Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 30
O Veneno e as Lápides




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Adrian sempre havia sido ranzinza até demais, ou era o que os irmãos sempre lhe diziam. Distante, retraído, casmurro, e desconfiado até o último fio de cabelo, quase incapaz de confiar plenamente em alguma outra alma. Não era o comportamento desejado de um frade, visto que a fraternidade para com os outros era um grande cerne desse estilo de vida, e Adrian tinha consciência desse seu defeito. Contudo, ele não se via capaz de se desfazer daquele comportamento esquivo e solitário, ainda mais quando se via bem no meio da toca dos leões de Daniel. Neste caso, cautela quanto as pessoas nunca parecia ser o bastante para ele.

Ele não fora muito mais vivaz em sua época de noviço, mas ao menos tinha uma inocência pueril de acreditar que não acumularia inimizades naquele meio dito como santo. Ledo engano, Adrian abraçara os preceitos sagrados e as leis da Santa Igreja com uma ferocidade maníaca, almejando piamente tornar-se um servo de Deus primoroso e honrar toda a glória e esplendor do Altíssimo. Dedicaria sua vida integralmente á isso, e se fosse preciso morreria pela sua fé.

Dessa forma, a labuta e o perigo não lhe assombravam, pois sentia que a cada enganação de Satanás que derrotava mais próximo da santidade e da glória divina ele se encontrava. Era a única coisa que possuía e que o segurava naquela terra além dos pensamentos sombrios que tinha quanto a si mesmo, pois se não fosse um servo de Deus ele não era mais nada. Adrian alimentava suas lamúrias num ciclo vicioso entre suas rezas, seu desespero e as penitências que acreditava piamente merecer.

Pensava que a vida monástica era o lugar ideal para sua missão sacra, mas foi levado a uma decepção profunda ao ver tanta selvajaria, corrupção e profanação da palavra em meio á um ambiente que deveria ser um refúgio de todo o sacrilégio da terra. Um ódio palpitante lhe tomava o corpo junto ao desprezo e nojo que sentia de todos aqueles seculares heréticos a blasfemarem os ensinamentos do Altíssimo. Pois se Deus possuía misericórdia quanto aos seus filhos, Adrian tomava para si suas ofensas e vingava-se acreditando ser verdadeira justiça.

Começou ainda no noviciado, censurando os irmãos a discutirem firulas ou rir feito bárbaros ao invés de praticarem o santo silêncio, da vez que denunciou ao falecido Abade Esmond um grupo que estava visitando a adega com uma frequência demasiada, ou quando reprovava os que ficavam a desenhar iluminuras supérfluas ao invés de se focarem na santa palavra, além de tantas outras críticas que já havia feito. Se Adrian já não era bom em fazer amizades, a partir disso ele próprio tinha consciência que sua presença não era a mais agradável aos outros, ganhando a alcunha de Ranzinza antes mesmo de fazer os votos.

Mas Adrian era muito mais que um frade carrancudo e tedioso, seu olhar de juiz era muito mais sagaz e astuto para se incomodar com detalhes ditos como pequenos para a ordem. Se ele reclamara das piadas infames do falecido Aedan, também questionara para onde estava indo o tesouro arrecadado para os pobres de Londres, não temendo apontar o dedo diretamente na face dos corruptos e levar do padre ao cardeal para acertar as contas. Das vezes que discutiu com Friedrich de Farley quanto aos seus experimentos estranhos, também comprou briga com os diáconos da capital a venderem indumentárias falsas de Cristo ao povo ignorante. Quando repreendia os irmãos a se divertirem com poemas seculares, também escandalizava ao descobrir o porquê dos noviços estremecerem e chorarem de agonia só de ouvirem o nome de certos membros do clero e descobrir seus abusos. Se repreendia seus irmãos pelo riso, também esbravejava com aqueles que ainda vendiam indulgências, proibidas desde 1317. Adrian simplesmente não escolhia os pecadores, condenava todos eles, assim como a si mesmo.

E acumulando denúncias, ganhava inimigos. Todavia, Adrian pouco se importava, pois ‘’iustus autem meus ex fide vivit quod si subtraxerit se non placebit animae meae’’. O justo viverá pela fé, esta era a razão que não o fazia recuar.

Sorte de Adrian o Ranzinza que estava muito longe de ser um idiota, ou já estaria perdido e á sete palmos.

Quando no desjejum encontrou seu copo de vinho já cheio, não pode evitar de franzir o próprio cenho e se perguntar se havia pego o caneco errado. Esse tipo de coisa não acontecia. Primeiramente por ser um mosteiro e todos se serviam por conta, mas se fosse levar pelo lado da fraternidade, Adrian nunca havia sido servido nos seus quase vinte anos de hábito, e mesmo os poucos que pudessem lhe fazer tal favor já estavam todos mortos. Ficou apenas segurando o odre, pensativo e desconfiado, chamando a atenção até dos irmãos ao seu lado que se perguntavam se ele já havia enlouquecido de vez.

Era comum encontrar vários cães e gatos vadios rodeando o mosteiro. Muitas vezes entravam pelo pátio, ou o jardim, e alguns irmãos mais caridosos se comportavam feito franciscanos e os deixavam entrar. Naquele dia havia um sabujo velho, de olhos tristonhos e pelo enrugado rondando pelo refeitório a procura de migalhas ou de alguém que lhe oferecesse um pedaço de pão. Estava logo atrás de Adrian que o fitou por uns instantes, virando-se no banco e deixando o copo no chão para o cão inspecionar. Os irmãos Alaric e Noah sentados ao seu lado o observaram estranhando a situação, dado que Adrian não tinha o costume de desfazer sua postura silenciosa na hora das refeições.

Observou de maneira atenta o animal bebericando um pouco do vinho, permanecendo impassível ao vê-lo caindo morto no chão quase que de forma imediata, estremecendo o corpo quadrúpede inteiro antes de dar o suspiro final. Os frades ao redor se apavoraram, praguejando em latim, olhando em confusão uns para os outros e os mais emocionados indo até o animal para entender o que havia ocorrido, enquanto frei Adrian continuava com seu semblante sério que não tirava os olhos do cadáver. Não demorou para pensarem que havia envenenado o cão por querer, levando a uma breve discussão entre os vinte e cinco irmãos restantes do mosteiro – antes habitado por setenta e dois fiéis até a chegada da peste – da qual Adrian apesar de ser conhecido por discutir, mal abriu a própria boca para se defender, não tendo certeza se pela falta de ânimo que o consumia cada vez mais ou se pela surpresa que acabou o abalando.

Frei Adrian podia ter muitos defeitos, mas não era cruel sem motivos, e até mesmo os mais antipáticos com ele precisavam concordar nisso. A verdadeira resposta para a situação não tardou a ficar clara para todos os presentes, amedrontando os mais assustadiços com a ideia de um assassinato tão covardemente orquestrado naquele lugar dito como santo. Não demorando sequer uma hora para Adrian ser chamado para ter uma conversa com o abade pela gravidade do ocorrido.

— Sei o quanto preza pela paz e benção de nossa ordem frei Adrian, entretanto, sabes muito bem que o comportamento de um monge deve ser manso como um cordeiro, mas tu se portas como o mais teimoso e ardiloso dos bodes. – Abade Edon disse enquanto o observava com uma olhar calmo por trás de sua mesa de trabalho e dos olhos gentis. Era o mais novo líder daquele mosteiro desde a morte prematura do Abade Goubert pela peste, que há pouco também havia tomado o lugar do antecessor Abade Esmond. Como ninguém havia previsto sua sucessão, Adrian ainda não havia formado uma opinião concreta sobre Edon e se era realmente digno de tal cargo que ele próprio almejava alcançar um dia. Por isso, também não sentia grande reverência á sua autoridade, que para Adrian ainda havia de ser conquistada pelos monges restantes de São Jerônimo.

— Um tanto inapropriado usar justamente a analogia de um animal símbolo das trevas, Vossa Paternidade. – Retrucou franzindo o cenho sempre carrancudo, não deixando de notar o curto riso da autoridade ao constatar seu gênio difícil, caindo assim alguns degraus no conceito do monge que abominava o riso.

— Apenas um mero símbolo frei Adrian, pois também faz parte da criação divina, os homens é que o nomearam como tal.

— Devo concordar com vosso raciocínio, contudo, sabes como todas as palavras contêm o seu próprio peso.

— Oh, sei muito bem meu filho, afinal, fostes tuas grandes e pesadas palavras que o puseram em tamanho perigo. Não és tolo de não saber por que o chamei até aqui. – Edon declarou, se levantando e aproximando-se de seu protegido para quebrar parte daquela tensão entre mestre e servo. Deixando-os iguais durante o colóquio, mesmo que com a notável diferença de altura entre o monge mais velho, alto e corpulento como um carvalho, e o bibliotecário franzino.

— Não foram as palavras que tentaram me envenenar Vossa Paternidade, os homens o fizeram. – Retrucou erguendo uma sobrancelha de desdém.

— Os culpados são os homens e, farei de tudo para descobrir e punir quem foi o tamanho covarde a tentar ferir um homem de Deus. Todavia, sabes que desde o pecado de Adão, nossa sina é lidar com a consequência de cada um de nossos atos.

— Deus também afirma que aqueles que o seguem sofrerão nas mãos da perversidade deste mundo, mas que não devemos temer suas garras, pois o poder de Nosso Senhor é superior ao das trevas! – Disse de dentes entrecerrados e tentando não se acalorar nas palavras, dada à indignação que começava a subir pelo seu corpo. – Jamais fiz nada de errado e perverso neste mosteiro meu Abade, pelo contrário, luto ardentemente para que permaneça um lugar livre da impureza e malícia da Besta.

— Sabe que não o condeno por isso Adrian, pelo contrário, acho nobre e corajoso de sua parte tamanha dedicação. Mas tudo o que peço é cautela, pois estás adentrando um caminho sinuoso e lidando com gente poderosa demais dentro do clero, que facilmente podem lidar á sua maneira com a intromissão de um mero monge beneditino.

— Não temo o que falsos clérigos hão de fazer á mim enquanto estou ao lado do Senhor. Prefiro a consciência tranquila e o perigo de minha integridade do que permanecer pisando na imundice dos seculares!

— Mas eu temo por tua integridade frei Adrian. – Abade Edon declarou de forma incisiva, erguendo num tom mais alto a voz para que Adrian o olhasse nos olhos. – A tua e de todos os monges que agora estão sob minha proteção, afinal, quantos já não perdemos desde a peste? Não tens ideia do sofrimento que pode causar àqueles que se importam com tua vida?

Como quem? Adrian pensou em dizer, mas desistiu pela melancolia que lhe preencheu o peito no momento que Edon mencionou as incontáveis perdas que tiveram nos últimos meses. Tantos irmãos agonizando em seus leitos, o último olhar de Bernard lançado sob as estrelas, o corpo de Aedan a lhe assombrar todos as noites caído em seu próprio ofício. Podia sentir os olhos mortos do irmão de hábito naquele exato momento, encarando-o profundamente, como se seu espírito pudesse falar com ele.

‘’Eu estou morto, mas tu estás vivo. Estás vivo, mas não estou aqui. Não me verás de novo, não me verás nessa vida, mas eu o vejo chorar por mim todas as noites. ‘’

Aqueles olhos mortos não paravam de lhe assombrar.

— Prometo ser mais cuidadoso, Vossa Paternidade. – Disse derrotado, quase num murmúrio e sem ter coragem de olhar para o superior. Cerrava os punhos com força, cravando as unhas em sua pele para tentar ignorar o nó a se formar em sua garganta. Sentia-se tocado por todas as almas perdidas em São Jerônimo, contudo, não conseguia compreender ao certo o porquê a morte do frade Aedan lhe abalara tanto. Sequer haviam sido amigos para tal, a única proximidade entre eles além da própria fraternidade havia se dado pelas discussões e longas intrigas que sempre tiveram pela diferença de opiniões.

 Quiçá sentisse falta daquela estranha relação de gato e rato, pois provavelmente fora a coisa mais próxima de um vinculo com outro ser humano que Adrian já havia tido. Afinal, não se lembrava de já ter tido uma relação que fosse além da mera cordialidade superficial ou a completa indiferença. Nem mesmo antes de fazer os votos – que havia feito consideravelmente jovem, aos treze anos – lembrava-se brevemente da relação fria que havia tido com a família, sendo o caçula de seis irmãos mais velhos e não possuindo importância na sucessão do legado da família. Os livros sempre haviam lhe sido uma companhia melhor que as próprias pessoas, e somado a fé para acalentar a solidão que sentia, o monasticismo havia sido quase um refúgio para si no começo. Ao contrário do que passava naquele instante.

— Eu sinto muito Adrian, mas acho que o perigo vai além de seu cuidado. Creio que seja melhor mandá-lo para algum lugar longe dos perigos que o cercam.

— Está pensando em me transferir. – Adrian não perguntou, mas afirmou em choque com o que Edon havia deixado nas entrelinhas.

— Venho trocando cartas com alguns mosteiros de São Patrício, a maior parte está disposta a acolhê-lo Adrian. Será mais seguro.

— São Patrício? Os monges irlandeses vós quereis dizer? – Indagou não conseguindo conter a indignação. – Sugere que eu me meta com essa gente rude e sem modos? Diz ser para minha segurança quando sabes muito bem o caos que vive aquela ilha? Todos sabem das histórias de mosteiros saqueados naquelas terras por esse povo bárbaro!

— Sim frei Adrian, acredito que mesmo nessas terras estarás mais seguro do que aqui.

— Me desculpe Vossa Paternidade, mas eu não entendo tamanha preocupação, posso lidar com minhas próprias intrigas daqui mesmo em São Jerônimo que és meu lugar. Achas que não sei que se for transferido não haverá um cargo de bibliotecário para mim? Recuso-me a me rebaixar á assistente agora.

— Primeiramente Adrian, sabes muito bem que só te tornaste bibliotecário tão cedo por que teu mestre morreu de forma prematura, com a idade que tens é normal e mais adequado ainda ser assistente. És um cargo muito importante, tanto que em muitos mosteiros antecede o de Abade. Não é o caso do nosso, que preza mais pelos anciãos, mas ainda assim continua sendo um cargo de respeito que quiçá o caiba melhor daqui dez ou quinze anos, mas não agora. – Edon limpou a garganta, enquanto sentia os olhos irritadiços do frade lhe queimando de fúria. – Aliás, quero afastá-lo o máximo que posso da tamanha fogueira que criastes ao teu redor. Sei que teus motivos são nobres, mas também suspeito que tu andas procurando a intriga para si de forma proposital.

— Isto é calúnia! – Adrian vociferou, algo que nenhum outro monge faria diante de um abade, mas a cólera e o desespero lhe tomavam o âmago como vinhas. Contudo, para sua surpresa, Abade Edon agarrou-lhe o pulso da mão direita com uma força descomunal para a idade avançada, forçando-o a erguer o braço e a abaixar a manga do hábito até o cotovelo.

— Acreditas que não sei o quanto desprezas a própria vida?! – Edon lhe encarou com os olhos esverdeados faiscando de sobriedade e com um olhar ditador a subjugar a face amedrontada de Adrian diante das marcas que tanto escondia. Revelando assim o braço tomado de ataduras enroladas uma nas outras, as mais recentes tentando parcamente esconder o sangue manchado das antigas, estas que escondiam as marcas profundas que no desespero de sua alma ele as abria de novo. E de novo. E de novo. E de novo. Adrian sentiu o corpo inteiro gelar ao ter sua fraqueza escancarada de tal forma diante da autoridade que era subjugado. Contudo, ainda assim preferia que fosse somente os braços, pois se fossem as costas no lugar dos membros, sabia que seria muito pior, ainda mais chocante e aterrador,  estando já tão mutilado que mesmo cicatrizado ainda podia lhe deferir dor vez ou outra, coisa que o fez começar a andar levemente corcunda com o passar do tempo.

 – São por penit...

Não são. – Edon o interrompeu antes que tentasse se justificar, soltando-o bruscamente e fazendo Adrian abraçar o próprio braço de forma acanhada. – E mesmo que fossem, sabes que a autoflagelação já é uma penitência proibida. Se eu quisesse, poderia denunciá-lo ao Santo Ofício como um flagelista.

Adrian não retrucou, pois já não encontrava mais forças para tal. Sentia o corpo estremecer, o coração se acelerar pela agonia que sentia e o corpo implorando para ser punido. Acreditava que era o que precisava fazer, que merecia passar por aquilo. Pagaria por sua cruel existência antes do próprio julgamento nas terras do Purgatório. Ou era o que pensava, quando começou a se interessar pela doutrina flagelista, mesmo que sua dor continuasse a aumentar gradativamente conforme os dias passavam. O sangue não lhe curava, e agora desejava interromper aquele ciclo de destruição que havia se colocado. Mas sentia que já era tarde demais, não conseguindo mais se conter em tal vício, acreditando que nada mais era capaz de salvá-lo além do julgamento de Deus.

— É injusto. – Rosnou para o Abade que agora lhe encarava com um olhar de pena que o humilhava ainda mais. Queria cometer o pecado de matar aquele homem, de destruir aquelas paredes, e de morrer junto á tudo que lhe cercava para que não sobrasse mais nenhum fruto de sua miséria. Mas permaneceu quieto, somente estremecendo com toda a ira e desespero que sentia dentro de seu corpo.

— Muita injustiça percorre o mundo meu caro, até mesmo neste mosteiro. E injusta é a acédia que lhe tomou a mente e corrompe sua alma, que o faz acreditar que sequer o Altíssimo pode lhe salvar.  – Edon declarou num tom mais sereno, pegando nos ombros de Adrian que o olhava somente com o canto dos olhos, desconfiado e gravemente ferido por dentro. – Não estou fazendo isso pelo teu mal, por mais que tu sintas isso agora. O que eu desejo é que possas lutar mesmo quando tudo o que sente é esta fraqueza em seu âmago.

Adrian saiu dos aposentos do Abade tão abalado que era como se não houvesse chão aos seus pés, estando presente apenas em espírito enquanto seu corpo havia se desfalecido naquela sala. Dentro de si sentia algo ainda mais profundo que a amargura e a tristeza, era um vazio completo, uma apatia que lhe tirava o sentido de continuar respirando. Seguiu caminho sem olhar na face dos outros monges que passavam pelos corredores, parecendo todos meros estranhos para si, não sabendo mais dizer o que ainda lhe restava para permanecer vivo que não fosse sua fé, mesmo ela estando abalada demais para conseguir sentir a dádiva do Senhor em seu peito.

Seus pés o levaram de forma quase inconsciente até o cemitério, onde naqueles dias o mosteiro possuía muito mais caixões do que fiéis. Mesmo que nada identificasse as lápides em formato de cruz, Adrian podia dizer com exatidão o lugar que muitos irmãos falecidos naqueles meses estavam enterrados. Andava ao redor e dizia seus nomes, como se os chamasse, lembrando-se tristemente de suas faces sadias e em seguida de seus olhares tomados pela doença que os levou.

A resposta mais afamada para aquela praga cruel ter aparecido e que Adrian tanto ouvia nas missas de domingo ultimamente, era de que se tratava de um castigo divino pelos pecados da humanidade. Parecia lógico, quase acalentador aos fiéis, mas era só passar pela lápide de Bernard que Adrian sentia a segurança dessas palavras desabarem em suas mãos. Afinal, por que Deus levaria de forma tão cruel alguém tão benquisto como ele? Havia sido um homem fiel, mas sequer havia morrido como mártir feito os Santos para justificar sua entrada prematura nos reino dos Céus. Fora amigo de todos, sendo amigável até mesmo com Adrian e seu espírito espinhoso, e a falta daquela alma bondosa havia formado uma grande ferida naquele lugar que foi tomado pela dor.

Todavia, foi na lápide de Aedan que o frade não foi mais capaz de conter toda a dor do luto e da culpa que sentia dentro de si e desabou em lágrimas. A lembrança de seu corpo inerte, a pena imóvel nas mãos desfalecidas e os olhos tomados pelo vazio da alma perdida tomavam o seus pensamentos a todo instante desde a morte do miniaturista. De uma forma da qual não compreendia sentia uma afeição que não havia se dado conta com o monge ainda em vida, mas que agora lhe fazia uma dolorosa falta todos os dias. Ás vezes a imagem de Aedan o fazia se lembrar de como via Emily em sua juventude, mas tinha medo de pensar demais sobre a questão e acabar descobrindo o que tudo aquilo queria dizer. Por ora, só se remoía em arrependimentos que jamais poderiam ser desculpados.

Queria ter dito para Aedan ao lhe entregar as páginas que entendia sua dor por não ter ajudado Friedrich. Queria ter revelado que suas palavras de alento durante sua confissão realmente haviam o ajudado. Queria tê-lo ajudado mais a completar o trabalho que morreu para realizar. Queria tê-lo conhecido melhor antes de tudo.

Mas não podia, pois Aedan estava morto, junto das quarenta e sete lápides feitas ás pressas naqueles meses. Ele não poderia fazer nada por nenhum deles.

— Eu não posso deixá-los aqui... Pois logo não restará ninguém para saber quem todos foram. – Disse com a voz embargada, ajoelhado diante da lápide do frade falecido e agarrando a grama parca que crescia ao redor. – Não quero deixá-lo sem alguém que saiba onde estás, não posso deixá-lo sem ninguém que saiba seu nome, não quero que seja esquecido, não quero sair de onde estivemos juntos sem saber se um dia estaremos no mesmo lugar após a morte.

Continuou a chorar desoladamente por um longo tempo, até os pulmões reclamarem de dor e as lágrimas secarem, permanecendo somente inerte com a própria dor suavizada por um breve período. Quando se deu por conta havia perdido um dia todo de trabalho no mosteiro, com o sol já se desfazendo no horizonte e tornando o céu alaranjado pelo crepúsculo. Não era de seu feitio abandonar a biblioteca por um dia todo, mas naquele instante não se sentia culpado por se dar aquele instante de reflexão. Reergueu-se atordoado após tanto desalento, mas se sentindo mais leve pelo alívio momentâneo de colocar tamanha agonia para fora, conseguindo pensar novamente com sua racionalidade cínica e ardilosa da qual era tão conhecido. A raiva voltava a lhe tomar o corpo conforme pensava sobre seu destino naquele momento, indignado com tudo e com todos os culpados de sua miséria e da degeneração daquele mundo sórdido e tomado de pecado.

Determinado, adentrou os corredores de prateleiras sinuosos de sua biblioteca, retirando da estante que havia escondido os escritos feitos por Friedrich e Aedan em conjunto, colocando-os por baixo das mangas e os levando para si, andando em silêncio até a sua própria cela.

Por que se havia ainda uma coisa que mantinha Adrian a seguir em frente, com certeza era a sua raiva.


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Notas finais do capítulo

Trecho em latim é de Hebreus 10:38, sendo sua tradução ''Mas o justo viverá pela fé. Contudo, se retroceder, minha alma não se agradará dele '' .
O movimento dos flagelantes foi uma espécie de grupo fanático religioso na Idade Média que acreditava que o uso da automutilação/autoflagelação era capaz de perdoar os seus pecados e assim se tornarem puros. Iniciou-se no século XIII, mas sendo proibido pela própria Igreja Católica. Mas apesar disso no século XIV onde a história se passa, principalmente por conta do pânico causado pela peste, foi quando essa prática ganhou ainda mais força e tornou-se frequente a realização de longas procissões por flagelantes pelas cidades que podiam durar até um mês inteiro.
Na história em si, apesar de Adrian se basear bastante na doutrina flagelante, ele próprio não se considera um e nem segue inteiramente a doutrina, até por que comparado a outros países a Inglaterra não possuiu muita repercussão desse movimento.
Acédia, na idade média era um termo usado para uma condição bem específica: quando monges vivendo em mosteiros, sendo descritos como tendo grandes crises espirituais, vontade de abandonar a vida sacra, desânimo, melancolia e apatia. Basicamente a ''tatatataravó da depressão. ''

Sei que sentiram falta dos nossos protagonistas nesse capítulo, mas prometo que nos próximos eles já estão de volta! Deixem um comentário do que acharam e nos vemos no próximo capítulo!



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