Alma Rubra escrita por Nittaventure


Capítulo 3
Capítulo 02


Notas iniciais do capítulo

Estou muito feliz por essa obra estar virando realidade
obrigado a todos que estão lendo..



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O sol se escondia no horizonte, ao longe várias luzes brilhavam como estrelas: A costa americana. Faltava pouco tempo para aportarem. O capitão pediu para Kate ficar em sua cabine. A menina usava roupas improvisadas: Uma calça amarada na cintura, um par de botas extremamente grandes camisetas e um casaco com os emblemas do exército tudo costurado a mão por John.

Imagine um bando de irmãos, maridos, pais, filhos e amigos, todo reunido em um só lugar. Naquele navio tinha tudo aquilo, e nos corações de seus familiares somente um sentimento: Uma preocupação em saber que a pessoa esperada voltaria vivo. Claro que alguns voltaram, mas não estavam inteiros, faltavam membros em seus corpos, traziam cicatrizes na alma, por ter visto pessoas morrendo. Pela pequena janela, Kate observava as pessoas se abraçando, pais pegando seus filhos no colo, muitas demonstrações de carinhos. Vendo aquilo o Capitão na via a hora de reencontrar seus filhos e sua esposa, no entanto tinha que resolver primeiro o caso de Kate.

Uma mulher magrela de olhar cinza, um homem bigodudo e sorriso amarelo, eram as pessoas designadas para cuidar da criança estrangeira. Ele iria encaminhar Kate para um orfanato até poder manda-la de volta para Alemanha.  John informou isto para ela, e um desespero tomou conta da garota, uma cascata de lágrimas escorria pelo seu rosto magro; ela não queria voltar, não queria ver aviões jogarem bombas nas cidades, não queria ver pessoas terem os membros arrancados e sangrarem até a morte, muito menos reviver todas aquelas lembranças que assombrava seus sonhos. A mulher se colocou de joelho para olhar aquela menina de perto, só não esperava levar um soco direto no nariz. Caiu para traz, enquanto a menina fugia, se misturando aquela multidão.

Por cima do ombro, ela escutava a voz grossa de John chamando seu nome; ao olhar para traz, ela o viu de relance, e gravou em sua memória aquele olhar de anjo, que somente aquele homem tinha; apenas sobraria lembranças dele, para Kate nunca mais os caminhos deles se cruzariam.

Uma cidade nova, enfeitada com mil luzes de natal, pelas ruas podia sentir o cheiro de doces e pães, pessoas de olhar estranho, uma linguagem que parecia vir de outro mundo. Mundo completamente novo para uma menina de doze anos.

Quando a barriga roncou de fome, descobriu outras crianças que viviam à margem da sociedade. Um menino viu Kate se aproximando, quando roubava maçãs. Ele parecia doente, tossia constantemente. Ele chamou outro garoto de aparência mais velha, o líder. Ela estudou tudo que eles faziam e teve a sorte de iniciante, deixando todos empolgados com seu roubo. Sem perguntas eles a levaram para seu esconderijo: um sobrado velho, que ficava em um beco, suas paredes eram machada pelas infiltrações, cores antes amarelas agora eram sujas e gastas. Ela conheceu outras crianças, todas de pele suja e abandonadas.

Félix, o líder, o mais velho do bando, havia um menino de olhos verdes chamado Segui e um menina chamada Denise, ambos viviam se beijando e Kate achava isso estranho, para ela era como uma brincadeira desconhecida. Não demorou muito e nossa pequena heroína logo tinha se tornado uma pequena ladra, quando se precisa comer e o único modo para isso era roubar fica fácil se acostumar.  A única coisa que a incomodava e deixava muito irritada era não poder se comunicar, saber suas histórias de vida, quando eles riam ela ria, mas sem saber o motivo.

Certo dia, milhares de pessoas desembarcaram no porto e ela ouviu a palavra estrangeiro e alemães, com seus pés descalço, ela foi procurar na multidão um rosto conhecido, mas encontrou homens muitos magros de olhar triste, ela tinha esperança de encontrar no meio daqueles homens o seu pai, a incerteza se algum dia iria encontrar era algo desanimador. Ao olhar para traz, viu aquele menino que todos chamavam de carneirinho esperando debaixo de uma árvore. Com o natal cada vez mais perto, as ruas ficavam cheio de pessoas com isso tornavam os roubos fáceis.

Dias cinzentos sempre anunciam uma tragédia, principalmente quando o céu estava pintado de violeta com rajadas vermelhas. Acredito que já mencionei que a nossa protagonista podia ver a morte, mas não usando aquele roupão negro com capuz e nem na forma de caveira que todos dizem que ela tem, aos olhos de Kate a morte era uma senhora de meia idade, corpulenta, usando um vestido negro comprido, com cabelos castanhos claros. Elas nunca trocaram nem uma palavra, mas já se conheciam há muito tempo. Desde que acordou no esconderijo do bando, viu aquela senhora caminhando de um lado para outro.  Reparou que neste dia carneirinho não saiu da cama, sua tosse agora vinha acompanhada por uma gosma vermelha.

Seria apenas um dia para conseguir comida.

Todas aquelas crianças abandonadas pela sociedade vagavam pelas ruas batendo carteira, roubando a banca do pequeno mercado; no fim da tarde, todos se encontravam em um velho galpão para mostrar suas conquistas. Félix dividia tudo em parte iguais, mesmo com aqueles que não conseguiam nada. Naquela tarde, ele não apareceu, somente Denise estava esperando as outras crianças, tinha olhos vermelhos de choro. Todos seguiram para o sobrado onde carneirinho estava deitado no chão, sua pele mais branca que o normal.

A senhora corpulenta se aproximou de carneirinho e, com muito cuidado, carregou sua alma embora. Ninguém sabia o que fazer com o corpo. Denise chamou um médico, que chamou a polícia, logo todos seriam levados para um orfanato.  Kate aproveitou quando todos examinavam o sobrado para fugir e novamente não houve tempo para despedida.

Os anos foram passando, em seu caminho ela foi encontrando amigos, pessoas dispostas a ajudar, como o tocador de violão que dividia com ela seu sanduíche, todas as vezes que conseguiu alguma esmola. Só que a vida não é só de anjos também tem o demônio perverso que chega a ser cruel. Ela tentou entrar para outro bando de meninos de rua, mas este não foi agradável. No bando, a maioria já eram homens feitos. Em uma noite, que ela havia acabado de voltar da rua, um deles a atacou, e foi a primeira vez que ela aprendeu a usar um canivete. Viver na rua talvez fosse mais seguro.

Um jornal amassado, mãos sujas, a nossa menina tentava aprender aquela língua estranha. Algumas palavras compreendiam muito bem, outras ainda não tinha entendimento, só que isto logo deixaria de ser problema. Perto de completar quatorze anos, ela conheceu uma velha senhora, que também veio da Alemanha, e ensinava a ler e escrever.

Agora ela quase não roubava, aprendeu a pedir esmola na frente da igreja, descobriu que quando dançava as músicas típicas de sua infância conseguia alguns dólares. E assim ela foi levando sua vida, sem nunca se esquecer de seu pai, sempre trazendo a saudade dentro do seu coração.

Com seus quinze para dezesseis anos, nossa heroína começava a ganhar ares de mulher, era alta e esguia, de cintura fina e seios pequenos, claro que usando trapos e coberta por sujeira ninguém consegue perceber esses detalhes.

Certa ironia do destino se fazia época de natal e novamente as ruas cheiravam a pães e bolos natalinos. Kate vagava solitária, tinha algum tempo que não se alimentava, passando em frente ao teatro viu um casal saindo, a moça usava um vestido longo com brilho e um casaco de pele branco, o homem elegantemente em seu terno com seu chapéu. Viu a oportunidade de conseguir algum dinheiro e se apressou a passar na frente dele para pedir.

— Uma esmola, por favor! – Talvez aquele sotaque alemão nunca a abandonasse, mas as palavras em inglês foram ditas perfeitamente. Ela estendeu a mão, não teve coragem de olhar para o casal. Houve um breve momento de silêncio; então ela levantou os olhos, viu uma pele branca, olhos talvez fossem violetas ou vermelhos, não dava para decifrar. A moça abriu um sorriso, deixando a mostra dentes perfeitamente brancos e bem pontudos.

— Pobrezinha! Ela está faminta, será que tem família.

— Querida, ela é tão magrinha que nem acredito que tenha sangue.

—Não é para isso, meu amor! Nós precisamos de uma nova empregada. A última... você sabe.

O homem analisou Kate minuciosamente como se fosse um animal. Em um breve momento, ele fez uma careta de nojo, encostou os lábios no ouvido da moça, Kate nem conseguiu ver seus lábios se movendo; logo a moça abriu um sorriso, deu um passo para frente e colocou sua mão gelada no ombro de Kate.

— Criança, não gostaria de um emprego?

Kate já havia trabalhado em algumas casas, ajudando a carregar as compras, mas todos preferiam garotos, que são fortes. Ninguém tinha lhe oferecido algo desse tipo antes, e como estava cansada de ficar vagando pelas ruas, cada vez mais perigosos por causa das gangues, ela balançou a cabeça em sinal de sim. O homem tirou uma nota de dez dólares mais um cartão com um endereço.

— Apareça amanhã, criança, se tiver interesse.

Kate abriu a nota e olhou o cartão, não sabia ler direito, quando voltou seu olhar para o casal, eles não estavam mais lá. Voltou ao local onde dormia. Podia dizer que era sua casa, se fosse dar o endereço, seria assim: beco escuro, entre duas latas de lixo, debaixo de um monte de papelão.

Nossa heroína quase não dormiu, a todo o momento ela olhava para o cartão, lembrando do casal, das roupas e do cheiro que eles tinham, provavelmente eles eram da parte rica da cidade, no alto da colina.

O sol aparecia entre nuvens, o ar ainda estava frio, finas camadas de neve cobriam as calçadas. Kate caminhava apressada, procurando entre aqueles casarões o número 999. A última casa, já dobrando a esquina, tinha um jardim que era uma confusão de plantas secas e florescendo, ela bateu palmas, aguardou por algum tempo, até uma moça negra, usando um avental branco manchado de vermelho, aparecer na ampla porta de carvalho talhada a mão.

Marybeth era uma negra com um farto quadril, tinha aparentemente trinta e poucos anos e havia acabado de se casar, governanta dos Kissinger há muitos tempo, Marybeth encarou a jovem por algum tempo. Ela não queria acredita que aquela jovem que mais parecia uma criança estava parada naquele portão; quando chegou pela manhã, leu o recado, avisando que alguém viria pela vaga de empregada, pensou que talvez se fosse ríspida a garota desistiria da vaga. Mas ela não tinha o direito de se meter na vida dos outros cada um faz suas escolhas; então abriu o portão e levou Kate para dentro de uma sala.

— Céus! Por que eles insistem em contrata mendigos? Qual seu nome garota?

— Katherine!

— Hum... aposto que não tem família, é órfão.

— Sim, meu pai se foi…— Kate engasgou com as palavras, eram como facas afiadas, não podia pronunciar aquilo, ainda existia um pouco de esperança que algum dia iria encontrar seu pai.

Marybeth tentou não ficar interessada na história de vida da jovem, levou-a para a cozinha, onde começou a mostrar o que tinha de fazer, havia muitas garrafas e taças espalhadas pela casa, além de manchas no tapete e sofá. Aquela moça entregou para Kate um balde e vários panos brancos, para que ela começa a trabalhar.

Seus joelhos começavam a doer, horas estava agachada esfregando o chão; Marybeth tinha saído para comprar comida e deixado mil recomendações sobre ela não mexer em nada e nem subir as escadas.

Após ter certeza que todas as manchas haviam sumido, ela começou a recolher os esfregões e sabão, cansada de ficar sentada na cozinha, começou a dar uma volta pela sala, observando vários quadros de homens pousando com olhar penetrante e mulheres de pele alva, no teto da sala, um lustre iluminava o local.  Marybeth voltou com comida, ajeitou na geladeira e nos armários, mostrou onde Kate poderia dormir; um quarto simples com cama, guarda-roupa e um banheiro com banheira.

—Escute, garota, a noite não saia deste quarto, tranque a porta e reze para amanhecer logo. — Marybeth falava de uma forma sombria, na verdade, ela era uma pessoa muito supersticiosa. —Volto pela manhã, aí começamos a limpar a casa, entendeu?

A noite veio com um céu negro como carvão. Kate ficou sentada na cama, tinha se acostumado tanto com a noites na rua, com o fato de ter que dormi pouco e em momentos alternados, que não tinha sono, nem um ruído, ela ficou atenta a todos os barulhos da casa, porém aquele silêncio todo era estranho para ela. Devagar, saiu do quarto, passou pela cozinha, o lustre da sala brilhava como mil estrelas, ela sabia que não podia ficar por ali só que não resistiu, precisava olhar todos aqueles quadros, novamente. Ela parou de frente para analisar aquele homem de olhar penetrante, Kate sentiu que poderia mergulhar nas profundezes daquele olhar e, por alguma razão, imaginou que seria de águas geladas, ela estendeu os dedos para toca-lo quando alguma coisa gelada apertou seu pulso. Seus olhos se arregalaram. Parada a sua frente, uma moça de longos cabelos amarelos e um olhar mortífero.

— O que você pensa que está fazendo? — Sua voz era fina e cada palavra que ela pronunciou fez Kate ficar hipnotizada pelos seus lábios rosados e pelos dentes brancos e pontudos.

— Eu...! — Sua voz não saiu, ela se afastou até ficar presa entre a moça e uma estátua. — Só estava dando uma olhada.

— Jackeline, faça o favor, deixe a empregada em paz.

Kate moveu sua cabeça para a voz, não compreendendo de onde aquela pessoa tinha vindo, não ouvira nem um passo, a jovem se afastou um pouco, seus lábios se puxaram em um sorriso angelical, mas seus olhos que ora estavam negros, oras ficando vermelhos, transmitiam o desejo de um animal selvagem, Kate conhecia muito bem isto; pois, enquanto estava fugindo à procura de seu pai, ficara se escondendo em uma floresta e acabara, certa vez, encontrando um bando de lobos. A outra jovem era a mesma da noite passada, desta vez seus cabelos estavam soltos, caiando em cachos sobre seu quadril, vestia-se com um vestido leve para estação fria, aproximando-se, ela colocou sua mão no rosto de Kate, provocando arrepios em seu corpo.

—Hum, que bom que aceitou o emprego, mas acredito que Marybeth tenha lhe recomendado para não sair do quarto durante a noite.

 As sobrancelhas da mulher levantaram, a única coisa que Kate consegui fazer foi balançar a cabeça e sair correndo da sala.

No quarto, segurando o mesmo local que a mão da jovem tocou, ela sentia aquela leve fragrância de lavanda e menta, ela colocou o ouvido na porta na tentativa de escutar algo, mas tudo estava silencioso, Kate devagar voltou para cama onde repousou a cabeça no travesseiro, as fronhas limpas tinham um cheiro adocicado, por horas ficou ali em silêncio até que o sono veio devagar, fazendo suas  pálpebras se fecharem e quando a escuridão tomou conta foi a vez dos pesadelos, como sempre, chegado sem pedir permissão, trazendo lembrança tortuosas para Kate.

 Com seus olhos ela via o lençol branco flutuando sobre o corpo de sua mãe, o sangue escorria pela beirada da cama, devagar ela se aproximou e viu aqueles olhos antes cheio de amor e ternura, estavam arregalados e sem vida. Logo ela quis correr, mas seus pés estavam presos no chão; pela porta ela via seu pai indo embora, tentava gritar, só que não tinha voz. Do nada, a cena mudou e ela se viu sozinha em uma floresta, tensa, com sombras assustadoras se movendo. Lobos vieram correndo para pega-la, Kate tentava correr sem olhar para trás, estava ofegante, mas sua corrida chegou no fim de um desfiladeiro. Ela podia ouvir aquele bando de lobos famintos vindo atrás dela, de repetene, os lobos se transformaram em soldados, do meio deles saiu uma linda moça de cabelos amarelos e olhar selvagem que fez Kate se desequilibrar e cair no precipício. Neste momento, ela despertou gritando, passou a mão pela testa molhada de suor e olhou pela janela, faltava pouco para o nascer do sol,

Como podia ter dormido tanto? Sempre acordava no meio do pesadelo, nunca se aprofundava tanto.


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