Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica escrita por Gizelle PG


Capítulo 8
Não fale italiano na Itália


Notas iniciais do capítulo

Olá vocês!
Continuando do ponto que parou (como prometido): o Doutor e as meninas entraram em uma pousada local, e vão arriscar mais uma vez perguntar em qual época estão. Será que eles terão mais sorte desta vez?



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O lugar era um tanto simples –com certeza era sofisticado para a época em que se encontravam –mas nem Luisa, nem Melissa e nem o Doutor se importaram com isso; O simples fato de estarem em outra cidade, em outro país, e ainda por cima em outra época, já era algo emocionante... Como um sonho. –principalmente para as garotas, que não passavam por isso todos os dias, diferente de seu companheiro.

Ao entrarem no estabelecimento, todos correram na direção da pequena recepção, próxima à entrada. Lá encontraram uma mulher de cabelos levemente enrolados e inteiramente loiros, amarrados em uma trança que descia até a cintura. Ela usava uma roupa simples: um vestido marrom, com mangas compridas, que ganhava volume abaixo da cintura. Sobre ele havia um pequeno avental branco que impedia que ela se sujasse. Usava sandálias rasteiras, além de possuir na cabeça um delicado chapéu de palha com uma linda flor do campo, que se sobressaía sob o conjunto.

—Permitam que eu os auxilie. –ofereceu-se a moça, amigavelmente.

—Ah, sim, gostaríamos de saber... Epa!

—Perdão senhor, o que dissestes?

—Ah... Espere só um instante -pediu ele, virando-se para Luisa, que cutucava-o nas costelas. -O que foi?

—É melhor você deixar isso comigo desta vez –anunciou, ajeitando o cabelo. –Sou boa em falar com as pessoas.

—Ah. Está bem então. Mas lembre-se de não mencionar a TARDIS ou as viagens no tempo...

Deixa comigo—ela lançou-lhe uma piscadela, como se disse-se: “tenho tudo sobre controle...

Ele aceitou sem objeções.

—Bom dia! -falou uma Luisa muito espontânea. -Eu me chamo Luisa. Olha, eu e meus amigos viemos de muito longe, de outro país para ser exata...

—Oh! Visitantes! Que maravilha... Adorável esta nossa simplista cidade, não achas?

—Bem, aqui é mesmo incrível... Mas há um problema: não sabemos em qual época estamos.

A moça arregalou os olhos e sorriu, meio confusa.

Às costas de Luisa, o Doutor deu um tapa na própria testa, mas logo disfarçou. Apanhou um jornal e fingiu lê-lo. Melissa mordeu o lábio, checando discretamente as extremidades do estabelecimento. Já esperava ver surgirem portadores de bengalas, prontos para enxotá-los de lá.  

—Perdão? –sorriu a recepcionista.

Ao contrário do que os amigos pensavam, Luisa não estava tão despreparada assim. Ela abordou o assunto com aparente ingenuidade, mas já tinha uma carta preparada na manga. Antes mesmo de se oferecer para conversar com a balconista, a garota já vinha pensando em uma desculpa boa o suficiente para justificar a falta de “senso de tempo” do trio. Restava agora por o plano em pratica, e ver no que ia dar.

—Bem, como eu já disse, viemos de muito longe. Só que, no meio do trajeto, sofremos um pequeno imprevisto: Estávamos há vários dias navegando por um mar violento e traiçoeiro...  -Luisa começou a narrar, inesperadamente, e o Doutor desviou o olhar do jornal, boquiaberto. Melissa piscou, incrédula. A garota continuou, confiante: -... O barco estava já em alto mar quando pegamos uma tempestade terrível que nos arrastou para fora de nosso verdadeiro curso, o que acabou nos trazendo por milagre para essa maravilhosa cidade, num dos mais belos países de todo o mundo. Entende nossa aflição agora? Passamos tantos dias em alto mar, que perdemos completamente a noção do tempo. –dramatizou. Então lançou um olhar aos amigos. Os dois entreolharam-se por um segundo, aflitos: será que aquela história maluca iria funcionar? Parece que logo iriam descobrir...

Para sua sorte, a recepcionista falou:

—Pobres almas! Tantas noites frias em alto mar... Até os mais bravos e instruídos marinheiros perderiam seu senso de direção. –concordou ela, felizmente. O trio ficou bastante animado ao ver que a história que Luisa inventara em cima da hora havia realmente dado conta do recado. –Não se preocupem, meus caros, eu lhes darei uma luz: Vós estais na cidade de Pisa, e o ano é 1703.

—Ah, obrigada! -agradeceu Luisa, muito orgulhosa de si mesma.

—1703? Isso explica muita coisa –sussurrou o Doutor, para Melissa.

—Do que está falando?

—A Itália ainda não havia sido formada em 1703. Tudo o que se tinha, eram regiões aproximadas, falando a mesma língua. Cidades como a cidade de Pisa, entre outras. Mas a verdadeira Itália, como nós a conhecemos, ainda não existia nessa época. –ele explicou, então se calou para ouvir o restante da conversa de Luisa com a moça do balcão. Melissa cutucou o rapaz nesse meio tempo: Algo ainda a deixava intrigada.

—Doutor, mas se essa região futuramente for se tornar a Itália, então a trilha sonora escolhida pela TARDIS não deveria ter sido italiana, para combinar?

—Bem, a TARDIS não costuma “seguir um padrão”, mas se você faz tanta questão... –ele estalou os dedos disfarçadamente e a faixa *Da Temi Un Martello –Rita Pavone começou a tocar em suas mentes. –Feliz agora?

—É. Até que isso é sugestivo. Pena que não tínhamos um martelo quando conhecemos você. Seria muito mais produtivo acertá-lo com isso do que com aquele galho de árvore improvisado...

O Doutor fez uma cara feia para ela e desativou a música. Então, voltaram às atenções novamente para Luisa e a recepcionista.

—Você nos foi de muita ajuda –falava Luisa. –É realmente um alívio saber onde e quando estamos.

—Só fiz o meu trabalho. –sorriu a recepcionista. –E vós chegastes em boa hora! Eu mesma ainda não creio que poderei presenciar o fantástico acontecimento que mudará o destino desta cidade para sempre...

—Desculpe, mas o que exatamente você quer dizer...? -perguntou o Doutor, após um longo ínterim em que sua voz não era ouvida em voz alta. Mas ele não estava calmo como antes... Parecia intrigantemente preocupado. -Me desculpe Luisa... Eu me segurei o quanto pude, mas esse tipo de comentário é meu departamento! -continuou ele, franzindo a testa e começando os seus interrogatórios. –Eu ouvi bem? Você disse que a cidade mudará para sempre? –perguntou ele à recepcionista, apoiando-se no balcão.

—Sim senhor. É o que todos estão dizendo: “Mudará para sempre” é uma boa definição para os acontecimentos futuros que envolverão esta cidade. Pisa nunca mais será a mesma. As pessoas estiveram esperando tanto por esse momento... Estão tão empolgadas!

—Como assim? Por que a cidade nunca mais será a mesma? Pessoas a esperar pelo quê? O que mudará essa cidade???

—O senhor faz muitas perguntas... -disse ela, encarando-o de um modo curioso, porém, amigável. -Mais acho que posso esclarecê-las: Teremos um evento importantíssimo na cidade... Algo realmente grande e empolgante.

—Vão ser atacados? -interrompeu o Doutor, sem ouvir as ultimas explicações da moça sobre o tal evento. -Talvez seja esse o motivo pelo qual a TARDIS nos trouxe aqui... -murmurou ele com seus botões (infelizmente, alto o bastante para a moça conseguir ouvir o que ele dizia).

TARDIS? Como? Atacados?—repetiu ela, confusa.

—Ah! TARDIS é o nome da nossa embarcação—disfarçou Luisa, bem a tempo. Até aí, o Doutor nem percebeu a confusão que quase causara. Estava focado demais em suas reflexões.

—Vocês não serão atacados, serão? Andaram em guerra com algum país vizinho ultimamente ou coisa parecida? -indagou o Doutor, insistentemente, à recepcionista.

—Por tudo que é mais sagrado, não! Não seremos atacados! -disse a moça, de testa franzida. -O que faz o senhor pensar uma coisa dessas...?

—Nada. -desconversou ele rapidamente, vendo que logo teria de começar a dar explicações. Porém, não estava nem um pouco a fim. Sinceramente, era uma coisa complicada, demorada e desnecessária, sobretudo para se fazer naquele momento. -Você dizia...?

—Ah, sim. Estava me referindo a grande reinauguração da Torre! -a recepcionista fez uma pausa, olhando para os três com animação. –Já devem ter ouvido falar sobre ela: A Magnífica Torre de Pisa.

—EU SABIA! –o Doutor deu um murro tão forte no balcão que as duas meninas e a recepcionista se sobressaltaram. –EU SABIA QUE O CULPADO ERA... Espere! Ah, você disse Torre de Pisa? –concertou ele, rapidamente.

—Torre de Pisa? –engasgou Luisa. –A TORRE DE PISA? A mesma Torre de Pisa dos cartões postais? –sussurrou ela para o amigo, que murmurou em resposta um decisivo: “aparentemente sim”.

—Estamos tão animados! A notícia se espalhou... Esta manhã estava em todos os jornais. Todos estão falando sobre a reinauguração! E será magnífica, com certeza! Eu mesma jamais imaginei que viveria o bastante para presenciar tal feito. –tagarelou a balconista. -Não sei se vós conheceis a história... Mas a torre de nossa cidade é muito antiga e especial. Ela começou a ser construída no século XII, em 1173, e demorou 200 anos para ficar pronta, somente em 1370; Dizem que logo a princípio, a Torre começou a apresentar um certo problema estrutural que a levou a inclinar gradativamente, com o passar dos tempos. Meus antepassados costumavam contar-me que a torre foi interditada diversas vezes, e as pessoas foram aconselhadas a ficar longe dela, para evitar possíveis acidentes. Durante muito tempo, ela permaneceu fechada para o público, enquanto tentavam consertar seu problema estrutural. Agora, finalmente, depois de tanto tempo de espera, ela será novamente inaugurada, e eu não perderei isso por nada no mundo! –disse a recepcionista, empolgada. Esta inclinou-se sobre o balcão, de frente para o Doutor e, brincando com sua gravata-borboleta, baixou o tom de voz, e disse: -E... Só entre tu e eu: Meu primo fez parte da equipe responsável por esta última reforma; Ele trabalhou muito nela... Como somos parentes, poderei visitá-la muito antes da reinauguração. Se quiseres se juntar a nós amanhã, bem cedo... Poderíamos ir todos juntos.

—Isso seria fantástico! –animou-se ele, sorrindo abertamente para a garota-recepcionista. -Mas, não podemos aceitar. –recusou o Doutor, inesperadamente. Seu sorriso havia desaparecido do rosto.

Luisa lançou-lhe um olhar espantado que exigia uma boa explicação esclarecedora, e bem rápido. Mas a recepcionista manifestou-se primeiro.

—Ora, por que não pudestes aceitar? Tens outros planos? –perguntou a moça, meramente decepcionada, voltando a endireitar o corpo por detrás do balcão.

—Não, não! Isso é maresia. Ele está cansado e confuso... Mal sabe o que diz! Dê-nos um momento. –Luisa puxou o amigo pelo braço, até um canto, como uma criança puxa os pais até uma vitrine de uma loja de brinquedos, e disse: -Ei, qual o problema? Por que não aceitou o convite? Não podemos ver a reinauguração?

—Não tenho certeza... –disse ele pensativo. –Ainda não faz sentido a TARDIS ter nos trazido para essa cidade só para presenciar a reinauguração de uma Torre, independente de quão importante ela for...

—Mas não é qualquer torre! –retrucou a menina, insistente. –É a Torre...

De Pisa, eu já sei! –resmungou ele.

 Luisa pôs a franja castanha e lisa atrás da orelha e contemplou o rapaz, pacientemente. O Doutor suspirou.

—Olha, sei que estão animadas, e acredite, eu também estaria, se não estivéssemos aqui por algum propósito específico, que por acaso, eu ainda não sei qual é! –ele disse. A garota revirou-lhe os olhos, contrariada.

—Pensei que você tivesse dito que era só uma viagem para nos divertirmos.

—Sim, eu também pensei que fosse! –continuou. –Mas agora é diferente...

 Luisa cruzou os braços.

—Diferente como?

—Não sei direito explicar... Alguma coisa me diz que há algo errado nisso tudo. Ah! Mais é claro: Deve ser o meu “faro para problemas” se manifestando... –o Doutor cutucou o nariz. -Ele nunca falha!—mas Luisa não estava interessada nas habilidades de seu nariz. Ela bufou, chateada. O Doutor suspirou, prosseguindo: –Acredite em mim... Sei que a TARDIS não nos trouxe aqui por acaso, e ainda pretendo descobrir o motivo verdadeiro disso tudo! Se algo está nos segurando aqui, com certeza não é bom. Acho que devemos partir imediatamente. Ou o mais rápido possível. Talvez, bem em breve... –concluiu ele impassível; ou quase isso. Seus olhos examinavam a face desapontada da amiga que assentiu descontente, porém, compreensiva.

—Tudo bem... Se você acha melhor. –cedeu ela.

O Doutor sinceramente achava. Ele sabia que, se dessem meia volta e fossem embora, ainda haveria alguma chance de saírem ilesos daquilo tudo. O que mais o preocupava, acima de tudo, era a segurança daquelas duas meninas. E não era para menos: Suas experiências anteriores com companheiros não haviam terminado muito bem (pelo menos a maioria delas). Havia, inclusive, sofrido três perdas recentes... Ele tinha motivos de sobra para se preocupar. No fundo, ele sabia que elas eram novas demais para fazerem parte do seu mundo. O Doutor sabia que suas aventuras não eram nada isentas de riscos e perigos... A questão era: Será que aquelas duas estavam cientes do que estariam colocando em jogo, quando aceitaram viajar com ele? Aquilo nem precisava de resposta.

Entrementes, Luisa continuava tristonha. O Doutor fitou-a, pensativo: Será que ele gostaria de metê-la mesmo nisso? A inocente e doce Luisa... O Senhor do Tempo sentiu um arrepio na espinha. Cada célula do seu corpo parecia gritar para ele desistir daquela loucura. Mas, em contraponto, Luisa estava tão empolgada com a viagem... O que ele diria a ela? Que ouve uma mudança de planos? Que a viagem fora “cancelada de última hora”? Levaria as duas para casa, fingindo que nada aconteceu? Isso tinha alguma chance de funcionar? Sem comentários...

O Doutor tentou permanecer firme diante daquela situação, mas aquela carinha triste de Luisa estava começando a torturá-lo. O Senhor do Tempo não agüentou mais a pressão.

Está bem... Ficaremos aqui, por esta noite.

—O que você disse? –perguntou ela, ameaçando um sorriso, sem acreditar realmente no que ouvia.

—Eu disse que tudo bem. Vamos ficar até amanhã.

 O rosto de Luisa encheu-se de luz e ela sorriu ao abraçar o amigo, que retribuiu o ato, também sorrindo.

—Você é incrível, sabia?

—Não, sou só um velho bobo... Eu nunca dispensaria uma viagem! Ou fazer alguém sorrir, ou ganhar um abraço dessa pessoa... –anunciou ele, colocando as mãos sobre os ombros dela, encarando-a. Por um momento, sua expressão voltou a ficar séria. –Mas eu não menti sobre podermos estar aqui por algum propósito maior. Você se lembra das regras sobre viagem no tempo que eu mencionei? Pois é. Isso tudo não é só diversão... É arriscado. É perigoso, sabe? Alguma coisa pode sair do nosso controle... Do meu controle.—ele fitou-a com significância. –E eu não quero que nada de ruim aconteça com você e Melissa, então... Sugiro que tenhamos muito cuidado. Cuidado redobrado, se for necessário. –o Doutor olhou para um ponto indeterminado, no horizonte. Pela segunda vez naquele dia, sentira uma vibração esquisita. -Não sei o verdadeiro motivo da TARDIS ter escolhido este lugar em especial, para nos trazer, mas algo me diz que não foi para tirarmos umas férias prolongadas...

—É, você pode estar certo... Ficaremos de olhos bem abertos. -concordou uma Luisa radiante e sorridente. –Mas por hora, vê se relaxa! Você está muito tenso...

—Tem razão. Vou tentar melhorar meu humor –ele sorriu de canto de lábios. –Talvez esteja me precipitando demais. Talvez nada de ruim aconteça...

—É! Pense positivo! Podemos acabar nos surpreendendo com o rumo da viagem.

—Falou como uma verdadeira viajante do tempo! –o sorriso dele dobrou de tamanho. –Bem, o que estamos esperando? Vamos contar as novidades para a “senhorita nervosinha”? –ele estendeu-lhe o braço. A mão livre apontando para Melissa, absorta em uma conversa com a balconista.

—Ah, olha essa língua! –riu-se Luisa, entrelaçando seu braço no dele.

Eles já estavam voltando para perto de Melissa no balcão –que continuava a especular a moça da recepção sobre a Torre de Pisa –quando o Doutor parou no meio do caminho, abordando Luisa novamente, sem absoluto aviso prévio. 

—Desculpe, é que eu estou curioso: Como você conseguiu pensar sozinha em tudo aquilo para dizer à moça do balcão?

—Ah, aquilo? Não foi nada... –admitiu ela, simplista.

—O que? Aquilo foi genial! Eu mesmo não teria pensado em nada mais convincente... –disse ele, orgulhoso da atitude da garota. –Você se saiu muito bem.

—Sério? Você achou mesmo?

—É claro que achei! Afinal, nós não ficamos com a reputação de “zombadores” ou “lunáticos” desta vez. A balconista continua nos levando a sério, mesmo depois da sua pergunta... Isso sim é uma conquista!

—É, acho que tem razão... Se bem que, é meio que uma obrigação ser boa nisso... Sabe, eu já fiz aula de teatro. E devo admitir: Sempre arrasei nos improvisos.

—Ah! Eu sabia! Tinha que ser uma artista! Eu sabia que você era especial... Eu sempre escolho os melhores.

 Luisa prestou muita atenção nele, enquanto falava.

—Com isso se refere aos seus colegas de viagem. Como a Rose. –presumiu.

—Sim. –ele parou de chofre; o sorriso se apagando do rosto. Olhou perplexo para a menina, que não esperava sua rápida investida. -Como, você sabe da Rose? Não lembro de ter dito nada sobre...

—Talvez tenha se esquecido –desconversou ela rapidamente, puxando o rapaz para que continuassem andando rumo ao centro do estabelecimento, onde estavam Melissa e a moça do balcão. Estava ficando cada vez mais difícil acobertar a Visualização. –Vamos... Melissa deve estar sentindo nossa falta.

 E assim fizeram. Seguiram para lá num clima cheio de mistérios, segredos e duvidas, mas que logo se dissipou, ao aproximarem-se das duas garotas loiras de épocas distintas, que conversavam abertamente uma com a outra.

 Falavam sobre a cidade. A balconista parecia realmente entendida sobre tudo naquele lugar... Talvez porque, de um modo geral, fazia parte do seu trabalho fornecer informações aos visitantes, sobre as novidades da cidade. Afinal, era assim que eles atraiam seus hóspedes. Quando Luisa e o Doutor se aproximaram, ela abriu um largo sorriso.

—Ah, já voltaram... Nossa, sua amiga é um encanto! Ela fala tantas coisas interessantes... –riu a moça-balconista, divertindo-se. O Doutor olhou para Melissa.

—Ah, Melissa é assim mesmo. Ela era uma criatura selvagem e tagarela que encontramos pelo nosso trajeto. Nós não íamos ficar com ela, mas sabe como é... –ele deu três tapinhas na cabeça da garota, como se acariciasse um animal, então Melissa revidou pisando em seu pé, revoltando-se contra aquele argumento infeliz. O Doutor enrijeceu os membros, então inclinou-se para massagear o pé atingido com ar de descontração, fingindo não se incomodar com a dor. -É como eu disse: Um amor de pessoa...

 Luisa teve que segurar o riso. Disfarçou, olhando as horas.

—Bem... Mais uma vez obrigado. -disse o Doutor, apertando as duas mãos da balconista ao mesmo tempo. –Você foi de grande ajuda para nós, pobres navegantes... –o Doutor e Luisa se entreolharam. -Foi mesmo um prazer conhecê-la, senhorita...?

—Agustina. -respondeu a balconista.

—Ah, Agustina! -repetiu ele, radiante. –Se me permite: Esse nome lhe cai bem como uma luva...

 Ela enrubesceu de leve.

—Ora, muito obrigada, senhor...?

—Doutor. Me chame de Doutor.

—Doutor...? –instigou ela.

—Não, não. Apenas Doutor. –corrigiu ele. Agustina abriu um imenso sorriso.

—Pois bem então: Foi um prazer conhecê-lo “apenas Doutor!” –brincou ela.

—Igualmente. –disse, com um sorriso bobo nos lábios, indo adiante com o cumprimento que parecia que não tinha fim.

—É impressão minha ou eles estão flertando um com o outro? -cochichou Melissa para a amiga, que deu de ombros.

—Vós dissestes que ficarão até amanhã... -cheia de expectativas, Agustina propôs: -Poderiam ficar aqui na pousada, se for de seu agrado. –quando falou, ela olhava diretamente para o Doutor. Seus olhos esverdeados haviam adquirido um brilho deslumbrante naquele momento.

—Ah, nós realmente adoraríamos ficar hospedados aqui... Só que não será possível. Sabe, nós temos outro compromisso...

—Nós temos? -indagou Melissa, que mudou de tom imediatamente, ao ver a cara de repreensão que o amigo lhe fizera. -Ah, sim, agora me lembro... Temos que fazer aquela coisa muito importante...-disfarçou.

—Exatamente. Temos que ir ainda hoje resolver umas coisas em outro lugar... Mais talvez a gente ainda possa se ver amanhã, na Torre.

—Ah, então vais ver a Torre pela manhã! –sorriu ela, esperançosa.

—Com certeza. Eu e as garotas estaremos lá para o nosso pequeno passeio exclusivo. Se ainda estiver de pé, é claro.

—Oh, certamente! Estou acordada desde o canto do galo... Apareçam por aqui amanhã, a partir das cinco, e então passearemos pela Torre antes do grande evento da reinauguração.

—Então está combinado. Até amanhã.

—Sim. Mas, se tu mudar de idéia... A pousada estará de portas abertas para vós.

—Ah! É muita bondade sua... Mas não. Não sou o tipo de cara que muda de idéia... –garantiu. -Acho que, se mudasse de idéia com muita facilidade, provavelmente se trataria de algum clore descarado tentando se passar por mim. Ou talvez um Zygon. Nunca se sabe... É bom ficar de olhos bem abertos.

 Agustina riu.

—E isso tudo significa...? –perguntou, meio confusa, mas sem deixar de achar graça no jeito dele.

—De um modo geral, que se eu voltasse atrás, definitivamente não seria eu mesmo. –resumiu. -Basicamente, não mudarei de idéia. Ou então, não me chamo Doutor.

—Certo. Já percebi que tu és um homem decidido. –concordou Agustina. –Não insistirei mais. Até amanhã, Doutor.

—Até amanhã, Agustina –ele lhe fez um aceno de cabeça e os três saíram da pousada.

Atravessaram a rua e caminharam calmamente pela praça onde estiveram anteriormente.

—E então? O que você quis dizer quando falou que tínhamos que fazer outra coisa importante? -perguntou Melissa, andando no encalço do Doutor.

—Nada. Na verdade, só disse aquilo porque não queria passar a noite na pousada. –falou ele, simplesmente. -O plano é o seguinte: vamos voltar para a TARDIS. Passaremos a noite nela, materializada aqui mesmo na cidade. Amanhã bem cedo, vamos ver o que mais descobrimos durante o passeio com Agustina... Sabe? Situações estranhas ocorrendo, pessoas desaparecendo, coisas inanimadas criando vida... Bem, o ultimo item foi só para descontrair, como já devem ter percebido. Se bem que não é uma coisa muito incomum de acontecer...

 Melissa encarou-o, franzindo a testa, num ato de incredulidade.

—Posso saber de qual manicômio você saiu? Porque estou preste a mandar virem buscar você! E com urgência, muita urgência...

Hã, humanos! Não suportam uma idéia que saia fora do senso comum -ele revirou os olhos. –Como vocês conseguem suportar viver sem ter a cabeça aberta para novas coisas, é só o que eu venho me perguntando durante todos esses séculos...

—Pega leve, Doutor. Melissa só estava brincando com você. –tranqüilizou-o Luisa. –Agora, me diga uma coisa: Com “coisas inanimadas”, você não estava querendo se referir à torre? –perguntou Luisa, retomando o assunto inicial.  –Quer dizer, ela não poderia “criar vida”, certo?

—Não necessariamente. Talvez ela se transformasse em uma espécie de transmissor para alguma coisa... Sabe: Torres são boas nessa função. Mas não creio que seja algo parecido. Não nessa época.

—Então você já tem alguma suspeita em mente?

—Parcialmente, é. Acho que sim.

—Ah, tá. E por acaso isso não envolveria coisas impossíveis acontecendo? Tipo A Torre de Pisa ganhando vida. —insistiu Luisa. O Doutor sorriu.

—Eu não diria “impossível”. Eu diria que é um tanto... Improvável.

—Tudo bem então –ela riu. –Então estamos voltando para a TARDIS agora?

—Sim.

—Aaaah! Mais nem está escuro! –reclamou Melissa. –Por que não podemos andar mais um pouco por aí? Eu gostaria de explorar mais a cidade... –foi então que lhe ocorreu uma idéia. –Olha, por que você não volta para a sua caixinha, enquanto eu e Luisa damos uma volta por aí? –disse, já pegando no braço da amiga.

—Não! Mais nem pensar! –o Doutor negou de imediato. –Você acha que eu vou largar vocês duas por aí, sozinhas? Pode esquecer! Eu prometi a mim mesmo que não deixaria que nada de ruim acontecesse a vocês, Luisa sabe exatamente do que eu estou falando, agora você espera que eu fique sossegado na TARDIS, enquanto vocês ficam expostas a todo e qualquer risco? Não mesmo! –disse ele, decidido.

—Você parece minha mãe falando –Melissa fez uma careta. –Tá, vai... Estraga prazeres! —e saiu marchando, na frente deles. O Doutor e Luisa se entreolharam, andando juntos.

—Você entende, não é? Não está brava comigo...? –perguntou ele.

—Claro que não. –ela balançou a cabeça. –Você conversou comigo sobre isso lá na pousada. Não há o que contestar. O acordo era exatamente este.

 O Doutor suspirou.

—E não é só isso. Como se não bastasse o “show” que nós demos na praça pública, temos que tomar cuidado para não aparecermos muito a ponto de causar alguma alteração realmente grave, na história.

—E isso pode mesmo acontecer? –perguntou Luisa, preocupada.

—Sim. De fato. Pense dessa forma: estamos em uma época completamente diferente de 2013. Aqui é 1703. Mas isso não tem, em hipótese alguma, relação com o número em si, mas sim, com o que ele representa: se você pensar bem, carregamos muito do futuro em nós. Não só nossas roupas, como também, nosso jeito de falar e pensar. Se pensar um pouco sobre isso, vai achar que é bom participar de toda essa troca. Vai até supor que a exposição de idéias futurísticas e antigas, lado a lado, poderiam ser uma experiência muito interessante, assim como foi a conversa de Melissa com Agustina. Mas, devemos lembrar que isso também pode ter conseqüências graves, sobretudo, para o mundo que conhecemos no futuro. Não estou dizendo que Agustina seria capaz de uma coisa dessas, mas, imagine só essa suposição: você viaja para o passado e conhece um humilde sapateiro que se interessa pelos seus sapatos nada convencionais para a época. Como os meus All Stars, por exemplo. Se você for lá e entregar o molde do tênis a ele, o homem irá recriar o calçado e ganhará dinheiro com isso. De modo que o verdadeiro inventor do All Star, séculos mais tarde, não poderá mais investir nessa idéia, já que o trabalho já foi feito por outra pessoa. Agora pense nisso: você não terá apenas trocado os inventores, como também terá mudado a história. E, mudando a história, seja com um mísero grão de areia fora do lugar, você poderá alterar todo o curso das coisas e também o destino da Terra. Claro, neste caso estávamos falando de um sapato, mas eu gostaria que imaginasse isso em uma escala bem maior: digamos que ao invés de um molde de um tênis, você entregasse, a um estranho qualquer, a formula exata para construir uma bomba da segunda Guerra Mundial, na Idade Média, por exemplo? Já imaginou o estrago que isso causaria? E esse ainda é um dos casos mais simples para usar como exemplo... Há outras situações, em que você pode pisar numa formiga e mudar toda a história da humanidade, assim, num estralar de dedos. Claro, existem também mudanças positivas... Eu mesmo, já fui responsável por uma penca de acontecimentos importantes na história da humanidade. Nem todos foram positivos, devo acrescentar. Algumas vezes eu me descuidei... Mas isso não vem ao caso. O importante, é que a fase de mudança nunca chega ao fim... São acontecimentos, atrás de acontecimentos, atrás de acontecimentos, num ciclo infindável. Bem, a não ser que o mundo acabe no meio do fluxo de tempo estimado, aí a situação aperta...

—Meu Deus –Luisa arfou. –Melhor ter essa conversa com Melissa também...

O Doutor riu.

—Talvez mais tarde. Fiquei cansado só de pensar.

—Ah, Doutor...-a dupla teve que parar de andar, pois Melissa tinha empacado à sua frente, barrando a passagem.

—Melissa! Que droga está fazendo? –resmungou ele. Luisa lançou-lhe uma olhada feia.

—Doutor, está sendo rude com ela. Como espera que a Méli goste de você, agindo desta maneira?

—Ah, desculpe. Eu tenho esse pequeno “problema”. Se importa em me ajudar a me policiar? Eu tinha uma amiga que ficava encarregada disso, mas ela partiu antes que eu conseguisse me emendar.

—Sem problemas. –concordou Luisa. –Mas comigo vai ser intensivo. Pode ter certeza: se você for rude de novo, tenho um método eficaz para concertar isso de uma vez por todas! –garantiu, misteriosa.

—Bem, mal posso esperar –ele sorriu, então voltou-se para Melissa. –O que aconteceu?

—Detesto de verdade cortar o assuntinho de vocês –Melissa desdenhou. –Afinal, apesar de não saber o teor da conversa, é impossível não constatar que você estava tagarelando explicações complexas e sem sentido, da qual ninguém nunca entende nada...

 O Doutor fez um sinal para ela esperar.

—Você pretende chegar à algum lugar com essa interrupção ou isso é só um pretexto para me fazer perder o meu raciocínio? 

—Ah, bem, acho que os dois... –sorriu ela, pretensiosa. –Mas espere! Para onde estamos indo? Não me lembro de termos feito esse caminho quando chegamos... Foi mesmo por aqui que nós passamos inicialmente?

—Ah! Mas vocês humanos são “uma coisa!”.—reclamou ele, com azedume. -Não conseguem nem se lembrar do caminho que fizeram para chegar aqui! Sabe, eu já viajei muito na companhia de seres humanos, mas acho que quanto mais velho e intolerante eu fico, mais tolos e esquecidos vocês ficam...

 Luisa deu-lhe um tapa doloroso no braço.

—Ai! O que foi? –gemeu, abismado. Luisa fazia a mesma cara feia da antes. -Estou sendo rude de novo?

—Está sim. –respondeu ela, só de olho nele.

—Ah, mil perdões! É sério... Eu peço desculpas. Vivo esquecendo que vocês não tem a mesma capacidade de um Senhor do Tempo, de gravar de imediato um caminho pelo qual só percorreram uma vez na vida.

—Ah... Então quer dizer que o cabeça de vento tem memória fotográfica? –provocou Melissa. –Muito bem, então está decidido: Mostre-nos o caminho certo, “senhor superioridade”! —falou, certa de que pegaria o rapaz desta vez.

—Sem problemas! –ele apertou as mãos dela como que num acordo. Estava bastante otimista. -Vejamos: Cabine azul... Cabine azul...–murmurava, fazendo uma vistoria a distancia. As meninas voltaram a caminhar, conforme o Doutor avançava. -Estamos procurando uma cabine azul...

—Tem certeza? Pensei que estávamos indo trocar uma idéia com os donos do manicômio local... –murmurou Melissa. Em seguida, a garota pigarreou, chamando toda a atenção dos amigos para ela: -E por acaso alguém se lembra onde nós a deixamos estacionada pela ultima vez?

O Doutor encarou a Melissa. Luisa, detraída como sempre, esbarrou no ombro do amigo, que havia feito uma parada brusca.

—É claro que me lembro onde a deixei! Não fui eu mesmo quem a estacionou? –disse ele, indignado. - Ela estava num beco! Um tipo de rua lateral sem saída, que dava direto na pracinha em que estamos agora...

—É mesmo? –Melissa cruzou os braços. -Então refresque minha memória: Em qual deles?

—Como assim, “em qual deles”? -repetiu o Doutor inconformado. As mãos na cintura; As sobrancelhas franzidas.

—Olhe à sua volta! Veja você mesmo... -Melissa apontou as ruas ao seu redor, que contornavam a praça; O fato era que todas aquelas ruas eram laterais! Todas eram becos idênticos ao que eles haviam deixado a cabine, da ultima vez. Todas as ruazinhas davam para o mesmo lugar: a praça central e circular. Aquilo dificultada tudo... Era como um labirinto, onde eles estavam bem no centro, com vários caminhos restantes para testar.

Ah... Você só pode estar brincando comigo!—gemeu ele, passando uma das mãos pelos cabelos rebeldes, arrepiando-os. -Eu não acredito nisso! Só pode mesmo ser brincadeira... Diga que é uma brincadeira! Cadê as câmeras escondidas? Esconderam a minha TARDIS, não foi? Diga que isso tudo se trata apenas de uma pegadinha... Por favor, diga.

—Acalme-se! Vai acabar atraindo olhares curiosos para nós! –repreendeu Luisa. –Isso é: De novo.

—Mas não pode ser, não pode!  Eu tenho sido tão cuidadoso com ela... Nem lhe dou mais aquelas marteladas! -reclamava impaciente, andando agora de um lado para o outro com as mãos intercaladas às costas; Colou a língua no céu da boca, como sempre fazia quando estava pensativo. Por fim, se recompôs e voltou-se para as garotas, dizendo: -Tudo bem, novo plano: vamos ter que arrumar um outro lugar para passarmos a noite... Bem, alguma sugestão?

 As duas se entreolharam.

—Bom, já que tocou no assunto... Tem uma ótima pousada, logo aí ao lado, na qual você rejeitou o pedido de se hospedar. –relembrou Luisa.

 -Não, deve haver outro lugar... –negou ele de imediato.

 -Por que não aceita se hospedar? –perguntou Melissa. -Tem medo de alguma coisa? Quem sabe, de alguém... De uma certa balconista, talvez? –sondou, afiada.

 -Ah! Vê se cala essa boca! –reagiu ele, enquanto Melissa se punha a dar risada. –Vamos continuar a procurar a minha TARDIS...

—Espera! Você não tem um sistema de localização automática?  Um rastreador ou algo assim? Poderíamos usá-lo para encontrá-la...–sugeriu Luisa.

—Não. Por que minha TARDIS teria um rastreador? Ela não passa de uma TARDIS tipo 40, queria o quê? Um modelo de luxo? Ela é uma nave espacial e não um uma Ferrari!

—O quê? –espantou-se Melissa. –Como assim a TARDIS não tem um rastreador ???

—Não seja ridícula, “menina irritante”! Por que você acha que minha TARDIS teria um rastreador?

—Bom, já que tocou no assunto, talvez seja pelo mesmo motivo dela ter um alarme de carro! Se ela tem um alarme, por que não poderia ter um rastreador? –retrucou Melissa.

—Eu nunca colocaria um rastreador nela! Ela acharia, no máximo, ofensivo! Pensaria que eu não tenho confiança em sua lealdade e, não quero que ela pense esse tipo de coisa...

 As duas acharam melhor nem comentar. O Doutor sempre apelava para os “sentimentos” da nave, como se ela de fato os tivesse.

—Mas, sobre deixá-la sozinha por aí... Você não acha que ela pode acabar partindo sem nós? –constatou Luisa, preocupada.

—Não. A TARDIS nunca faria esse tipo de coisa... –ele hesitou. -Bem... Ao menos que fosse preciso. Nesse caso, se sentir que sua segurança está sendo ameaçada, ela joga-se no Vórtice Temporal por conta própria, com ou sem piloto. –o Doutor mordiscou uma unha.

—E isso não ocorre com freqüência, não é? –indagou Luisa, receosa, segurando firme no braço dele, tentando conter-se.

—Não. Só espero que a encontremos logo... Estou doido para terminar umas manutenções.

—Ótimo! -reclamou Melissa ironicamente. -Você poderá fazer o que quiser quando nós acharmos a TARDIS... O único problema é: COMO NÓS VAMOS ENCONTRÁ-LA!?

*   *   *

Enquanto isso, não muito longe dali, uma luz azulada começou a se formar no fundo de um dos becos –não o beco onde a TARDIS se encontrava, mas em outro beco qualquer –essa luz foi aumentando e começou a tomar forma: criou a forma de uma pessoa, que no momento seguinte se materializou no local.

Naquele segundo, a forma azulada se tornou instável e reconhecível. Era uma mulher. Andou meio desengonçada até poder apoiar-se na parede mais próxima.

Tinha cabelos castanhos, na altura dos ombros. Usava um vestido carmim, com bojo. Possuía um cinto preto de utilidades que definia bem sua cintura. Calçava um salto alto enorme -pois tinha estatura baixa -e trazia na mão esquerda uma aliança com as siglas minúsculas "L e N", cuidadosamente gravadas no ouro do anel recém fabricado. Seus lábios, vermelhos como sangue, estavam entreabertos. Ela parecia muito agitada e um tanto exausta.

—Ah! como odeio tele-transporte! -arfou, tentando tomar fôlego. -Mais que droga! Quase quebrei meu salto!!! Bem, já não seria a primeira vez... -ela respirou profundamente e apanhou, entre as mãos, um pequeno objeto redondo e dourado, com um botão vermelho destacado no centro. O tal aparelho mais parecia um amuleto, pois estava pendurado como um pingente (um tanto grande) em um cordão dourado. O objeto era um tele-transporte. Ela retirou-o por completo de um dos bolsos do cinto funcional, colocou-o no pescoço e escondeu-o dentro do bojo do vestido.

 Ela correu até a esquina do beco onde observou o movimento. Seus olhos avistaram um homem e duas garotas atravessando a praça, pareciam estar discutindo. Então seu rosto de abriu em um sorriso ao avistar a pequena pousada.

—Não acredito que foi tão fácil! –exclamou, então conferiu o relógio de bolso prateado que carregava consigo. –Oh, meu Deus! O tempo está passando... Não, não, não... Sem distrações! Deixe isso para quando você voltar para a festa. Certo... Tenho que agir agora mesmo! -e sem pensar duas vezes, correu, com certa dificuldade (estava de salto) até a pousada. Quando entrou, acabou fazendo Agustina, a balconista, se assustar: esta estava detraída lendo um artigo no jornal sobre a reinauguração da Torre de Pisa.

—Pela Madre Pisana! –sobressaltou-se Agustina, atirando o jornal pelos ares. Pode se dizer que o que mais chamou-lhe a atenção naquela estranha figura feminina foi, sem dúvida, o vermelho, curto e provocante vestido. -Posso ajudá-la?

—Acho que sim...-a garota olhou para ambos os lados, parecia querer ter certeza que ninguém estava vindo, então falou: -Pode me dar um copo d’água, por favor? É que estive correndo há muito tempo...

—Certamente, podes aguardar um instante...? -disse Agustina, um tanto confusa, mas gentil como sempre. Ela contornou o balcão e sumiu por uma porta, em busca da cozinha.

—Isso, vá. –murmurou a garota de vermelho, consultando novamente o relógio de bolso prateado. Inquieta, ela fechou a tampa do objeto.

Tenho que agir rápido!!!—disse a si mesma. Sem mais delongas, abriu um dos bolsos do cinto, procurando por algo. Por fim, tirou de dentro um objeto comprido e fino, embrulhado. Rapidamente desembrulhou-o e ficou a contemplá-lo: Era um lápis. Segurou-o nas mãos, como que se passando a ele uma força invisível e depositou-o, então, entre os outros lápis de um porta-lápis de madeira que estava sobre o balcão de recepção. Aquele lápis era diferente dos demais; Era mais formatado e reluzente, além de ser bege (enquanto os outros eram pretos), tinha uma pequena borracha vermelha na extremidade oposta à da grafite e, gravado horizontalmente na madeira, havia uma frase com o dizer:

a criatividade, é a alma do artista"

Ela os misturou, camuflando o lápis bege entre os outros. Com certeza ninguém desconfiaria de um simples e frágil lápis, no meio de tantos iguais

—Trabalho concluído. Parabéns pra mim! Bem, parece que é só isso... -falou a moça, agora parecendo um pouco mais tranquila. –Ufa! Eu nem acredito que foi tão fácil... Eu realmente consegui fazer tudo como eles disseram -dizia ela, orgulhosa de si mesma, quando:

  “BI! BI! BI! BI!...”

 Ela olhou imediatamente para seu busto, confusa.

—Por que vocês estão apitando? Não deveriam fazer isso... Deveriam?

 Ergueu a cabeça para ter certeza de que ninguém mais estava olhando, então colocou a mão dentro do bojo do vestido, discretamente, e arrancou o verdadeiro culpado: o tele-transporte. O objeto estava programado para apitar –de um jeito irritante e chamativo – para que a garota soubesse a hora certa de partir, (a única coisa, é que ela não sabia deste pequeno detalhe, até aquele momento).

 Na real, era difícil imaginar que aquela garota aparecera do nada, em um tipo de “missão”, apenas para colocar um simples lápis num porta-lápis comum: será que haveria algum propósito em tudo isso?

 -Ah, menos mal! Pensei que meus seios estivessem com defeito... -disse ela, bem humorada. –Tá legal... Não posso mais me demorar aqui... Acho que esse era o sinal. Tenho que partir agora mesmo! –por fim, apanhou o cordão dourado e segurou-o com as duas mãos, na altura do peito.

 -O.K. Lá vamos nós de novo! Espero que tenham guardado um pedaço de bolo para mim... Eu adoro casamentos! -e ativou o aparelho, que voltou a envolvê-la na luz azulada do tele-transporte e a fez desaparecer, sem deixar vestígio algum.

Uns segundos depois, Agustina voltou à recepção. Vinha trazendo um copo com água.

—Pronto. Aqui está... -Agustina piscou inconformada: a mulher havia sumido. Com ingenuidade, apenas pensou que a garota tivesse mudado de idéia sobre a água e resolveu ir embora. Assim, voltou aos seus afazeres, sem grandes preocupações. Colocou o copo sobre o balcão, apanhou o jornal que estivera lendo antes da moça aparecer, e voltou à leitura. Quase que seguido disso, apanhou um lápis do porta-lápis, para marcar alguma coisa no jornal: por pouco não apanhara o lápis bege. Esta nem percebeu que ele estava ali. Afinal o que o tornava tão importante e diferente dos demais? Por que fora trazido por aquela mulher? De onde ela viera? Para onde foi?

*   *   *

Enquanto isso, na pracinha logo à frente, o Doutor e as meninas andavam apressados. Já estava escurecendo, e eles decidiram parar de procurar a TARDIS por aquele dia. Contudo, as perguntas das garotas não paravam de surgir:

 -... Mas estando em Pisa, não devíamos ouvir as pessoas falando latim ou italiano? Ou é psicose minha? -comentou Luisa.

 -É, e mais: Como você explica nós três termos entendido o que Agustina nos disse, se ela estava falando outra língua? E como ela nos compreendeu? Ela estava falando outra língua, não? -continuou Melissa. Ambas olhando duvidosas para o amigo que parecia divertir-se com suas perguntas. -Dá pra nos explicar? Ou acha que somos tolas de mais para compreender seu raciocínio... “Homem Espacial!”

 Atravessaram a rua. Pararam na calçada em frente à pousada de Agustina. Sem nem se dar conta disso, o Senhor do Tempo voltou-se para as amigas:

 -Acalmem-se as duas: Vou responder a todas as suas perguntas... Primeiro: Sim, o plano continua o mesmo. Nós vamos ficar aqui até amanhã. Até porque, sem a TARDIS não poderíamos partir nem se quiséssemos. Segundo: Sim, nós realmente conseguimos nos perder da TARDIS... E não, eu não faço mesmo idéia de onde ela possa estar. Terceiro: Agustina estava realmente falando outra língua. Latim: muito provavelmente. Italiano: pouco provável. Por conta de estarmos em 1703. Lembram-se do que eu falei? A Itália ainda não estava unificada nessa época. Enfim, Agustina conseguiu nos entender e, claro, estando na antiga cidade de Pisa, nós realmente deveríamos estar ouvindo as pessoas falando latim, mas não estamos. Isso tudo está ocorrendo por causa da TARDIS.

 As duas o encararam como se ele estivesse falando grego.

—Ai, ai... Humanos! -resmungou ele revirando os olhos. -Tudo bem, escutem agora com muita, mais muita atenção: A TARDIS tem poderes psíquicos. No momento em que as pessoas entram nela pela primeira vez, a minha nave invade suas mentes... Mas não de um jeito ruim. –acrescentou, logo após perceber ter usado um termo não muito amigável. –Bem, quando ela faz isso, meio que dá um presente a todos nós: ela instala uma espécie de tradutor em nossas mentes. Um tradutor telepático. Um recurso que nos permite entender qualquer idioma de qualquer lugar...

—Inclusive fora da Terra? -indagou Luisa, espantada.

—Inclusive fora da Terra -garantiu ele, espontâneo.

—Mais como eles entendem o que estamos falando? -perguntou Melissa, ainda intrigada com aquela história de “tradutor telepático”. –Agustina não entrou na TARDIS, como nós, para poder adquirir o tradutor...

—O tradutor que a TARDIS nos proporciona funciona igualmente para os dois lados: nós podemos entender sem dificuldade o que eles falam, pois para nós, eles estão falando nosso idioma, enquanto para cada um deles, nós é que estamos falando o seu idioma. É tudo muito recíproco! A TARDIS costuma pensar em todos os detalhes... Essa é a minha garota!—disse ele com orgulho.

—Quer dizer que estamos falando latim? -disse Luisa, levando as mãos aos lábios. –Oh, meu Deus! Eu acabei de dizer “latim” em LATIM!

—Estamos sim. Não é emocionante? –sorriu ele, empolgado. –O interessante é que, uma vez instalado, o tradutor telepático nunca para de funcionar, mesmo a distancia... Quer dizer, ao menos que alguma coisa muito ruim aconteça com a TARDIS. Neste caso, como estamos psiquicamente ligados a ela, o elo telepático seria cortado de imediato. Acho que podemos nos permitir interpretar o continuo funcionamento do tradutor como uma garantia de que ela continua por perto, em segurança.

—Ah! Finalmente uma boa notícia –suspirou Melissa.

—Incrível! E você usa esse “tradutor” para nos entender? -abordou-o Luisa, interessada. –Quer dizer, já que você é um Alien e tudo mais...

—Certamente! –afirmou ele. -De que outro modo eu entenderia o idioma Humano? Mesmo parecendo muito com vocês, não falamos línguas parecidas.

—Bem, pode-se dizer que alguns se parecem mais do que outros... –cutucou-o Melissa. Ele lançou a ela um olhar de sarcasmo.

—Deixem disso, vocês dois! –cortou-os Luisa, ainda maravilhada com o tradutor mental. -Mas, me diga: O que acontece se nós falarmos italiano de verdade na Itália? Eles continuam a nos entender?

 O Doutor contemplou-a, com uma espécie de nostalgia no olhar.

—Há algum tempo atrás, eu tive uma amiga que me fez uma essa mesma pergunta...

—É? E o que você disse à ela? -perguntou Melissa, curiosa.

—Eu disse: Teste você mesma! —ele fez uma pausa, abrindo um sorriso. –Então lá foi ela: Tentou falar Latim com o povo de Pompéia...

—Pompéia? Já li sobre essa cidade! Ela foi toda tomada pela lava do vulcão... Dizem que as pessoas correram para a praia ao invés das montanhas... -falou uma Luisa muito séria. –Espere só um momento: Você já esteve em Pompéia?

—Pois é... Pompéia foi uma grande escolha. Literalmente. Consegui salvar uma família da ira do vulcão... Tudo graças a ela, essa amiga minha. –ele comentou. Por um momento, seus olhos ficaram tão brilhantes quanto as primeiras estrelas que surgiam no céu noturno e limpo de Pisa. –Enfim, falar Latim com os habitantes da cidade não deu nada certo. Nós tentamos, mas ninguém entendeu uma só palavra do que dissemos. Por tanto a lição de moral é:  “Se você tem um tradutor e pretende usá-lo, então não fale Latim em Pompéia!”  Ou... Se preferirem, neste caso: “Não fale italiano na Itália!”

—Você está tentando dizer que se falarmos italiano ou latim, vão nos escutar pronunciando outro idioma? Talvez o nosso próprio...? –arriscou Luisa.

—Provavelmente –ele avistou a pousada de Agustina, às suas costas. -Apesar de que... Estando mesmo aqui, não posso deixar de sentir uma imensa atração em dizer: Multo Bane!

 Luisa ficou pensativa por um instante.

—Qual era o nome da sua amiga? –perguntou a menina. O Doutor pôs as mãos nos bolsos.

—O nome dela era Donna. Donna Noble. E ela era brilhante. Meio mandona e autoritária também... Mas tinha um grande coração. –terminou, com um quê saudosista.

 Luisa ficou a observar o amigo, com carinho.

—Ela parecia ser legal.

—Ela era. –ele assentiu. –Sabe, não costumo falar muito sobre meus amigos... Por que dói. Porque sinto saudades... Por uma junção de coisas... Mas, deixar de falar neles também não é a saída. –Melissa se aproximou dele também. Parecia mais desarmada agora. –Todos eles fizeram história... Cada um ao seu modo. E merecem ser lembrados, e ter seus nomes mencionados muitas e muitas vezes. Afinal, eles sempre foram o melhor de mim.

 Luisa e Melissa sorriram para ele. O Doutor prosseguiu:

—Me perdoem se eu estiver sendo cuidadoso demais com vocês... Eu sei que prevenção é importante, mas de certo modo, isso tira a graça da aventura, não é?

—Totalmente –concordou Melissa. –Mas a gente entende você. Só... Pega leve cara!

O Doutor sorriu.

—Prometo que vou tentar ser menos “super-protetor” –as duas meninas se entreolharam, sorrindo.

—Pronto para enfrentar uma noite inteira em Pisa? –Luisa estendeu a mão para ele. Ela e Melissa já estavam na porta da pousada.

—Vocês duas primeiro –ele ajeitou a gravata-borboleta.

O trio entrou no estabelecimento. Agustina imediatamente levantou a cabeça que estava metida novamente atrás do jornal. Ao vê-los de novo ali, parados em sua frente, sorriu dizendo:

—Ora, mudastes de idéia afinal! Então, diga-me: Tu não se chama mesmo Doutor, não é?


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Notas finais do capítulo

Agustina é uma fofa, né? Devo admitir que tive que ter várias inspirações e muita pesquisa para conseguir criá-la e ambientá-la de acordo com a época retratada.
Eu quis dar um sotaque antigo a ela... Espero que tenha ficado bom.
A aventura na Itália continua na próxima semana em "O Lápis Impossível".
Espero vocês lá!



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