Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 29
A Neve e a Cabana




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A região da costa Francesa estava praticamente tomada pelos ingleses, por conta das sucessivas vitórias da guerra que fora impedida temporariamente pela peste. Por isso, fora até estranho chegarem a solo firme e se depararem com soldados do Rei Eduardo e se depararem com muitos outros ingleses pela região, encontrando legítimos franceses apenas aqui e acolá, acuados pela tomada do inimigo de batalha e receosos demais para se aproximarem das terras invadidas que antes viviam. Era como uma extensão da própria terra natal além do mar, não trazendo nenhuma centelha de tranquilidade para eles durante os primeiros dias.

Passaram por diversos vilarejos devastados, fossem eles completamente debandados ou ainda sendo reconstruídos com a força que restava do povo.  Além de campos de batalha imensos com restos do que havia sobrado de todo aquele horror, como o solo morto pelo fogo e terra revirada, as armas parcialmente enterradas na lama, os túmulos de pedra feitos de forma improvisada pelos soldados. Friedrich sentia um amargo no fundo de sua garganta naquele cenário, tornando-se mais silencioso que o costume por conta das lembranças terríveis que possuía da guerra e de seus mortos.

Pouco trabalho eles conseguiram pela região nos primeiros dias, e a maior barreira não era a língua da qual ainda estavam se acostumando, mas da desconfiança dos franceses por suas origens. Mesmo com a trégua imposta, havia um ressentimento forte entre as duas nações, visto que agora a Inglaterra dominava parte do norte francês, criando um forte receio e asco dos derrotados aos vitoriosos nas batalhas. Loki preferia dizer que era irlandês a maior parte das vezes para conseguir alguma centelha de simpatia, visto que seus traços hibérnicos e seu leve sotaque eram fáceis de enganar, mas por outro lado Friedrich tinha todos os trejeitos britânicos para afastar os francos pelos dois. Por mais que andarilhos fossem considerados sem pátria a maior parte das vezes, os eventos eram recentes demais para todas as vítimas da guerra.

Mas eles preferiam mais a companhia duvidosa dos franceses do que os britânicos a serviço do rei Eduardo. Por mais improvável que aqueles cavaleiros tão distantes de casa soubessem alguma coisa quanto a Loki, todo o cuidado era pouco para eles. Qualquer deslize poderia levá-los até os braços pontiagudos da Inquisição.

Felizmente, depois de tanto tempo vivendo na míngua, possuíam mais uma vez economias o bastante para poderem se esconder do inverno tortuoso em hospedarias e tavernas, lugares ideais a eles como viajantes por receberem pessoas de tantos lugares diversos. Ainda próximos do litoral, mesmo com a guerra e peste a abaixarem a cota de visitantes, podiam presenciar ainda a presença de outras pessoas buscando caminhos pelo coração da Europa assim como eles. Contudo, não podiam viver em tal conforto para sempre, e se desejavam sair daquela região tão machucada pela guerra precisavam seguir em frente.

Os suprimentos eram abarrotados nas sacolas, deixando as costas doloridas de tanto peso. Peles, mantos, túnicas, gorros, capuzes e camadas duplas de chausses eram mais do que necessários serem combinados para enfrentaram o inverno na estrada. Seus passos eram vagarosos, e a respiração levava um vapor constante pelo frio maldoso, mas prosseguiam determinados naquela vida errante que levavam com a esperança de dias melhores e, quem sabe um lugar mais quente e aconchegante que a neve e a floresta.

— Eu estou congelando. – Loki resmungava descontente, com vapor saindo dos lábios rachados e neve caindo em seu gorro e por cima dos ombros, deixando as sacolas em suas costas com uma fina camada de brancura conforme os flocos caíam. – Não sinto meus dedos, ou meu nariz, nem minhas bolas!  Daria meus olhos por um copo quente de sidra e meu velho manto.

— Seu manto novo é mais quente que o antigo. – Friedrich retrucou olhando para trás, visto que estava alguns poucos passos á frente de Loki no caminho tomado de neve da floresta. O sol refletia na brancura do chão, brilhando e ofuscando a visão dependendo donde olhavam, pois ao contrário das terras britânicas sempre tomadas de nuvens o céu dos franceses era de um azul límpido mesmo nos dias mais frios do inverno.

— Mas é marrom e sem graça, se tivesse um pouco de cor ao menos levantaria meu ânimo. – Loki respondeu observando atento o capuz do parceiro, fazendo uma ideia tentadora e estúpida se formar em sua cabeça conforme caminhavam chutando a neve.

— Foi sua ideia partir o mais cedo possível. – Disse Friedrich, não notando a breve pausa da caminhada do druida que se abaixava para pegar um pouco de neve em suas mãos enluvadas.

— Claro, mas por que o clima vai ficar ainda mais frio, e quando vier eu quero estar em alguma hospedagem com lareiras aconchegantes em Paris o mais breve possível, obrigado.

— Pelo menos dizem que o inverno daqui não é tão rigoroso quanto o de nossa terra. – Friedrich comentou, alheio a aproximação gatuna de Loki com a bola de neve em mãos.

— Sabe o que eu e meus irmãos fazíamos quando crianças para nos esquentar durante o inverno? Como não havia cama para todos e dormíamos no chão frio de terra, nós trazíamos as cabras para dentro de casa e deitávamos abraçados a seus pelos pútridos... – Contou para distrair a mente dele enquanto agilmente abaixava o capuz de Friedrich, colocava a neve dentro e o erguia novamente, fazendo o outro arquejar pelo gelo em sua cabeça e escorrendo pelo pescoço, trazendo uma trilha de arrepios terríveis e agonizante pelo frio.

— Maldito! – Gritou de maneira esganiçada abaixando rápido o capuz e tentando inutilmente tirar a neve dos cabelos e dos flocos que foram por baixo de sua roupa. – Seu larápio! Patife! Te arranco-lhe os dentes!

Loki ria como uma criança após o feito de uma de suas travessuras, deixando o rosto vermelho enquanto olhava todo jocoso para a expressão irada de Friedrich que vinha em sua direção de passos firmes e punhos cerrados. O druida não levava realmente aquela investida a sério, imaginando que ele se aproximaria para enchê-lo de xingamentos, mas acabou por ser surpreendido quando Friedrich esticou um dos braços para pegar o galho de um pinheiro acima da cabeça do ruivo, abaixando suas folhas e deixando toda a neve acumulada cair em cima de seu corpo.

— Trapaceiro! – Disse tremendo os dentes de frio, chacoalhando-se feito um cão para tirar todo o gelo de seu corpo. Friedrich soltou um riso breve de vitória.

— Este jogo já começou injusto, não é por que não consegues alcançar as folhas das árvores que eu não posso fazê-lo. – Retrucou provocando, percebendo mais uma ruga de ira se fazer no rosto de Loki pela mera menção de sua baixa estatura, pegando parte da neve em seus ombros e jogando irritado em direção a Friedrich que tentou desviar sem sucesso algum. – E ainda te irritas sendo que és culpado?!

Riram-se entre eles de braços cruzados pelo frio, estremecendo o corpo até a ponta dos fios de cabelo. Provocar um ao outro era praticamente parte da rotina deles desde quando haviam se conhecido, algo que se consolidou pelas diferenças de personalidade e modos de vida entre eles que entravam em conflito, mas principalmente pelo jeito travesso e humorado de Loki e a facilidade que descobriu ter para tirar o companheiro do sério com as menores coisas. Ainda mais quando soube que era uma forma de arrancar um largo sorriso de Friedrich, que sempre o escondia em meros risos solenes. Pois ao contrário dele que ria por qualquer disparate, não era tão simples arrancar de surpresa um riso do alquimista.

— Adoro quanto tu sorri assim, fica ainda mais belo e encantador.  – Disse fazendo o rosto sorridente de Friedrich mudar para uma expressão surpresa, ficando acanhado e vermelho feito os fios do companheiro.

— Grato... Apesar de não achar ser meu melhor semblante. – Friedrich respondeu encolhendo-se mais em suas roupas e nos braços cruzados. – O seu riso sim que acho admirável, é contagiante.

— Oh, que bom que gosta, pois pretendo usá-lo até não ter mais os dentes. – Disse o druida dando seu sorriso de vigarista típico, pegando nos ombros do amado e se esticando para dar um beijo em sua bochecha gelada. - Mas você está sempre com o melhor semblante para mim Freddie, e tens um sorriso mais belo do que imagina e que me leva á loucura.

— Está tentando se redimir depois de quase me congelar. – Retrucou ficando ainda mais rubro, mas com um sorriso singelo e não tão contido como costumava, revelando o pequeno vão que tinha entre os dentes da frente.

— Tu já te vingaste! – Loki retorquiu, mas sentindo os dedos do companheiro se entrelaçar com os seus, com o contato sendo somente a leve pressão aconchegante que sentiam por baixo das luvas.

— E agora estamos os dois congelando. – Friedrich disse, mas não sendo totalmente ouvido por Loki que se focou na visão de alguma coisa no meio da floresta. – Que há de errado?

— Por incrível que pareça para nós meu caro, está tudo certo, ou melhor, excelente! – Disse Loki eufórico puxando o parceiro enquanto tentava correr pela floresta, sem dar grandes explicações do que queria dizer. Suas pegadas eram deixadas na neve conforme avançavam na mata adormecida, passando por seus galhos pontudos e desnudos de folhas que se batiam um nos outros quando avançavam, deixando para trás aquele silêncio com o som da madeira quebrando e de neve sendo revirada, logo tendo seus rastros escondidos pelos flocos que pousavam suavemente no chão e em suas roupas. Não demorou para Friedrich perceber para onde o companheiro o levava, vendo por entre os pinheiros e árvores menores e esguias uma minúscula cabana de madeira camuflada pela neve.

— O que é isso? – Indagou Friedrich curioso com aquela centelha de civilização presente no meio do nada.

— Uma casa de caçador! – Respondeu Loki empolgado, tentando abrir entre os vãos que acreditava ser a porta. – Há tempos que não encontrava uma, são muito úteis para gente como nós, ainda mais nesse frio desgraçado. Pronto!

A porta se abriu por inteira do lado de dentro, batendo na parede e dando um baque que derrubou parte da neve do teto. O chão era forrado por palha e fibra, e apesar das diversas frestas nas paredes e no teto, a neve que caía dentro era praticamente nada comparada ao que precisaram enfrentar do lado de fora. Loki entrou tranquilamente enquanto Friedrich precisou abaixar-se um pouco para não bater no batente, mas por dentro havia espaço o bastante para os dois se instalarem com certo ‘’conforto’’.

— Nada mal... – Friedrich comentou olhando ao redor. – Admito que não é tão menor que minha velha casa em Hampshire.

— Eu disse que uma hora a sorte se abriria para nós. – Loki disse sorridente, já retirando todas as tralhas das costas e começando a desenrolar um pedaço de couro que usavam para deitar-se e o estendendo no chão forrado. – Logo vai anoitecer, e tudo o que eu quero agora é algo no estômago e me enrolar em peles como um casulo.

— Espero que Peregrino consiga nos encontrar aqui. – Friedrich comentou dando uma última olhada do lado de fora antes de fechar a porta, selando ela em um vão cavado no chão para que não se abrisse com o vento.

— O deixe passear, se não se importa com o frio eu me importo. – Loki já se sentava no chão e esticava as pernas, colocando os braços por trás da cabeça como se relaxasse.

— Único ponto negativo é que não podemos fazer uma fogueira aqui, é muito pequeno o espaço e não há janelas.

— A forragem vai ajudar nisso, e você também.

— Como? – Friedrich ergueu as sobrancelhas intrigado.

— Vem aqui que lhe mostro – Loki exibia um sorriso provocante, erguendo as sobrancelhas grossas e tapeando o lugar ao seu lado para indicar ao amante.

— Tu não prestas. – Disse dando um riso nervoso frente ao olhar provocante do druida, sentindo um arrepio prazeroso passar por todo seu corpo, decidindo por tirar a bagagem das costas e se colocar ao lado dele.

— Nem um pouco. – Loki declarou antes de tocar o rosto de Friedrich puxando-o para um beijo terno, sentindo o gelo da pele se acalentar pelo calor que trocavam, saboreando sem pressa enquanto passava as mãos pelo seu corpo e o envolvendo com os braços para se aproximarem mais. Não demorou para o alquimista tocar e bagunçar os cabelos ruivos que era tão apaixonado, intensificando ainda mais o ósculo e fazendo-os provar com ferocidade a boca um do outro, com o druida ficando surpreso quando sentiu os lábios de Friedrich provando a extensão de seu pescoço, deixando um suspiro de deleite pairando no ar.

O frio que os dominava começou a ser derrotado por todo o ardor que os preenchia, o sangue corria rápido em suas veias corando a pele cada vez mais sedenta pelo contato e revirando as vísceras mais baixas. Mal deram-se conta em que exato momento se viram deitados, com Loki por cima de Friedrich e se afastando um pouco para fitarem um ao outro. Os lábios úmidos, a respiração ofegante, os olhos dilatados e repletos de desejo, encantando-se pela visão estonteante que tinham de seus amores, sorrindo-se por um instante por tamanho júbilo antes de voltar a se enlaçarem mais uma vez.

Não parecendo sentir mais o inverno, Loki retirou ás pressas o manto que tinha por cima da túnica que impedia parte de seus movimentos, não se demorando para se por novamente em cima de Friedrich e lhe tomando os lábios com cobiça, tocando em seu cabelo com as duas mãos e as passando por seu pescoço para desenrolar o cachecol e provar mais daquela pele tentadora, deixando uma trilha de ósculos e mordiscadas até onde a roupa permitia ser afastada de seus ombros, se aprazendo ainda mais ao ouvir os suspiros tímidos de Friedrich. Lentamente suas mãos passeavam pelo corpo esguio dele, atento a algum sinal de resistência da parte do companheiro acanhado enquanto tocava as pernas por baixo da túnica, sentindo-o agarrar ainda mais suas vestes e arfando entre seus lábios como resposta.

Friedrich sentia o coração indo às alturas, o corpo tomando-se por arrepios e languidas sensações ao ter a boca do druida contra a sua com ferocidade e as mãos apertando e massageando suas coxas. Sentiu os cordões das chausses sendo desamarrados, as tendo abaixadas até os joelhos, recebendo o calor prazeroso das mãos do outro no lugar do tecido contra sua pele. Por mais tomado pela vergonha que estivesse, a ânsia crescente pelo toque o dominava além de seus pudores, puxando Loki ainda mais para uma proximidade que nunca parecia ser o bastante, passando as mãos por baixo da túnica e sentindo a extensão de sua coluna e a textura macia de sua pele tentadora. Tendo em resposta pelos seus toques mais ousados as mãos do outro homem a apertas suas ancas por baixo do tecido do calção, um contraste com seus toques tímidos por baixo da túnica dele, explorando o seu tronco e sentindo o calor da cútis e os pelos de seu peito.

Naquele pequeno abrigo no meio do nada, imersos nos braços e carinhos um do outro ao menos por um breve instante não parecia mais existir todas as intempéries que os perseguiam, a negação de seus sentimentos, o medo a tomar suas peles. Havia apenas o amor que sentiam e que lutaram tão arduamente para declarar, o encontro entre seus corpos que clamavam por tanto tempo a presença um do outro e os inebriava de paixão, onde por fim podiam mergulhar sem temor em todo desejo que sentiam e se refugiar na segurança daqueles corações que batiam em sincronia no sentimento etéreo e mais forte que tudo que tentou separá-los.  

Errado

Mas algo ainda impedia Friedrich de prosseguir plenamente.

Profano

Uma ansiedade súbita começava a espalhar por seu peito onde antes havia apenas seus sentimentos incondicionais por Loki, o desconcertando no meio daquelas sensações dúbias que passavam por suas entranhas.

Perverso

Sentiu o estômago revirar-se, não da forma excitante de antes, mas longe da intimidade e familiaridade que possuía com os toques de Loki. Um pânico esquisito tomava-lhe o âmago e no lugar do homem que amava parecia haver somente o diabo a lhe puxar para as profundezas da terra.

Pecado

Pecado

Pecado

Pecado

Pecado

Pecado

Pecado

               Afastou-se de Loki o empurrando sutilmente com a mão em seu peito, não conseguindo olhar para seus olhos de cobra o fitando de forma confusa.

— Está tudo bem? – Loki indagou preocupado, fazendo o alquimista engolir em seco.

— Sim apenas... Acho melhor pararmos. – Respondeu sem jeito, com a respiração desconcertada por toda a euforia anterior, mas intensificada por aquele nervosismo terrível que lhe tomou a mente. Agora a vergonha dava-se não por sua inocência em meio à malícia, mas pela a insegurança a lhe tomar o peito, sentindo-se abalado por ter o druida sempre solícito á ele enquanto ainda se via no meio daqueles temores sem sentido que ainda lutava para se livrar.

— Oh... Claro. – Disse um tanto desorientado, saindo de cima de Friedrich e pondo-se novamente a se sentar escorado nas paredes frágeis do abrigo, amarrando de volta os cordões da roupa que haviam sido soltos e pondo de volta o manto de lã por cima. Foi inevitável sentir uma ponta de frustração com aquilo, mas não desejava insistir ao ver a expressão obviamente desconfortável de Friedrich que amarrava novamente as chausses ao calção desajeitadamente. Para ignorar o desconforto entre as pernas, Loki procurou entre suas coisas o cachimbo e a erva que havia conseguido no porto, tentando acendê-lo com carvão agora que não havia tanto vento para acabar com sua pequena chama.

— Desculpe... – Ouviu de Friedrich de forma vacilante, quando conseguiu dar as primeiras tragadas no fumo.

— Pelo quê? – Indagou fanho pelo cachimbo em sua boca. – Não estou chateado, nem tenho o porquê. Entendo se tu não estás pronto.

Friedrich o fitou pelo canto dos olhos, incerto em seus pensamentos e repleto de inseguranças que custava se livrar. Enroscava os dedos um nos outros como um tique nervoso, enquanto as palavras ainda lhe pareciam ser um perigo de usar. Casualmente Loki sentou-se novamente ao seu lado, apoiando o corpo nos ombros dele para descansar, aproveitando pelo menos alguma vantagem da estatura baixa.

— E agora posso afirmar que tu és muito melhor para me aquecer que qualquer cabra. – Comentou com um sorriso sacana no rosto, atento aos modos do outro que estava imerso nas próprias ideias. Para Loki, aquele lado paranoico de Friedrich havia sido seu primeiro contato com ele, antes mesmo de saber seu nome, lembrando-se de quando se conheceram e de seu medo infundado com os métodos que usava para cura, uma ansiedade e temor constante que sabia serem as assombrações dele que já era tão traumatizado pela perseguição e os anos que esteve enclausurado no mosteiro. Mas Loki havia aprendido que somente um pouco de calma era o bastante para fazê-lo voltar à racionalidade que antagonicamente também lhe era uma marcante característica, fazendo os mares de seus olhos acalmarem-se após a tempestade.

— Era para eu sentir alguma lisonja com isso?  – Friedrich disse irônico, fazendo Loki soltar um risinho por entre os lábios a soltarem fumaça. Ficaram apreciando o silêncio por alguns instantes, ouvindo o vento lá fora assoviando e passando parcamente pelas frestas do abrigo que os protegia, dos latidos que o cão dava aos esquilos e seus passos agitados levantando a neve lá fora. A tranquilidade que aquele pequenino lugar trazia chegava a ser estranha para eles que estavam sempre eufóricos pelos desafios que precisavam enfrentar com a estrada e as pessoas que as rondavam, mas trazendo por fim uma centelha de paz para eles. – Ás vezes, tenho a mera impressão que pude superar tudo aquilo que me aconteceu, mas por mais que eu tente e viva como um homem comum, há momentos que ainda me sinto aquele frade alheio á tudo que vá além de sua cela. Pergunto-me se algum dia eu o deixei de ser.

Loki o fitou atento por alguns instantes, vendo seu olhar introspectivo e rodeado com suas próprias questões internas. Ao contrário do que Friedrich acreditava, ele realmente conseguia compreender de certa maneira a sua inquietude, por mais que não soubesse direito como todo o puritanismo cristão funcionasse. Mas o druida era astuto, e facilmente podia imaginar o que era passar a vida toda jamais pretendendo envolver-se em qualquer espécie de relação, evitando de todas as formas, engolindo a força qualquer chama que brotasse em seu peito. Imaginava o quão estranho e até mesmo intimidante podia ser agora para Friedrich com tudo ocorrendo tão rápido, ao contrário de Loki que já havia se relacionado com outras pessoas no passado e tido diversas experiências quanto a isso com o passar do tempo. Fosse um literal soco na cara por um amor nem um pouco correspondido, um beijo casto trocado com o filho de um marceneiro em Lancaster, ou quando já deixava de ser um rapaz e conheceu a intimidade com aquele menestrel de cabelos encaracolados e nariz adunco (Marlon? Merry? Mark? Alguma coisa com M com certeza), Loki havia conhecido algumas facetas de uma relação amorosa. Friedrich não, e por isso não se importava de lhe dar o tempo de digerir tudo aquilo.

— Lembras que fostes nesta mesma época que nos conhecemos? – Loki indagou com um olhar sereno e repleto de esmero, aninhando-se ainda mais ao corpo do companheiro. – Tu eras um frade devoto, enquanto eu um lobo solitário. Mas olhe para nós dois agora! Quanto nós mudamos desde então? Admito que mesmo depois de tantos anos e com todas as lições de vida que já tive, há momentos em que ainda me sinto menos do que um rapaz indo embora de casa pela primeira vez. Mas também tenho consciência que tais vislumbres por mais que possam fazer parte de minha essência, não são o todo da qual a compõe. O mesmo vale á tu Freddie, e de qualquer maneira eu continuo amando cada faceta sua.

— Sou sempre grato por tuas palavras Loki. – Friedrich disse com um sorriso solene no rosto, apoiando a cabeça contra o cabelo macio e abarrotado do companheiro que cheirava á terra e erva de fumo. – E também o amo inteiramente, até mesmo quando joga neve em minha direção.

Loki gargalhou com gosto com o comentário, daquela forma contagiante que era capaz de fazer o alquimista até mostrar o sorriso sempre escondido. Permaneceram assim abraçados pelo frio e a paixão que sentiam, acalentados pelo calor do colo um do outro.

Mas em determinado momento, um questionamento curioso passou pela mente de Loki após todo aquele enlace e da conversa que haviam tido, formando uma ruga entre suas sobrancelhas enquanto matutava sobre. Uma ideia deveras intrigante, mas que não sabia se seria adequado questionar o companheiro tal dúvida. Contudo, conforme essa pulga lhe cutucava os ouvidos, e já não possuindo muita noção de decoro, resolveu indagar de toda forma.

— Friedrich. – Disse num tom questionador, chamando a atenção do companheiro que já havia se desacostumado a ser chamado pelo nome ao invés do apelido.

— Sim?

— Tenho uma pergunta que quiçá o incomode. – Loki falou fazendo Friedrich também franzir o cenho diante daquilo, ficando alguns instantes em silêncio apesar de curioso com aquilo, até mesmo suspeitando se não podia se tratar de alguma piada vinda do outro.

— Pode dizer.

— O quanto você sabe sobre aquilo?

— O que você quer dizer com ‘’aquilo’’? – Indagou confuso, olhando para Loki que bufou um tanto impaciente.

Sexo, Friedrich. – Loki disse curto e direto, e no mesmo instante pode notar o rosto pálido do companheiro tingindo-se de vermelho até a ponta das orelhas com a pergunta.

— O suficiente Loki! Fui frade mas deixei de ser infante. – Respondeu num misto de ofensa e constrangimento, desviando o olhar das esmeraldas vivas do druida, encolhendo-se ainda mais em suas roupas de inverno como se tentasse desaparecer naquele momento.

— O suficiente quanto? – Insistiu, por mais que o alquimista parecesse estar prestes a ter um ataque de nervos. Mas sabia que era melhor ter uma conversa complicada antes de uma situação que poderia acabar sendo mais complicada ainda.

— O cerne da questão... – Friedrich respondeu sem jeito, evitando o olhar.

Isso eu sei desde os cinco anos observando cabras e bodes. Loki pensou tentando não revirar os olhos.

— E quanto a iguais como nós? – Loki ergueu as sobrancelhas, curioso e ao mesmo tempo achando graça do olhar cada vez mais envergonhado de Friedrich.  Ele demorou alguns instantes para responder, mas esperou pacientemente, querendo ser compreensível para com Friedrich.

— Tudo que já ouvi foram breves histórias aqui e ali... Jamais e-eu soube demais...  – Respondeu encabulado e encolhendo-se o máximo que o corpo alto permitia.  Lembrando-se de quando os outros frades fofocavam uns com os outros das histórias escandalosas de monges pegos nos braços uns dos outros para acalmar a solidão, enquanto ele próprio fingia não ouvir tais infâmias e não se abalar com o escárnio que havia em meio aos seus relatos, no qual por mais casto que fosse por algum motivo acabava se sentindo especialmente culpado frente aquelas histórias sempre que contadas aos cochichos. – Só tenho algumas... Suposições de como é.

Friedrich fechou-se em silêncio mais uma vez, mordiscando os lábios de nervosismo, tendo o rosto vermelho não pelo frio lá fora mas pelo calor que sentia em seu corpo tomado de constrangimento. Dentro do mosteiro não lhe importava saber muito tais assuntos, na realidade era até encorajado e admirado que permanecesse em tal inocência – ao contrário de irmãos feito Aedan que parecia não ter jeito nos calções arriados –. Mesmo em sua vila de nascimento havia sido sempre criado no meio da modéstia e decoro. Solto no mundo daquela forma, Friedrich sentia-se tolo e envergonhado por ser tão inocente quanto á certas coisas, mesmo já sendo um homem feito. Logo ele tão sabido sobre o mundo, era irônico saber tanto da ciência e saberes mas não entender por completo algo tão básico quanto às relações humanas. Pois antes nunca havia sido necessário, porém, agora lhe faltava ter aprendido um pouco mais sobre.

— Sendo sincero, me impressionaria somente se tu soubesses demais. – Loki comentou com um brevemente risonho, tentando quebrar a tensão que se formou no companheiro, passando o braço pelos seus ombros e sentindo o calor do seu corpo acalmar o frio que se fazia. – Se bem que já ouvi algumas histórias escandalosas sobre esses mosteiros isolados no meio do nada...

O olhar fulminante do antigo frade foi o suficiente para que Loki se calasse antes que fosse queimado.

— Há clérigos e clérigos. – Friedrich disse entre resmungos, lutando interiormente entre permanecer no abraço reconfortante do companheiro e se afastar para se poupar daquela humilhação. – Mas aposto que não seja tão complicado para você.

— Assim você me deixa sem jeito. – Loki disse jocoso, mesmo que realmente sentisse um rubor lhe tomar o rosto. Não é como se tivesse tido muitas experiências pela vida para tal, mas estava longe de ser puritano. – Mas não há nenhum problema com essa sua castidade, eu lhe instruirei.

Loki estreitou mais o abraço, repousando um beijo no rosto quente de Friedrich e aninhando-se em seu pescoço, fazendo os fios de sua barba causarem cócegas no loiro e com sua respiração dando arrepios na pele alva. O alquimista não podia conter o peito acelerado e o deleite que sentia com aquelas carícias, mas conteve-se a permanecer quieto enquanto Loki lhe fitava com aqueles olhos dissimulados.

— Só espero não o assustar demais. – Loki comentou entre risos, conseguindo fazer o olhar de Friedrich se cruzar com o seu numa carranca tomada de ofensa.

— Duvido muito que exista alguma coisa que possa realmente me assustar agora. Sou um médico Loki, pelo amor de Deus. – Resmungou revirando os olhos.

— Oh, então não irá se horrorizar se eu lhe contar como funcionam os ‘’deveres maritais’’? – Disse jocoso, mal acreditando no que o companheiro dizia, visto que desde que se conheceram, Friedrich jamais dera abertura alguma para assuntos mais libidinosos, só faltando jogar água benta na direção do druida nas poucas vezes que já havia tentado comentar alguma coisa.

— Nem um pouco. – Friedrich disse convencido, tendo uma postura mais séria e contrária ao antro de timidez que comumente se colocava. Contudo, ele era orgulhoso, e por vezes se esforçava além da conta para manter a postura de respeito. – No máximo constrangido, mas isso é corriqueiro de conviver com tua presença funesta.

— Bem, se é o que diz... – Loki declarou, com seu sorriso de vigarista e os olhos tomados de peraltice, como a serpente a se enrolar pelos braços de Eva.

Foi assim que Friedrich não dormiu por três dias.


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Notas finais do capítulo

Desculpa a demora para postar o capítulo pessoal, mas pretendo não demorar mais tanto nos próximos! Como sempre, se gostarem deixem um comentário para apoiar a história e nos vemos no próximo capitulo! ^-^



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