nossos até o momento. Dá pra entender por que todos correm, mesmo com o Lorde Bouguignon nos pagando em denários. Temos médicos e curandeiros entre nós, mas são poucos e por isso começamos a oferecer o trabalho para quem se oferecer. Até mesmo meu irmão está junto, ele havia sido condenado ás galés por alguns roubos, mas consegui convencer o júri para cumprir a pena com nossa supervisão. É a única família que me restou, então não quis deixá-lo ir para longe. Ele não é de todo ruim, só se perdeu de Deus, espero que quando passarmos por toda essa provação nós possamos recomeçar de novo.

— O pastor nunca abandona suas ovelhas, Deus há de abençoar tu e teu irmão no momento certo.

— Parece algo que padre Amédée diria. – Claude comentou com um sorriso solene. Friedrich sentiu uma descarga percorrer sua espinha, surpreso como por vezes ainda se portava feito um frade, se perguntando se por vezes soava de forma muito óbvia o seu passado em meio aos clérigos. Óbvio que seria muito difícil descobrirem somente por meros modos, mas Friedrich vez ou outra ainda temia ser descoberto como um fugitivo, pois não queria receber a excomunhão ou prosseguirem com a condenação da qual fugiu. – Foi bom lhe conhecer Friedrich de Hampshire. Não os recomendo passar por onde sigo, mas caso o fizer, nestes tempos não negamos qualquer caridade também. Que Deus te ouça e o guarde, au revoir!

Claude guardou a longa bengala em uma bainha pequena em seu cinto, tendo mãos livres para levar os baldes da qual veio buscar, saindo num cambalear que fazia a água dos baldes escorrer um pouco conforme andava. Friedrich o observou partir, indo para ruas amaldiçoadas onde nem os mais bravos ousavam pisar mais uma vez.

— Se divertindo com o novo amigo? – Friedrich se sobressaltou de susto ao ouvir a voz de Loki de surpresa, dando de cara com o homem baixo que misteriosamente se encontrava logo ao seu lado recostado no poço.

— Como você...? – Indagou atônito, vendo Loki levantar as sobrancelhas em troça. – Esquece. Estávamos falando da cidade, da peste que a tomou e como estão fazendo para tentar lutar contra essa força perversa.

— Não imaginaria outro assunto a se ter com um médico da peste.

— Falava bastante, quase tanto quanto tu. – Disse devolvendo a expressão de chacota, achando graça do rosto do companheiro franzindo-se por inteiro. – Que foi? Ciúmes?

— Do sardento manco? Até parece! – Loki bufou revirando os olhos, causando um breve riso no companheiro.

— Você também tem sarda.

— Mas não sou manco – Retrucou num resmungo um tanto ressentido.

— Desalmado. – Friedrich retrucou com os olhos estreitos de desaprovação.

— Isso não nego. – Loki disse com um sorriso torto, mas o desfazendo logo em seguida pelo que estava prestes a dizer. – Como está a situação da cidade?

— Terrível, como em todo lugar ultimamente. – Friedrich deu um suspiro pesaroso, não conseguindo conter as memórias terríveis e desoladoras de sua vila de nascimento. Os corpos dilacerados pela praga e os abutres, o sangue escoando pelo chão, o cheiro terrível de morte e doença daquele mar de desespero. Não havia um dia sequer que não se lembrasse disso, do destino cruel para onde foram todos que amava. – Mas há uma parca esperança. Admito que eles são corajosos em tentar conter a peste pelo bem de todos.

— Essa praga fez eu me sentir o mais inútil de todos os druidas. – Loki deu um riso seco, triste como um pássaro que persiste em cantar com asas quebradas. – Por toda minha vida já me deparei com doenças que não possuem solução além da morte, até já me questionei inconformado com os deuses o porquê disso acontecer com tamanha frequência! Mas desde a peste... Não há absolutamente nada que eu possa fazer Friedrich, nada para eu acalmar os ânimos desesperados destes doentes. Eles morrem, morrem á mingua, desesperados, clamando por ajuda, uma ajuda que não possuo. Tu viste como olham para nós com uma última esperança em seus olhos e como ela corrói assim que revelamos não ter nada a fazer. São tantos mortos, tantos e tantos, e de um jeito estranho me sinto responsável por cada um deles.

Friedrich já havia reabastecido a água, por isso perambulavam pelas ruas sem seguir nenhum caminho em específico. O sino brandia pelo meio dia, fazendo-os olhar para o alto edifício que podia ser visto de todos os pontos da vila, como todas as igrejas eram feitas. Por um instante, tudo se tornou silencioso, apenas com as badaladas contando as horas que já haviam se passado.

— Por que não cumpriste teu dever. – Friedrich disse solenemente. – Pois seu trabalho é ajudar os doentes, mas o que pode fazer se a morte os ataca de forma tão impiedosa?

— É, exatamente isso. – Disse com um suspiro mórbido, sem mais o brilho típico das esmeraldas.

— Eu também me sinto assim desde então. A primeira vez que tive esta sensação, foi durante a guerra, carregando soldados como um pescador leva os peixes em seu balde. Frios, sangrentos e com o olhar impassível da morte cruel e dolorosa. Não imaginei que passaria por este mesmo pesar novamente, que mais do que médico, me tornaria o coveiro daqueles que me comprometi a ajudar. – Friedrich parou de andar de forma abrupta e quando Loki olhou para seu rosto, notou os olhos brilhando pelo sol refletindo suas lágrimas que ameaçavam cair. – Mas com o passar do tempo, acabei imaginando que apesar de se provar inútil no fim, pelo menos era alguma coisa. Pude acalmar suas dores nos últimos instantes, tranquilizar seus pensamentos, dizer que em breve Deus Pai os receberia de forma benevolente. Eu queria ter feito isso por eles. Mas cheguei tarde, e já haviam se ido como ratos no esgoto. O que será que pensaram nos últimos instantes? Quanta dor eles sentiram? Será que ainda estão sofrendo agora por não terem sido abençoados em seu descanso eterno?

— Ei Freddie... – Loki falou com calma ao ver que o companheiro se desestabilizava, tocando em seu ombro com cuidado. As poucas pessoas ao redor não estranhavam, visto o quão comum as lágrimas de luto acabaram se tornando. Friedrich esforçou-se para conter os soluços, encarando o druida com os olhos vermelhos e o rosto tomado de uma melancolia profunda.

— Por isso o povo pensa que o mundo está acabando. Pois parece que em breve não sobrará mais viva alma para habitar a terra. Será que não há nada que possamos fazer? Algo por mais medíocre que seja, mas que pelo menos salve os que ainda estão vivos e sadios...

— É loucura. – Disse quase que num sussurro, como se fosse um segredo proibido.

— Com toda certeza. - Friedrich concordou com a cabeça, ficando em silencio por um instante, mas sem tirar os olhos de Loki que o olhava atônito.

— Então por que está insinuando isso?

— Pois senti que é o que estás pensando também. – Retrucou com o olhar impassível, deixando o druida sem palavras por um breve instante. – Desejas fazer algo para ajudar.

— Não posso perdê-lo Friedrich. – Declarou numa súplica contida no seu baixo tom, sentindo-se estremecer de nervosismo com tais questões tão complexas e perigosas.

— E eu também não posso ver-te partindo. – Friedrich deu um sorriso triste, estando tão hesitante e apavorado com a ideia quanto o companheiro, mas sabendo em seu âmago que nenhum deles mais suportava simplesmente observar tamanha tragédia. – Mas sinceramente, por quanto tempo mais estaremos a salvo até a praga devorar todos os cantos que passarmos?

Loki mordeu os lábios, aflito e pensando em qualquer coisa que pudesse ser dita contra as palavras do companheiro. Contudo, não poderia dizer nada, pois sabia que já teria feito tal coisa se não fosse por Friedrich e o medo de perder mais alguém da qual amava tanto. Mas sua moral clamava para que tomasse seu trabalho como druida, médico e curandeiro e fosse acalentar os que clamam de dor, e num sonho pueril e adornado de esperança almejava compreender os motivos que a peste encontrou para dizimar a humanidade. Enfrentaria a moléstia como um guerreiro o faria no campo de batalha, honraria o nome da mãe que o ensinara com tanto esmero as artes da cura, o fazendo ser homem que era e se orgulhava de ter se tornado.

Ergueu o olhar, resoluto e com os olhos de esmeralda faiscando como fogo, arrepiando o companheiro que sempre se comovia com aquele olhar místico e intenso.

— Tu ficas bem de negro de toda forma. – Declarou num riso lúgubre, enquanto andavam pelo mundo que precisavam enfrentar todos os dias.

                                                ***

Ainda que Claude tenha ajudado em muito para que ele não tivesse tido uma mão cortada como pena, por vezes Désiré refletia se não teria sido uma opção menos irritante do que estar obrigado a conviver com a figura petiz do irmão, por vezes até desejando que pegasse a peste. Mas sua consciência pesava ao pensar assim sobre ele, por mais enfastiante que ele realmente fosse, Claude quiçá tivesse saído o mais decente de todos eles.

Era um dos mais velhos, então recordava muito bem que um dia o pai havia saído de casa sem dar quaisquer explicações e nunca mais voltou. Quiçá por que sabia que nada de bom restaria daquela família miserável atolada em lama e teto de palha. Lembrava-se vagamente que a mãe sozinha havia tentado por um período sustentar a todos os sete filhos, mas a maior parte das vezes não havia sequer a migalha na mesa, onde por vezes no desespero misturavam parte da farinha que tinham com a lama para comerem. Foi inevitável que as crianças que já podiam andar, saíssem de casa para mendigar ou conseguir qualquer trabalho que oferecesse um pão. A maioria jamais voltava, como ele o fez, e até aqueles dias não possuía a mínima ideia do que havia sido da maior parte deles.

Não imaginava que Claude o reconheceria mais de trinta anos depois em seu julgamento público, e Désiré só se deu conta de quem se tratava quando percebeu o fraquejar de sua perna direita que possuía desde a infância. De todos os seis irmãos, sempre pensou que Claude seria o primeiro a morrer esquecido em um beco qualquer devido a suas fraquezas físicas, mas por um milagre ele estava vivo naquele momento para defendê-lo e se comprometer por seu tempo nas galés.

Désiré ainda precisava usar as correntes em seus pés, impedindo-o de andar mais rápido que passos vagarosos, além de ser constantemente vigiado pelos soldados do vilarejo e do burgo. Mas a presença de Claude tornava seus trabalhos forçados naquele antro de doença e nojeira um pouco mais suportáveis.

Estava oferecendo um pouco de aveia para o Percheron que usavam para levar a carroça dos cadáveres, imaginando que a pobre égua precisava de um pouco mais de sustância para lidar com mais um dia de idas e vindas. Era um animal dócil, mas um tanto preguiçosa, por isso colocaram Désiré para guiá-la e puxá-la quando necessário, dado que era o homem mais forte e quiçá o único a conseguir fazer mover aquele animal gigantesco e alguns dos corpos mais pesados. Secretamente havia apelidado ela de Ornette, e conversava com ela em murmúrios, pois acreditava que ela gostava de ser notada.

— Falando com a égua novamente? – Claude indagou entusiasmado, pensando que ganharia algum sobressalto do irmão, mas Désiré já havia percebido seus passos nada sutis há tempos. Não respondeu nada, deixando-o plantado com o sorriso idiota no rosto sardento. – Bem, vamos sair daqui a pouco se quiser começar a encilhar. Aliás, chegaram dois novos voluntários ontem, creio que assim conseguiremos atender mais pessoas hoje.

— Mais idiotas que vieram pelo soldo? – Questionou aos resmungos, já estando com a paciência no limite para alguns ’’voluntários’’ que obviamente não tinham a mínima ideia do que fazer com os doentes. Não é como se também soubesse de algo, mas era apenas o cavalariço, e podia dizer que o irmão pelo menos sabia de algo sobre enfermos.

— Não dessa vez, são médicos mesmo. – Claude respondeu. – Quiçá possam realmente nos ajudar a acalentar tantas dessas almas em apuros.

— Sabes que não ajudamos a ninguém Claude. – Désiré retrucou olhando para o irmão com o canto dos olhos. – Todos eles já estão no colo da morte. Só estamos aqui para limpar a sujeira.

O condenado saiu com seus passos vagarosos e sem olhar para trás, puxando o cabresto de Ornette para que o seguisse até o estábulo. Claude permaneceu em seu lugar, assombrado, com o vento movendo suavemente as vestes negras que se comprometeu com todo o pesar a vestir.

Miserere nobis... — Murmurou na esperança de que Deus os ouvisse, de que algum dia atenderia todas aquelas preces e daria um fim para tamanho sofrimento dado a sua criação.


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Notas finais do capítulo

*Miserere nobis: do latim ''tende piedade de nós''
Eu poderia ter usado várias outras cantigas sinistras que haviam nesse tempo, mas eu estava com vontade de rimar então ali está minha tentativa de poesia, acho melhor não tentar novamente kk
Quero agradecer aos vários leitores novos que apareceram ultimamente! Sejam bem vindos a nosso feudo ♥ Só seria ótimo se os fantasminhas dessem um oizinho de vez em quando, a autora aqui fica muito feliz vendo a carinha, ou icon, de vocês ♥ ♥
Até o próximo capítulo! Que prometo não demorar mais tanto assim, hehe



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