Vida, morte, e demais devaneios escrita por Lillac


Capítulo 3
Capítulo dois


Notas iniciais do capítulo

Um pouco da perspectiva dos demais personagens sobre os irmãos, e mais algumas coisinhas...
Espero que gostem!



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O ar dentro do escritório de Hades era sempre inimaginavelmente frio. Hazel sentia o que pareciam ser mãos invisíveis correndo para cima e para baixo por sua coluna vertebral, e, após um olhar rápido para o lado, constatou que Nico parecia em uma situação similar.

Ela apertou as mãos em punhos. Hades continuava sentado em sua monstruosa poltrona, os olhando como se eles fossem o mais interessante filme que ele poderia estar assistindo, e ela sentiu uma sensação familiar.

Por algum motivo, Hazel sempre se sentia como um ratinho preso entre as garras de um felino particularmente sádico, que brincava, e brincava e brincava com ela, nunca realmente dando o bote final.

 — Então? O que querem me dizer?

Nico engoliu em seco. Ele era apenas alguns poucos anos mais velho do que ela, Hazel sabia, e não achava correto que ele carregasse toda aquela responsabilidade nos ombros. Talvez, por possuir o poder menos assombroso dentre os três — agora dois — ele sentisse que cabia melhor a ele o papel de porta-voz, mas ela percebia como ele parecia sempre lutar consigo mesmo antes de dizer alguma coisa.

— Nós temos um pedido a fazer — ela disse, por fim.

O irmão a olhou com os olhos escuros arregalados, mas Hazel engoliu o medo e seguiu em frente.

— Eu não sou pessoalmente um grande fã de favores — Hades respondeu, após um longo murmúrio. Ele reclinou-se na poltrona, com o cenho franzido. — Mas estou ouvindo.

Dessa vez, Hazel ficou em silêncio. Tentou: abriu a boca, mas tudo o que saiu foi um sussurro. Os calafrios percorriam seu corpo incessantemente, e ela sentia os joelhos tremendo, bem como as mãos que poucos minutos atrás haviam estado tão firmes. Sabia o que estava acontecendo, e mesmo assim, não foi capaz de suprimir o desespero que lhe fechava a garganta.

Hades estava projetando sua presença sobre eles, despertando nos filhos o medo e a angústia. Eles não durariam muito mais tempo ali sem ceder ao desespero.

— Queremos que nos deixe ir — Nico disse de uma só vez. — Não queremos morrer com a minha irmã, e estamos dispostos a fazer qualquer coisa pela nossa liberdade.

O deus abriu um pequeno sorriso.

— Eu não matei Bianca, e vocês sabem disso — ele os lembrou, voz tingida de divertimento. — Porém, não vou impedi-los de despejarem a culpa em mim. Vocês são, afinal, parte mortais, e eu bem sei que mortais podem ser incapazes de admitir seus próprios erros. Ou os daqueles que amam — continuou. — Não se enganem, no entanto. Eu amava Bianca. De toda forma, não posso dizer que estou surpreso por esse pedido.

Ele levantou-se, deu a volta na mesa, tamborilando as pontas dos dedos lânguidos na madeira escura. Ele caminhou calmamente até eles, e os olhou profundamente nos olhos antes de dizer:

— Por mim, está bem.

Hades encostou-se na mesa, e enfiou as mãos nos bolsos da calça do terno completamente preto.

— Eu tenho uma pequena missão para vocês antes — falou.

— Qualquer coisa — Nico garantiu.

Ele olhou para cima por um momento, parecendo ponderar sobre algo. Enfim, voltou a olhar para eles, mas havia algo diferente nos olhos escuros dele. Hazel não soube dizer o que era.

E, de algum modo, tudo isso foi esquecido quando ele disse:

— Lembram-se dos poderes da irmã de vocês?

[...]

— Bom trabalho, Zhang! — Charles Beckendorf o congratulou com um empurrãozinho no ombro antes de partir para a arquibancada, onde a namorada o aguardava.

Frank fizera um incrível total de vinte pontos na partida de basquete que eles haviam acabado de terminar: não era o seu recordo, mas era, ainda assim, impressionante. Ele estava acostumado com os elogios agora, embora alguma parte dentro dele ainda questionasse cada palavra amigável que ele recebia. Havia sido um total isolado por todo o ensino fundamental e médio, incapaz de fazer amigos mesmo que sua vida dependesse disso. Quando entrara para a faculdade Artes, imaginara que tudo fosse continuar o mesmo. Até conhecer Leo Valdez por acidente em uma fila da cafeteria e ser então arrastado para um grupo de amigos mais receptivo do que ele jamais poderia imaginar existir.

Ele tomou banho no vestiário e seguiu para o prédio de aulas. Seus olhos automaticamente buscaram pela carteira da fileira mais próxima à parede leste, e constatou que ela estava, mais uma vez, desocupada.

Naquele dia, completavam duas semanas desde a última vez que Hazel Levesque pusera os pés na faculdade.

Frank estivera enfatuado com a garota desde que a avistara pela primeira vez, com os cachos cor de chocolate e olhos dourados. Ela sentava sozinha, não falava muito, e completamente humilhava o resto da classe (com exceção de Rachel) quando apresentava seus trabalhos. Ela almoçava apenas com os irmãos e outras duas garotas no refeitório, e, mesmo com eles, não parecia falar muito.

Não que Frank estivesse olhando, ou coisa parecida.

No semestre anterior, a irmã mais velha dela falecera. Não se sabia muito sobre o acontecimento — algum terrível acidente que ocorrera não muito distante da casa deles. Todos esperavam que os irmãos ao menos tirassem alguns dias de folga, para velar a irmã, mas eles continuaram aparecendo na faculdade sem interrupções. E Hazel continuou pintando tão incrivelmente quanto antes.

E então, duas semanas atrás, eles haviam simplesmente desaparecido.

O professor entrou na classe, dando as primeiras instruções, e Frank precisou deixar seus devaneios para depois. Encontrou Rachel sentada em seu lugar usual, do outro lado da sala. Mas ela não olhava para o professor: seu olhar estava vidrado na carteira vazia de Hazel. Ele o seguiu, por um breve momento.

Quando voltou a olhar para Rachel, no entanto, percebeu que ela o olhava de volta. Foi apenas um segundo — tão rápido, que Frank imaginou estar imaginando algo — e ela desviou os olhos verdes de volta para o quadro.

[...]

— É uma tarefa simples: tragam alguém de volta à vida.

Nico esforçou-se para não soltar um palavrão. Foi Hazel quem perguntou:

— Como Bianca fazi... —

— Sua irmã nunca trouxe ninguém do mundo dos mortos — Hades balançara uma mão. — O que ela fazia era nada mais do que uma ilusão. Eu quero algo real. Quero que seja capaz de pensar, de sentir e de falar por si próprio. Quero que me provem que merecem essa liberdade.

Ele retirou dois anéis dos dedos e os fechou em uma palma. Quando abriu a mão de novo, segurava um par de aros prateados com uma caveira em cada. Hades os colocou nas mãos trêmulas dos filhos, que fizeram uma careta após o primeiro contato.

— Esses anéis vão me dizer se vocês conseguiram ou não. Me façam orgulhoso. E, caso contrário, me deem as suas almas. 

Nico soube imediatamente que o pai não estava brincando.

Mais tarde, sentado no chão do quarto de Reyna, ele leu e releu o escrito que Hades o entregara. Reyna e Hazel falavam latim, não grego, e Nico não era fluente o suficiente para compreender o que estava escrito.

— Eu não sei — ele correu as mãos pelo cabelo, frustrado. — Não sei como vamos fazer isso. Eu sequer entendo isso. Como vou reviver alguém?

Hazel, sentada ao lado dele, abraçou os próprios joelhos. Ela parecia desanimada. Eles haviam conseguido a oportunidade com a qual tanto haviam sonhado, apenas para ficarem estagnados.

Eles podiam, claro, deixar tudo para lá e voltar a viver suas vidas normais — ou o mais normal que suas vidas poderiam ser consideradas — mas agora era tarde demais. Hades nunca esqueceria aquela insolência. Ele olharia para eles e os veria como nada apenas que desertores. Eles jamais seriam considerados seus filhos novamente, muito menos herdeiros.

Caso não conseguissem, Nico havia colocado à si mesmo e a irmã sob o eterno desprezo de um deus.

Ao menos, ele pensou, não temos nada além de nossas vidas a perder.

Reyna, que até então se mantivera calada, arrancou o papel da mão dele e o examinou por um longo momento.

— O que? Você aprendeu grego arcaico de repente?

— Não — ela retrucou.

Nico reconheceu aquele tom de voz. Reconheceu o olhar. A dureza e insipidez nas pupilas de obsidiana. Quando Reyna perdia a emoção no olhar, era sinal de que havia acendido um incêndio em sua mente.

— Mas eu sei quem pode ajudar vocês.

 

[...]

Annabeth não sabia muito sobre os irmãos di Angelo-Levesque, ou sobre as Arellanos. Eles almoçavam juntos todos os dias em uma mesa reclusa do refeitório — e então duas delas morreram.

Nico estudava História, e, até onde ela sabia, era tão bom que deixava até os professores confusos. Ele contava sobre guerras e conflitos, mortes, percas e massacres com tamanha perfeição e atenção aos detalhes que era possível imaginar que ela havia estado lá — ou, ao menos, ouvido as histórias das bocas dos próprios soldados e das próprias vítimas.

Hazel pintava. Pintava telas impressionantes, e tão, tão tristes. Ela pintava sobre guerras, sobre miséria e sobre abandono com tamanho sentimento que confabulavam se ele havia, um dia, sido tão faminta e miserável como aqueles que pintava.

Ela não os conhecia, e, por esse mesmo motivo, estranhou quando o mais velho, Nico, se aproximou dela durante um intervalo. Ele era, Annabeth supôs, consideravelmente atraente, mesmo com as olheiras e o cabelo bagunçado. Havia um quê misterioso nele, o tipo que atraía garotas a querer desvendá-lo apenas para sentirem-se especiais.

— Eu posso falar com você? É bem rápido — ele pediu.

Annabeth concordou. Eles andaram até uma praça próxima, onde Nico sinalizou para que repousassem em um dos bancos. Uma vez sentados, ele enfiou uma mão no bolso do casaco preto e tirou uma pequena folha de papel de lá.

— Você fala grego, não é? — Nico perguntou.

— Um pouco — ela concordou, confusa. — O que é isso?

— Meu pai está trabalhando na reconstituição de alguns arquivos da biblioteca da nossa família, que vai traduzir e doar para uma pública — ele contou. — Somos uma família bem antiga, e ele achou que seria justo dividir alguns dos nossos exemplares com o mundo. Mas alguns deles são antigos demais e estão desgastados.

Ela esperou que ele continuasse.

— Ele encontrou isso, escrito na capa de um dos mais velhos — explicou. — Está faltando algumas letras, e parece ser um dialeto que ele não entende. Pensei em pedir ajuda para alguém. Não tem esse tipo de coisa na internet.

Annabeth pegou o papel. Ela reconhecia algumas palavras. Meu. Erga. Algo que parecia com sirva. Mas a frase não fazia sentido para ela.

— Não tenho certeza — admitiu. — Mas, posso pedir pro meu pai. Ele é doutor em história, e muito mais fluente que eu. Mas você vai ter que esperar um pouco. Só vou visita-lo semana que vem.

— Tudo bem — Nico sorriu. — Eu espero. Obrigado, Annabeth. Você não faz ideia do favor que está nos fazendo.

Ele deixou o papel com ela e despediu-se com um aperto de mãos. Annabeth tentou não deixar transparecer o quanto o contato com o anel de prata no dedo dela a assustou.

Ela nunca sentira nada tão frio quanto aquele metal.

 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Comentários são sempre apreciados.



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