Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 17
A Estrada e a Igreja


Notas iniciais do capítulo

Estou atrasada assim, culpa desse final de semestre que está consumindo com minha vida. Ainda que consegui fazer uma capítulo de tamanho considerável, mas vou tentar compensar toda essa espera quando eu estiver de férias. Quero fazer chover capítulos aqui!
Boa leitura ^-^



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O silêncio desconcertante e canhestro era ainda o que persistia entre eles, mesmo ao amanhecer quando começaram a ajuntarem e a dividirem a bagagem. O pouco que falaram era da divisão do pouco dinheiro e dos pertences, sendo necessário que cada um tivesse trouxas e mantimentos o bastante para os dias que estariam fora. Cada um tinha poucos objetos realmente pessoais, sendo que dividiam e compartilhavam boa parte deles como cobertores e navalha, ocorrendo certa dúvida e impasse de como poderia ser feita tal divisão. Após um tempo de uma breve discussão ainda cheia de hesitação e acanhamento por conta dos acontecimentos do dia anterior, conseguiram dividir da forma mais equilibrada que pudessem o que possuíam.

Já estavam com as mochilas e sacolas nas costas, as botas feitas mais de pano que couro foram firmemente amarradas para não escaparem. Pelo céu cinzento clamando por chuva, Loki usava seu gorro e Friedrich colocara um capuz por cima de sua túnica. Todo o caminho que percorreram foi recheado por ansiedade e receio, junto aquele terrível silêncio que agia como uma barreira entre eles. Sentiam a garganta fechar-se e um frio no estômago conforme se aproximavam mais da separação, olhando um para o outro somente com o canto dos olhos e sentindo o peito se apertar ao imaginarem como agora poderiam viver um sem o outro, já que não era possível conviverem frente aos sentimentos que tinham.  A dúvida para se aquela era a melhor opção persistia, mas acreditavam não haver opções melhores, continuando assim de passos incertos e expressões cabisbaixas.

Haviam andado juntos uma parte do caminho, mas em determinado momento o druida sinalizou que haviam chegado. A Estrada Real era bem delimitada, sem vegetação bloqueando o caminho de terra e tendo a floresta contornando-a somente em suas laterais. A direção que Loki seguiria era praticamente escondida, com uma leve marcação de terra causada por cascos e carroças que passavam por ali ocasionalmente, mas tão fechada pelas árvores que seu interior chegava a ser sombrio, somente com poucos feixes de luz adentrando entre as árvores.

Estavam a poucos passos um do outro e por um tempo permaneceram calados, se observando constrangidos e receosos em prosseguir com o plano. Jamais teriam imaginado na manhã anterior que estariam em tal situação, tornando o elemento da pressa mais desconfortável do que o usual. O cão sentou-se entre eles, olhando de um para o outro, confuso com todo aquele nevoeiro de angústia que pairava ao redor deles. 

— O cão deve permanecer contigo, tu sempre soube lidar com ele mais do que eu. – Loki decretou, acariciando de leve a cabeça do animal que contente balançou o rabo varrendo as folhas do chão. – Ao menos saberei que não estarás sozinho.

— Gostaria de poder ter o mesmo alento. – Friedrich disse quase que em um sussurro, com a cabeça levemente abaixada pela angústia que o consumia desde então. Loki deu alguns passos em sua direção, tomando-lhe a face e deixando um beijo em sua fronte, fazendo seu coração galopar sem avisos. Ainda assim mesmo em tal infortúnio se via rodeado por aquelas sensações pelo qual lutava contra.

— O que calhar, será pelo melhor. – Loki não sabia exprimir se flava aquilo para acalmar Friedrich ou a si mesmo. Gostaria de dizer quiçá uma última vez o quanto o amava, porém se conteve, pois era justamente por conta de tais emoções que se separavam. A primeira havia sido o bastante.

Mal imaginava que Friedrich quase o disse, porém assim como ele acabou ficando com as palavras pairando nos lábios, a culpa e o decoro o freando.

Fitaram-se os olhos, ligando suas íris de forma quase metafísica, com o azul e o verde tornando-se como um dia em alto mar, dando-se as mãos em um simples gesto de afeição que ainda se permitiam. A vontade de ligarem-se como somente uma só entidade pairava entre os dois, mesmo quando se desvencilharam até o último toque das falanges e os passos os levaram em direções opostas. Não olharam para trás quando prosseguiram, temendo desistirem de tal ideia caso o fizessem. A alma parecia tornar-se vazia e desamparada conforme a distância prosseguia.

O cão ficou confuso ao ser chamado por Friedrich enquanto via o druida pegar o caminho contrário. Mesmo acompanhando o antigo frade, ainda vez ou outra o animal parou no meio do caminho olhando para trás, esperando com uma ansiedade petiz poder encontrar Loki mais uma vez.

Friedrich estava com os pensamentos tão conturbados entre a culpa que sentia por seus desejos e a partida do companheiro, que sequer se deu conta das lágrimas que derramaram em seu rosto. Ao sentir a face úmida pelo pranto, ficou estagnado por alguns segundos pela surpresa de suas próprias emoções.  Secou as lágrimas usando as mangas com rispidez, cerrando os dentes de frustração e apertando mais o passo. Livrar-se-ia de tais ânsias pecaminosas, ou acreditava que jamais poderia rever Loki.

O druida parou de andar pouco tempo depois de começar seu caminho, afundando a face em suas mãos e dando um longo suspiro. Permaneceu estático tal como as árvores ao seu redor, como se torna-se também mais uma entidade da natureza, sempre de olhos e ouvidos atentos para todas as criaturas em seu encalço. Não queria mais refletir sobre suas ideias e sim parar de pensar tanto por apenas alguns instante, gostaria de se transformar em um daqueles seres etéreos do qual os deuses criaram primordialmente, soltando suas folhas com tamanha serenidade e apresentando-se em toda sua imponência diante de todas as criaturas que vagavam por aí. Queria ser inabalável como elas, pois estava exausto de ser feito em pedaços tantas vezes em uma única vida.

Ao olhar para a floresta, ela estava em silêncio, matutando a questão junto á ele. Todavia, Loki não mais sabia dizer se ela o protegia ou somente o amaldiçoava ainda mais.

Sua mãe costumava falar que seu nome vinha de contos dos nortenhos, onde falavam de um deus ou monstro que enganava e pregava peças aos outros. Anos depois de ouvir tais histórias, Loki se perguntava se o próprio nome talvez não o zombasse e o levasse para tantos infortúnios, quem sabe com os deuses ao fundo divertindo-se de sua desgraça. Ele costumava ser mais otimista que isso, imaginava que tanta tragédia fosse somente o caminho que precisava passar antes de atingir o santo graal em seu destino. Mas parecia que havia se perdido naquela estrada, acabando por rondar sem rumo por um deserto escaldante e eterno. Quiçá tal caminho sequer existisse, e por tal constatação que Loki perdera grande parte da esperança de dias melhores.

Acostumara-se a andar sozinho, pois a maior perda em sua vida já carregava para sempre em seu coração e nenhuma outra despedida era páreo com tal dor. Fazia amizades que partiam em direções diferentes do reino, acabando por conhecer pessoas novas e moldando novas histórias em sua companhia. A estrada havia o ensinado a desapegar de muitas coisas, fazendo Loki colecionar tais relações passageiras que o rendiam memórias e aventuras para mais do que uma vida. O tabelião de Cheshire, as meretrizes de Londres, os comerciantes judeus de Oxfordshire, a trupe de artistas franceses, peregrinos da Escócia, trabalhadores do campo, soldados, ferreiros, artesãos e vassalos, ele havia conhecido tantas pessoas e ouvido e presenciado tamanhas histórias que nem mesmo um mosteiro inteiro poderia transcrever seus relatos!

Lembrava-se que a separação de seu caro amigo Joshua fora um momento difícil, quando o velho nobre decidira que sairia da Grã Bretanha para explorar o restante do mundo. Aquele senhor de riso teatral e trejeitos boêmios dividia tamanha experiência e sabedoria que o jovem Loki o colocara como um tutor e mestre para si. Sua partida foi dolorosa, mas ao mesmo tempo inspiradora, fazendo com que o druida guardasse todos os seus conselhos em um lugar especial de sua alma. Joshua queria aproveitar o restante de sua vida, enquanto Loki ainda tinha ela inteira pela frente a ser explorada, tal compreensão de seus objetivos foi à resposta para lembrar-se do amigo não com pesar, mas com uma bela nostalgia.

Agora com Friedrich, nenhuma dessas situações parecia se encaixar, deixando-o em uma situação que não sabia conduzir e que o dilacerava gradativamente.

Antes de conhecê-lo, muitas vezes havia ficado semanas com a própria companhia sem se importar, mas somente alguns dias sem o companheiro pareceu causar um grande abismo escuro e vazio em sua alma. Já haviam se separado por alguns períodos, a diferença é que sabiam que encontrariam novamente para os braços um do outro. A distância que instauraram naquele momento era para pensar na possibilidade de se abdicarem, fazendo Loki sentir um aperto em seu coração que lhe alertava sobre a dor que causaria a si mesmo, mais uma grande cicatriz para carregar em sua vida.

Eram mais do que caros amigos ou uma simples dupla esquisita, mas sim duas partes divergentes que se completavam, ao mesmo tempo em que dividiam grandes semelhanças em suas histórias e na forma de pensar. Para Loki ele era a peça que o complementava e ambos tornavam-se melhores um com o outro, dividindo os pesares e aprendendo a conviver tanto nas adversidades como nas alegrias do dia a dia. Friedrich foi quem havia lhe ensinado sobre coisas da qual não teve a oportunidade, lhe dado broncas – muitas por sinal – quando preciso, rido e caçoado em sua companhia, o acalentado quando estivera soturno ou simplesmente ficado em silêncio e oferecido o ombro, pois ele o compreendia apesar de todas as diferenças que deveriam separá-los. Nunca havia tido companheiro tão amável quanto Friedrich de Hampshire, alguém da qual agora compreendia enxergar como família. Este era o motivo dele ser tão diferente de todos aqueles que passaram por seu caminho, sendo naquela hora tão difícil separar-se dele sem sentir tamanha tristeza a dominar todo seu ser.

Para quem se projetou sempre sozinho, Loki não conseguia mais se imaginar sem ouvir a voz melodiosa cantarolando ou dizendo com grande paixão suas ideias, acordar sem se deparar com o brilho azul de seus olhos antes mesmo de olhar para o céu, ou não ver seu sorriso tímido que vez ou outra conseguia vislumbrar os dentes da qual o druida nunca encontrou defeito. Havia se apaixonado por completo pelo jeito calmo e harmonioso de Friedrich, sua sagacidade, a curiosidade que tinha sobre o mundo, seu senso de justiça e a piedade que tinha para com as pessoas. Lembrava-se de seus toques com um calor a lhe preencher o peito, do abraço que o envolvia por completo com os longos braços, o calor de suas mãos em um dia gélido e do beijo alucinante que os dividiu. O amava, admirava e o almejava de forma tão profunda que ora esta paixão acalentava o druida ou o machucava. Tinha diante de si um amor cultivado com todo esmero e que agora não lhe era permitido desfrutar. Era o medo da forca, mais do que no próprio pescoço e sim ver tal sentença cair sobre aquele da qual mais prezava pela segurança.

E era por isso que andava para longe dele, queria poupá-lo de tal sofrimento, por mais que tal atitude fosse dolorosa para o coração de ambos. Ambos já haviam sofrido nas garras da inquisição e da sociedade que os repelia, não querendo acrescentar mais dores em suas contas. Nesses dias de retorno como andarilho solitário, Loki sentiu-se ainda mais distante do resto do povo. Era renegado e exilado de tantas formas diariamente que se perguntava frequentemente o porquê dos deuses o terem largado em um mundo onde não parecia fazer parte. Acreditava que a razão da falha da humanidade era um espelho dos deuses e seus próprios erros.

‘’Os deuses também sentem raiva, tristeza e dor. Por vezes vingança e ira, mas também podem ser piedosos e gentis. Cabe a nós desejarmos a felicidade deles para alcançarmos a nossa. ‘’ Era o que seus pais o haviam ensinado e relembrando tais palavras, fazendo Loki pensar que quiçá os tempos também fossem sombrios para as divindades em tal momento.

As pessoas pareciam se esforçar para arranjar motivos de se afastarem. Dos nobres á plebe, senhores e servos, do clero aos leigos, Loki sempre havia se encontrado na porção mais abaixo das hierarquias. Era o pagão, herege, sodomita e vagabundo, e vez ou outra já havia visto reclamações até da cor de seu cabelo – ‘’É feio, esquisito. ’’ – além do desdém frente a seu ofício, considerado uma afronta ao poder de deus ou apenas visto como um presságio da morte e a cova. Dessa forma quando mais jovem e ferido por dentro, havia criado uma muralha com foço e grandes torres que o isolava por completo do restante do mundo, mas que com o tempo ao conhecer novos rostos foi diminuindo a defesa de seu isolamento, até tornar-se somente um cercado de madeira que apenas pede pela permissão de entrada.

Agora esta mesma fortaleza parecia estar se reconstruindo novamente. Olhava para as pessoas que passavam pelo seu caminho e imaginava que caso soubessem de seus segredos provavelmente o levariam á pira. Das faces em seu passado que dividiram o pão consigo, riram e cantaram junto á ele, mesmo aos que lhe estenderam a mão poderiam ter mudado de ideia quando confrontadas com o diferente, com o que ele era. Por mais gentil que um olhar fosse Loki ainda questionava-se se lhe devia a total confiança, ou tratava-se apenas de um juiz adormecido enquanto ele vestisse as atitudes que a sociedade esperasse dele. Era no que pensava nos raros instantes em que não levava seus pensamentos exclusivamente para Friedrich, afinal, em quem poderia confiar ou não? Para conseguir tal resposta, era preciso se por em um risco que provavelmente não valeria a pena.

— Você parece abatido, o que houve? – Questionou o filho do comerciante que deixou com que Loki pegasse carona em sua carroça, ao menos enquanto seguissem o mesmo rumo. A curiosidade infantil do garoto foi interrompida pelo pai antes que Loki pudesse dizer qualquer coisa, recebendo um tapa no topo de sua cabeça.

— Não seja grosseiro! – O pai repreendeu voltando rapidamente o olhar para os velhos cavalos que puxavam em uma lentidão sonífera. Loki pensou em responder alguma coisa, mas as ideias que tinha em mente o alertavam que o melhor a se fazer era ficar em silêncio, pois não saberiam ouvir a verdade de seus lamentos.

Ninguém saberia, por ele. Por eles.

                                                                            ***

Sentiu-se como um monge novamente, solitário e introspectivo, com a diferença que não possuía a mesma paz de quando vivia no mosteiro onde somente seguia sua rotina regrada e repetitiva. Não estava seguro, andava sem rumo algum e Deus estava desapontado com suas atitudes. A pouca bagagem que levava parecia muito mais pesada do que realmente o era, devido ao âmago sombrio que o consumia.

Friedrich cresceu rodeado pelos cercados de um feudo, sendo sua maior preocupação o tanto de farinha que poderia ser feita da próxima colheita e do quanto Lorde Harold iria oferecer a seus servos, sempre tentando ao máximo com seus braços frágeis e magros manter aquela família viva.  No mosteiro esteve cercado de pessoas que pensavam e agiam praticamente da mesma forma, isolados do restante da realidade e levando sempre a vontade de Deus acima deles mesmos, vivendo somente para a espiritualidade e dos preceitos do evangelho. Após os terríveis eventos que lhe arrancaram da vida clerical, Loki havia lhe mostrado o mundo e todas as suas facetas, um guia e instrutor para a realidade que havia se desacostumado ou até então lhe era desconhecida.

Mas agora ele estava somente com o mundo e seus pensamentos inquietos. Quem era ele como um único ponto daquela página em branco? Sozinho e por conta própria, Friedrich questionava a própria identidade, vendo-se num momento raro de neutralidade em seu ambiente. Contudo o que ainda permanecia em sua mente de forma insistente, mas ainda urgente, era o conflito entre sua fé e Loki.

Andava pela estrada com um semblante sério e reflexivo, segurando vez ou outra à cruz em seu peito, murmurando preces ou somente as clamando em sua mente. Quem passava por seu caminho e o visse de tal forma, quiçá pensasse que se tratava de alguma promessa de fiel ou um peregrino a espalhar a Palavra. A realidade é que não se encontrava tão longe disso, visto que rezava de forma persistente para que Deus arrancasse de si os sentimentos pecaminosos que cresciam em seu interior.

Sentia o estômago se revirar conforme a amargura o consumia, empurrava as lembranças e pensamentos sobre Loki tão a fundo como um martelo bate em um prego a afundar-se na madeira. Mas não eram centenas voltas de rosário que o impediam de racionalizar, tendo lapsos e gritos em sua mente ecoando as ideias que tentava suprimir com suas rezas. Afinal negava a si próprio e até onde sabia não podia fugir dele mesmo.

Em alguns momentos até pensava que suas preces eram ouvidas, que o desejo pelo druida havia sido suprimido, ao lembrar-se dele e não sentir o turbilhão de emoções de antes. Resultado de um cansaço mental tão intenso que o enganava e o fazia quase acreditar que tinha tudo sobre o próprio controle, onde até chegava a pensar ‘’Pronto, está acabado’’, um alívio momentâneo de uma farsa que cobria em sua própria cabeça.

Contudo, nos momentos mais serenos da noite tal presunção era desfeita, era somente se distrair por alguns minutos que a imagem dos olhos de gato e a lembrança do toque de Loki o assombravam como um fantasma a tentar consertar os feitos em vida. Nesses momentos se desesperava, pelo pecado que não conseguia livrar-se e pela paixão que precisava abandonar.

Pensava que decepcionava a família finada, a ordem religiosa que o educara, as pessoas que o cercavam e até o próprio rei que sequer sabia de sua existência. Sentia-se imundo e vil, enojado de si mesmo e indigno de se considerar um homem de fé enquanto vivia na pele de um sodomita que sempre tentou deixar adormecido em seu interior.

Sim, sempre. Por mais que tentasse enterrar desde o princípio tal natureza diabólica, Friedrich se conhecia. De Digory e seus cachos dourados em sua juventude, Sir Abelard triunfante com seus cavalos a desfilar aos arredores de São Gerônimo, ou a serenidade profunda dos olhos vítreos de padre Phoebus, vez ou outra alguma figura do mesmo sexo havia chamado sua atenção durante os anos. Friedrich simplesmente seguia em frente em seus dogmas, repreendendo-se com reza e trabalho quando seus olhos admiravam-se mais do que o permitido, afastando-se e guardando com sete chaves em seu interior qualquer faísca que brotasse em seu peito, muitas vezes explicando para si que tais emoções disformes eram somente um sinal para conservar-se na castidade. Quiçá tivesse permanecido assim se ainda fosse frade, não permitindo nem que relações platônicas o atingissem no meio da rotina incessante do mosteiro. A monotonia era a chave que havia encontrado para tamanho controle que pensava ter.

Todavia veio a guerra e a doença, seguido dos meses de desespero que o fizeram sair da familiaridade da vida sacra. Então ele apareceu. Os olhos de gato e fios do inferno que o desarmou de todo o controle que tinha em um feitiço poderoso, mas não advindo de bruxaria e ocultismo, e sim da candura e companheirismo que vinha em seu ser, todo o encanto e misticismo que rondava Loki e o convidava a fazer parte daquele mundo vasto e tentador. O druida era algo a mais, uma criatura que fora capaz de destruir todas as barreiras que havia feito ao seu redor e enraizar profundamente sua alma com sentimentos tão sublimes e puros que Friedrich lamentava ter de se ver contra. Loki tornou-se sua luz e benção diária que o fazia enfrentar toda a lástima daquele mundo sem corromper-se, era toda salvação e alento que somente o fazia amá-lo. Seria este o pecado que engana e ludibria para afastá-lo de Deus? Era o que tentava explicar para si quando tentava compreender o que de maldade e perverso havia em tais sentimentos.

Ao passo que se lamentava do amor que se obrigava a suprimir, envergonhava-se do rumo que havia tomado, longe dos preceitos de Deus ou das ideias de São Bento, Agostinho e tantos outros santos e pensadores que seguia. Havia sido fraco com Loki, encantado não somente pela luxúria, mas pelo misticismo e conhecimento distintos que ele oferecia, ignorando seu lado pagão e herege da qual havia feito pouco caso para um cristão devoto. Pouco havia tentado em mostrar a verdade da palavra ao druida, por mais que soubesse que o mesmo jamais lhe daria ouvidos assim como ele não largaria suas crenças pelas dele. Sabia que seria em vão, mas naquele momento de tanta culpa e dúvida Friedrich tentava compreender em que momento havia errado e desviado para longe de Deus. Se o certo seria ter se afastado de Loki desde o princípio, que caminho deveria ter seguido? Simplesmente esperar que fosse condenado mais uma vez por algo que não tinha culpa? No meio de tantas questões que beiravam a filosofia, chegou a pensar que talvez Deus tivesse desejado que ele houvesse aceitado a sentença que a inquisição lhe dera.

Seus sentimentos e ideias tornaram-se pura agonia, martelando sem parar o que o Senhor realmente esperava que fizesse. Seria realmente aquilo? Deveria estar morto desde o princípio? Então de que lhe havia servido a vida, tendo como fim uma morte sem grande sentido? No meio de tais pensamentos chegou à conclusão que não se tratava mais de aceitar ou não Loki, mas de compreender se seu destino deveria ter sido a vida ou a morte.

Não dava tanta atenção para os dias e noites que percorria, pois pensar no encontro com o companheiro somente o desvirtuaria do que deveria refletir. Contudo, quiçá no quarto ou quinto dia, quando o sol ascendeu em todo seu esplendor no meio do dia, deixando a terra tão clara quando areia, Friedrich se viu cercado por muralhas de pedra baixas que acompanhavam a estrada.

A construção era firmada somente pelo encaixe perfeito dos pedregulhos, já escurecidos pelo tempo e tomados por vinhas em suas frestas. Em alguns locais estava incompleto, ou mais baixo que o restante por conta de pedras que faltavam. Seguia o caminho de maneira sinuosa e fragmentada, lutando contra todos os anos que empilhavam em sua estrutura. Friedrich se perguntou a origem de tais ruínas, seriam dos anos da Nortúmbria? Romanos? Saxões? Quiçá um domínio ainda mais ancestral? Poderia estar divagando para muito longe, mas era um descanso para seus pensamentos exaustivos.

Procurou por alguns momentos abrigo nas árvores além da floresta, sentando-se e permitindo descansar por um instante. O cão esticava-se na relva com um olhar curioso e ingênuo, deixando a língua amostra e o tronco respirando freneticamente enquanto recebia o afago do dono em sua cabeça. Friedrich permaneceu inerte enquanto a dormência tomava conta de suas pernas exaustas pela caminhada.

Observou por alguns instantes a natureza serena ao seu redor, ouvindo o coral dos pássaros de distintas espécies escondidos nas árvores e o vento a dançar em seu rosto.  Ao leste notou o que parecia ser ainda mais ruínas que poderiam acompanhar as estruturas na estrada, foi inevitável para Friedrich seguir curioso pelo caminho enquanto divagava suposições em sua mente sobre um povo que não estava mais ali e seus motivos. Em alguns pontos a grama era tomada por chãos de pedra completamente lisos e planos, quebrados aqui e ali e com buracos que se espalhavam em sua estrutura. Paredões de pedra construídos de forma semelhante ao muro estavam posicionados de forma incompleta e solitária pelo lugar, destruídos demais para poder ser visto como obra, mas muito artificiais para pertenceram à natureza. Somente fragmentos de um passado escondido pela floresta e ignorado pelos homens vivos.

Contudo, uma única estrutura se destacava no meio daqueles destroços. Mesmo com as paredes repletas de vãos e a torre destruída pela metade, qualquer um podia adivinhar com facilidade do que se tratava. Em seu interior era possível ainda distinguir o piso elevado do púlpito e a nave vazia sem delimitar os corredores, as grandes janelas em sua lateral ainda tinham cacos remanescentes de vitrais nos parapeitos. Próximo ao altar havia o que pareciam ser esculturas sacras quase intactas, ou apenas parcialmente destroçadas. Por mais antiga e em pedaços que estivesse, ainda era uma pequena igreja, provavelmente poupada de tamanha ruína por conta de seu desígnio, com ninguém desejando ser o herege a depredar tal monumento.

Friedrich fitou as ruínas por um período, como se absorvesse tal imagem que confabulava em sua cabeça. A sensação era que tal estrutura estava viva, o observando e julgando todos os seus atos, ao mesmo tempo em que convidava-o a adentrar o seu interior para que conversassem. Deu passos hesitantes em sua direção, olhando de uma extremidade até a outra do arco que sua entrada possuía. Seus olhos se concentraram em uma das imagens esculpidas na parede do altar, tendo os traços mais finos já apagados pelo tempo, totalmente quebrada abaixo do torso e tomada por um manto de vinhas. Todavia aquela figura de olhar afetuoso e pacífico, com as mãos em prece ainda era discernível em Maria.

Deu um longo suspiro, tentando recompor a mente pesada antes de percorrer com passos firmes dentro da igreja. Seu semblante coexistia entre a súplica e a persistência, olhando para a estátua como tal fosse à imagem da Santa.

Sancta Maria... Sabes que sou um homem devoto á vossa igreja, do quanto sempre respeitei e obedeci aos vossos preceitos, de todos os anos que dediquei somente á servir a Palavra. Foi à missão que escolhi com intenso júbilo seguir, tornou-se minha vida e incumbência da qual carreguei com grande veemência em meu ser. Era tudo o que eu queria e somente o que necessitava, não havia nada mais em meu caminho que me desvirtuasse de tal desígnio. – Proferiu enquanto segurava com intensidade a cruz em seu peito, sentindo o corpo estremecer por uma força enclausurada em seu âmago e no fundo de sua garganta. Os olhos brilhavam em um azul intenso que buscava se comparar com os céus. 

— Por isso suplico-lhe mater Dei, diga-me por que o encontrei? Por que ele dominou meu coração em copioso vigor?  Sua paixão percorre minhas veias, assombra meus pensamentos e arde como fogo em todo meu ser! Criando este desejo que clama pelo pecado, mas que por mais que eu lute contra tal volúpia e afeição, somente é revelado estar além do meu próprio controle! Por qual razão sou castigado com tais sentimentos? Por que não encontro uma solução que não seja o sofrimento? Todo sacrifício que fiz em vida nunca foi o bastante? Por mais que jurei adorar ao Senhor de maneira absoluta, não entendo o porquê de me ser cobrado tanto martírio em meio a uma vida que só me traz desolação...

Sentia os olhos marejarem e a imagem da santa tornar-se turva tal qual seu interior. Jamais havia feito uma ode tão repleta de contestação como aquela, mais do que súplica, eram as dúvidas e lamentos de um homem soterrado em agonia.  Em tal desespero se tornara incapaz de questionar se tais palavras beiravam a heresia ou afronta.

— Se jamais tivesse de tê-lo encontrado, então por que me foi lançada tamanha maldição? Por que fui condenado de forma tão pífia? Que tivesse me deixado no mosteiro, continuando a vida sacra que eu nunca reclamei pertencer. Não me deixado a mercê da morte e acolhido com afeição por quem eu deveria repudiar! – Não ousava erguer a voz para a santidade, mas cerrara os punhos com a revolta que lhe subia. Ficou calado por um momento, refletindo o que dizia, todos os sentimentos enclausurados colocados para fora, antes de olhar em súplica para a estátua que o fitava de volta.

— Que Deus tenha piedade de mim... Que tenha piedade dele. — Sua voz tornara-se embargada, mas persistia firme em expulsar tudo que estivera preso em seu interior até o momento. – Porém não consigo compreender o porquê de me ser negado o único amparo que tive em minha vida quando todo o resto me foi negado.

 


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Notas finais do capítulo

Podem chorar com essa separação, ofereço os lencinhos. Mas podem confiar que tem muita coisa interessante para acontecer aqui.
Comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo! ^-^



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