Vida, morte, e demais devaneios escrita por Lillac


Capítulo 4
Capítulo três.


Notas iniciais do capítulo

Olá! Esse capítulo é um tanto mais longo do que os anteriores, mas foi necessário. Apresentação dos demais personagens, e um ponto importante da história.
Espero que gostem!



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A casa de sua melhor amiga poderia, hipoteticamente, passar por uma residência normal. O ar de luxuosidade emanava do piso e das vigas de madeira lustrosos, das colunas de gesso esculpidas e das paredes aveludadas. Dos quadros surrealistas, com borboletas e navios e todo tipo de simbolismo encantador pendurados pelo hall de entrada e na copa. Havia uma cozinha que nunca parecia estar funcionando, e um escritório cuja porta estava sempre trancada.

No entanto, quando Nico descia os degraus de ébano que levavam até o porão — arejado e limpo, perfumado, até — as pinturas eram substituídas por obras expressionistas, agoniantes, capazes de instalar o medo e a sensação de sufoco em quem olhasse demais para elas. Haviam tochas que ardiam em fogo verde, mantendo o lugar naturalmente congelante em algo um tanto mais tolerável, e uma coleção imensurável de espólios de guerra dispostos pelas paredes como em um museu de arte. Nico reconhecia uma outra (uma espada de mão dupla aqui, uma adaga persa ali), mas a maioria delas lhes eram completamente estranhas.

Reyna as conhecia de cor e salteado. Sabia dizer de que parte do mundo eram, de que momento da história, e quais haviam sido os guerreiros que morreram com elas nas mãos. Se pusesse uma de suas mãos rígidas sobre o cabo de uma, Nico sabia, ela era capaz até de vislumbrar a cena por trás de suas pálpebras fechadas.

E, cada vez o que fazia, sua pequena tatuagem no antebraço ardia mais. Nico não gostava de pensar nisso, mas uma parte de si sabia. Sabia que Bellona não pararia até que Reyna fosse completamente impecável — e até que sua pele ardesse em carne viva.

Semideuses diferentes possuíam poderes diferentes. E embora fossem ele e as irmãs os que eram capazes de levantar cadáveres do chão e amaldiçoar pessoas pelo resto de suas vidas miseráveis, Nico achava que os poderes das Ramírez-Arellano eram bastante desconcertantes. Eram, além disso, uma insaciável fonte de poder, e poderiam muito bem levar alguém à loucura.

Como haviam levado Hylla.

Mas eles não falavam sobre isso, claro.

— Plutão realmente se superou dessa vez — a voz dela veio rouca.

Nico esfregou as mãos suadas no jeans escuro. Estava meio ajoelhado, sentado sobre os tornozelos, no chão de verniz negro e gelado, com Hazel e Reyna de cada lado seu, igualmente silenciosas. Bellona não permitia que ninguém além das filhas (e apenas em raras ocasiões) a visse, e, portanto, todos os diálogos que ele tivera até então com a deusa haviam sido daquele mesmo modo: através de uma divisória de madeira bifurcada, que a escondia completamente e deixava apenas que sua voz altiva e contemplativa os alcançasse.

Ironicamente, Nico achava que a cena toda parecia com um confessionário católico. Eles, de joelhos, admitindo todos os seus pecados para a voz superior que os julgava sem misericórdia.

Se fosse esse o caso, bem, Nico tinha os próprios pecados escorrendo pelos cantos dos lábios e seus dedos tremiam com as lembranças de suas ações. E, se fosse ser sincero, provavelmente seria mandado direto ao inferno, porque não se arrependia de nenhum deles.

  Meus pecados incluem odiar meu pai, ele pensou, e eu mesmo.

— Não é impossível, no entanto — ela continuou. — Vocês devem ser capazes de conseguir. São semideuses fortes, embora seus poderes ainda sejam tão insignificantes quanto os de um recém-nascido. Reyna, você tem minha permissão para ajuda-los — ela deu uma curta pausa, parecendo esperar por algo. Enfim, prosseguiu — qualquer consequência, no entanto, é responsabilidade inteiramente sua, e eu não vou hesitar em apagar quaisquer vestígios. Mesmo que esses vestígios sejam vocês.

Nico pensava que, possivelmente, existia uma autoconfiança natural que vinha junto com o prospecto de ser imortal. Não importava quantos de sua prole morressem, os deuses sempre viveriam para fazerem mais. Ele, Hazel, Reyna... Hylla e Bianca... não passavam de peças dispensáveis.

— Sim, mãe — Reyna inclinou a cabeça.

A relação dele, Hazel e Bianca com Hades nunca havia sido das melhores, mas o rapaz ficava com um nó na garganta sempre que pensava em como deveria ser ambiente naquela casa. Bellona parecia, em todos os aspectos, uma deusa da guerra muito mais assustadora e imponente. Talvez a dureza nas obsidianas dos olhos de Reyna fosse mais do que uma ferramenta: talvez fosse o mecanismo de proteção próprio da garota. 

— Se me permitem um conselho... — Bellona continuou, em seu tom lânguido. — As almas mais inconformadas são as mais propensas a atender a algum pedido.

Nico franziu o cenho. Quis abrir a boca para perguntar o que infernos a deusa queria dizer com aquilo, mas o olhar austero que Reyna o direcionou o manteve calado. Ele e as duas garotas deixaram o porão, subiram os degraus e, só então, respiraram fundo. Embora soubesse que Bellona ainda estava lá embaixo — e, de todo modo, ainda os escutando perfeitamente — era muito mais fácil puxar o ar para seus pulmões quando não estavam de frente com ela.

— Eu espero que você tenha entendido melhor do que nós — disse, então.

Reyna não estava olhando para ele. Ela tinha o olhar fixo em um dos quadros na parede. Nico percebeu que era alguma pintura de guerra. Olhou com mais atenção. Algum conflito greco-romano, certamente, a julgar pelas vestimentas dos personagens. Ele já havia conversado com almas perdidas no submundo, pessoas mortas em guerras e invasões.

Sempre achava que, por mais talentosos que fossem os artistas, nunca era realmente possível captar toda a dor e tristeza que aquelas almas carregavam consigo.

— Sim — ela respondeu. — Eu entendi.

 

[...]

Will Solace era um bom estudante. Um dos melhores até. Mesmo assim, sentia-se sufocado. Recentemente, seu pai o estivera evitando. Havia ficado responsável pela autópsia de duas jovens garotas nos últimos seis meses. Apollo nunca ficara particularmente perturbado pelo próprio trabalho, mas Will percebera que o olhar do pai parecia subitamente trêmulo, distante. Olheiras começaram a surgir na pele bronzeada, e ele engolia doses de café como água gelada.

A tia, Ártemis, viera visitar pouco tempo atrás. O que seria completamente normal, não fosse pelo fato que Will jamais a havia visto na vida. Ela também era médica, geriátrica, e trabalhava em um dos mais importantes hospitais do país. Apollo e ela eram gêmeos, mas, por algum motivo, Will nunca conhecera a tia — tudo o que sabia sobre ela eram algumas histórias soltas, sem nexo, que o pai soltava em seus raros momentos embriagados e algumas fotos antigas que ele encontrava em porta-retratos esquecidos nas gavetas de cômodas.

Agora, por algum motivo, ela estava morando com eles. Havia ficado com o minúsculo quarto de hóspedes — algo à que uma médica de renome como ela provavelmente não estava acostumada —, e saía com o nascer do sol, para voltar apenas pela noite. E então, ela e Apollo ficavam conversando madrugada à fio, até o nascer do sol. Como o pai estava aguentando tantas noites sem dormir, Will não tinha a ideia. Ele mesmo não durara mais do que duas, tentando escutar — em vão —, suas conversas por trás de portas de fechadas.

 — Sr. Solace?

Will piscou, como que acordando de um torpor. Ele virou-se, e viu o reitor da faculdade, sr. Brunner, avançando até ele em sua cadeira de rodas motorizada. Para alguém de status tão alto, o sr. Brunner realmente vagava muito pelos corredores da escola. Quase não parecia um reitor, com todos aqueles sorrisos simpáticos e conversa fácil.

— Senhor?

— Você está bem? Parece... abatido — comentou. — Se precisar conversar com alguém, a faculdade conta com um...

— Eu estou bem, senhor — Will interrompeu. — Só... casado. Mas eu sabia disso quando escolhi essa faculdade, não?

Sr. Brunner não pareceu convencido, franzindo o cenho e ainda com o semblante preocupado.

— Eu...

— Preciso ir, senhor. Até a próxima.

Will saiu caminhando pelo corredor, passos pesados fazendo eco, e pensamentos distantes. Sabia que provavelmente era loucura, mas algo... alguma coisa dentro de si, gritava que a morte das duas adolescentes tinha, de alguma forma, a ver com a aparição repentina de sua tia, e com a crise pela qual Apollo parecia estar passando.

Sentiu um baque forte na fronte do corpo e caiu para trás em um só impulso. Antes mesmos que pudesse grunhir, ouviu uma voz feminina gritar:

— Will!

No segundo seguinte, enquanto sua cabeça ainda rodava, foi ajudado a erguer o tronco por duas mãos gentis. Quando enfim conseguiu focalizar o olhar, viu que havia esbarrado em alguém, e caído no chão.

— Piper?

— Você não bateu a cabeça, bateu? — Piper perguntou, soando genuinamente preocupada. — Não sei como vocês conseguiram isso! Estavam literalmente um na frente do outro, não achei que precisasse avisar.

Will virou a cabeça, e viu outra pessoa caída ante a ele. Annabeth Chase. Eles haviam feito o ensino fundamental juntos, mas não eram realmente amigos. Ao menos, não como ele e Piper. Ele rapidamente levantou-se, enquanto ela fazia o mesmo.

— Você está bem? Eu sinto muito — disse.

— Não tem problema — ela garantiu. — Eu é quem estava andando distraída.

Isso é verdade — Piper concordou, recebendo um olhar fuzilante da amiga em resposta. — O que? É verdade mesmo. Annabeth está procurando pelo di Ângelo há horas, você o viu por aí?

— Di Ângelo? — Will repetiu. — Oh, Nico?

Will não conhecia Nico. Não eram amigos. Mas o garoto o ajudara uma vez. Havia sido uma situação igualmente improvável e constrangedora: o combustível da motocicleta de Will havia acabado no meio da rua. Surpreendentemente, Nico, de todas as pessoas, estivera caminhando pela aquela mesma rua. Ele o reconheceu, e perguntou se precisava de ajuda.

Tudo acabou com Will sendo guiado até a casa de Nico, aceitando um copo de água e uma carona de volta para sua própria casa, cortesia da irmã mais nova do rapaz.

Will pedia aos deuses que nunca mais precisasse ver o rosto de Nico. Ou então provavelmente morreria de vergonha.

— Ele e a irmã não saíram da faculdade? — perguntou. — Não os vejo já faz um tempo.

— Não, ele... — Annabeth começou a falar, mas então pareceu morder a própria língua. — Ele me emprestou um livro uma semana atrás. Preciso devolver, mas não o encontro em lugar nenhum.

Nico passou a mão nervosamente pela alça da mochila de estilo carteiro: 

— Eu sei onde ele mora — disse. — Posso te levar lá, depois da aula, mas só se você não disser isso pra ele.

Annabeth o olhou com desconfiança, e ele pensou que não era tão inesperado assim: era de Nico que eles estavam falando.

— Certo, eu te espero no estacionamento depois da aula — concordou. — Até mais, Will.

Ela saiu andando, sem mais delongas, e Piper despediu-se dele com um abraço rápido antes de segui-la. Will foi deixado sozinho no corredor, ainda confuso e dolorido da queda.

 

 

[...]

Reyna brincava com um dado preto de bolinhas roxas entre os dedos longos, seu olhar fixo. Nico e Hazel esperavam silenciosamente que ela continuasse. Eles estavam de pé no corredor que dava para o hall de entrada. As luzes haviam sido apagas há pouco tempo, por ordem de Bellona — se vocês querem mexer com as sombras, ela havia dito, proponho que estejam dispostos a serem consumidos por ela —, mas Nico conseguia enxerga-las perfeitamente.

As vantagens de ser filho do deus da escuridão, ele supôs.

— O que a minha mãe quis dizer — ela disse, finalmente. — É que será mais fácil para vocês convencer uma alma a segui-los se essa alma quiser voltar.

—... E isso significa? — Hazel soou trêmula.

— Que vocês precisam encontrar uma alma inconformada — respondeu. — Alguém que queira desesperadamente voltar para esse mundo.

— Alguém que tenha morrido de forma injusta — Nico completou. — Uma alma inquieta.

Ele sabia o que aquilo queria dizer. Quando Bianca usava seus poderes, era sempre esse tipo de alma que ela atraía. Nico conseguia sentir a inquietude, o desespero, a inconformidade delas — e achava que Hazel conseguia também. Bianca tivera um talento natural para atraí-las.

Ele não tinha certeza de algum deles teria.

— Ouçam — Reyna respirou fundo, e Nico a viu fechando os olhos. — Não existe alma mais inconformada do que aquelas que foram mortas em batalha. Guerreiros assassinados sem uma segunda chance. É por esse tipo de gente que vocês precisam procurar. E eu posso ajuda-los, mas vocês precisam estar preparados.

Nico e Hazel se entreolharam. Reyna continuou:

— Elas... elas não são nada amigáveis. Agressivas, amargas. Vocês podem ver coisas que prefeririam não ver — avisou.

Eles ficaram em silêncio por um tempo. Hazel enfim pronunciou-se:

— Nico e eu estamos sérios nisso, Reyna. Estamos aqui para ficarmos livres, ou morrermos treinado — disse. — Então não hesite em nos dar os seus piores pesadelos.

O sorriso que gracejou o rosto dela era ao mesmo tempo encantador e assombroso:

— Vá preparar o porão, então, Hazel.

Ela assentiu, e saiu caminhando de volta. Quando desapareceu em uma curva do corredor, Reyna virou a cabeça para a entrada. Antes que Nico pudesse perguntar o que ela estava vendo, Reyna atirou o dado que tinha em mãos na escuridão. O objeto atravessou a porta aberta e saiu rolando pelos degraus da soleira, até alcançar o gramado. E então, quando olhou pelo vidro límpido da janela, ele viu.

— É um dado — a garota loira disse, voz mergulhada em confusão e cenho franzido.

O rapaz igualmente loiro parado ao lado dela balançou os ombros, sem respostas. Annabeth guardou o dado que tinha pego no bolso traseiro do jeans.

Nico voltou a olhar para Reyna. Um flash de luz cortou a escuridão, e Nico engoliu em seco. Ela girou o curto punhal uma única vez, lâmina afiada cortando o ar rapidamente, e inclinou-se, preparando-se para o bote.  

— Ao menos, significa que tem alguém em casa — Annabeth disse, por fim. Will concordou com um aceno.

E eles avançaram.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Espero que tenham gostado! Comentários são sempre apreciados.



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