Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 18
Os Abandonados e os Muros


Notas iniciais do capítulo

Feliz Natal pessoal! Leitores ativos ou fantasmas, quero agradecer o carinho e o tempo que deram para dar uma chance a Ode aos desafortunados neste ano, desejo tudo do melhor a vocês!!! Aproveitem o capítulo e boas festas! ^-^



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Faltava pouco para chegar a York. Por mais que nunca estivesse estado em nenhuma grande cidade do norte, Friedrich podia notar que estava próximo através do aumento considerável no fluxo de pessoas, carroças, carruagens e cavaleiros que dividiam a estrada. Estava saindo do meio do nada e adentrando em um grande centro urbano, sendo difícil não sentir-se receoso ao cruzar com tantas faces enquanto andava sozinho.

O inusitado de tal situação é que não era possibilidade de roubo ou agressão por malfeitores que dominava a maior parte de seus medos, o que mais temia era ele mesmo. Por mais que se sentia bem em seu físico, apesar do cansaço da viagem, Friedrich havia aprendido a não confiar no próprio corpo. Imaginava-se colapsando no meio da estrada, o pavor das testemunhas e o despertar no próximo julgamento – quiçá escolhessem a forca para si dessa vez? –. Estava pressentindo o retorno de sentimentos de insegurança, impotência e terror que haviam o arrasado por tanto tempo antes de revelar tudo á Loki. Detestava se encontrar numa situação em que perdia o domínio de seu corpo, não podendo fazer muito além de aceitar a contragosto a maldição que lhe foi encarregada.

Desconfortável com o movimento que a estrada começou a proporcionar, Friedrich adentrou cada vez mais pelo bosque que contornava o caminho indicado por Loki, que se soubesse sobre o desvio que fazia no momento provavelmente teria um ataque de nervos. Contudo, Friedrich acreditava que tais sentimentos hipotéticos no amigo eram infundados, pois sempre era cuidadoso e percorria a floresta sem tirar os olhos da estrada ao longe, espiando através das folhas e arbustos o terreno de pedregulhos e terra.

Era difícil não relacionar a situação com sua fuga do mosteiro, escapando as escondidas feito um delinquente. Não gostava de como aquilo soava, se colocando em um patamar tão abaixo o fazia sentir mais repulsa de si do que o costume. Saber que na realidade não possuía culpa e controle naquilo apenas lhe causava mais revolta, pois a sociedade lhe cobrava uma solução que não possuía e lhe punia de forma severa por suposto crime.

Com a cautela e atenção que deveria ter para não se perder, somado a sua mente já repleta de conflitos, foi pego de surpresa ao tropeçar em algo em seu caminho. Não foi o bastante para derrubá-lo, mas tropicou alguns passos antes de recobrar o equilíbrio, olhando para trás esperando encontrar a pedra ou raiz que o importunara.  O odor nauseabundo lhe atingiu pouco antes de se deparar com o horror, como se o alertando antecipadamente o que estava a sua espera. Por pouco não conteve um grito de pavor ao se deparar com o cadáver decomposto há dias, encarando-o com o rosto de pele já descamada pela putrefação e larvas, os olhos devorados pelos pássaros e as vísceras arrancadas pelos lobos e ratos. Pouca humanidade havia sobrado naquele resto de corpo, parecendo mais uma criatura dos círculos infernais ilustrados nos manuscritos que tanto conhecia. Era a morte na sua forma mais horrenda e crua, sem caixão e sete palmos que pudesse amenizá-la.

Apesar do pavor inicial, o cadáver em si não era o que mais causava calafrios em Friedrich. As cordas que o prendiam firmemente ao tronco do bordo confessavam que quem esteve ali um dia foi trazido vivo para aquele lugar, sozinho e sem chances de fuga, deixado para o único destino que se concretizou em tal figura fúnebre. Não precisou raciocinar muito para Friedrich compreender o motivo de tal ato desesperado e atroz, visto que ouvira diversos boatos relatando tais atos. Uma forma de se livrar dos infectados da peste, como resultado das desesperanças dos acometidos pela moléstia e o pavor da morte que impregnava o restante do povo. Deixando a floresta ser a última testemunha de suas mortes dolorosas, sôfregas e solitárias. Abandonados na vida e desprezados pela morte.

Aterrorizado, Friedrich retornou para a estrada mesmo com seus riscos. Era perturbador demais se ver tão perto do que por vezes parecia ser o fim da humanidade. Quando o desespero se instaurava entre o povo, mais ele se afundava ao tentar sair de tamanho tormento, como um animal a se debater na areia movediça.

Continuou a caminhada de olhos atentos e ideias perturbadas. Não sabia mais ao certo o que pensar. Se antes possuía ter tanta certeza que reencontraria o druida somente por uma última vez, agora tinha dúvidas se realmente pretendia tomar esta decisão.  Ora repreendia tais ideias hereges e que beiravam a blasfêmia, ora se perguntava se tantos sacrifícios em sua vida valiam realmente a pena. Ao lado de Loki não sentia medo da estrada e das pessoas, pois sabia que havia alguém que o apoiava e o defendia, assim como ele fazia com o druida, eles eram o refúgio que buscavam tanto na serenidade como na inquietação. Loki havia sido o único a lhe abraçar por completo e a lhe devolver a bravura que havia perdido. Ao se dar conta disso, Friedrich tornava-se relutante em sua decisão anterior, pois não queria perder o tanto que havia ganhado, por mais que havia aprendido que tal relação desagradava ao seu Deus.

Era confuso, injusto e frustrante. Conseguiria agora viver uma vida sem Loki? Ou a conviver com a dúvida de sua culpa purgatória se retornasse para seus braços? A situação que seja o céu ou o inferno lhe incumbiu era complexa demais para que Friedrich conseguisse saber com certeza qual seria a decisão certa a fazer.

Perguntava-se que poderia Loki estar também pensando naquele momento, se havia tantos dilemas em sua cabeça como ele mesmo possuía. Concordar-se-iam com a ideia um do outro quando se reencontrassem? Quanto mais perto chegava da cidade, mais seus pensamentos partiam de si para ele.

York já mostrava sua grandiosidade e imponência de grande cidade antes mesmo de poder chegar até seus muros, tão extensos que ao olhar para os lados era difícil saber quando terminavam. Grandes campos de plantio enchiam o horizonte por todos os lados, com terra revirada por centenas de servos a puxarem o arado e digladiarem as enxadas. Carroças passavam de um lado para o outro, criando desenhos na terra que se sobressaiam um no outro em diversas direções, fazendo fileiras em direção aos portões mais próximos que conseguissem encontrar.

Comerciantes anunciavam aos berros suas mercadorias em tendas bambas á luxuosas como a realeza, estrangeiros do norte discutiam em línguas estranhas, cavaleiros desfilavam com seus cavalos de linhagem pura, soldados de mantos estampadas e armaduras pesadas observavam em silêncio de espadas fincadas ao chão e tão longas quanto seus torsos, seja vigilando em meio ao tráfico ou escondidos por cima das ameias do grande paredão de pedra. Menestréis e demais artistas competiam por atenção do público, alguém discutia o preço da farinha ao passar uma carroça com estoques para os silos, mendigos e inválidos estendiam a mão por esmolas, peregrinos religiosos trocavam ideias e filosofias, crianças brincavam com varetas imitando espadas.

Por vezes uma carruagem fina da nobreza passava pela estrada, chamando a atenção do servo ao tabelião que parava suas atividades somente para observar estupefatos os arabescos em ouro e prata, mas fugindo e se escondendo quando o carro de corpos apareceu para despejar mais consequências da peste em grandiosas valas, ficando cada vez mais fundas através do trabalho duro e sofrido de pessoas que foram encarregadas de tal trabalho sujo. A peste também já havia chegado naquelas terras.

Era uma horda de pessoas tão intensa, vívida e barulhenta que confundia todos os seus sentidos ao ver-se no meio daquela confusão. Fazia tempo que não visitava uma capital de ducado, ficando agora tão perdido como da primeira vez que esteve em Londres pouco tempo depois que havia se ordenado frade. Por mais que ele e Loki tivessem combinado de se encontrarem nos arredores da Catedral de York, Friedrich ainda tinha dúvidas se conseguiria encontra-lo em um lugar tão vasto e populoso.

Contudo, por mais que se impressionasse com a grandeza de uma cidade daquele porte, Friedrich sabia que tanto York como muitos outros ducados haviam deixado grande parte de seu esplendor. Havia muita gente, mas sabia que outrora aquelas estradas já ficaram tão cheias que não se podiam enxergar os próprios pés, os servos já exaustos pela fome e labuta agora também conviviam em constante luto por tanta gente padecida pela epidemia, a violência se intensificara com o desespero dos ainda vivos. Os nobres pararam com seus bailes e festivais luxuosos e lamentavam a perca de sucessores e herdeiros, vendo famílias de nome desaparecerem inteiramente. O clero estava mais vigilante e autoritário, freando ainda mais as rédeas dos leigos para que não deixassem de lado os costumes e obediência e punindo mais do que nunca os que se rebelavam. Uma desesperança generalizada, que era fruto de uma guerra que empobreceu ainda mais o povo e de uma doença mortal que dançava triunfante naquela tragédia.

Ao ouvir por fora as conversas e reclamações de outros viajantes que também perambulavam os arredores dos muros, começou a temer se poderia passar pelos grandes portões de Micklegate, uma estrutura imponente cercada de torres vigiadas, sendo de um amarelo tímido encoberta pelo tempo e o pó, janelas estreitas sempre de olhos abertos, com as pedras vestidas com as bandeiras e brasões da cidade em branco e vermelho espalhados nas ameias. Seteiras em forma de cruz adornavam sua arquitetura como se pudesse esconder seu verdadeiro propósito assim como os guardas e suas armaduras imponentes. Os arcos possuíam afiadas estacas de ferro, que constituíam os portões que não se levantavam para qualquer alma que ousasse passar pelos muros. Por ali passavam em suma as grandiosas carruagens que chamavam tanta a atenção do povo, junto aos cavaleiros e seus estandartes tremulando ao vento.

Por conta da peste os portões estavam mais seletivos do que nunca, fazendo os viajantes cansados queixarem-se dos pedágios altos e da recusa de tantas entradas. Friedrich começou a temer perder toda aquela viagem por conta disso, com a preocupação de assim não conseguir encontrar Loki tomando conta de seus pensamentos. Perambulou pelo local por um longo período, trocando ideias com as muitas pessoas que também se encontravam em situação semelhante. Perguntava-se se conseguiria encontrar Loki no meio daquela desordem caso não adentrasse os portões. O medo de aquela manhã de dias atrás ter sido a última vez que veria o tão caro amigo era uma possibilidade aterrorizante para ele, justamente naquele momento que começava a se perguntar se deveria mesmo se separar de Loki.  Não queria perder a chance de ao menos poder escolher o seu destino uma vez.

Friedrich se questionava se sempre lhe seria negado a chance de ao menos poder dizer adeus para aqueles que amava. Não pode se despedir dos colegas do mosteiro, a peste havia lhe tirado toda sua família. Teria que agora também sofrer pela chance perdida de ao menos uma despedida decente á Loki, seu caro amigo e paixão de sua vida? Começava a lamentar-se da última despedida de ares distantes que acontecera dias atrás, onde ambos imaginavam que se fosse realmente preciso aquela ainda não seria ainda a última vez que eles estariam próximos. Por um breve momento seus pensamentos se desataram de tantos dogmas e repressões e se pôs a sentir tudo o que desejava e precisava se pudesse reencontrar o druida somente mais uma vez, perder-se em seus abraços, tocar em seus cabelos e sentir o gosto de seus lábios mais uma vez. Anseios sôfregos pela possibilidade de nunca se concretizarem.

Foram horas de angústia em que se viu tentando traçar planos para conseguir desviar de vil infortúnio. Todavia, por sorte ao crepúsculo, encontrou um grupo de comerciantes de linho que reclamavam do preço alto do pedágio e Friedrich já desesperado ao ver-se – uma situação deveras irônica – preso do lado de fora daqueles portões, ofereceu-se para dividir uma parte do valor para a entrada se permitissem que os acompanhasse.

— Salvou nossa ceia confrade, esses duques parecem devorar moedas como os cupins fazem com essa carroça. – Disse Daniel que comandava toda aquela mercadoria e que ouviu sua proposta de bom grado. Era um homem de idade avançada, corpo franzino e os cabelos oleosos já tomados quase inteiramente pelo branco, tinha as maçãs do roso proeminentes e um sorriso amarelado que faltava uma porção de dentes, seus olhos azulados eram quase inteiramente escondidos pelas rugas.

— Sou eu quem está a salvo agora graças a sua gentileza. – Friedrich disse terminando de contar a moedas que tinha no bolso, imaginando que a cidade provavelmente preferia receber pennies como pagamento a outras moedas que possuía – não que houvesse muitas consigo de qualquer maneira. A plebe em si não costumava fazer tanto o uso das moedas, preferindo o escambo em muitas situações. O dinheiro era um assunto confuso pelas tantas moedas que circulavam, fossem pennies, libras, florins, denários e até mesmo alguns francos apareciam vez ou outra em seus bolsos.

— São apenas negócios, filho. Venha antes que fechem os portões de vez. – Acompanhando Daniel estava seu irmão Jacob, tendo grande semelhança ao outro se não levasse os cabelos ainda escuros em conta e os braços ainda fortes segurando os arreios. – Difícil deixarem entrar a plebe e essas carroça velha por Micklegate, vamos dar a volta até o portão de Walmgate por onde sempre entramos. Não deixam de serem duros com a entrada, mas ao menos não aceitam somente a realeza com seus nobres. Trabalhamos com as mercadorias do conde Axelworth há mais de vinte anos e conhecemos bem a teimosia desses portões.

Friedrich se colocou entre as pilhas amarradas de tecido de linho, quase se camuflando por conta das vestes da mesma cor pálida e sem vida que trajava. Era o mesmo material utilizado por quase todos os trabalhadores, onde apesar de comichar a pele era mais barato que algodão, seda e outros tecidos que somente os nobres e costureiros sabiam os nomes. O cão saltou e se colocou ao seu lado, ficando mais alto que o dono e olhando como uma vigia ao redor, no mesmo instante algo pareceu se remexer no meio da mercadoria enquanto a carroça começava a balançar com os passos da dupla de equinos á frente.

— Se antes eram teimosos, agora são carrascos. – O velho homem comentou olhando para Friedrich por cima dos ombros. – Cuidado com o Bichano escondido por aí. É um bom caçador, nunca deixa um rato para contar a história e sabe se esconder bem, assim ninguém o tira da gente. É triste como matam esses bichos sem grandes motivos.

Friedrich conseguiu espiar no meio das pilhas de tecido a cabeça do animal, de pelo alaranjado, caolho e com uma das orelhas mutiladas. Ele o encarava com uma desconfiança vívida no olho esmeralda que o fez lembrar por um momento de Loki. Recordou-se também de como sua mãe detestava gatos, além de outros bichos da qual considerava mais malignos do que outros, fruto de superstições sobre as ligações do diabo com o mundo. Provavelmente ela não teria gostado nem de Bichano e muito menos de Loki, mas ironicamente agora Friedrich se via mais próximo de tais criaturas do que com qualquer outra pessoa ao seu redor.

— O que te traz para o centro do norte? – Jacob questionou sem tirar os olhos da estrada, contornando os paredões e passando pela tumultuosa multidão aos arredores.

— Irei reencontrar um amigo, contudo esta é minha primeira viagem pela região. – Friedrich respondeu sem tirar os olhos dos muros, olhando curioso para algumas figuras distantes dependuradas naquelas grandes paredes, tentando ajustar a visão para entender do que se tratava. Seriam mais estandartes?

— Onde pretende encontrá-lo? Se for caminho poderemos lhe deixar o mais próximo do lugar. – Indagou Daniel virando-se para conversar de frente com ele.

— Fui instruído a ficar aos arredores da catedral, mas admito que não tenho ideia onde a mesma fica. – Friedrich respondeu e somente estudando a expressão que o velho manifestou foi o bastante para perceber que não teria a segunda carona.

— Ela se encontra no outro extremo da cidade, será uma longa caminhada para você.

— Nada que eu já não esteja acostumado. – Deu de ombros de forma jovial, mas logo se fechando novamente ao perceber finalmente do que se tratavam as estranhas figuras que antes tentava enxergar. Agora próximos o bastante, os corpos acorrentados enfileiravam-se como anjos da morte de asas abertas, presos aos muros e se despedaçando aos poucos. Tão altos que mal dava para reconhecer os rostos, provavelmente já apagados pelo ciclo da morte. Um aviso claro da cidade para com os que não andavam sob suas ordens.

— Tempos difíceis, atos cruéis. – Daniel disse quase que em um murmúrio, enquanto passavam em silêncio por aquele trecho onde o ar parecia tão pesado quanto o de uma montanha.

Felizmente não houve grandes problemas na passagem por Walmgate, apesar da demora em despacharem as carroças e visitantes que apareciam. Friedrich e o cão desceram não muitos passos após a entrada na cidade murada, agradecendo mais uma vez aos irmãos pela chance e por o aconselharem sobre o caminho que precisava tomar para chegar até a Catedral.

O dia já começava a se despedir quando Friedrich se viu sozinho dentro dos muros de York, com o céu antes tão radiante começando a se esconder pelas nuvens e o manto da noite. As primeiras porções de York ainda possuíam ares rurais, com áreas de plantio e criação de animais tendo maior destaque naquela região, vendo os moinhos trabalharem de maneira calma e imponente. Somente ganhando os verdadeiros ares de uma cidade depois de avançar por dois quartos de hora onde ainda não se sentia tão deslocado naquele cenário de labuta. Por mais que fosse um centro urbano, York ainda possuía dezenas de divisões feudais por trás de seus muros.

Aos poucos a cidade tomava sua verdadeira forma, com mais edifícios a tomarem conta do ambiente e a estrada de terra começar a ganhar calçamentos em suas laterais. Ficou por uns instantes admirando a vastidão e movimento de uma grande cidade. Os calçamentos de pedra contornavam as ruas e habitações em dezenas de alamedas estreitas e iluminadas por postes de luz, com o comércio, salões, hospedarias e tavernas tentando chamar atenção do povo com seus estandartes e grandes casas adornadas com enxaimel. As ruas antes tomadas pelos vendedores e artistas clamando pela atenção, carruagens atravessando apressadas e pessoas de todas as classes atravessando e discorrendo entre si, agora concentrava toda sua vivacidade no interior das casas e estabelecimentos, com as luzes alaranjadas das velas iluminando as janelas grandes e estreitas e o som de música e celeuma saindo do interior das tavernas.

Não era tão imponente quanto Londres, que já havia visitado duas vezes no tempo de frei, mas ela lhe causava a mesma surpresa pueril para quem não era acostumado às luzes de um grande ducado. A cidade do comércio, dos vastos mosteiros, das grandes batalhas, o centro do conhecimento protegido e criado por Alcuíno. Como o antigo frade lamentava não poder experimentar as maravilhas de suas riquíssimas bibliotecas! Poder ler os originais que só obteve o conhecimento por cópias e menções curtas, quem sabe os grandes estudiosos da natureza e do divino tivessem respostas melhores para suas dúvidas e temores. Porém, há muito tempo abdicara a força do privilégio de ter acesso a conteúdos tão preciosos, algo que jamais deixaria de sentir falta.

Friedrich andava pelas ruelas virando o pescoço para todas as direções, admirando os batentes enfeitados com flores, os brasões de ouro e os belos jardins presos pelos portões de casas mais abastadas. Contudo, não ousou perambular por muito tempo por aquelas ruas nobres, ainda mais pelo horário onde poderiam condená-lo por vagabundear por aí. Prosseguiu então pelas ruas mais estreitas, as casas tornando-se menores e simples, parecendo integrarem-se uma nas outras ao tentar dividir o pequeno espaço oferecido. Os postes de luz tornavam-se cada vez mais raros no caminho e o cheiro de esgoto era mais evidente por aquela região. Apesar do receio com alguma espécie de assalto, Friedrich não se sentia tão deslocado naquele ambiente, o cenário dos jardins e portões lhe causava mais estranhamento do que a miséria que já era tão comum para seus olhos.

York já começava a passar pelas adversidades que a peste trazia, a começar pelas grandes covas que Friedrich vira antes de adentrar a cidade. Havia muitos órfãos perambulando sozinhos pelas ruas, famintos e muitas vezes sem compreender ao certo o que acontecera. Carroças com corpos empilhados tomavam conta das ruas e passavam com seus presságios de morte em um silêncio terrível. As casas acometidas inteiramente pela moléstia eram marcadas em suas portas, em vermelho vivo desenhava-se um grande X para alertar o povo de fora a se manter afastado. O que Friedrich presenciava tornar-se-ia ainda mais costumeiro no futuro, assim como as sóbrias e amedrontadoras figuras de negro.

Nessas regiões infectadas, haviam pessoas cobertas com longos mantos escuros, usando chapéus de mesmo tom fúnebre e de longas abas, escondendo suas faces com panos e lenços para não inalarem por completo o ar adoecido, trajando luvas grossas de couro nas mãos que empunhavam longas varas de madeira, usadas para cutucar os corpos jogados nas ruas para saber quais já estavam mortos, ou para oferecer de longe amarrado em sua ponta qualquer remédio ou sustância para os vivos que ainda definhavam. Era a primeira vez que Friedrich presenciava o trabalho dos médicos da peste, aqueles que se arriscavam por vontade própria ou obrigados como servos a se livrar dos cadáveres que perpetuavam a infecção nos vivos, ou para acalentar de alguma forma os momentos finais dos doentes. Eram como ceifadores a guiarem as almas para o sono eterno, mortais a realizarem o trabalho de anjos da morte.

Uma daquelas figuras olhou em sua direção, provavelmente uma freira dado o longo véu que usava por baixo do chapéu, os olhos castanhos lhe lançaram um aviso silencioso, apontando de forma frenética para suas costas o sinalizando para que não perambulasse por aí. Friedrich não ousou questionar sua autoridade, tomando outro caminho, mas ainda se vendo atordoado com tamanho pandemônio.

Aquela moléstia para ele era mais do que algo a se temer, era um assunto pessoal do qual estaria cravado em seu interior para sempre, olhar para toda aquela desgraça e lamentar duas vezes mais ao lembrar-se dos pais e irmãos que perdeu. Não teve a chance de sequer enterrá-los, de tratar seus corpos de maneira digna. Por isso com frequência suplicava a Deus para que não estendesse o sofrimento de sua família, simplesmente por não terem recebido a unção dos mortos e os corpos devidamente tratados. Se já não lhe bastasse toda a saudade que sentia, acumulada desde o momento que os deixou para o mosteiro e jamais esvanecida, lhe incumbia de mesma forma a preocupação constante com o verdadeiro destino de suas almas. Era mais um fardo em meio a tantos outros que se via incumbido de carregar.

Naquela noite adormeceu encolhido em uma porção de escadarias. Se não fosse pela exaustão de um corpo mal alimentado obrigado a se esforçar, ele não teria adormecido tamanho pavor que sentia e pelas dúvidas que o dominava. Não houve sonhos, apenas o vislumbre de seus sentimentos sôfregos e abalados. Faltava pouco para o confronto entre Loki e ele, contudo ainda assim não fazia ideia por qual caminho seguir. Era uma escolha entre as dores.

                                                               ***

Os olhos da raposa continuavam abertos, dourados feito o Sol, mas sem possuírem o brilho da vida. A boca entreaberta exibia os dentes brancos e afiados, a língua pendia para o lado. O corte em sua jugular manchou as porções do pelo antes brancas feito a neve, tornando o corpo em tons do fogo numa mistura de laranja e vermelho que pingava na grama e na vasilha oferecida aos deuses. Não era sempre que conseguia caçar um animal tão astuto, podendo ganhar um bom dinheiro com a pele. Porém, ao se encontrar no meio de tantos conflitos, acreditou que o mais sensato a fazer seria bajular os deuses para iluminarem de alguma forma a sua jornada. Moedas perdidas por uma sorte incerta.

Ele olhava para as estrelas naquela noite de poucas nuvens, mas não pensava sobre elas, ao menos não inteiramente. Ouvia a voz de Friedrich em sua cabeça, como uma melodia difícil de livrar dos pensamentos, de tempos atrás quando explicava sobre as poucas constelações que conhecia. Loki ainda não sabia apontar por conta própria sua localização como ele havia lhe ensinado, mas as estrelas não pareciam mais as mesmas desde aquela noite em que as observou com o alquimista.

Quanto tempo levaria para esquecê-lo? Se é que seria capaz disso um dia, na verdade esperava que jamais o esquecesse. Friedrich em meses fora capaz de impactar em sua vida de forma que muitas pessoas em anos não conseguiram, pois ele não era alguém da qual pudesse apagar por completo de suas memórias mais queridas. Que sentisse toda a dor que a vida lhe obrigava a sentir, com a alma se comprimindo de saudades, mas que ao menos continuasse a reencontrá-lo em suas lembranças e poder sentir um pouco da ternura e júbilo que Friedrich lhe trouxera um dia.

Loki já tentava conformar a si mesmo com a possibilidade de ver Friedrich somente mais uma vez, porém em seu interior sabia que era capaz de desistir de tudo assim que visse o olhar afetuoso daquele que lhe roubara o coração. Poderia jogar para os ares todo o risco que sofriam e se aprumar de vez como enamorados. Contudo, não só o pouco juízo que tinha já havia o convencido de rejeitar tal loucura, mas também por saber que mesmo se estivesse disposto a por a corda na forca Friedrich o rejeitaria, mesmo que ele também tivesse admitido seus sentimentos. Pois conhecendo o antigo frade, sabia que ele jamais burlaria suas crenças por um amor tolo em um druida louco.

Estava escondido no breu da noite, sentado e matutando em silêncio num apinhado de rochas cobertas por musgos e tomadas por plantas a invadirem suas frestas. Mesclava-se ao ambiente como se fosse parte do mesmo, feito um duende a planejar a próxima travessura com os mortais, o sangue da oferenda escorria de seu rosto manchando a túnica. Sabia que havia um vilarejo há poucos minutos de caminhada de onde estava, afinal conhecia o caminho, contudo não queria naqueles tempos tão sombrios ter mais uma surpresa de um povo tomado pela ira e o medo diante de si. Queria ficar sozinho, sem mesmo uma fogueira para aquecer a noite fria, tendo a única companhia apenas as questões mal resolvidas em sua cabeça.

Fitou as árvores que o rodeava em dado momento, encarando de forma reflexiva seus galhos retesados e as folhas machucadas pelo vento. Estavam assustadas, mas Loki não sabia dizer o porquê.


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Notas finais do capítulo

O tempo é de festa, mas o capítulo foi só desgraça mesmo ¯_(ツ)_/¯
Faz um tempinho desde a última nota sobre contexto histórico, então aqui está mais um presentinho de Natal pra vocês:
Primeiramente quero iniciar deixando claro o quão doido foi procurar por descrições de York do período medieval. Os mapas da época são beeem diferentes dos que usamos hoje em dia. Não eram lá muito práticos por assim dizer, enfeitava-se demais para deixar ''agradável de se ver'', mas apesar de bonitos não eram muito verossímeis. Basicamente tive que comparar esses mapas antigos, com mapas de outros séculos e mapas de hoje em dia, lendo também descrições feitas da época e tentar ligar os pontos para se ter uma ideia de como poderia ser a cidade no século XIV.
Imagino que você devam ter em mente a imagem dos médicos da peste usando aquelas máscaras sinistras de pássaros. O porquê deles não a utilizarem neste capítulo? Tal vestimenta ainda não existia! Apesar de ter se tornado um ''ícone'' da peste negra, a máscara de médicos da peste só foi criada na segunda grande epidemia da mesma, somente dois séculos depois de Ode aos desafortunados. Nessa primeira epidemia, os médicos faziam tudo mais na base do improviso e da gambiarra mesmo.

Comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo! ^-^



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