Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 16
O Pecado e a Penitência


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Para compensar a última atualização aqui está um capítulo saindo na hora e de tamanho bem considerável! Não direi muito para não dar spoiler, apenas que este é um dos capítulos mais importantes e que tenho planejado desde os primórdios de Ode aos Desafortunados. Espero que gostem do resultado, boa leitura!



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A tragédia não foi prevista, dado a calmaria que lhe deu início. Todavia é desta maneira que faz de uma tragédia ser ainda mais aterradora, inesperada como uma raposa a saltar em direção à lebre.

Loki passava a navalha com cuidado pelo rosto, tentando nivelar a barba da forma mais simétrica que conseguia. Há tempos tentava cultivar a barba de ponta afinada que uma parte dos homens costumava usar, porém dificilmente ele pagava o trabalho de um barbeiro e tentava sempre fazer por si mesmo. Havia se aprimorado com as tentativas, mas apesar de seu pulso firme, o reflexo que tinha como referência na correnteza do rio era disforme e ondulado pela água corrente, criando ilusões em sua própria imagem que faziam com que se barbeasse repleto de incertezas. Ao terminar, lavou o rosto e o secou junto ao cabelo ainda úmido, terminando de amarrar as chausses em seu calção e vestindo novamente sua túnica e o manto. Lavar-se por inteiro era um privilégio alcançado somente na partida do inverno, sem mantos e pelegos pesados para impedir a entrada da neve era possível tornar aquele costume quase diário. Apesar do trabalho a mais, era gratificante não sentir a pele comichando constantemente.

Retornou para o lugar em que ele e Friedrich estavam acampados, vendo o companheiro remexer uma fogueira com um graveto. O cabelo loiro estava mais uma vez curto novamente, dado que o alquimista não apreciava deixa-lo comprido depois de tantos anos acostumado a deixa-lo rente. Isso fez com que Loki tivesse o ímpeto de arrumar a própria barba, que começava a perder o formato fino e delineado que almejava conquistar. 

— Como ficou? – Loki indagou com um sorriso irônico no rosto, acariciando o próprio rosto enquanto esperava a resposta de Friedrich que já o olhava com desdém.

— Torto, principalmente o lado esquerdo. – Respondeu com um meio sorriso, fazendo Loki soltar um breve riso pela sinceridade do outro depois de dar uma expressão de falsa mágoa. Friedrich observava-o de uma forma enigmática da qual Loki não soube decifrar, matutando o que podia estar passando em sua mente. Estava planejando algo, disso tinha certeza. – Tenho algo á lhe dar.

Loki ergueu as sobrancelhas, surpreso e curioso com o que o alquimista tinha em mente. Friedrich pegou alguma coisa no bolso que tinha pendurado ao seu cinto, não deixando ser vista enquanto a segurava com os punhos fechados. Dirigiu-se até ficar atrás do druida, amarrando um cordão ao seu pescoço. Loki pegou o pingente que ficou suspenso ao seu peito, constatando que na realidade se tratava de um minúsculo frasco de vidro com água em seu interior. Virando-o de um lado para o outro, constatou que o líquido era viscoso feito mel, sendo uma substância da qual Loki jamais havia visto em toda a sua vida. Lembrava mercúrio de certa forma, mas algo lhe dizia que o que tinha em mãos não era algo que houvesse ainda nome.

— É para protegê-lo do fogo que tanto teme. – Friedrich explicou sentando-se mais próximo de Loki. – Não funciona tão bem quanto eu gostaria, mas é o melhor que tenho para oferecer... Coisa tola de estudioso.

— És melhor feiticeiro do que eu! Jamais pensei que um dia serviria tão bem ao paganismo. – Loki disse com seu típico sorriso de vigarista, fazendo o outro revirar os olhos.

— Não se trata de feitiçaria, usei de meus conhecimentos alquímicos para tal. Contudo, tenho quase certeza que está apenas sendo um bufão.

— Está ficando cada vez mais difícil te importunar. – Loki riu enquanto observava com encanto Friedrich não segurar um sorriso singelo frente aquilo. – Fico muito grato com tal gesto, pena que não possuo nada para oferecer em troca.

— Não precisas se preocupar com isso, pois se não fosse por tu provavelmente eu não estaria mais neste mundo. Isso é o pouco que posso oferecer para compensar tudo o que fizestes por mim, de forma que ainda me sinto em dívida contigo. – Não só suas palavras como os olhos azulados transmitiam grande emoção, olhando para o amigo com um sorriso deveras melancólico. Loki deixou a distância entre eles tornar-se mínima, pegando em suas mãos e olhando fundo em seus olhos, com as íris esverdeadas faiscando. Friedrich sentiu o ar se esvair de seu peito, com todos seus sentimentos pelo outro fluindo pelo seu corpo e alma. Era impossível conter tais emoções, não quando Loki estava tão próximo daquela forma e o olhando com o mesmo ardor que ele próprio fazia. Segurou suas mãos com firmeza, desejando acreditar que ao menos este simples gesto não maculasse o amor que sentia.

— Pois lhe digo que não há dívida alguma. Você se tornou para mim uma das pessoas mais especiais em minha vida, não importa o que foi preciso para estarmos juntos e sim o que nos tornamos aqui e agora. – Aquilo era somente uma fração de tudo o que Loki tinha a dizer sobre seus sentimentos, contudo era a parte da qual sentia ser permitido dizer. Não esperava jamais ir além daquilo, contudo tentava da melhor forma deixar ainda claro parte do carinho que sentia pelo companheiro.

— Creio que somente se estivesse em minha pele saberia com exatidão toda a estima que tenho por ti. – Friedrich disse num esforço para não vacilar nas palavras, sentindo estar com o coração em sua boca e o rosto ardendo em chamas. Loki estando em diversos tons de rubro, vislumbrou das mãos unidas até o rosto acanhado do outro, onde ambos puderam notar pela primeira vez tudo o que tinham a dizer um para o outro, mas que não podiam colocar em palavras.

— Sei, pois amo-te. – Disse pondo todos os seus planos de discrição para os ares. Tais palavras tornaram-se inevitáveis para Loki na presença de Friedrich, antes em mente e agora em versos.

Das loucuras que Loki já havia feito durante a vida –e pelos deuses, elas eram muitas – sabia que a que pretendia fazer ganharia o espaço entre as maiores. Aproximou seu rosto ainda mais dele, o bastante para sentir a respiração quente um do outro e as frontes se encostarem. Semicerrou os olhos, o coração batendo tão alto que chegava ao fundo de seus ouvidos, roçando seus lábios nos de Friedrich que se deixou levar pelo anseio, deixando de ouvir a voz insistente da razão em sua cabeça e permitindo-se mergulhar naquela insanidade.

Uniram-se por um beijo casto, derramado com toda a paixão que tinham enclausurada em suas almas. Apertaram as mãos unidas quando sentiram por completo os lábios um do outro, imersos no calor de suas carnes, os pensamentos tornando-se uma repleta calmaria por mais que estremecessem e sentissem os batimentos irem até a garganta. Não era da forma como ambos haviam sonhado, mas com certeza jamais trocariam por qualquer outra coisa que imaginaram. Pela primeira vez haviam admitido por completo o amor que possuíam.

Afastaram-se devagar, nervosos e não querendo que tal momento terminasse tão brevemente. Loki levou a mão direita até o rosto de Friedrich, acariciando sua face com ternura antes de selar seus lábios mais uma vez. Friedrich sentia-se perdido, desejando tê-lo ainda mais, mas sem saber ao certo o que fazer, tentando se guiar pelos gestos do outro e inebriando-se com aquela sensação nova. Em dado momento Loki entreabriu seus lábios com o intuito de intensificar o ósculo, no exato momento em que os pensamentos de seu companheiro deixaram a tranquilidade para trás e tornaram-se mais estrondosos do que nunca.

Friedrich interrompeu o beijo, se distanciando apenas o bastante para que pudesse olhar nos olhos do druida. Loki notou em sua expressão todo o medo e dúvida que se apossou em sua mente, e como uma praga também sentiu dúvidas e temores semelhantes á ele. Foram do sonho ao pesadelo, céu ao inferno, da qual viram-se em uma situação decisiva da qual não podiam mais reverter.

A tragédia estava feita.

— Desculpe-me, e-eu jamais deveria ter excedido a este ponto e... – Loki dizia entre gaguejos antes de ser interrompido por Friedrich com um desespero enclausurado em sua garganta.

— Não, eu não poderia ter cedido á tentação. Fui preparado minha vida inteira para tal, não deveria, eu jamais... –Ele respirou fundo, tentando controlar-se para que não perdesse a cabeça por completo, não conseguindo olhar para o companheiro nos olhos pela vergonha. Ainda podia sentir o indício da boca de Loki contra a sua, com o coração palpitando enquanto sua mente ainda fervilhava em represálias a si mesmo.  – Oh Deus o que será de nós?

— O que será de nós... – Loki murmurou atônito, temeroso com o fim que tal gesto os levaria. Ninguém mais do que ele sabia o destino daqueles que nadavam contra a maré, sempre caçados feito pragas e exterminados quando necessário. Friedrich era para ele muito mais que um caso da qual nunca mais se encontraria, era algo precioso da qual não podia arriscar perder. Sendo assim, seriam capazes de ignorar o que acontecera? Tinha dúvidas quanto a isso. Não podia ter colocado mais peso naquela bagagem morosa onde cada um carregava suas sinas.

— Estou perdido Loki, isso jamais deveria ter acontecido. Sinto muito, mas preciso de um momento. – Friedrich se levantou, dando as costas para Loki que não reagiu, mesmo que quisesse que o outro permanecesse ao seu lado, também pensava que era melhor refletir sobre aquela situação sozinho. Os dois juntos causaria somente mais histeria entre eles.

Tolo, imbecil, estúpido! Repreendia a si mesmo dentro de sua cabeça, remoendo a lembrança em emoções antagônicas de júbilo e revolta. Culpava-se e odiava ele e o mundo em que vivia. Estavam condenados, sentenciados antes mesmo do fatídico ato, era preciso somente de tal estopim para iniciar a tortura. Acabou, acabou-se tudo! Acabas-te de destruir tudo que lhe importava! Deveria ter permanecido calado, ainda mais quando tudo se encaminhava tão bem!

O quão grande seria sua felicidade se pudesse viver este amor. Passaria séculos revivendo aquele momento, sentindo a textura de sua pele, o gosto de seus lábios e a companhia de toda sua pessoa. Um prazer tomado de seus braços de forma hedionda e lancinante.

Infelizmente, os deuses sempre foram cruéis com ele. Não era somente por Friedrich e suas crenças, era todo o sistema em si que o impedia de apreciar tal paixão. Caso qualquer pessoa descobrisse o segredo, a condenação viria com seus punhos de ferro contra eles, separando-os se não fosse pela vida seria com a morte. Loki não suportaria perder tudo que tinha mais uma vez, se recusava a deixar que tirassem Friedrich de sua vida, mesmo que isso significasse negar o amor que sentia. Se já era duro viver como um homem pagão confesso, não queria descobrir como seria se tivesse um amante consigo, nem por ele ou por Friedrich.

‘’Não, não volte mais. Esta é a última vez que me verá. Se meu pai descobre, arrancará o couro de nós dois. ’’ Foi o que Roger de Richmond havia dito antes de fechar a janela e ouvir-se a tranca em seu interior. Loki não passava de um rapaz que só queria rever aquela paixonite do verão passado, tendo até convencido o pai de leva-lo junto para viajar ao invés de seu irmão Cedrik que era mais velho. Mais do que um coração partido, Loki havia descoberto que deveria temer muito mais do que uma surra. Apesar da vida de andarilho dificultar qualquer tipo de relação duradoura para ele, dos poucos casos que tivera o medo fora a principal arma para separá-lo de qualquer pessoa, afinal o que as famílias diriam? Os vizinhos? E a temida Igreja? Eram motivos o bastante para que pedissem que fosse embora, coisa que Loki passou a não argumentar contra.

Da única vez que fora flagrado teve a sorte de sofrer uma pena branda, – sozinho, pois quem o acompanhava conseguira escapar de última hora – quase lhe causou uma pneumonia ao ficar amarrado ao pelourinho por dois dias chuvosos, agora com a simples lembrança fazendo com que batesse os dentes pelo frio e raiva que tivera. Não queria sofrer as consequências se fosse descuidado mais uma vez, sabia que provavelmente não teria a mesma ‘’sorte’’ como antes. Com o passar dos anos passaria evitar perguntar o crime dos condenados a forca, pois tinha medo de descobrir um igual entre eles, a ideia sempre lhe causava pânico e revirava suas entranhas. Temia pela própria corda em seu pescoço ou jogado ao fogo como aqueles que amava. Loki havia aprendido que não havia lugar para ele ou Friedrich e que tê-lo em seus braços era perigoso demais para os dois.

Por isso agora culpava-se e não admitia ter cometido tamanho erro. Amava Friedrich por toda extensão de seu ser, mas sabia que a vida não era um verso de poema romântico – estes que sempre remetiam a conjugues de homens com mulheres afinal – jamais deveria ter agido de forma tão ingênua. Ao alimentar seu desejo, arrasou tudo aquilo que havia construído na presença do antigo frade.

Deu um longo suspiro, escondendo o rosto em suas mãos, indagando se este seria o dia em que os deuses o veriam chorar mais uma vez.

Friedrich sentia a respiração pesada e por um breve momento sua visão ficara turva de inquietação.  Perambulava pela floresta segurando a cruz em seu pescoço com força, fazendo os nós de seus dedos ficarem pálidos. Não se afastou por muito tempo, sabendo que perambular sem rumo pouco resolveria seus tormentos. Virou seu olhar em direção aos céus, tendo a visão dos galhos dos salgueiros e um vislumbre do crepúsculo cinzento pelas nuvens aguardando chuva. Seu olhar e alma suplicavam por um amparo divino que parecia distante demais para confortá-lo, a realidade é que naquele momento se sentia indigno de receber qualquer sinal da mão divina.

— Oh Pai eu falhei, falhei miseravelmente em minha missão, seja ela um teste de fé ou uma batalha contra o Maligno, não fui forte o bastante. Deveria ter dado as costas para a tentação, mas o pecado bradou mais alto do que minha virtude. – Friedrich praticamente caiu de joelhos, não dando atenção para as pedras e galhos contra suas juntas. Suspirou pesaroso, permanecendo assim antes de prosseguir com sua ode. Agora não era mais o médico, alquimista, andarilho ou mero plebeu. Quem falava era o frade do mosteiro de São Jerônimo em Hampshire, da qual ainda dominava grande parte de sua moral. – O destino dos homens é lapidar as almas nascidas em pecado para que se aproximem ao máximo da santidade de vossa Trindade. Desde que penso abracei este desígnio em minha vida, seguindo-o com tamanho afinco que jamais imaginei tal fim. Tornei-me uma criatura perdida que clama por sua infinita benevolência, contudo não sabe se agora é digno de vosso perdão.

Sentia-se desprezível demais para clamar pela piedade divina, havia desobedecido a Palavra, desonrado suas promessas de fé e ido contra a natureza proposta por Deus. Como poderia pedir por perdão se não sabia como livrar tal paixão que sentia por seu igual? Qual era a resposta para tal tormento que sentia? Quiçá fosse cego demais perante a verdade do Senhor, não sendo digno o bastante para poder enxerga-la como pensasse que fosse.

Ao mesmo tempo em que se remoía por culpa, seu âmago debulhava-se em lamentos. Havia estado tão próximo de Loki, tanto que ainda podia sentir o vestígio de sua boca, contudo a realidade o empurrara para longe dele mais uma vez. Era doloroso não poder usufruir de tal paixão, pois não era a angústia de um amor não correspondido tão famoso nas melodias. O que sentia era mais frustrante e duro de livrar-se, pois ele estava ali ao seu alcance e não tinha o direito de poder desfrutar tal sentimento. Os braços de Loki o acalentavam, mas a pena de sua alma tornava-se mais pesada.

— O que é preciso que eu faça? O que devo fazer para que possa me perdoar e corrigir os meus erros? – Sua voz tornava-se embargada e seus pensamentos cada vez mais obscuros conforme trilhava por seus conflitos. Sua mente percorria por todas as lembranças que tinha com o companheiro amado, indo até sua antiga vida no mosteiro, procurando por alguma resposta de como havia se desviado da santidade de tal forma. Deveria haver um ponto onde o mostraria o que faltou para ser capaz de lutar contra aquela natureza sua.

‘’Deus conduzirá pela reparação de meus pecados, este é somente o preço que pago por minha alma de pecador. ’’ A voz de frei Adrian lhe tomou os pensamentos, aquele que sempre fora visto como um dos mais fanáticos entre os irmãos. Lembrava-se claramente do momento em que ele dissera aquelas palavras, com os olhos encarando a todos com um toque de insanidade, aquela era a resposta que tinha quando questionado sobre suas práticas de penitência. Via suas costas nuas e ensanguentadas, com sulcos profundos na pele dilacerada, o corpo inteiro estremecendo pela dor que lutava para suportar, o sangue vertendo pelas frestas do chão de pedra, com manchas respingadas pelo cabelo claro e por seus braços. Adrian rezava em silêncio, ajoelhado ao chão e deixando seu sangue cair como pingos de chuva. Ele não lutava contra a dor, a aceitava, deixando impregnar cada pedaço de sua pele e purificar o sangue que vertia de suas veias.  

Havia sido um noviço cerca de quatro anos antes de Friedrich chegar ao mosteiro, mas havia ouvido de Bernard Cordeiro Manso e dos outros que desde essa época Adrian possuía tal costume, que só foi se intensificando com o passar do tempo. Havia boatos de que ele começara a se castigar ainda mais ao se apaixonar por uma fiel em Londres, enquanto Aedan zombava dizendo que era uma súplica para que parasse de ser tão detestável – sempre acabavam repreendendo-o por dizer tais maldades, por mais intragável que fosse a personalidade de Adrian o Ranzinza.  Se tal penitência o ajudava na culpa não se tinha total certeza, dado que o mesmo era muito fechado para si. Diziam que um dia ele acabaria matando-se, e algumas vezes Friedrich já se questionara se já não o havia feito.

Friedrich nunca havia sido tão radical em suas preces, na realidade sequer já havia imaginado ou cogitado a flagelar a própria carne. Suas ideias de penitência eram mais brandas, preferia jejuar e ler a Palavra, no máximo isolar-se em sua cela para rezar por alguns dias. Contudo, nunca havia tido motivo grave o bastante para que chegasse ao mesmo ponto que o irmão Adrian. Em tal momento de desespero, começou a pensar se talvez não fosse a única forme de redimir-se.

Pegou a faca que tinha atada ao seu cinto, uma lâmina pequena não muito maior que sua palma, apenas um instrumento pratico do dia a dia.  Observou o metal com cuidado, quase que hipnotizado pelo brilho da arma, seus pensamentos perturbados o levando para a passagem de Abraão oferecendo a vida do próprio filho á Deus. Por mais que o final de tal história não se tornasse trágico a tal ponto, era uma das passagens no Velho Testamento que mais lhe abismava. Agora sentia que também precisava provar sua fé e demonstrar sua obediência para Deus.

— Ofereço-lhe Senhor o sangue de minha carne para mostrar o arrependimento de meus atos pecaminosos. Imploro-te para que ajude a livrar-me de tais paixões infames presas a minha alma, purifique-me ó Pai para que assim eu possa encontrar paz em meio a essa dor que me consome. – Sua mão direita estremecia enquanto realizava o sinal da cruz, tinha medo, contudo sua fé o fazia crer que necessitava de ajuda divina e que precisava ser digno de tal. – Deus meus, ex toto corde paenitet me omnium meorum peccatoru, eaque detesto, quia peccando, non solum poenas a te iuste statutas promeritus sum, sed praesertim quia offendi te,summum bonum, ac dignum qui super omnia diligaris.

Ideo firmiter propono, adiuvante gratia tua, de cetero me non peccatorum peccandique occasiones proximas fugiturum.

In nomine Patris et Fílli et Spiritus Sancto. Amen.

Engoliu o pavor que sentia, olhando determinado para a faca virada agora em sua direção, mirando em seu abdômen onde esperava que não fosse um corte fatal. Tomou distância com suas mãos, preparado para lançar o golpe, contudo fora impedido de realizar o ato quando a ponta da faca apenas encostou-se a sua túnica.

— O que estás a fazer?! – Loki questionou apavorado, com as esmeraldas tomando quase todo seu rosto por conta do espanto. Sua voz denotava inquietação e uma pontada de indignação, segurando o pulso de Friedrich com demasiada força, tendo agido por impulso quando o vira quase lançar um golpe contra si mesmo. Não esperava encontra-lo tão cedo, mas as árvores falavam línguas estranhas o deixando preocupado, sentindo que deveria procurar pelo companheiro na floresta.

E ali estavam agora. A lâmina, o mundo e as emoções entre eles.

Friedrich permaneceu atônito, duvidando se aquilo não passava de alguma alucinação com o companheiro aparecendo feito um fantasma para acudi-lo. Relaxou o braço em que segurava a faca, abaixando-o e largando aos poucos o punhal, mal sentindo quando Loki tirou a lâmina de sua mão e a jogou longe para se perder na vegetação. Parecia estar em alguma espécie de transe, como uma entidade que se apossara do seu corpo tivesse acabado de ir embora, deixando-o confuso e questionando-se o que havia acontecido. Sabia o que pretendia fazer e seus motivos, mas ao olhar para Loki a sua frente uma voz em seu interior começava a também se questionar:

O que estou fazendo?

— Eu o amo de uma forma que não deveria Loki. – Seus olhos levantaram-se do chão para o rosto do druida que tornou sua feição tão melancólica quanto à de Friedrich, sentindo as palavras perfurar seu peito e se alojarem ali mesmo. Loki havia sonhado ouvir tal confissão do antigo frade, mas não daquele jeito coberto de tristeza e infortúnio. – Por isso preciso encontrar uma forma para que Deus possa me perdoar, esta seria minha última solução.

— Não, não é uma solução. – Loki trocou o olhar de pavor que tinha para uma expressão afetuosa, apesar dos olhos cobertos de tristeza. Pousou as mãos em seus ombros, sentindo Friedrich encolher-se e o fitando com muitos sentimentos conflitantes em seu interior. – E apesar de não dividir as mesmas crenças, posso afirmar que há outras formas de resolvermos isso. Não haja como louco, se acabasse se matando poderia me levar junto á cova pelo espanto! Considere um pouco o que eu sinto por ti e o que sente por mim e não cometa mais tais sacrilégios com si mesmo. Pense e jure para mim que não derramará uma gota de seu sangue.

Friedrich não sabia o que eram suas emoções em tal momento. Raiva por ter chegado a tal ponto, vergonha ou agonia. Contudo mesmo em uma situação daquelas, Loki era capaz de acalentá-lo e lhe mostrar um pouco de razão no meio da insanidade. As lágrimas rolaram em sua face em silêncio, enquanto abraçava o homem a sua frente que o recebeu em seus braços no mesmo instante, ambos procurando um alento para tudo aquilo.

— Juro. – Friedrich disse quase que em um murmúrio, tentando conter o nó que se formou em sua garganta. Jurar era pecado, pois se imaginava que poucos eram capazes de segurar tal sentença, mas Friedrich estava certo que não quebraria a palavra. Apoiava o rosto contra os cabelos ruivos, por mais que soubesse que a busca por tal afeto era o cerne de toda aquela questão, afinal, estava cansado de tudo. – Mas estou desesperado meu caro Loki, o que faremos então? Não há como continuarmos de tal maneira.

Loki permaneceu em silêncio, apertando ainda mais o companheiro contra si como se pudesse protegê-los do mundo de tal forma. Ele não sabia a resposta, este era o problema.

— Daremos um jeito. – Disse mordendo os lábios ao sentir um soluço enclausurado em seu pescoço, não querendo ainda dar a graça aos deuses de beberem suas lágrimas. Haviam tirado muito dele, ao menos tentaria não deliciá-los mais ainda com seu sofrimento. – Se fosse por minha vontade, não o largaria jamais. Todavia, não é isso o que prevalece, se formos pegos com certeza seríamos presos, quiçá ainda pior.

— Torturados. – Friedrich completou de forma apática. Nenhum dos dois ainda se desvencilhara do abraço, pois naquele momento de tensão almejavam ao menos pelo desvelo um do outro.

— Açoitados. – Loki retrucou de volta.

— Enforcados.

— Decapitados.

— Desmembrados.

— Empalados.

— Crucificados.

— Queimados.

— Afogados.

— Esviscerados.

Pararam, pois aquelas eram apenas as sentenças que eles conheciam. Foi inevitável estremecerem de agonia depois de se rodearem com tais ideias, apertando ainda mais um ao outro em um ato necessitado de proteção. O lugar que era reservado a eles era sombrio demais para pensar sobre.

A vontade era de permanecerem unidos daquela forma, todavia o tempo corria e ambos precisavam seguir com suas obrigações. Ainda que não houvesse solução para o que buscavam naquele momento, possuíam a necessidade de organizarem a bagagem para que partissem na manhã seguinte. O cão não compreendia o desânimo na feição de seus donos, mas não fez objeção alguma quando lhe foi oferecido uma quantidade a mais de sobras do jantar, dado que o apetite deles havia esvaecido. Ficavam em lados opostos, trocando poucas palavras e usando somente as necessárias, evitando fitar um ao outro. Quando os olhares se cruzavam, havia uma troca de informações silenciosa que denotava a dor e a dúvida que pairava em suas cabeças.

Terem de decidir para onde iriam também era uma questão a se levar em conta, algo que Loki imaginou que não teria espaço em sua mente conturbada para poder refletir, contudo, foi ali mesmo que pode pensar em uma alternativa.

— Há muitos caminhos para York, eu conheço alguns. – Loki declarou em certo momento, de frente para a fogueira. A noite já havia trazido as estrelas ao céu novamente. Friedrich que até então não parava de rezar em seus pensamentos, levou toda a sua atenção para o companheiro a poucos passos de distância, atento para o que ele tinha a dizer. – Eu esperava que nós percorrêssemos o caminho mais curto, direto da estrada real. Mas há uma estrada alternativa, da qual fiz o uso anos atrás, quando não gostava de estar à vista de nenhuma autoridade.

Friedrich podia prever o que Loki estaria propondo, mas permaneceu em silêncio esperando por suas palavras. Havia muito que se discutir sobre ainda, mas provavelmente era a melhor saída que teriam por enquanto.

— Teríamos ainda uma porção de dias de caminhada, cerca de uma á duas semanas se pegássemos a do rei, mas há uma diferença de aproximadamente dois dias entre elas. – Loki parou seu discurso, sem tirar os olhos do chão, refletindo sobre quais palavras escolher. – Permanecermos juntos não ajudará a resolvermos tal impasse, contudo se nos separarmos e levarmos nossos pensamentos para longe um do outro, creio que a decisão futura poderá assim ser feita com maior sabedoria e cautela.

Virou seus olhos para encontrar o azul oceânico de Friedrich, portando um semblante enigmático da qual não conseguia desvendar naquele momento. A realidade é que o antigo frade refletia tal questão em seu interior, ouvindo sua consciência religiosa rogar-lhe para que se separasse do druida de vez, sem nunca mais voltar a lhe olhar para não cair novamente em tentação. Por mais doloroso que tal despedida fosse, era a última saída que havia lhe sobrado. Contudo, Loki realmente estava certo de certa forma, havia muito a ser considerado antes de uma decisão definitiva, dado que até o momento possuíam uma vida conjunta.

— Como então se dará a partida? – Simplesmente indagou, deixando nas entrelinhas seu acordo. Loki se remexeu em seu lugar, limpando a garganta antes de prosseguir.

— Prosseguirei pelo caminho mais conturbado e longo, enquanto tu seguirás pelo trajeto real. Mesmo que não saiba o caminho, será difícil de perder-se, pois a estrada é bem delimitada. Podemos nos rever em um ponto central da cidade, fácil de ser encontrado, quiçá aos arredores da Catedral. A Única coisa que me preocupa, é de acontecer algo durante sua caminhada. – Loki lhe encarou com um semblante de preocupação e esmero, não sendo preciso que Friedrich perguntasse o que ele queria dizer. ‘’Oh, aquilo’’ foi o que pensou, cabisbaixo e com uma gota de revolta ao lembrar-se da doença que o afligia como uma eterna pedra em sua bota. Há tempos não se via obsessivamente preocupado com a moléstia que o atingia, pois Loki havia o acolhido de forma que ninguém o fizera e lhe retornou a confiança que havia perdido. Contudo, estando longe do amigo não lhe sobrava mais ninguém para compreender a ampará-lo, tendo o risco de se ver novamente nos infortúnios que lhe acometeram no mosteiro.

— Sobrevivi até o presente momento e por bastante tempo em sua presença sem que soubesse de algo. Aprendi a passar despercebido, mesmo com algo fora de meu controle. – Friedrich disse com confiança nas palavras, mas sem possuí-la em seu interior. Todavia por mais que tivesse receio em afastar-se de Loki, realmente acreditava que não havia alternativa.

Loki levantou-se do lugar onde estava e sentou-se ao lado de Friedrich que o observou somente com o canto dos olhos, receoso de se ver caindo no feitiço que o outro parecia soltar em sua direção e fazer o desejo percorrer suas veias. O druida tocou em seu ombro, segurando-o com delicadeza e fazendo com que Friedrich não resistisse por fim olhar em retorno.

— Por mais que não podemos permanecer juntos, jamais aceitaria perde-lo. Apenas irei se tiver a certeza que o encontrarei em York a salvo. – Disse-lhe o druida o olhando com aqueles olhos de bruxo em sua direção, o verde brilhando feito esmeralda.

— Encontrar-me-á. Mas trate de não se meter em encrenca, pois também estimo sua integridade. – Friedrich retorquiu quase que ralhando-o fazendo Loki conseguir esboçar um curto sorriso. Não era fácil para Friedrich ouvir a voz do frade em seu interior dizendo para dar as costas e nunca mais voltar, pois sequer conseguia ver-se naqueles poucos dias sem o outro. E após aquilo? Caso decidissem separar-se de vez, Friedrich tinha certeza que estaria despedaçado para sempre, este seria o sacrifício que faria para provar sua devoção.

Organizaram acampamento e se colocaram para descanso, visto que planejavam despertar no primeiro raiar do dia seguinte. Posicionaram-se da mesma forma que sempre haviam feito, próximos, mas de costas um para o outro. Contudo os olhos não pregavam, pois a presença um do outro parecia estar ainda mais aparente do que um dia fora, não conseguindo parar de pensarem na paixão que sentiam. Por mais que fosse o percursor de todo aquele impasse, o beijo que trocaram passava por suas cabeças repetidamente, deixando um sentimento de saudade mesmo em um momento que a pouco havia se sucedido. Amavam-se, sabiam da recíproca, contudo nada podiam fazer quanto a tal sentimento enclausurado em suas almas.

Friedrich permanecia em conflito consigo mesmo, mas naquele momento levou em consideração a possibilidade de jamais ter novamente a chance de se ver junto a Loki. Que Deus pudesse lhe perdoar de todo pecado que cometera em um só dia, mas tudo o que pedia naquele momento era que considerasse somente um momento junto ao druida. Virou-se para o parceiro ao seu lado, que ao notar a movimentação o olhou por cima do ombro primeiramente, antes de também acompanha-lo e o estudando com as esmeraldas a cintilarem na penumbra.

Olharam-se daquela mesma forma apaixonada que comumente tinham na presença um do outro, declarando o amor que possuíam sem ser preciso dizer uma única palavra. Friedrich aproximou-se um pouco mais de Loki que lhe estendeu os braços e o puxou para si, ficando os dois abraçados um ao outro num aperto impetuoso. O coração acelerava-se mesmo com eles estando em repouso, sentindo o sangue subir pela face enquanto um enorme júbilo preenchia seus âmagos. Friedrich contemplava com curiosidade os desenhos formados pelo manto do companheiro e o formato que faziam sob as curvas de seu corpo, enquanto Loki acariciava os fios macios da cor do trigo com grande esmero. Continuaram em silêncio, somente apreciando o calor de seus corpos, sentido um ao outro e acalentando-se com ternura. O desejo era de jamais desfazerem-se daquele abraço, permanecendo pela eternidade nos braços um do outro.

Dessa forma passaram toda a noite, permitindo nem que só por um breve momento o amor que sentiam comandar os seus atos.


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Notas finais do capítulo

A oração dita por Friedrich é o Ato de Contrição.
Eu por acaso ouvi um aleluia de todo mundo? Finalmente as coisas avançaram, apesar de toda a treta envolvida. Será que os dois tomaram a decisão certa? Digam nos comentários o que acharam. Eu morri, fui cremada e jogada aos ventos ao escrever esse capítulo, quero saber como vocês estão depois disso.
Até o próximo capítulo pessoal! Tentarei trazê-lo o mais rápido possível ^-^