Alma Rubra escrita por Nittaventure


Capítulo 4
Capítulo 03




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/749503/chapter/4

Uma suave sinfonia de pássaros entrava pelas amplas janelas da sala, com as mãos cheias de espuma Kate ajeitava uma mecha de seu cabelo que teimava em cair nos seus olhos. Marybeth cantava algo doce enquanto descia a escada segurando uma trouxa de lençol branco salpicados de vermelhos, mesmo que a canção fosse alegre, seus olhos estavam marejados e tristes. Quando as duas sentaram para almoçar, Kate tentava não pensar na noite anterior.

— Aonde os senhores desta casa vão durante o dia? — Uma pergunta simples, inocente, porém, não era tão fácil de ser respondida. Ela não sabia, mas estava começando a se afundar no mundo sombrio que os humanos temem. Marybeth apertou o garfo em sua mão e ficou pensativa por alguns segundos.

— Eles não saíram, estão em seus quartos, por isso, você não tem autorização para subir o andar de cima... entendeu?

Kate balançou a cabeça e deu a conversa por encerrada. Tempo depois, ao anoitecer, ela ficou sentada no jardim admirando a cidade.  O casarão ficava em um ponto tão alto da cidade que podiam contemplar todas as luzes das casas como se fossem milhões de estrelas sobre o chão. O ar ficou frio, e nuvens pensadas cobriram o céu, acabando com a magia das estrelas, assim Kate não teve outra opção, voltou para dentro da casa e começou a fechar as cortinas; seus sentidos estavam sempre alerta, os pelos da sua nuca formigaram, uma sensação estranha. Rapidamente se virou, encarando olhos negros emoldurados por um sorriso gentil.  Olivia inclinou a cabeça analisando Kate. Era estranho aquele olhar lhe lembrar de lobos famintos. Kate não estava com medo, ela sentia que existia algo no modo como Olivia a encarava que fazia seus sentidos gritarem por perigo.

— Desculpa, eu só estava fechando as janelas.

— Não necessita ficar com medo, criança, não vou lhe fazer mal.

Kate baixou o trinco e saiu devagar, mas, antes de chegar à cozinha, olhou para traz e viu Olivia nos braços de Baltazar, recebendo um apaixonado beijo. Ela foi para seu quarto, onde, debruçada na janela, dava para ouvir uma suave sinfonia vindo dos bares e clubes da cidade. Depois Kate deitou na cama e adormeceu, tendo apenas sonhos abstratos, por essa noite, os pesadelos a deixaram em paz. Pela manhã, quando abriu os olhos, lembrava de alguma coisa, de ter visto uma floresta, lembrou de ter mergulhado no mar, de sentir algo tocar seus lábios.

Mas um dia e Kate fez seus serviços com louvor, durante a tarde aproveitou para caminhar, sentia falta dos barulhos de carros e bondes sobre os trilhos; pelas ruas, os meninos gritavam vendendo jornal. Sentou no banco da praça, segurando um saco de doces, que dividiu com um mendigo. Com suas calças marrons, que conseguiu jogando cartas, o seu blusão doado pela igreja, nossa jovem menina se sentia feliz pelo pouco que tinha e não se importava com a aparência, vivendo na rua era fácil se esquecer da vaidade; por isso que Kate não sentia a necessidade de ter roupas novas ou usar perfumes importados, ela só queria ter algo gostoso para comer; naquele momento, ela se sentia feliz por isso.

           Quando a lua começou a brilhar no céu, nossa jovem menina voltou para o casarão, agora ela tinha um lugar quente para passar as noites. Devagar, ela fechou a porta da cozinha já estava a caminho do seu quarto quando ouviu risada vindo da sala. Devagar, ela foi dar uma olhada. O ambiente estava repleto de rostos que Kate não conhecia; entre eles estava Olivia sentada no braço do sofá, e a moça de cabelos amarelos conversando sorridente comum homem de ombros largos e cabelos negros penteados para trás. Ela não tinha noção do que iria acontecer, de como um simples sentimento mudaria sua vida. Quando o homem se virou, e a nossa grande garota viu seu rosto, sentiu seu coração pular, dando solavancos em seu peito e sua boca ficou seca. Todo um embaralhado de emoções tomou conta de seu ser, era o mesmo homem do quadro, seus olhos eram tão negros quanto no quadro e transmitiam a mesma sensação: de um mar profundo e gelado. Kate queria poder mergulhar nele.

 Ficou ali perdida em seus pensamentos nem percebendo os outros olhares em sua direção, até ele a estava analisando com uma careta de nojo. Kate olhou para suas roupas e para outras pessoas todas tão bem vestidas que sentiu vergonha e saiu correndo, entrou em seu quarto e afundou o rosto no travesseiro. Ela mal sabia que ele teria uma parte fundamental em sua vida, que iria lhe ensinar muito, que ajudaria a concretizar sua alma rubra.

Depois daquele dia, Kate não teve mais paz, todas os dias não via a hora do sol se pôr e ficava no corredor a espionar, desejando vê-lo novamente, às vezes era surpreendida por Olivia, outras por Jackeline, que insistia em ser rude e implicar com ela, deixando Kate assustada, mas ele não aparecia, deixando-a frustrada.

Certa manhã, Kate arrumava a sala quando ouviu um barulho vindo do escritório, ela entrou devagar no recinto, viu a figura de um homem de pele pálida, trajando um sobretudo preto de couro gasto, fumando lentamente um cigarro sem filtro, a fumaça sai devagar pelo seu nariz e outras vezes pela boca, era como se ele tivesse degustando o sabor do cigarro. Não foi preciso ninguém os apresentar, Kate já o tinha conhecido de outras épocas em sua infância: como já relatei, Kate conseguia ver a morte, mas não em uma forma cadavérica, vestido preto e segurando uma foice, dependendo da alma que ela vinha buscar ela tinha uma forma diferente. Ele passou por Kate, com olhos brancos que refletiam o tom de sua pele, subiu a escada e, já no topo, olhou para traz como se tivesse convidando Kate a segui-lo. Kate olhou para sala a procura de Marybeth que tinha saído, se fosse rápida, ela nem saberia que esteve lá em cima. Ela não estava com medo, apenas um leve receio de estar afrontando as instruções que recebera de não subir a escada, mesmo assim, Kate subiu e seguiu a Morte até o corredor escuro. Já no corredor, a Morte, com a aparência daquele homem, entrou em um quarto, deixando a porta aberta.

 Kate entrou no quarto, as janelas estavam cobertas por umas pesadas cortinas que deixavam apenas entrar pequenas frestas de luz, e viu a Morte parada ao lado da cama. Dona Morte deu uma longa tragada e ficou olhando o lençol branco subindo e descendo devagar, estava torto, com uma ponta encostando no piso de madeira. Kate puxou o resto do lençol que cobria o corpo de uma jovem.

Vinte poucos anos, sonhava em se casar, ter filhos, uma família, mas aquele homem tão belo lhe fez um convite ao pé do ouvido e depois, bem, depois ela não sabia, só tinha medo, queria poder ver sua mãe, dizer que amava, só que não teria tempo, a morte a aguardava e cada respiração parecia mais complicada, mais dolorosa, era inútil lutar. Kate encostou sua mão no canto dos olhos da garota para secar suas lágrimas: quase não conseguiu tirar os olhos do corpo nu, sujo de sangue. Com a ponta do dedo, contornou a ferida que marcava o pulso da jovem. Uma bela moça, branca, com olhos pequenos que combinavam com a boca. Seus lábios tremeram, o ar entrou e saiu pela última vez. A Morte jogou o cigarro no chão e pisou em cima, foi até a cama, passou a mão pelo pulso da jovem, levantando-a, que se debateu, lutando para não ir. Kate ficou ali parada, olhando a cena até eles desaparecerem antes de chegar aporta, depois voltou seu olhar para o rosto da garota que nem sabia o nome, os olhos dela estavam fixos no teto; Kate teve pena da jovem e, como um último ato, ela fechou os olhos da jovem e deixou o quarto, saiu lentamente, sem pressa, ela não estava em choque, só não conseguia entender algumas coisas e mal sabia que estava mergulhando no mundo sombrio.

Kate voltou para sala, para seus afazeres; já chegando ao fim da escada, encontrou Marybeth, ambas não disseram nem uma palavra, e Kate voltou a esfregar as manchas do tapete.

Seus grandes olhos castanhos analisavam Kate, Marybeth jamais gostou do seu trabalho, mas com uma marido doente e quatros filhos pequenos não podia recusar um lugar que pagava bem a uma negra, mas seu coração se apertava a todo momento que olhava para Kate; já tinha se afeiçoado a ela e tinha medo que algo ruim acontecesse aquela menina, pois lembrava da última pobre garota que apareceu procurando emprego, quando percebeu o tipo de pessoa que morava naquela casa, já era tarde, bem que tentou fugir, no entanto, seu fim foi um corpo encontrado no rio.

—Menina, as pessoas desta casa são maléficas, você deveria ir embora antes que escureça! — Kate parou com o garfo a centímetros da boca, indecisa se deveria responder. Devagar, ela repousou novamente o talher no prato e encarou Marybeth por alguns segundos, em sua mente tantas perguntas. Por que aquela moça estava lá em cima? Quem tinha feito aquilo com ela? Por que tudo ali parecia estranho? Quando as palavras se formaram em sua boca não perguntou nada do que queria.

—Já convive com muitos maléficos na rua, pelo menos aqui tenho um teto.

—Mas são demônios, que levam a alma das pessoas!

—De mim não tem nada para ser levado, já fizeram isto quando destruíram minha família.

Uma sombra negra cobriu seu rosto, por alguns segundos a menina, que antes parecia inocente e frágil, agora, mostrava o resultado de ter convivido com a guerra.

Ambas terminaram de comer e voltaram para seus deveres, enquanto os lençóis brancos eram queimados, Kate passou a lavar as taças de cristal; ela admirou a fragilidade do objeto em sua mão, que não era diferente da vida humana, bela e frágil, que a qualquer momento poderia se partir sem conserto e, no final, serão apenas cacos.

Seus olhos focalizaram a luz fraca entrando pela janela, sua boca tinha um gosto amargo; ela enrolou o cabelo, deu uma olhada em seu rosto, estava com uma pouco de sujeira, não deveria ter dormido perto da lareira. Sacudiu as cinzas, preparou um café e esperou Marybeth para começar os seus afazeres.

Já não havia mais problemas nem regras, agora Kate tinha total liberdade para subir a escada e limpar os quartos. Ela abriu as amplas janelas dos quartos, espanou a poeira, esfregou o chão e ficou admirando os caixões, que ficavam escondido em um canto no escuro. Para Marybeth era um alívio que Kate cuida-se dos quartos. Nossa jovem menina não se importava de ficar naquele ambiente agourento, sentindo o cheiro da morte.

Como um hábito, todos os dias Kate acompanhava Marybeth até o centro da cidade. As luzes pequeninas brilhavam nas sacadas, pessoas se juntavam na praça para cantar canções natalinas, as ruas estavam sempre cheirando a doces. Kate comprou uma pequena árvore e colocou junto de sua cama, ela ajeitou os enfeites, ficou olhando os pequeninos anjos balançando e a estrela torta, seria a primeira vez que passaria o Natal dentro de uma casa, antes, na rua, ela apenas via pelas janelas as pessoas cantando rindo e comendo. Os Kissinger quase não saíam de casa, passavam quase toda a noite na sala, Olivia sempre pedia para Kate servir vinho e champanhe.

—Hoje está tão tedioso! Podíamos ir à ópera.

—Não! Todos os lugares estão cantando essas músicas natalinas que me deixam louca.

—Jackeline, tudo lhe deixa louca.

—Acho ópera uma ótima escolha, assim me poupa deste cheiro de porco que está nesta casa. — Afonso franziu o nariz enquanto pegava a taça da bandeja que Kate segurava, seu olhar de desdém deixou a jovem sem jeito, que mal conseguiu levantar o olhar, neste momento, Jackeline passou os braços pelo pescoço de Afonso, encostou seus lábios no rosto dele e sorriu daquela forma cruel que deixava Kate inquieta.

—Olivia não anda cuidando direito da nossa porquinha de estimação.

Os risos de todos que estavam na sala lembravam notas musicais. Kate olhou para suas roupas encardidas, tanto tempo vivendo na rua tinha lhe feito esquecer de algumas higienes. Seus olhos se perderam no mar profundo e frio que era o olhar de Afonso, o riso debochado que saía dos lábios dele fez as lágrimas querer brotar. Kate levantou a cabeça, colocou a bandeja sobre uma mesa e, devagar, se retirou da sala. Antes de entrar no quarto, viu seu reflexo no espelho: seus cabelos estavam enrolados com muitos fios soltos, uma camada grossa de sujeira manchava sua pele, unhas roídas e sujas por causa do carvão da lareira, sua imagem era algo de pena. Suspirou com desânimo, jamais seria tão bela como Olivia ou Jackeline. Kate deitou em seu travesseiro, sentindo algumas lágrimas escorrerem devagar, limpando a sujeira que cobria sua pele pálida.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Alma Rubra" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.