Caos em Virgini escrita por Widowmaker


Capítulo 4
3. Búfalo branco




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Eu estava ajoelhada diante da prisão em chamas, fraca demais para me levantar. As pedras do chão e a areia eram forçadas contra meu corpo, deixando-o marcado. Com o tempo, pessoas se aglomeravam ao redor da prisão, gritando e tentando apagar o fogo de alguma forma. Vi algumas pessoas mergulharem no fogo em busca de sobreviventes enquanto outros procuravam por tinas e bacias de madeira. Mulheres e crianças assistiam de uma distância segura, temendo que o fogo se espalhasse, enquanto os homens se uniam numa corrente, passando os baldes de mão em mão e espalhando a agua no fogo, apagando uma faísca ou outra. Alguns que entraram a procura de qualquer sinal de vida, voltavam com queimaduras graves e tossindo fortemente, alguns não voltavam.

O sol atrás de mim esquentava minha cabeça enquanto meus olhos se fixavam nos humanos tentando controlar o incêndio e cuidar dos feridos. Senti um peso em minhas costas, algo que me lembrava o sentimento de culpa, afinal, e havia sido irresponsável pela destruição da delegacia. Não pude evitar de pensar, ainda que a aparição de minhas vozes fosse evidente caso eu pensasse demais. E foi o que aconteceu. Após algum tempo de meditação sobre meus atos, pude ouvi-las, murmurando em minha cabeça, me lembrando do que eu realmente sou.

Uma farsa.

Uma farsa e uma assassina.

Você os queimou, Virgini, como fez na igreja.

Ela acha que tem o poder de julgar, faça-me rir.

Tola, não.

Certamente, você não tem o direito de punir ninguém, deusa burra!

Espero que o executor a encontre. Estou ficando impaciente.

Todas queremos ver a verdadeira queda de Virgini!

Controlo minhas lágrimas até certo ponto, mas logo elas voltam a escorrer de meus olhos. Meu terceiro olho permanece fechado, mas percebo algumas faíscas estalando em meus cílios. Tento controlar o choro e pensar em algo que pudesse me trazer paz, mas tudo estava desmoronando, até mesmo eu.

Alheia ao mundo em minha volta, sou pega desprevenida por uma sombra pequena que cobre o sol que atingia minha cabeça. Eu me viro para trás, assustada, mas então vejo a criaturinha diante de mim, com um olhar confuso.

— O que é isso em suas costas, senhora? – A menininha pergunta para mim, uma criança loura com os olhos da cor do céu nublado, com bochechas rosadas e fios encaracolados. Em meio ao emaranhado de cachinhos, alguns laços de fita vermelha, que combinavam com o vestido longo, decorado também com laços vermelhos. Ela carregava uma cesta de flores de cacto em seu braço direito, e uma flor na mão esquerda.

— Nas minhas costas? – Olho para trás, confusa. Quase havia me esquecido que mortais não estavam habituados com minha forma física. – Ah, estas são minhas asas, ou costumavam ser – lembro-me do quão destruídas elas estavam, me entristecendo.

— Asas? Você é um anjo? – De repente, seus olhos mudam de cor, um azul forte de um dia ensolarado. Eles brilham intensamente, repletos de admiração e inocência, qualidades que eu havia perdido há muito tempo.

— Não... Sou outra coisa, não sei exatamente o que – Respondi francamente, por mais que ela não tenha me entendido.

— Você podia voar? – Respondi que sim com a cabeça – Onde você mora?

— Não tenho casa, criança. Meu pai me expulsou, eu quebrei uma de suas regras mais importantes.

— Oh – Ela parecia entristecida. – Você pode morar na minha casa se quiser. Vovô sempre diz que a casa está vazia desde que a mamãe foi embora.

— Embora para aonde?

— Ela foi morar com os anjos, vovô disse que ela é mais feliz assim – a garota continuou – Como você se chama, senhora?

— Virgini, e o seu, menina?

— Anna – Anna estendeu a mão, me ajudando a me levantar.

Ela sorriu de forma sincera para mim, me entregando a flor que estava segurando. Eu a peguei, esboçando um sorriso de volta. Anna segurou minha mão e me guiou através de sua vila até uma casa relativamente afastada das outras, próxima a um lago raso. Havia um cavalo branco amarrado em uma arvore enorme em frente à porta da casinha. Um homem de chapéu estava sentado numa cadeira de balanço ao lado da arvore, fumando um cachimbo. Assim que nos aproximamos da casa, Anna soltou minha mão, correndo em direção ao homem e gritando por ele. Ele a pegou no colo e a girou no ar, enquanto ela ria, radiante. Sua cesta de flores estava no chão enquanto dois cachorros a cheiravam e latiam por Anna, lambendo-a quando o homem a pôs no chão. De repente, Anna e o homem começaram a se olhar, conversando sobre algo enquanto ela apontava para mim. Ele me olhou com um ar desconfiado e ela o puxava em minha direção. Não compreendia o que estava acontecendo, e o homem olhou minhas roupas, desaprovando minha presença.

— Então você é amiga da Anna? – Notei que o homem mancava de um lado – Como você se chama?

— Virgini – Respondi, observando-o detalhadamente. Ele tinha uma barba grisalha volumosa e um olhar cansado. Seus lábios finos mostravam a voz grave e rouca que ele possuía, de alguém que já havia visto de tudo.

— Anna, querida, por que você não entra um pouco? – Apesar do tom suave, notava-se seu ar autoritário. Anna assentiu com a cabeça, obedecendo sem pestanejar. Assim que a menina entrou na casa, o homem se voltou para mim – Escute, Virgini, eu não sei quem você é ou o que você quer com a minha Anna.

— Eu já disse a ela, não preciso me explicar para você – Da forma mais tranquila, eu o respondi.

— Você pode ficar, por hora – ele continuou, me ignorando –, mas toque um dedo na Anna ou machuque-a de qualquer forma – ele se aproximou de mim, me desafiando – e eu não me importo se você é anjo ou um corcunda deformado, eu vou te caçar, e eu vou te matar – eu sentia sua respiração quente em meu rosto, o ar saindo de suas narinas como se fosse um touro com muita, muita raiva. Por mais que aquilo me espetasse, apenas concordei com a cabeça. Me interessava como as pessoas podiam ser diferentes e como os contrastes estavam mais próximos do que eu poderia imaginar.

O homem foi em minha frente, me guiando com sua perna manca para dentro da casinha. Cada madeira do piso rangia com os nossos passos e a cada sopro do vento que entrava pela janelinha de vidro aberta levantava um tornado de poeira do chão. A sala onde nos encontrávamos era pequena, com assentos aconchegantes e decorações nas paredes, cabeças de animais empalhados e, acima da lareira, como a atração principal, uma cabeça que eu jamais havia visto.

— Que animal é aquele – Apontei para o troféu e o velho se sentou numa cadeira de balanço, tirando seu chapéu e se virando para mim.

— Tasiwoó – Disse – O búfalo branco das planícies. Maior besta que já matei em meus anos de caça.

Anna se sentou no colo de seu avô, pedindo para que ele me contasse a história de Tasiwoó. Ele se negou de início, mas a criança insistiu até que ele cedesse. Ao notar sua derrota, sinalizou para que eu me acomodasse próxima a eles, e prestasse atenção em suas próximas palavras.

— Eu estava lá, cavalgando nas planícies com meu grupo de caça. O inverno estava para começar e os animais estavam migrando para o sul e nós estávamos à procura de presas para abastecer a cidade durante a estação. – Ele gesticulava com as mãos e eu quase podia visualizar a lembrança em minha cabeça. – Cavalgamos por horas, nos afastando da cidade, seguindo um rastro que uma manada de búfalos havia deixado. Quando percebemos, estávamos atrás da fronteira dos nativos – Sua língua se contorceu –. Eles nos cercaram, com aqueles mustangues pintados e suas lanças apontadas diretamente para nossos olhos – De repente ele parou, me olhando nos olhos.

— O que aconteceu depois? – Ousei perguntar após cinco segundos de silêncio.

— Veja, meu comanche não é muito bom, querida, ele nunca foi. Eu tentei pronunciar algumas palavras, mas no fim, nem eu sei ao certo o que eu disse – Ele suspirou, se jogando para trás e balançando mais a cadeira, abraçando Anna – Esses nativos nos levaram para uma clareira, onde ficavam repetindo algumas baboseiras de índio, e então ficaram falando Tasiwoó, Tasiwoó e aquela besta apareceu entre as arvores e arbustos – Ele apontou para a cabeça de Tasiwoó. – A maior e mais bela criatura que eu já havia visto, mas eu e meus companheiros estávamos ocupados demais tremendo os sacos para apreciar a majestosidade da fera. Aquela coisa então começou a trotar em nossa direção, como se fosse algum tipo de entidade para aqueles índios malucos. – De repente, ele parou, pensativo.

— E? – Perguntei, ansiando pelo fim da história.

— “E” o que?

— E o que aconteceu depois? Como você matou o búfalo?

— Simples – ele parecia perturbado, escondendo seus sentimentos – Saquei minha arma e atirei até a fera cair. Levei o corpo pra casa, alimentei a vila e empalhei a cabeça – Curto e direto, finalizou a história, me poupando de todos os detalhes que eu necessitava para continuar a imaginar a queda da fera. Não sabia como ele morreu, ou como os nativos permitiram que aquilo acontecesse, ou como eles fugiram da tribo, mas me limitei a agradecer pela história. Senti uma magia pesar do coração do velho, algo que o assombrava até hoje e, em retorno pela situação intrigante que ele e Anna me colocaram, decidi não o importunar mais. – Está tarde, querida, por que não mostra à Virgini onde ela pode dormir?

Dito isso, Anna se levantou do colo de seu avô e me pegou pela mão, sorrindo a todo momento enquanto me guiava para um quarto nos fundos da casinha, pequeno e com apenas uma caminha. Agradeci à menina e me deitei, aproveitando para olhar pela janela enquanto ainda não escurecia. O sol escaldante estava a se pôr e eu conseguia ouvir, mesmo que quase que inaudível, coiotes uivando. Tudo se silenciava ao meu redor e todas as luzes da casa se apagavam.

Não me lembro exatamente como aconteceu, mas ao fechar meus olhos por alguns segundos, adormeci. Acordei desesperada ao ouvir um barulho ensurdecedor. Tentando me recompor, percebi que o barulho se tratava de um grito. E o grito era de Anna.

Libertatem.


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