Vida, morte, e demais devaneios escrita por Lillac


Capítulo 2
Capítulo um.


Notas iniciais do capítulo

As atualizações ainda vão ser semanais, porém, como o capítulo anterior foi apenas o prólogo, achei que faria sentido postar o primeiro capítulo hoje.
Espero que gostem!



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Nico mal conseguia ouvir o tom da própria voz, rouca e dolorida, por cima do som ensurdecedor da chaleira. O utensílio começara a chiar faziam minutos, mas Hazel não dera nem sinal de sair do quarto. Obstinado, ele levantou de onde estava sentado, à mesa de jantar, e caminhou pesadamente até o fogão, fechando a boca que provinha gás para a chaleira.

Por algum motivo, a irmã era obcecada por chá. Hades os havia ensinado que eles muito raramente sentiriam o gosto de algum alimento, a menos que este estivesse borbulhando. Comidas frias ou mornas lhes desciam pelas gargantas como plástico, mas um bom café a ponto de ebulição transportava pequenos calafrios por suas bocas. Hazel, no entanto, dizia não suportar o gosto da cafeína: por este motivo, eles tinham incontáveis chaleiras e conjutos de delicadas xícaras de chá espalhadas pelos armários da casa.

Para garantir que a garota nunca estivesse incomodada.

Hazel, Nico sabia, era muito mais do que os olhos podiam ver. As pessoas olhavam para ele e viam o garoto alto, magro, de pele pálida e olhos fundos, rodeados por olheiras já arroxeadas. O cabelo preto era longo, de fios secos e desgrenhados.

Tinham medo de Nico, quando era Hazel quem eles deviam temer. Era a insaciável maldição que crescia por trás daqueles olhos dourados que devia fazê-los pensar duas vezes antes de cruzarem caminhos com ela. Era o poder que escapava pelas pontas dos dedos, quando distraída, que devia avisá-los de que Hazel era uma tragédia iminente.

Assim como Bianca havia sido.

Os poderes delas eram diferentes, mas Nico os achava igualmente perturbadores — e isso vinha do garoto que era capaz de abrir fendas no chão e levantar cadáveres.

— É perigoso. Talvez não seja uma boa ideia — foi o que Nico ouviu assim que retornou ao seu lugar.

Reyna Arellano fazia qualquer espaço, por mais comum, parecer uma sala de tronos. O modo como sentava-se, como olhava ao redor, como simplesmente era fazia as com que as pessoas automaticamente vissem nela uma figura a ser respeitada. Ela fingia que não, mas Nico via — via, por trás das expressões duras e dos olhares gélidos, a satisfação que lhe consumia por dentro toda a vez que alguém caía de joelhos ante ela e suplicava por misericórdia.

Ela possuía os olhos mais frígidos que ele já havia visto na vida e Nico achava que combinavam com ela. Ao contrário dele e de Hazel, Reyna era perfeita para o papel que cumpria, e ele sentia pena daquele que fosse escolhido como seu futuro sucessor.

Uma risada de escarnio deixou a boca do rapaz. Ele esticou as pernas, tentando encontrar algum tipo de conforto, ao menos físico, enquanto ela muito calmamente sorvia o café de sua xícara roxa.

— Se você diz que é perigoso, o que eu devo pensar? — Nico questionou-se. — É uma chance única de escape, Reyna.

— Ou uma chance única de suicídio — ela complementou. — Embora, eu suponha que existam diversas outras formas de suicídio, duvido que alguma delas seria efetiva em vocês além desta.

Nico sabia, em seu âmago, que ela tinha razão. Mesmo para um filho de Hades, ele estava brincando com a morte um tanto quanto frequentemente demais. Viajara e retornara do mundo inferior mais vezes do que podia contar apenas nas duas últimas semanas. Sempre se mantinha nos campos de trigos, onde ele sabia que nada de extraordinário nunca acontecia. Tinha medo demais de pisar em qualquer outro território do domínio de seu pai.

— Hades vai concordar. — Nico assegurou. — Ele nunca gostou de mim.

— Bellona nunca gostou de mim, mas eu duvido que me deixaria escapar tão facilmente — Reyna respondeu. — Tome a Hylla como exemplo. Você quer acabar como ela?

Nico fechou os olhos. As lembranças do que havia acontecido com a irmã mais velha de Reyna ainda o perturbavam tanto quando as lembranças de Bianca. Hylla havia sido a favorita de Bellona por quanto tempo estivera viva. Reyna estava sempre em segundo plano — até Hylla decidir que estava farta e enfrentar a mãe.

Ele esperava que a alma dela houvesse acabado em um lugar bom. Porém, por algum motivo, duvidava que a mãe delas tivesse em si a piedade necessária para manda-la para qualquer lugar que não o terrível vale de onde os gritos de dor borbulhavam toda vez que Nico visitava o mundo inferior.

Reyna nunca demonstrava nenhuma emoção quando falava da irmã, e Nico perguntou-se quanto tempo demoraria — quanto tempo ainda tinha — antes que Hades o transformasse em um herdeiro perfeito para ele, como Reyna era para Bellona.

— E então? — Reyna ergueu uma sobrancelha. — O que vocês vão fazer, Nico?

Ele ponderou. Havia uma possibilidade, uma grande possibilidade, de que Hades o mandasse direto para onde sua alma seria torturada pelo resto da eternidade apenas pela simples insolência que era aquele pedido. Por outro lado, não conseguia suportar a ideia de viver o resto de sua trágica existência daquele modo.

— Eu preciso tentar — disse. — Eu vou tentar.

Reyna sorriu, sinistra e ao mesmo tempo, angelicamente.

— Isso é ótimo. Eu te mataria se a sua resposta fosse outra, sabe.

 

[...] 

Annabeth girou a chave a porta abriu com um grunhido. O apartamento todo parecia abandonado. Ela quase não parava em casa, ocupada demais com a faculdade, e o único indício de que a mãe morava ali era o seu terninho escuro, sempre imaculadamente pendurado no gancho ao lado da porta, e os saltos que ela deixava ao lado do tapete.

Havia sido um lugar bonito, algum dia. Annabeth tinha boas lembranças da infância. Agora, não passava de um lugar onde ela deixava seu tenso e dolorido corpo descansar após um dia tortuoso na faculdade.

— Uau — Piper comentou, atrás dela. — Eu espero que a energia esteja funcionando, cara.

Annabeth suspirou, tateou às cegas pela parede até encontrar o interruptor, e o ligou. O apartamento foi iluminado pelas lâmpadas de LED estrategicamente espalhadas.

— É para tirar os tênis?

— Não precisa — ela garantiu. — A empregada vai vir limpar... que dia é hoje?

— Quarta-feira.

— ... Depois de amanhã — concluiu, quase inteiramente confiante. Às vezes, Annabeth perdia um pouco a noção do tempo. — Coloca a sua mochila em qualquer lugar.

Piper obedeceu. Colocou a mochila surrada por cima de uma poltrona igualmente carente de cuidados e seguiu Annabeth até o quarto. Até então, elas haviam feito a maior parte do trabalho na própria universidade, sem ser preciso visitarem as casas uma da outra, contudo, um imprevisto na instituição de ensino havia obrigado à ambas a escolherem um novo local de estudo, temporário.

As duas, como melhores alunas de seus respectivos cursos, haviam sido escolhidas para cabecear um novo projeto da faculdade, que buscava unir cursos de áreas diferentes e ensiná-los a trabalharem juntos. Elas não demoraram à encontrar um nicho que as agradava igualmente: Piper fazia Relações Públicas e queria, no futuro, abrir espaço na mídia para falar sobre a necessidade de preservar as culturas nativas dos Estados Unidos, e Annabeth, que cursava arquitetura, havia surgido com a ideia de apresentar maquetes e projetos para centros culturais voltados para à história e identidade indígena.

De certa forma, elas haviam caído como uma luva nas mãos uma da outra. Ou, como Thalia comentara: “Annabeth finalmente encontrou a alma gêmea nerd dela”.  

Quatro longas horas de trabalho e quantidades horrendas de comida instantânea depois, Piper ergueu o olhar da tela do notebook onde fervorosamente digitava para comentar:

— Acho que nós vamos precisar de áreas restritas por idade.

— Por que?

— Eu tenho um artigo inteiro escrito sobre as crenças indígenas em reencarnação ou... bem, possessão — Piper explicou, virando um pouco o aparelho eletrônico para que Annabeth também pudesse ver. — Meu pai mesmo costumava me contar algumas dessas histórias. Ele aparentemente amenizava todas elas, porque eu estive pesquisando, e... acho melhor você ler.

Annabeth o fez. Sua mente engoliu dezenas de histórias sobre reencarnações de vários guerreiros, e mesmo algumas que narravam sobre membros de tribos que voltavam à vida — em seus corpos originais. Para Annabeth, tudo parecia fantasioso, mas ela compreendia que fazia parte de uma cultura muito diferente da sua, e que, verídico ou não, deveria ser respeitado.

— Vamos colocar no projeto. — decidiu. — Podemos ter uma ala dedicada às histórias assim. Vou falar com o meu pai, ele deve conhecer algum site ou museu que possa nos dizer onde encontrar gravuras.

Piper concordou, e retornou a digitar. Era apenas um trabalho teórico — a faculdade, obviamente, não tinha recursos para realmente construir um museu —, todavia, Annabeth não podia controlar seu perfeccionismo, por mais que negasse o possuir. Queria que tudo saísse exatamente como elas estavam planejando. E podia dizer que Piper também pensava assim.

Quando julgaram já terem trabalhado o suficiente, já era madrugada, e Annabeth disse que Piper podia dormir ali mesmo. Tudo foi arranjado com facilidade. Antes de adormecer, porém, Annabeth encontrou a si mesma refletindo sobre as extraordinárias histórias que sua amiga havia encontrado.

Elas eram, de fato, arrepiantes, Annabeth concluiu.

 

[...]

Ao seu lado, Hazel mantinha os dentes superiores firmemente afundados no lábio inferior. Nico podia sentir o nervosismo dela — ou talvez fosse o dele próprio. Era difícil dizer com o coração batendo alto como estava.

As enormes portas duplas postavam-se mais assustadoras do que nunca, e elas jamais haviam sido particularmente agradáveis. Ele respirou fundo, engoliu em seco, e levantou uma mão trêmula para agarrar a aldrava de prata — o metal desconcertantemente frio sob sua pele, o que era ao mesmo tempo impressionante e macabro. O som reverberou pela saleta como um anúncio fúnebre, e Nico soube que não havia escapatória.

Perséfone abriu a porta. A madrasta era absolutamente estonteante, mas estava sempre séria e parecia eternamente aborrecida com algo — como se houvessem lhe roubado alguma coisa da qual ela sentia terrivelmente a falta, ou perdido alguém importante. Nico sabia que o único motivo pelo qual conseguia sentir tais sensações eram seus estranhos poderes, e ele não tinha certeza se ficava satisfeito ou assombrado por isso. 

— Sim, jovens herdeiros?

— Eu desejo falar com meu pai — ele disse, e algo dentre dele arrependeu-se profundamente das palavras assim que elas deixaram sua boca.

Mas já era tarde.

— O senhor Hades está ocupado no momento...

— Deixe que entrem — a voz rouca e imponente, tão parecida com a dele próprio, soou, e Nico sentiu a respiração vacilar. — Ambos.

Perséfone reprimiu um suspiro, e abriu mais a porta, de modo que os irmãos adentrassem o escritório. Atrás de imensa mesa de carvalho lustroso, Hades inclinou-se em sua enorme poltrona revestida de couro e entrelaçou os dedos finos de ambas as mãos, os anéis de prata e de ferro escuro brilhando sob a pouca luz. Ele sorriu:

— Eu sou todo ouvidos.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Comentários são sempre apreciados.



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