Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 33
A Sobrevivente e a Unção


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Ode retorna com boas e más notícias hoje! A boa, é que apesar de eu não ter atingido os 50000 do NanoWrimo, consegui escrever muuuito para Ode e outras histórias, então se preparem para vários capítulos vindos por aí! A má notícia agora...? Ode aos desafortunados está se encaminhando para seus capítulos finais, podem preparando os lencinhos para as lágrimas e despedidas.



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Não havia mais o medo do toque da morte naquele recinto, apenas o assombro e indagações frente aquele acontecimento tão único e surpreendente, um suspiro de esperança no meio da dor. Com as mãos escondidas pelas luvas de couro, os médicos checavam as mucosas dos olhos, a textura da pele, as feridas a cicatrizarem e se maravilhavam com o que tinham diante de si, indagando estupefatos uns aos outros como aquilo havia sido possível?

Era uma jovem donzela que parecia ser muito mais velha que seus dezesseis invernos, antes por conta da vida difícil no campo, mas que agora se tornara ainda mais acabada pela terrível moléstia que a assolou. Os olhos azuis eram fundos, com o rosto quadrado e ossudo, tomado por uma palidez cadavérica e de profundas olheiras, o cabelo castanho era fino e quebradiço, oleoso por conta da sujidade. Seu corpo era uma finura, parecendo que poderia desaparecer caso se escondesse mais no cobertor que usava enrolado para proteger-se do frio. Quem olhasse para ela, pensaria que com um sopro acabaria desmontada feito uma boneca, mal acreditando a gloriosa batalha que ela havia sido capaz de travar e que tantos não foram capazes de vencer.

Pois Clémentine havia sobrevivido à peste negra.

— Foi dado algo de diferente á ela? – Siméon de La Touche, um dos médicos mais velhos do grupo indagou enquanto a examinava, tendo desenrolado a manta que cobria parcialmente seu rosto e revelando o rosto redondo e de barba branca bem desenhada.

— Os mesmos unguentos para dor e febre que já demos á outros, nada mais. – Claude respondeu tão estupefato e confuso como todos ao redor da jovem.

— Certeza que era realmente a peste? – Onfroi, o boticário, indagou cético.

— Se possuía os bubões, não há de ser outra coisa. – Siméon respondeu. – Temos as provas. Permita-nos Clémentine?

A garota assentiu em silêncio e, um tanto constrangida, ergueu a barra do vestido e da anágua a esconder sua nudez o bastante para que pudessem ver seu torso, sendo possível constatar as manchas de peste se cicatrizando e começando a secarem, mas ainda tendo um pouco da cor escura que tanto caracterizavam a mácula. Não havia dúvidas da fonte daquelas cicatrizes.

— De alguma forma a doença não chegou ao seu ápice, dessa forma tornou-se mais fácil de combatê-la. O seu corpo foi capaz de impedir um monstro terrível mocinha, és mais forte do que pareces. – Loki tomou a palavra por fim, com a garota dando um sorriso curto após ajeitar-se. Ouviu-se alguns murmúrios dos médicos, cada um exprimindo suas ideias e hipóteses acerca do que havia acontecido. Mas a palavra que era mais fácil de ter a resposta em suas bocas, era a de um milagre.

—Abençoado seja nosso Senhor, que com Vossa misericórdia trouxe vida mais uma vez para um de seus filhos. – Padre Amédée declarou, fazendo quase todos os presentes realizarem o sinal da cruz e recitarem ‘’Glória Patri’’.

— Quer dizer que agora posso voltar para meus irmãos e minha mãe? – Clémentine indagou ansiosa ao líder religioso.

— Retornará hoje como uma nova pessoa minha filha, pois fora abençoada com a defesa da grande peste.

E naquele dia, finalmente uma alma saiu da direção contrária que a carroça de corpos puxada por Ornette e Désiré, caminhando junto aos homens com vestes de corvo.

— O que acha que leva ao milagre Friedrich? – Loki indagou pensativo, não tirando os olhos da figura longínqua de Clémentine subindo a colina e balançando os cabelos longos trançados, onde apesar de frágil e de feições moribundas, havia escapado da mais mortal das doenças conhecidas.

— Como um milagre, a resposta lógica seria o divino.

— Crê que é o que tenha ocorrido com você? – Questionou e pode notar o olhar de Friedrich tornar-se mais sério, ficando em silêncio por um breve instante enquanto pensava sobre si mesmo.

— Me considero um caso estranho. No início realmente sim, e até hoje sou grato por Deus ter poupado a minha vida, mas ás vezes me indago o porquê de tal custo... – Respondeu franzindo o cenho, mas logo piscando fortemente como se para afastar tal ideia em um passe de mágica. – Mas quem sou eu para questionar os planos Dele?

— Nunca o questiona? – Perguntou num tom levemente sacana. – Eu questiono muito os meus, ás vezes até brigo com eles, os amaldiçoo quando acho pertinente...

— Por que cometeria tal sortilégio com o divino? Não vejo o porquê de crer em algo do qual não confia. Deus é pai de todos, e assim como nossos pais aqui na terra jamais devemos falar contra.

— Ah claro, nunca discutiu com teus pais? Nem quando tu eras um rapazote? – Loki indagou com um riso seco, numa postura completamente destoante do trabalho que realizavam, parando de quando em quando para cutucar com a bengala algum doente para confirmar sua morte.

— Claro que não! Já me aborreci com eles, claro, mas jamais fui insolente. Minha nossa, era capaz de ser espancado pelo meu pai se dissesse alguma coisa contra sua ordem! – Declarou com um leve riso, que parecia não se dar conta do que ele próprio havia dito. Quiçá pela primeira vez, Loki não seguiu seu humor, permanecendo sério e sem palavras somente.

— Eu apanhava bastante quando jovem, mas por que eu era um diabo mesmo. – Loki disse após passar o choque, dando um riso seco para tentar descontrair, se é que era possível ou sequer apropriado fazê-lo em um lugar como aquele.

— Inacreditável. – Friedrich comentou irônico.

— Mas tu se questionaste quanto a mim. – Loki apontou, com o sorriso sacana escondido pelas vestes, mas que somente com os olhos semicerrados era possível notar seu olhar vigarista.

— Caso a parte, difícil não ter a própria fé abalada em tua presença. – Disse com um breve sorriso a amaciar o ego do ruivo, um único lapso de ânimo no meio de tanta dor os rondando. Porém, por baixo do cachecol que tapava grande parte de seu rosto, sua expressão tornou-se atônita ao perceber uma movimentação contra sua bengala. – Senhor? Como te sentes?

Pensou que o homem não conseguiria virar-se em sua direção, mas com grande esforço e grunhidos dolorosos, o moribundo os fitou de olhos entreabertos. Para eles naquele ponto, todos os doentes pareciam já ter a mesma face, fosse a sujeira, o sangue, a palidez salpicada das manchas negras e purulentas ou o olhar sofrido como o de uma alma pagando seus pecados no Inferno.

— Piedade... Que Deus tenha piedade... – Murmurou sôfrego após uma tosse dolorosa que lhe pintou os lábios de sangue escuro. Friedrich rapidamente procurou por um lenço extra em algum dos bolsos do cinto, mas por sorte Loki ainda tinha um disponível e acabou alcançando ao homem com a ponta da bengala.

— Não há sofrimento que dure para sempre. – Loki declarou querendo tranquilizar o doente, sentindo um peso tenebroso em sua alma ao não ter certeza sobre qual sentido pretendia exprimir em suas palavras. Parecia que quanto mais tempo ficava naquele meio, mais era engolido pelos sentimentos de devastação e desesperança que acompanhavam a peste e a morte.

Era inevitável não pensar a todo instante sobre Clémentine após vê-la curada. Se a princípio parecia trazer esperança a todos, a falta de respostas quanto a sua melhora aos poucos parecia tornar seu milagre em uma piada de mau gosto, pois enquanto ela conseguia retornar para casa, outra centena era jogada nas valas de corpos. Loki chegava a imaginar a peste como uma entidade consciente, á espreita deles e se divertindo com a queda da humanidade.

No silêncio que era tomado somente pelos gemidos de dor dos doentes, os médicos se sobressaltaram ao ouvir o relinchar alto e apavorado de um cavalo. Ao virarem os olhares para a extremidade da rua, quase já um ponto no meio do horizonte, a carroça de corpos estava estagnada com a égua agitando-se para erguer o cabresto abaixado pelo carroceiro caído no chão.

Désiré?! – Ouviu-se o grito atônito de Claude, que correu o mais rápido que podia com suas pernas frágeis sem que caísse ou tropeçasse até o irmão caído. – O que aconteceu meu caro? Uma montanha como tu não desaba dessa forma!

O grande homem olhou para o irmão com o canto dos olhos, calado, aceitando o auxílio para reerguer-se, mas precisando da ajuda de outros dois homens no mínimo para conseguir levantar o gigante de pé mais uma vez. Désiré arriscou um passo, mas acabou tendo que tirar com brutalidade a manta que cobria a boca enquanto tossia um catarro escuro e sanguinolento, curvando-se de aflição.

— Não... – Claude murmurou estarrecido, cambaleando para trás de tão desestabilizado. – Não pode... Desde quando Désiré...?

Mais alguns segundos foram tomados pelo silêncio, com Désiré respirando de forma pesada e negando-se a olhar o irmão diretamente.

— Dois. Talvez três dias. – Respondeu truculento.

— Por que não disse antes?!

— E faria diferença?

— Claro que sim! Poderíamos ter lhe ajudado!

— Como a todos esses? – Indagou rudemente, apontando para a carroça dos corpos. – Seja lá que milagre aquela garota recebeu, foi um contra as centenas. Sei que Deus não o faria por mim.

— Não diga isso... – Claude murmurou, cambaleando de volta para perto do doente. – Por favor, não digas isso. Pelo amor de todos os Santos, não ouse dizer que...

— Acabou Claude. – Désiré disse de maneira firme, mas com um olhar exausto. – Meus dias já foram contados.

— Mas... Mas eu acabei de encontrá-lo! Não pode ir agora! – Disse desolado entre soluços de dor, abraçando-o pela primeira vez em trinta anos, já não importando-se consigo mesmo enquanto chorava copiosamente pelo luto iminente, enquanto o condenado pela lei e pela peste lacrimejava em silêncio, aceitando por fim a companhia da única pessoa que lhe restou.

Os corvos, fossem eles os pássaros ou os homens ao redor, assistiram em silêncio a iminente separação entre os vivos e seus mortos.

                                              ***                                               

Era noite, a lua cheia cobria o ambiente com seu brilho suave sob a vegetação, com o frescor do inverno arrepiando a pele e machucando as árvores que ainda tentavam lutar contra a estação. Em uma das passarelas de pedra e mármore a ligarem um ponto do castelo ao outro, com suas colunas ao estilo romano delineando o perímetro, com bancos de pedra espalhados contra as paredes esculpidas, nossa tão conhecida dupla tentava absorver entre a penumbra um pouco de paz e solitude.

Uma vela repousando no candeeiro era a maior fonte de luz que tinham, permanecendo ao lado de Friedrich que desenhava e escrevia ensinamentos anatômicos nas anotações que agora ambos dividiam.

— Os pulmões não têm mais porções por cima? – Loki indagou observando com certa apatia os desenhos. Por mais que ainda fosse curioso, o marasmo daquele ambiente de peste e do trabalho que andavam realizando sugava grande parte do ânimo.

— Os de porcos e de cavalos sim. – Friedrich explicou. – Mas não o de pessoas.

— Como sabe? Já pode abrir algum corpo? – Questionou, agora com um tom levemente impressionado.

Sancti Christus, não! Até parece que sou necromante. Mas na guerra, ás vezes... Ás vezes se viam os pedaços por aí, ou apareciam ferimentos profundos o bastante para observar. – Disse com a voz vacilante, não gostando de ter tais imagens mais uma vez em sua mente.

— Oh, sinto muito. – Loki disse, notando o pesar no olhar do parceiro com tal assunto. Contudo, ficara curioso com o assunto. – E quanto ao coração?

— Igual ao dos bichos. – Friedrich respondeu, um pouco mais vivaz, visto que gostava de ensinar. – Só as grandes veias tinham posições diferentes... Lembro-me de ter anotado como ficavam, mas acabou ficando no mosteiro, infelizmente não consigo mais me lembrar como eram exatamente.

— E quanto ao estômago?

— Como o de um cavalo, mas menor.

— E as tripas?

— Oh, dessas eu via muito. Não notei tanta diferença dos outros animais também. Percebi que Deus não fez nosso corpo tão distinto dos outros seres e, admito que foi um tanto decepcionante descobrir isso da imagem e semelhança Dele. – Comentou pensativo, enquanto Loki admirava os esboços que fazia.

— Desenhas tão bem quanto escreve.

— Obrigado, mas afirmo-te que não passo de um amador nessa arte. Frei Aedan, que costumava fazer as ilustrações de meus escritos, apenas me ensinou uma que outra coisa. Que Deus o guarde onde quer que esteja.

Sentados um do lado do outro, próximos pelo frio e pela intimidade, Loki sentia o corpo aconchegar-se aos poucos quase de forma inconsciente no amado, tentado pelo calor de sua pele e companhia, deitando o rosto em seu ombro enquanto sentia parte do cansaço e do sono começar a cobrar seu corpo. O cheiro de cera de vela e carvão de suas roupas, junto da fina camada exposta de pele do pescoço de Friedrich lhe traziam um breve conforto no coração pesado.

— Loki... – Friedrich sussurrou num suspiro, parando de rabiscar. – Não... Alguém pode ver, por favor.

Num bufo descontente, Loki reergueu-se mais uma vez, cruzando os braços por insatisfação e pelo frio. Não estava irritado com o pedido de Friedrich em si, mas da situação que se encontravam e os obrigava a agirem de maneira falsa e contida. Sentia falta de demonstrar sua candura e de cortejá-lo, mas não queria arriscar perder uma vida com ele por acabar se arriscando. Por mais que uma voz em sua cabeça dissesse todas as noites para espreitar-se até o quarto ao lado, a razão e o medo fazia-o aturar a dolorosa distância enquanto próximos.

— Também sinto sua falta, mas é preciso cautela. – Friedrich disse entre cochichos, sentindo o coração bater forte pela euforia do druida momentaneamente próximo e do pavor de serem pegos de tal forma.

— Sei disso. Apenas fiquei desatento por um instante, desculpe. – Disse entre um bocejo, coçando os olhos pesados.

— Talvez seja melhor não estendermos mais esse dia. – Disse o alquimista colocando os escritos embaixo do braço, levantando-se e estendendo uma mão para o companheiro reerguer-se. Loki aceitou com um sorriso cansado no rosto, levantando e levando o candeeiro junto enquanto entravam nos corredores escuros de tochas esparsas.

No caminho, perceberam que alguém caminhava no sentido contrário, não sendo difícil reconhecer quem era mesmo que no escuro devido ao andar sôfrego e lento.

Salut Claude. – Friedrich cumprimentou, com Loki erguendo seu gorro educadamente para acompanhar. – Comment va Désiré?

Vá mout mal. — Disse desconsolado, não tirando o olhar do chão com vergonha de acabar se emocionando na frente de outros. – Só saí do lado dele agora, por insistência de monsieur Siméon, pois tenho medo de que ele se vá em minha ausência. Sei que posso contrair a peste também, mas assumo o risco de lhe fazer companhia nos últimos instantes... 

— Não lhe julgo caro amigo, faria o mesmo se tivesse tido a chance. – Friedrich comentou com um olhar empático.

— Sinto muito por sua vida, mas temo demais o destino de sua alma... Eu o disse que padre Amédée o receberia para a última unção, mas ele é orgulhoso demais para recebê-lo e nega a visita... Ele não é tão crente quanto eu, acredita que apenas Deus o escutando seja o bastante para a remissão de seus pecados e por mais que eu concorde com seu raciocínio eu... Eu... – Claude estremecia, tentando conter os soluços que se formavam em sua garganta, por mais que as lágrimas salgadas já rolassem por seu rosto. – Eu ainda assim temo jamais encontrá-lo novamente...

Friedrich tentou acalmar o homem, enquanto o druida permanecia estático, não por que não sabia lidar com situações assim – na realidade, estava até acostumado demais –, mas por se colocar para refletir o pouco que sabia quanto às crenças cristãs, da qual havia aprendido ainda mais com a convivência de Friedrich. Já havia ouvido falar sobre tal unção e, apesar de não compreender tanto sua importância para eles, sabia que precisava ser feita por algum sacerdote ou outro integrante do clero.

Doth na thee becnâwan hwaet aet doth hit?¹ – Indagou ao companheiro na língua mãe para Claude não compreender, vendo entre a luz do candeeiro o olhar de Friedrich ficar atônito e introspectivo.

 Gese! Ac Ic...Anbídian.– Seu cenho se franziu enquanto pensava. –Elcor...!  

Pardoner?² – Claude indagou, limpando o rosto com as mãos e se recompondo por um instante devido a confusão de ouvir os companheiros falarem naquela língua tão grosseira para ele.

Talvez Friedrich possa os ajudar, tenho certeza que Désiré não negaria a presença de um ex-prisioneiro.

Thee flustrest me.— Friedrich resmungou para Loki, revirando os olhos.

Ye wilcume.

O que Loki está tentando dizer, é de que sei fazer a Extrema Unção Claude, pois fui frade beneditino. – Friedrich explicou com calma, ganhando toda a atenção do francês a lhe olhar com surpresa e interesse. – Contudo, nunca saí oficialmente da Ordem apesar de não praticar mais o ofício, devido á circunstâncias... Controversas eu diria.

Que também o fizeram um condenado?

Exato. – Concordou a contragosto, pois não gostava de tal ideia por mais que fosse verdade. – Por isso, mesmo que não seja o ideal um mero frade realizar tal sacramento, se fará te sentir melhor com a partida de um ente querido e Désiré desejar, estarei a teu dispor. 

Os olhos marejados brilharam pelas lágrimas e o alívio, onde no ápice de sua gratidão tomou as mãos de Friedrich nas suas como o faria com um clérigo em agradecimento.

Sabia que Deus não nos abandonaria nesse instante! Tens minha eterna gratidão irmão Friedrich, falarei com meu irmão agora mesmo!

O alquimista permaneceu hirto por alguns instantes, os olhos arregalando-se ao ouvir ser referido como irmão Friedrich depois de tanto tempo, sentindo a estranheza de que aquilo já não lhe pertencia, mas também a familiaridade que tinha por aquele pedaço significativo de sua vida. Não conseguia definir o quanto de si ainda era um frade, mas incorporaria o máximo de si como religioso para trazer alento aos desafortunados.

— Apenas preciso que consiga um pouco de óleo de oliveira, para realizar a unção.

— Arranjarei qualquer coisa que precisar se for por meu irmão. – Claude afirmou convicto. – Lhe guiarei até onde está Désiré, pois mesmo enfermo ele tem de ficar nas masmorras por conta de sua pena.

— Pode se retirar para seu descanso então caro amigo, enquanto realizo a benção.

 – Art ye sure?³— Loki questionou temeroso apenas para o parceiro.

Aye. — Friedrich o fitou com um olhar ameno e confiante, tentado a lhe tocar o ombro com afeição, mas contendo-se. – Não gaste as últimas de suas energias me esperando, o que farei não é nenhum mistério para mim. Vá tranquilo, bonne nuict.

Loki seguiu sozinho pelo corredor, olhando para trás receoso algumas vezes, mas acabando por sumir noite adentro. Friedrich seguiu caminho na companhia de Claude, sentindo o coração batendo em ansiedade e temeroso em praticar o ofício religioso depois de tanto tempo. Esperava que não tivesse perdido a prática e em sua mente pedia para que Deus o guiasse com sabedoria.

Ambos vestiram mais uma vez as roupas de médico antes de entrarem no recinto em que o enfermo se encontrava. Desceram por degraus tortuosos e de corredores estreitos, com paredes frias e negras com poucas tochas para iluminarem o caminho. As masmorras eram úmidas e tomadas por sombras, fazendo com que o alquimista sentisse a espinha gelar-se e os pelos se eriçarem com a impressão de que os fantasmas dali ainda os observavam.

Claude conversou com o irmão por um breve instante, explicando a situação, antes de indicar a cela para Friedrich, que estava aberta visto que o pobre homem mal conseguia manter-se em pé de toda forma. Logo Friedrich seguiu sozinho á passos lentos, pois tal unção era um assunto particular entre o enfermo, o sacerdote e Deus.

Salut, Désiré. — Friedrich cumprimentou, agachando-se para ficar na altura do grande homem que repousava num montante de palha. Toda iluminação vinha do lume que o antigo frade trazia em suas mãos, mas mesmo assim pode notar os olhos cinzentos de Désiré virando em sua direção, num misto de surpresa e desconfiança.

— Bem que o achava muito beato. E olha que conheço Claude. – Murmurou truculento, mas quiçá um esboço de riso tenha surgido em Désiré.

— Todos temos nossos segredos da qual apenas o Pai é nosso confidente.

— E que terei de revelar neste instante para vós. – Désiré apontou, fazendo Friedrich sentir-se estranho a ser referido em um pronome tão alto. Pensou em explicar ao enfermo que apenas os clérigos seculares eram tratados de tal forma, mas resolveu deixar batido.

— Não necessariamente, Deus está sempre disposto a nos ouvir e se desejar tratar somente com Ele, meu trabalho é abençoá-lo e garantir que a morte venha somente como um descanso, não um pesar.

— Creio que já paguei em minha própria vida a maior parte de meus erros. – Désiré deu um suspiro pesado, seguindo de uma tosse sofrida a gotejar sangue no chão. – Mas... Acho que Claude foi posto no meu fim para eu ter uma companhia além de minha amargura... Arrependo-me somente de não ter dado a chance de conhecer melhor a única família e amigo que eu poderia levar no fim.

— Por mais que tu pudesses ter estreitado ainda mais os laços com teu irmão antes, não acredito que ainda não possas passar os próximos dias na companhia dele. Ele se importa contigo e, vejo que mesmo de teu modo tu também esperas sempre o melhor dele.

— Espero que sim, se Deus for piedoso com o tempo que me resta.

— Vosso Senhor sempre sabe o que faz, e tenho certeza que após minha saída Claude permanecerá ao teu lado de forma fiel. – Friedrich declarou, umedecendo os dedos enluvados com o óleo. – Per istam sanctam Unctionem, et suam piissimam misericordiam, indulgent tibi Dominus quidquid deliquisti...

Claude esperava na entrada das masmorras, agradecendo piamente mais uma vez para Friedrich que ficara até acanhado com os modos exagerados dele. Logo ele retornou para fazer companhia ao irmão enfermo, agoniado que estava por deixa-lo sozinho e com medo de que não estivesse no momento de sua partida. Friedrich subiu as escadas com um pesar no peito, mas sentindo que havia feito a coisa certa, tal como um dia havia feito com tantos soldados no desespero e pressa da guerra. Se não conseguia curar os vivos, que pudesse pelo menos acalmar os mortos.

Ao retornar para o corredor dos quartos, percebeu a figura de um homem sentado em um banco de três pernas, de braços cruzados e cabeça pendida para frente, roncando suavemente em seu sono. Friedrich aproximou-se dele com o cenho franzido, mas não conseguindo conter um meio sorriso no rosto diante da figura.

— Tolo... – Murmurou enquanto cutucava o ombro de Loki até que ele acordasse, abrindo as esmeraldas que brilhavam na escuridão, recebendo-o com o sorriso matreiro de sempre.

— Então, que achou de retornar ao clero?

— Melancólico. Agora vá para teu leito, não entendo por que insistiu de me esperar.

— Sabendo que fica sempre sentido com esse tipo de coisa? Definitivamente não. – Loki levantou-se, olhando de forma cautelosa para os lados antes de passar seu braço pelos ombros de Friedrich, temendo serem pegos até mesmo naquela postura quase fraterna. – Tu és bondoso demais Friedrich, e pessoas assim sempre se machucam no final. Admiro-o por ainda lutar pelas pessoas.

— Alguém sempre precisa fazer este papel. – Disse com um sorriso solene e triste, virando o rosto para olhar profundamente o amado. – Loki... Você acredita que nos encontraremos depois da morte?

— Claro que sim, para mim todas as almas vão para o mesmo lugar antes de retornarem em novas existências. Por quê? Não espere, deixe-me adivinhar, acha que não iremos estar no mesmo lugar, certo? – Loki o fitou com o canto dos olhos, com um leve escárnio no tom misturado à mágoa. Fazia tempos, quiçá antes mesmo de declararem-se, desde que Friedrich ainda lhe alfinetava com a provável ida ao Inferno que o esperava no pós-morte cristão, coisa que não estava esperando ouvir novamente depois de tudo.

— Não, creio que estaremos juntos também. Apenas queria saber se pensava o mesmo, ou pelo menos de maneira semelhante a mim, pois me compadeci com o medo de Claude ao imaginar jamais rever o irmão na eternidade. E eu gostaria de saber, mesmo que com nossa fé diversa, que nós dois possuímos tal esperança. – Friedrich disse de forma plácida, fazendo Loki erguer as sobrancelhas de surpresa.

— Não me diga que acreditas que irá pro Inferno!

— O que? Minha Nossa Senhora Loki, claro que não! Quer dizer, Deus é o único capaz de nos julgar, mas creio que é mais provável irmos ao Purgatório como a maior parte de todas as pessoas.

— Purgra... Pruga... Deuses, mais essa ainda! – Loki resmungou inconformado com a complexidade daquilo tudo. Mas logo voltando à sobriedade. – A morte assusta as pessoas. E isso é um pequeno alento para nos acalmar quanto a ela. Se nos reencontrarmos ou não após a morte, de toda forma prefiro não arriscar deixar de passar esta minha vida contigo.

Pararam quando Friedrich chegou ao próprio leito, com Loki afastando o braço de seus ombros e lhe dando um curto sorriso para acalentar aquelas ideias sombrias.

— Quiçá a morte tenha infestado demais nossos pensamentos nos últimos dias... – Friedrich declarou, com um suspiro cansado. – Que nosso esforço ao menos não seja em vão.

***

Désiré faleceria três dias depois. 

Há quem diga que Claude jamais sorriu novamente como antes sempre o fazia, e que sua língua sempre afoita a falar de tudo e com todos, calou-se por completo. Contudo, poucos foram os que o viram desde então, pois o camponês devoto acabou tornando-se frade franciscano alguns meses depois, crendo que ao ter tido a oportunidade de reunir-se com a família perdida uma última vez, já não lhe era preciso ser mais nada na vida além de um servo de Deus.

Ou foi simplesmente a forma que ele encontrou de lidar com a própria perda, tendo toda a esperança que lutou bravamente para ter em vida sendo brutalmente morta e jogada em seus braços, sem qualquer outra explicação do que deveria fazer ou sentir.

De toda forma, jamais saberemos, pois Claude não é o protagonista.


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Notas finais do capítulo

Muitas e muitas notas, pois a autora louca resolveu ficar horas estudando inglês e francês antigo por algumas poucas frases:
''Salut'' - Olá
''Comment va'' - Como vai
''Vá mout mal.'' - Vai muito mal.
¹ ''Doth na thee becnâwan hwaet aet doth hit?'' (Don't you know how to do it?) - Você não sabe como fazer isso?
''Gese! Ac Ic...Anbídian. Elcor...! '' (Of course! But I... Wait. Otherwise...!) - Claro que sim! Mas eu... Espere. A não ser...!
² ''Pardoner'' (Pardon) - Desculpe/Com licença.
³ Art ye sure?'' (Are you sure?) - Você tem certeza?
''Aye'' (yes) - Sim

Tem alguém aí ainda...? To sentindo um eco tremendo ein, mas se tiver algum fantasminhas ali, comente o que achou e nos vemos nos próximos capítulos!



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