Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 28
O Barco e o Mar




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Litoral de Norfolk, 1341.

 

Se tivessem dito à Loki que depois de tratar a ressaca daquele velho gordo e barulhento ele se tornaria uma das maiores amizades que já havia tido em vida, provavelmente teria realmente acreditado, por saber que não possuía qualquer senso crítico de toda forma. Contudo, não teria tido a noção do quão importante aquele soldado renegado havia sido durante o luto que tomou conta de sua alma por tanto tempo. Pois aquele homem de rosto redondo e sempre vermelho pela bebida, também havia conhecido a dor da morte, e assim como ele também estava aprendendo a lidar com a própria dor.

Joshua havia passado a maior parte de sua vida vestindo cota de malha e armadura, marchando com sua espada para qualquer lugar que a Coroa o requisitasse. Derramando sangue e o sentindo escorrer pelo seu corpo. Nunca se casou ou teve filhos – até onde sabia ao menos –, os amigos que havia tido pela vida haviam tido suas mentes e corpos destroçados pelas guerras, ou as almas ceifadas até o Senhor. Pouco havia conhecido além da espada, a morte e a luta primordial pela própria sobrevivência. Quando se deu conta que a idade escorria de suas mãos feito areia no deserto, teve a consciência de que ou morreria solitário num pedaço de terra dado adquirido por seus ‘’Bons serviços á Coroa e a Igreja’’, ou finalmente conheceria o mundo que havia sido nublado pelas batalhas que participou.

— O que há na França que não pode encontrar aqui na Grã Bretanha? – O jovem Loki havia questionado para Joshua enquanto o ajudava a colocar suas sacolas no pequeno bote de madeira que levaria até o navio esperando suavemente acima das ondas. Loki fingia não se importar de forma teimosa com a partida do amigo, mas o velho percebia em suas palavras e nos olhos desviantes algumas gotas de mágoa escorrendo pelo seu corpo. Por mais que não fosse mais um garoto, era inevitável aquele sentimento de abandono que sentia pela decisão de Joshua.

 O homem de barba desalinhada deu um sorriso torto em sua direção, tragando um pouco do cachimbo que segurava antes de responder com sua voz rouca:

— Estou velho moleque, o tempo já não está mais ao meu favor. Quando ele estava, usei para a batalha e assim ter minhas terras expandidas e valorizadas. E de que me adiantou? Nada. O que me resta agora é aproveitar o que me restou. – Disse-lhe Joshua o olhando com atenção, de uma forma que um pai faria ao filho na hora de passar uma lição valiosa. – Enquanto tu nanico, ainda há uma vida inteira pela frente. Espero que saiba desfrutá-la mais do que fui capaz.

Loki não conseguiu conter o olhar afastado do velho depois daquelas palavras, mordiscando os lábios pensando se dizia ou não alguma coisa. Por mais que nunca tivesse revelado toda sua história para Joshua, de toda forma aquele homem havia sido capaz de reconhecer sua dor e fraqueza e ensiná-lo a aceitar seu passado antes de por fim conseguir seguir em frente. Quando havia se afundado no próprio luto, fora aquele cavaleiro boêmio que lhe mostrou jamais revirar-se durante toda a vida por cada túmulo que possuía.

Por isso por mais que não fosse de seu agrado no momento, sabia que assim como havia deixado os espíritos de sua família ir, também precisava deixar que Joshua também partisse. Ainda teria sua vida de toda forma, e ainda a viveria de diferentes formas.

— Bem, então o que me resta além de minhas lamúrias em sua partida, é minha gratidão por tua companhia nesse tempo. – Loki declarou com um sorriso torto para tentar não transparecer tanto assim sua tristeza. Joshua se reergueu, fazendo um sinal para que o pessoal a comandar o bote o esperasse por alguns instantes, se aproximando do rapaz e apertando levemente seus ombros com as mãos firmes e grandes.

— Não precisa de tanto sentimentalismo por conta de um velho acabado como eu. – Joshua disse com um riso jocoso, mas sabendo bem que também sentiria falta daquele mancebo esquisito e metido a bruxo. – Você vai descobrir a vida, enquanto eu ainda exploro o que me restou dela.

Joshua puxou Loki para um abraço, o prensando contra seu corpo enorme e quase o sufocando com sua força. Quando o soltou, o velho deu sua típica gargalhada escandalosa, desafivelando de seu cinto a bainha com a espada e a estendendo para o ruivo que ficou surpreso com gesto.

— Vamos garoto, pegue! – Disse Joshua balançando a bainha em direção á Loki que o encarava perplexo.

— Tem certeza disso senhor? – Indagou incerto pegando o objeto trabalhado em couro, se surpreendendo com o peso que tinha.

— Claro que sim! Não tenho herdeiros Loki e tu és a coisa mais próxima de um que eu poderia ter, então aceite esta arma como seu verdadeiro dono agora, ou ela nunca mais será passada adiante. – Joshua declarou fazendo Loki segurar a bainha e a espada contra o peito como se a abraçasse, olhando para o homem robusto com gratidão em seus olhos verdes.

— Sinto-me imensamente honrado Joshua, eu a guardarei com todo esmero. – Disse determinado e vendo o sorriso do homem mais velho se suavizar para uma expressão paternal enquanto se despediam por uma última vez.

— Adeus Loki, vê se cresce uma barba agora. – Falou entre risos antes de seguir seu próprio ruma até o mar.

Loki ficou observando o bote de Joshua sendo levado pelas ondas e remos até o navio, ambos acenando um para o outro até que cada um passasse a ser somente um borrão em suas visões. Um nó se formou em sua garganta pela perspectiva de jamais reencontrá-lo novamente e de seguir sozinho pela estrada mais uma vez. Mas conteve suas lágrimas como costumava fazer, se pondo a refletir sobre as memórias com o velho guerreiro e de suas palavras que iam das mais esdrúxulas até as mais sábias, enquanto segurava com afeto a bainha que lhe fora dada.

Somente quando o navio em si começou a se por em movimento pelo alto mar, foi quando Loki resolveu olhar pela primeira vez a espada que havia sido lhe dada. Nunca havia tido uma arma tão imponente, e não conteve a ansiedade petiz ao retirá-la da bainha, se sobressaltando com a lâmina á sua frente e franzindo o cenho de pura confusão.

— Filho da puta... – Disse entre risos encarando a espada de mais péssimo estado que já havia visto em vida, enquanto fitava com um pesar no peito o amigo partir para sua próxima jornada.

***

Anos depois de presenciar a última viagem de um velho amigo, Loki já havia pensado diversas vezes como seria desbravar o restante do mundo além dos mares que circundavam a Bretanha, por vezes imaginando ele mesmo tomando a coragem necessária para largar tudo o que conhecia e descobrir o que mais havia nos limites do oceano. Contudo, jamais se tornaram algo além de meros pensamentos repletos de imaginação, sem haver ideias realmente concretas de que algum dia realmente fizesse tal feito. Acreditava que se saísse um dia do reino inglês, seria somente quando hei-o conhecido todas as suas árvores e só um novo horizonte poderia lhe proporcionar alguma outra novidade.

 Quando se viu pisando no deque daquele porto repleto de movimento, coincidentemente também no litoral de Norfolk como anos atrás, no porto de Bishop’s Lynn, Loki olhava para o mar com um arrepio passando continuamente pelo seu corpo, com todo o medo do desconhecido presente junto a uma curiosidade e fascínio que parecia chamá-lo até as ondas. Na realidade, a impressão que tinha era que o mar o observava mais do que ele fazia á ele, como um convite perigoso e tentador que sabia não poder recusar.

O lugar em si não era especialmente agradável, com um cheiro de peixe pairando no ar para onde quer que passem, junto ao de marinheiros que estiveram em alto mar há meses em seus barcos repletos de dejetos e ratos. Até mesmo o druida que se conhecia pelo estômago forte se viu retorcer a face algumas vezes conforme percorria em companhia de Friedrich pelo deque de madeira.

Aquele era um porto focado mais nas mercadorias do que na imigração, mas tendo dinheiro no bolso e um bom discurso que Friedrich sempre possuía nas mangas não havia sido difícil convencer algum capitão de ceder uma carona. O que conseguiram foi um navio inglês que levava lã e grãos para diversos outros reinos, no qual a França seria sua primeira parada.

Uma das únicas condições que havia sido posta foi a de serem examinados pelo médico do navio antes de embarcarem, devido ao medo da peste que crescia cada vez mais. Contudo, tratava-se de um velho moribundo chamado Hugh, que causava dúvidas se realmente era um médico, ou se ao menos lembrava como era ser um, com seu veredito sendo apenas uma breve análise nos dois e os liberando em seguida. Por conta disso ambos tiveram a ideia de se ofereceram para ajudarem Hugh durante a viagem, coisa que agradou o capitão Ilbert Astor e que diminuiu parte do preço de sua viagem.

— Como permitiram que trouxéssemos o cão? – Loki indagou desconfiado enquanto carregava as poucas bagagens que tinham, pois Friedrich estava se esforçando para segurar em seus braços o animal do tamanho de um bezerro para adentrarem o navio.

— Com uma taxa a mais.

— Não me diga que gastou nosso dinheiro pra levar o pulguento.

— E você sugeria o que? Deixar ele? – Friedrich indagou pasmo com a questão, fazendo Loki abrir a boca para responder mas desistindo em seguida, pois sabia que se o fizesse provavelmente perderia o parceiro e o cachorro.

Não era um barco muito grande comparado com outras embarcações, mas tinha um espaço considerável para abrigar uma dúzia de marinheiros e estocar as mercadorias. De vela quadrada e único mastro, sua velocidade não era o forte, então já era esperado uma viagem de até três dias até a costa francesa. Sabiam que seria um grande desafio conviver de perto com tantos estranhos em um ambiente praticamente insalubre, mas acreditavam estar preparados para enfrentar tal jornada.

— Então, como és experiente lhe pergunto se possui alguma lição sobre a vida em alto mar? – Loki indagou jocoso enquanto olhava para todos os lados por alguém que pudesse guiá-los pelo lugar. Peregrino ao ser posto no chão permaneceu imóvel e assustado, com as pernas estendidas enquanto olhava com suspeita o estranho lugar.

— Talvez fique enjoado num primeiro instante, mas logo se acostuma. O cheiro é repugnante e fica pior a cada dia, mas não é tão ruim se permanecer na proa.  Quanto à comida, vai depender do cozinheiro que tiverem, mas ela é racionada, coisa que já estamos acostumados de toda forma... Ah, espero que tenha as vísceras fortes para suportar a provável disenteria. Em um todo diria que é uma experiência... Diferente. – Friedrich respondeu divertido, mas também com um olhar beirando a nostalgia, observando a movimentação dos marinheiros com uma familiaridade em sua postura tranquila.

Loki fitou seu olhar curioso, os olhos azuis sempre atentos pela novidade, o cabelo rente levemente esvoaçando e brilhando ainda mais com a luz do dia. Naquele ponto o druida já sabia cada detalhe de sua face pálida, corada de vermelho pelo sol nas maçãs do rosto, seu queixo curto, os lábios finos a esconderam os dentes desalinhados, até mesmo uma pequena pinta um pouco abaixo da franja já havia se tornado familiar para ele. Era inevitável não acabar dando um curto sorriso em tais momentos em que se dava conta do quão especial aquele homem havia se tornado para ele, sabendo que vinha dele a coragem que lhe faltava para enfrentar o mundo que os perseguia.

— Desse jeito, mal coloquei meus pés neste lugar e já quero dar o fora. – Loki disse com um riso seco, desviando por fim o olhar de Friedrich e olhando a embarcação ao redor com as sobrancelhas ruivas quase unidas.

— Ah, não é tão ruim assim. Afirmo que foi em um navio que tive minhas melhores noites de sono, é deveras aprazível dormir enquanto se é embalado pelas ondas, o som do mar acalma e deixa o sono como se fosse coberto pela mais suave seda. – Friedrich respondeu, mas sem conseguir tirar a expressão repleta de desconfiança de Loki. Para um andarilho é muito avesso á mudanças, pensou rindo-se internamente. – Bem, melhor descobrirmos onde serão nossas instalações agora.

Receberam ajuda do contramestre, Rowan, um homem próximo aos seus cinquenta anos, com barba e cabelos longos mesclados entre castanho e cinza, baixo como Loki só que muito mais robusto, que os guiou até o convés, um lugar grande, mas sufocante pelos seus corredores estreitos e leitos amarrotados. Mesmo para embarcação de pequeno porte, sua comitiva era um número considerável com o capitão Ilbert Astor, Hugh o médico, o cozinheiro Gipp Meia Perna, o mestre John Caolho, e a dúzia de marujos que não demoraram a aprender os nomes pela convivência. Fosse o Gunter Pequeno ou o Gunter Forte, Randall de Boston, Rupert o Devedor, o germânico Leodegar, logo cada um de seus rostos suados pelo trabalho, roupas fedidas de álcool e sorrisos amarelados tornaram-se rotina nos dias seguintes para a dupla.

Loki não se sentiu nem um pouco orgulhoso no primeiro dia, mal conseguindo se levantar por conta do estômago que se revirava cada vez que o barco balançava. Os tripulantes gostaram de rir de seu estado e o chamar de marinheiro de primeira viagem, e provavelmente com sua astúcia teria tirado satisfações... Se ao menos tivesse conseguido dar um passo sem se livrar do café da manhã. Mas Friedrich permaneceu ao seu lado durante esse tempo, tendo a sorte de possuírem algumas ervas para enjoo com eles que ajudaram um pouco.

No geral, a vida no navio era monótona para os não marinheiros. Por vezes, quando o mar estava calmo, até mesmo os marujos ficavam quase atoa pelo navio, varrendo o convés, verificando os mantimentos, concertando a alvenaria. Mas no geral nesses momentos optavam por tentar assaltar parte da adega e apostarem o dinheiro que não tinham em jogos. Friedrich acabou descobrindo que Loki sabia jogar xadrez ao convidá-lo para jogar uma partida entre eles, coisa que foi aprazível no princípio, mas começou a implantar uma intriga de competitividade entre eles difícil de ser quebrada, acabando sempre com o derrotado exigindo uma revanche e tornando aquelas partidas um ciclo quase sem fim, até finalmente enjoarem das peças de madeira. Por isso, Loki e outros marujos até ensinaram alguns jogos de cartas para Friedrich que pouco havia aprendido sobre tais entretenimentos, coisa que até achou interessante, mas lhe agoniava demais as cartas velhas com imagens desbotadas, ficando tentado a retocar com tintas que não possuía desde o tempo de copista.

Loki logo se misturou entre os marujos com seu jeito enérgico e quase intrometido, identificando-se com seus comportamentos bárbaros, as vozes gritadas, piadas infames e canções burlescas. Ouvia com interesse suas histórias de alto mar e viagens para o exterior, os relatos sobre a visão de bestas do mar e outras lendas a fazerem a espinha se arrepiar por inteira. E claro, a melhor parte para o druida era poder esbanjar todo seu egocentrismo e exibicionismo ao ter todos os olhares diante de si enquanto contava algum causo de sua vida de curandeiro e andarilho, suas viagens, os lugares que visitara, das pessoas que havia encontrado e as encrencas da qual já havia se metido, que ora fazia os tripulantes se sobressaltarem ou rirem dependendo do que contava.

— Eu juro! Estava diante de meus olhos, um unicórnio pastando no meio da relva! – Contava a história com orgulho enquanto os marinheiros ou se impressionavam ou contavam uma aparição ainda mais interessante para competir com sua história. Friedrich cada vez que ouvia o dito relato (da qual já havia ouvido centenas de vezes e em nenhuma delas fora convencido) revirava os olhos ao ver que os outros realmente acreditavam naquilo.

‘’Meus olhos não mentem Friedrich! ‘’ era o que o druida sempre tentava lhe dizer, mas acabava sempre o refutando:

‘’Pode ter visto qualquer outra coisa menos um unicórnio Loki. ‘’, afinal, todos sabiam que a única forma de observar a criatura mística era levando uma donzela num cavalo branco e virgem durante a noite.

Mas na realidade, como narrador posso confirmar que não passava de um cervo de chifre quebrado, mas no momento Loki estava bêbado demais para discernir direito o que havia visto naquela noite anos atrás.

Friedrich por outro lado, não se entrosava tão bem com os outros marinheiros devido ao seu jeito plácido e contido, permanecendo mais na companhia do próprio Hugh e o ajudando a organizar seus materiais (que estavam imundos e desorganizados). Além de ouvi-lo falar sobre as cinco filhas da qual cuidava com tanto zelo deste que se tornara viúvo, sendo o sustendo delas o motivo de ainda permanecer em alto mar mesmo com a idade avançada.  O alquimista até mesmo começou a ter certo contato com o capitão Astor que ao perceber sua habilidade em escrita e leitura, requisitou algumas vezes sua ajuda quanto aos documentos do navio e a mercadoria.

Contudo, ao ver-se distante do parceiro que era rodeado de tanta companhia, não pode evitar uma dose de ciúmes que lhe azedava as entranhas e lhe causava o ímpeto de ter o outro somente para si, pensamentos e sentimentos estes que o fazia se sentir tolo enquanto se remoía internamente. Mas sabia bem como Loki gostava de uma baderna e que por vezes ele sentia falta da companhia de outras pessoas para conversar, acabando por não demonstrar nada e acabar se acostumando com a ideia no passar dos dias, ainda mais vendo que o druida jamais o deixava completamente sozinho, por vezes chamando-o para acompanhá-lo ou por conta própria o procurando e lhe fazendo companhia. Contudo, por mais próximos que permanecessem, os dias e noites passados no navio tendo de esconder sua verdadeira relação foi se tornando sufocante.

Mesmo que por pouco tempo, era difícil regredir os passos após progredirem tanto na relação, tendo de permanecerem distantes e temendo que qualquer gesto de afeto pudesse causar suspeitas nos tripulantes. Não era nem perto a mesma sensação de quando precisavam ficar longe um do outro por algum motivo, permanecendo com a saudade e tendo a imagem do outro somente em seus pensamentos. Na presença que tinham de cada um, o desejo de receber um único aperto de mão ou palavra de candura era tão tentador como um queijo posto numa armadilha para um rato, fazendo com que o peito doesse pela frieza que se viam obrigados a encenar, enquanto tudo que sobrava era os meros olhares que lançavam vez ou outra. Mas tal atitude e fingimento eram necessários para a mera sobrevivência deles, tendo de se portarem diferente do que sentiam para não sofrerem as consequências do julgamento alheio.

As horas tornaram-se cada vez mais arrastadas, onde eles contavam cada um dos minutos à espera do próximo dia que os tornaria mais próximos de seu destino. A experiência ao alto mar em primeiro momento era excitante por conta da novidade, mas monótono demais para eles já tão acostumados com a estrada. Sujeitar-se a percorrer somente os passos que o navio permitia era enfastiante, e quando o último dia de viagem chegou eles se viram ansiosos para poderem chegar à terra firme mais uma vez.

Se o vento e a maré fossem favoráveis, poderiam chegar à costa francesa durante a noite. Pelo inverno que dava suas caras de forma sorrateira, parte dos marujos que não estavam em serviço no momento se amontoavam no convés no meio de peles, lãs e disputavam um lugar próximo ao fogão da cozinha. Ao menos a dupla de curandeiros pode usar tal desculpa para ficarem mais próximos um do outro, sentados contra a madeira do casco e confabulando sobre seus planos quando desembarcassem.

— Nunca mais hei de embarcar em um navio novamente. – Comentou Loki com um riso curto, cruzando os braços para tentar aquecer um pouco o próprio corpo.

— Não irá mais retornar á Bretanha então? – Friedrich questionou de sobrancelhas erguidas, pescando se o companheiro estava apenas sendo jocoso ou realmente sério com tal afirmação.

— Volto se der pra ir voando.

— Isso seria heresia, Loki.

— Que?

— Apenas os pássaros tem o direito aos ares, seria uma afronta o homem tentar adentrar o reino dos Céus. – Friedrich explicou enquanto Loki tentava encontrar qualquer sinal de que aquilo pudesse ser uma piada, mas o tom dele era sério demais para tal.

— Depois eu que sou estranho. – O druida murmurou revirando os olhos. – E já sou um herege por inteiro Freddie, não preciso fazer mais nada para prestigiar ainda mais este meu título.

Friedrich olhou ao redor temeroso pelo companheiro poder ter sido ouvido, mesmo que Loki tivesse dito tudo aos sussurros.

— Só peço por cuidado Loki. Mesmo que estejamos em situação pior na Inglaterra, por minha experiência com outros frades sei que os franceses costumam ser ainda mais fiéis com as leis da Igreja.

— Por fiéis queres dizer lunáticos? – Loki indagou com seu sorriso de vigarista, fazendo o parceiro franzir todo o rosto de descontentamento com sua questão, mas sabendo que não poderia negar tal verdade em certas vertentes de sua própria fé.

— Sabes o que eu quis dizer. – Friedrich respondeu a contragosto, o silêncio fazendo-se entre eles por alguns instantes enquanto pensavam sobre o que ainda precisavam enfrentar no seu cotidiano.

— Acha que poderemos voltar algum dia? – O druida indagou temeroso, olhando para Friedrich que refletia cuidadosamente a questão.

— Creio que sim, quando as coisas estiverem melhores. Sem a peste, guerras e revoltas, quando tudo estiver tranquilo, onde quiçá esqueçam sobre um feiticeiro ruivo a balburdiar por aí. – Friedrich respondeu com um singelo sorriso no rosto por alguns segundos, olhando profundamente para Loki enquanto cada um imaginava tal futuro que parecia tão distante da realidade em que viviam.

— Realmente acredita que isso seja possível?

— É o que chamam de fé meu caro. – Respondeu presunçoso e deixando Loki sem uma retórica contra isso. Se colocando a pensar sobre como ultimamente estivera acostumado a insultar mais os deuses do que agradá-los, se pondo por um momento a pedir humildemente á eles para que os ajudassem naquela jornada. Ofereceria um boneco de palha ao fogo em suas homenagens assim que pudesse, quem sabe um sacrifício até, esperando solenemente que ouvissem seu pedido.

Por um instante se viu imerso somente em seus devaneios acerca do futuro que os aguardava, de todo o medo que sentia das terras desconhecidas e ao mesmo tempo o fascínio por desbravar o horizonte intocado pelos seus pés. O som das ondas e o balançar sutil da embarcação o embalava durante aquele sonho desperto, por pouco não notando a mão direita de Friedrich a lhe tocar o pulso, apertando um pouco e o obrigando a olhar para sua face, os olhos azuis estando dispersos e a pele pálida como um morto.

— Lok... – Ele tentou pegar Friedrich antes que caísse no chão, segurando-o em seus braços com força enquanto o sentia estremecer sofregamente, tentando conter seus golpes involuntários mesmo que fossem desferidos para si no processo de contê-lo. Não demorou para Friedrich amolecer-se por completo, visto que tais ataques dificilmente passavam de alguns segundos, fazendo Loki posicioná-lo de forma que sua cabeça descansa-se em seu colo, podendo assim verificar melhor seu estado. Um filete misto de sangue e saliva escorria de seu queixo, devido a língua mordida, escorrendo pelo pescoço e manchando a gola da camisa de linho. Por um instante parecia que ele estava levemente consciente, os olhos percorrendo de um lado para o outro por um breve instante, mas logo se fechando em um sono profundo.

Ao desviar o rosto da imagem do parceiro para o que estava na sua frente, Loki sentiu os músculos se retesarem e a garganta engolir em seco todo o seu pavor. Os marinheiros olhavam a princípio surpresos e confusos para eles, mas logo uma desconfiança perigosa começou a pairar sobre suas faces impressionadas por aquilo que desconheciam, mas da qual já criavam em suas cabeças suposições precipitadas.

— Os homens ficam no barco, os doentes no fundo do oceano. – Randall de Boston disse por entre os dentes podres, numa ameaça concisa e de olhar determinado que passava a ser imitado pelo restante da tripulação a encarar Loki e Friedrich desfalecido.

— Toque num fio de cabelo dele que eu arranco suas tripas e te faço engoli-las de volta! – Disse colérico pegando a faca pequena que tinha atada ao cinto e apontando ao grupo que poderia muito bem jogá-lo ao mar com facilidade. O desespero nublando parte de sua racionalidade enquanto sentia a raiva e o pânico tomar conta de si que só almejava proteger quem amava. Não podia deixar que levassem Friedrich de si, nunca se perdoaria se algo acontecesse á ele enquanto estivessem em seus cuidados, apertando-o ainda mais contra o seu corpo de forma instintiva enquanto se armava com uma lâmina menor que um indicador.

— Então o jogamos primeiro então, antes que condenem toda a tripulação!

— E nos livramos também do maldito Hugh que os deixou entrar gente com praga! – Declarou Simon, um jovem marujo que sequer barba ainda tinha no rosto para impor algum respeito, mas que mesmo assim levantou uma onda de aclamações do restante da tripulação presente. Loki sentia o suor frio escorrer por sua pele mesmo com os sussurros do inverno nas costas, tendo ainda o companheiro desacordado em seus braços sem que soubesse como poderia ser capaz de protegê-lo.

— O que sabem de doença ou pragas seus biltres? – Loki disse irado, escondendo o pânico por baixo da raiva que também sentia.

­– Sabemos do perigo que uma única tosse causa num navio, e o capitão Astor também concorda com isso Marinheiro de primeira viagem. – Randall retrucou com um meio sorriso ladino no rosto

— Isso não é como as pestes que conhecem! É uma moléstia que não divide seu fardo. Por isso se algum homem vier a ter uma única tosse nesse navio até o fim da viagem, juro que eu mesmo me jogo ao mar. Do contrário, os amaldiçoo por toda uma vida se matarem a mim e meu companheiro! – Disse determinado enquanto os enfrentava com seu olhar místico tomado de fúria e maldições. Um pouco de receio se fez em alguns dos tripulantes, visto que a aparência de Loki e seu título de curandeiro os lembravam das imagens típicas dos feiticeiros e necromantes que ouviam nas histórias. Poderiam se colocar ao risco de jogar um representante do Inferno ao mar e receber suas pragas durante o resto da vida? Pois se havia algo mais imutável no mundo que o sol a erguer-se todo dia, era a superstição de um marinheiro.

A tripulação discutiu entre si por alguns minutos, em meio de empurrões e insultos uns aos outros enquanto decidiam se arriscariam suas vidas ao permitir a permanência daqueles estranhos, ou condenavam suas almas ao jogá-los ao mar.

— Espero que esteja certo druida, ou é melhor se acostumar com o gosto do sal em suas entranhas. – Randall declarou com uma expressão perversa e ressentida, acompanhado pelos olhares arredios de todos aqueles que antes Loki havia convivido tão harmoniosamente durante a viagem.

O druida deu um suspiro de alívio, mas ainda sentindo os nervos percorrerem toda sua pele enquanto fitava tomado de preocupações o rosto desfalecido de Friedrich, alheio a todo caos que sua doença longe de ser santa havia causado. Porém, não demorou sequer meia hora para que a história chegasse até os ouvidos do capitão Astor, que veio até Loki com uma expressão severa que fazia com que o homem pequeno até mesmo evitasse olhar muito para seu olhar pesado de indignação.

— Disseram que podiam confiar nos dois, que explicação tu tens agora depois de negares ao velho Hugh a real saúde de teu amigo? – Loki podia sentir o cheiro de fumo forte da barba cinzenta de Ilbert, tão próximo de si como um lobo a encurralar sua presa.

— É algo que afeta somente á ele senhor, afirmo que nenhum outro de seus tripulantes ganhará a mesma maldição, convivo ao lado de Friedrich há tempos e nunca me foi passada tal sina. – Respondeu resoluto de suas palavras, esforçando-se contra o temor que sentia para olhar firme em direção aos olhos escuros de Ilbert Astor. – Também não esperávamos por isso, pedimos perdão pelo incômodo.

— Foi ousado demais da parte de vocês. Mas pelo bom trabalho dos últimos dias não serei perverso de jogá-los ao mar ou amarrá-los ao mastro, ainda mais já tão próximos da costa. Contudo, é melhor que seu amigo permaneça longe dos outros no restante da viagem, afinal, não desejas causar mais nenhuma inconveniência, estou certo? – As sobrancelhas grossas e escuras do capitão se ergueram de forma provocativa, fazendo Loki assentir imediatamente e olhar novamente para os próprios pés por inquietação do olhar altivo dele.

Levou por sua conta Friedrich á uma das cabines não tripuladas, estocada por mercadorias mais frágeis em baús devidamente trancados, sentando-se no chão parcialmente forrado com palha e esperando inquieto o despertar do companheiro para que não tivesse de ouvir os sons do mar sozinho. Achou melhor trazer Peregrino junto deles também, tendo a sorte de ver o animal cooperar em ficar naquele espaço.

Quando todo o pavor do momento diluiu em seu corpo, o druida passou a irritar-se com a situação que se encontravam, imaginando que poderiam não ter passado por tudo aquilo se não fossem pelas convulsões de Friedrich. Imaginando com ressentimento sobre a facilidade que teriam em passar despercebidos se não fosse por tamanho detalhe, não tendo o infortúnio de ter agora estraçalhada a confiança dos marinheiros que os fizeram companhia durante aqueles dias. Algumas gotas de fel escorriam entre seus resmungos insatisfeitos, permanecendo por diversos minutos naquela posição carrancuda.

Sobressaltou-se de repente quando Friedrich deitado ao seu lado sofreu de um espasmo repentino, o braço ganhando vida própria por um instante e por pouco não acertando em cheio o próprio rosto. Imediatamente se prontificou para ajeitar novamente sua postura e verificando se havia qualquer coisa de errado com o companheiro. Os olhos de Friedrich abriram-se com dificuldade, mas focando-se em lugar nenhum, ainda imerso num poço entre o despertar e o sonho. Loki acariciou sua cabeça com ternura esperando pacientemente sua consciência voltar por completo, sentindo uma dolo agoniante em seu peito, se dando conta que ele próprio havia caído no truque de pensar por um instante que jogando a culpa em Friedrich as coisas se tornariam mais fáceis, quando na verdade a solução era o desafio árduo em fazer as pessoas compreenderem sua condição.

 – Não ficará mais sozinho, pois jamais o abandonarei. – Disse num sussurro quando os olhos azuis celeste de Friedrich viraram por um momento em sua direção, esperando que ao menos a intenção daquelas palavras pudesse ser levada através de sua consciência ainda confusa pela cabeça pesada, nublando o que via e tampando os sons chegando a seus ouvidos enquanto despertava lentamente.

— Oh Cristo... – Foram as primeiras palavras que Friedrich foi capaz de dizer quando acordou de vez, o medo em seus olhos denotando que já tinha consciência do que havia acontecido, mas temendo tudo que se sucedeu enquanto permanecia na escuridão, agitando-se sem rumo pelo desespero – Loki o que... Onde...?

— Espere! Calma Freddie, está tudo bem. – Loki o segurou pelos ombros, visto que já tentava se levantar rapidamente e completamente eufórico. – Ou quase bem.

Loki contou tudo o que havia ocorrido, e apesar de Friedrich se acalmar por saber que não seriam jogados ao mar, era notável a tristeza sombria de seu olhar ao ver o mesmo cenário se repetindo de novo e de novo. Acabando sempre sendo visto com asco e repulsa ao ter seu segredo descoberto, isolado da sociedade como uma besta feroz ou a mais temível da peste. Em partes compreendia tamanho temor do povo por seus ataques, sendo realmente algo a causar desconfiança, mas esperava que assim como os entendia ele também pudesse ser ouvido ao invés de amordaçado pela histeria e condenada pela ignorância.

— Eu odeio, odeio cada centelha dessa maldição que carrego! – Dizia entredentes com lágrimas de fúria a se formarem no canto de seus olhos, com o companheiro a lhe envolver os ombros num alento silencioso, visto que nenhum deles possuía em mãos a solução para tal incógnita.

— Calma, quando chegarmos tudo ficará bem. Pois não nos pegarão Friedrich, jamais seremos atados por esses vermes. – Loki disse resoluto fazendo o alquimista respirar fundo para acalmar-se e o fitar em cumplicidade no meio daquelas palavras. Só precisavam esperar mais um pouco, por isso calaram-se em silêncio esperando pacientemente o desfecho daquela jornada.

A França os esperava, fosse ela tomada ou não dos mesmos vermes que os devoravam.


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Notas finais do capítulo

E chegando aqui toda feliz e contente para dizer que Ode aos desafortunados brilha em mais um concurso, sendo um dos vencedores do segundo concurso do perfil de histórias LGBT+ do Wattpad! Fiquei muito feliz por isso e agradeço a todos vocês leitores por continuarem lendo e apoiando Ode e me incentivando ir cada vez mais longe ♥
Deem um oizinho nos comentários galera, a sessão de comentários anda tão vazia ultimamente. Deixem a autora aqui feliz e empolgada pra escrever muito mais ainda ♥ Até o próximo capítulo!
O que essas novas terras reservam...?



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