Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica escrita por Gizelle PG


Capítulo 66
Os Rivais


Notas iniciais do capítulo

Oi!

"O Doutor e Luisa estão nas mãos dos Sextos. As coisas podem ficar complicadas"



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O Doutor piscou, perplexo. Fazia muito tempo que não era ameaçado por humanos. Bem, na verdade...

Que ridículo! Não somos valiosos... –afirmou o Senhor do Tempo. -O que pretendem? Vão pechinchar uma cafeteira elétrica na era dos dinossauros?

—Esperemos que algo mais valioso. –disse Mira, superficialmente.

—Isso é um absurdo! Não pode nos usar como moeda de troca... –Luisa manifestou-se também. -Não somos objetos! Somos pessoas!

—É? –Mira fez um gesto débil. –Quer saber, pirralha? Eu não dô a mínima!

Falta de educação é padrão por aqui ou é só você?—o Doutor recriminou. Mira fuzilou-o com o olhar.

—Você não tem permissão para se impor no território dos Sextos. –ela se aproximou do Doutor, ficando com o rosto apenas alguns centímetros de distancia dele. -Vocês não são nada aqui, compreendeu?

O Doutor sorriu, contraditoriamente.

—Você gosta quando falam perto assim de você, Mira? Porque eu francamente acho desnecessário. –ele disse com sarcasmo e ela ficou fitando-o com os olhos enraivecidos, sem mover um músculo. –Isso era para me intimidar? Porque não deu muito certo...

Mira parecia tomada por cólera, mas o bom senso ainda suplicava que não partisse para cima do Doutor. Bom... Ou era o bom senso, ou então ela tinha planos maiores.

—Prisioneiros não tem privilégios aqui, entre nós. Se quer direitos iguais, então pense duas vezes antes de sair debaixo da asa do comandante Taylor. A floresta é território incerto. E território incerto é meu território.

O Doutor olhou de esguelha para Luisa, sem reação.

—Ah! Então a floresta é sua? Engraçado, porque não vi seu nome em nenhuma placa de aviso. –o Doutor tirou sarro.

Mira franziu os olhos.

Não sabe com quem está se metendo...

—Isso é algum tipo de ameaça? –ele entoou.

Mira fez cara de pouco caso.

—O que você acha? –em seguida, deu uma chave de braço nele e deixou-o imóvel no chão.

—Doutor! –Luisa abaixou-se para ajudá-lo, sem tirar os olhos de Mira. Teve medo que ela fizesse algo ainda pior. Por fim, cedeu, quando já tinha o amigo nos braços. –Você está bem?

—Eu devia ter controlado minha boca. –ele lamentou, com uma das mãos na coluna. –Não sou mais tão jovem para me recuperar rápido de uma surra... Ai!

—Taylor! –Mira gritou, inesperadamente. Logo, um rapaz alto, magro, pálido, de ar sombrio, pele macilenta, aparência doentia e com traços de loucura eminente, irrompeu no espaço, juntando-se a mulher. –Nossos homens encontraram pessoas para o ritual.

—Bom. Muito bom. –o outro disse, satisfeito. –Quem sabe isso seja suficiente para abastece-nos por um longo tempo.

—Taylor? –Luisa indagou, apreensiva. –Você é parente do comandante...?

—Eu sou filho dele. Filho do maldito comandante Taylor!—o rapaz disse com rispidez e pareceu ainda mais sombrio e obscuro. –Sou Lucas Taylor. Membro permanente dos Sextos. Herdeiro de Terra Nova.

—Mas o que você está fazendo aqui? –o Doutor não se conteve, apoiando-se nos joelhos para se levantar. –Seu pai parece ser um bom homem...

—Depende de como você vê as coisas. –retorquiu Lucas, com veemência. –As pessoas na colônia o vêem como um herói, talvez... Não sei o que ele finge ser para os outros. Só eu sei quem ele realmente é.

—Entendi. Como de costume, está revoltado com alguma coisa do seu passado. Algo que ficou marcado entre você e seu pai e que faz jus somente a vocês, presumo. E, por causa desse suposto mal entendido, quer descontar no resto de nós... –o Doutor descreveu. –Ah... Lucas, Lucas... Essa é a velha história das Doze Galáxias! Uma típica lavagem de roupa suja em publico, da qual todo mundo paga o pato, simplesmente por estar no lugar errado e na hora errada, e ninguém sai vingado. Uma pura injustiça colossal!

—Pouco me importa o que você acha, Doutor. Eu seguirei com o plano e você não ficará no caminho dos Sextos. Pelo menos, não por muito tempo... –ele abriu um sorriso glorioso e um tanto satisfeito, como se estivesse envolvido com uma piada particular, o que deixou o Doutor um tanto incomodado. Do que é que ele estava falando?

—Você disse meu nome... –o Doutor pensou em voz alta. –Você disse meu nome! Como sabe meu nome?

Lucas nem se preocupou em desconversar. Simplesmente ignorou-o.

—Vamos, Mira. Leve-os ao Campo do Desespero. Precisamos começar logo...

—Á Ordem dos Seis Sábios já chegou?

—Chegarão em breve. Mas não devemos deixá-los esperando... Você sabe como nossos clientes são... Exigentes. –e fitou os dois prisioneiros com malicia.

Ordem dos Seis Sábios.—o Doutor repetiu. –Desculpem a intromissão... Mas que negócio é esse?

Andem!—perdendo a paciência, Mira puxou Luisa pelo braço com violência. A menina foi pega desprevenida, por isso tropeçou com a ponta do tênis e caiu de quatro no chão. O Doutor tomou as dores dela.

Nunca. Mais. Toque. NELA!—ele enfrentou Mira, cara á cara, sem recuar, sem temer, sem nem ao menos fraquejar com o semblante profundamente irritado. Mesmo sabendo que ela poderia detoná-lo. Mesmo sabendo que ela, com seu porte atlético e maduro, só precisaria dar uma rasteira, para que ele já estivesse, de novo, estirado no chão. Uma veia abaixo de seu olho esquerdo até chegou a pulsar, ao incorporar sua versão mais séria e revoltada. Ele defenderia a amiga, mesmo que isso acabasse com ele. Porém, Luisa tinha outros planos...

—Não, Doutor... –do chão, ela puxou-o pela mão. –Não vale a pena morrer sem motivo.

Sem motivo?—ele protestou, ofendido. –Eu estou defendendo sua honra!

—Eu sei... Mas veja por esse lado: Não vai conseguir ser um bom cavalheiro depois de morto. –ela alertou, por entre os dentes. –Vem... Me ajuda a levantar e esquece isso. –ela instruiu. O Doutor fez que não com a cabeça. –Por favor. –ela pediu e ele acabou cedendo. Ajudou a colocá-la de pé e segurou-a junto de si.

Vamos! Já chega desse showzinho!—rebateu Mira. –Andem! Vocês dois!

Se fizer mal á ela, você vai ver do que eu realmente sou capaz...—o Doutor fez questão de deixar bem claro, quando passou por Mira. Seus olhos repercutiam um brilho pouco gentil, naquele estado de fúria.

Eu não te prometo nada, Doutor. –ela disse com desprezo. –Nem poderia. —murmurou, mais para si mesma do que para os demais. Aquilo fez o Doutor pensar.

Apesar daquele comentário tê-lo deixado insatisfeito, eles prosseguiram com empurrões e tropicões no chão rústico e esburacado daquele canto da floresta. Onde será que estavam? Que lugar era aquele? Por que aqueles Sextos se instalariam justamente ali? O que haveria de tão importante naquele ponto da floresta? Eles trabalhavam para alguém? Quem seria? Tantas perguntas já se formavam, mas infelizmente não havia tempo para procurar por respostas. Algo ainda pior os esperava no final da trilha...

—É aqui. Podem parar. –ordenou Lucas. Eles obedeceram. Não tinham muita escolha.

—Tem certeza de que não ficarão aborrecidos? Nós só conseguimos dois... –Mira ponderou. Parecia preocupada com alguma coisa.

—Vai ser mais que suficiente. –Lucas assentiu. –Pelo menos para começarmos...

—COMEÇARMOS? –Mira trovejou, prensando o companheiro contra uma árvore. Ela apertava-lhe o pescoço com as costas do braço, forçando-o a permanecer imóvel. -Será que o ar puro do inicio dos tempos congelou seu cérebro? Não podemos esperar mais tempo! Precisamos nos comunicar com 2149 agora mesmo! As munições, os remédios... Está tudo cada vez mais difícil de se conseguir! Não podemos contar sempre com a sorte, Taylor! Precisamos fazer o contato hoje mesmo!

Você vai ter! Vai ter o que quer!—ele ralhou, revoltado. Então, sem mais nem menos, foi a vez dele de atacar. Desvencilhou-se dela e imobilizou-a. –Mas tudo ao seu tempo, minha cara... Tudo ao seu tempo. –então soltou-a e ambos se entreolharam, perigosamente.

O Doutor e Luisa se entreolharam, inquietos. De repente, uma luz amarela surgiu, bem no centro da clareira, e a silhueta de seis corpos tomou forma, bem na frente deles. Todos os estranhos seres estavam sentados de perna de índio sob o solo. Pareciam estar meditando ou algo parecido. Entretanto, quando a luz amarela, muito forte, se extinguiu, eles ergueram as seis cabeças, ao mesmo tempo, na direção das quatro pessoas. Mira e Lucas deram um passo a frente, em silêncio.

—Alienígenas. –o Doutor sibilou, para Luisa. As criaturas eram altas e encorpadas. Eram algo parecido com mentores orientais, só que de outro planeta. Possuíam uma roupa lisa e comprida, parecida com a que os monges usavam: algo como um kimono reto, vermelho, e com uma cordinha amarrada acima da cintura. Tinham cada um, duas espadas. Uma presa de cada lado de seu cinturão grosso. Os pés eram compridos, finos e peludos, com apenas dois dedos. As longas mangas da vestimenta caiam-lhe pelas mãos, onde era possível ver de relance, e por entre o pelo marrom, três dedos com unhas bem afiadas. Tinham uma cara marrom e peluda, que era uma verdadeira mistura de gato com porquinho da índia: com grandes olhos, orelhas pontudas, dentuço e com bigodes muito compridos. A imagem chocava de inicio. Primeiro, porque parecia uma criatura terrestre desfigurada; depois, por ser realmente uma criatura intrigante. Mesmo após tantas viagens, era meio difícil se acostumar com aquelas carinhas esquisitas... O Doutor sempre fazia questão de lembrar Luisa de que eles também a viam como algo esquisito, mas mesmo seguindo com essa linha de pensamento, continuava a ser estranho.

—O trato ainda está de pé, ó Sábios Astrais...?—perguntou Lucas, mais em tom de afirmação do que de inquisição.

Um dos monges orientais alienígenas ergueu a mão, em um gesto leviano.

—Vocês trouxeram o que pedimos?

—Sim, senhores. –Lucas e Mira abriram caminho para que os seis seres pudessem encarar, com deleite, os viajantes do tempo inquietos. Os olhos dos bichos brilharam.

—Perfeito. Eles servirão perfeitamente! –um dos aliens bateu duas palmas regradas. Imediatamente, o lugar todo se transformou. De repente, não estavam mais em uma floresta com dinossauros perigosos. Estavam em um tipo de arena de batalhas. Um lugar até bastante pequeno para receber um título desses, mas não parecia haver definição melhor no momento. O Doutor respirava ofegante. Seu corpo estava prevendo algo... Quase como se um mau presságio lhe alertasse. Alguma coisa nada boa ia acontecer muito em breve, e esta certeza já estava começando a incomodá-lo. Luisa pareceu também ter captado alguma coisa. Suas mãos começaram a gelar sem motivo e ela sentiu-se ansiosa, sem mais nem menos.

—Bom. Você já tem o que quer. –Mira quebrou o silêncio, fazendo com que todos os aliens bigodudos se voltassem para ela. Um deles, porém, parecia ser o líder, pois sempre era o primeiro a dirigir a palavra aos seres humanos. Este deu um passo à frente e fitou-a com seus grandes olhos profundos.

—Exato. –ele assentiu brevemente. –Exceto, pelo simples fato de ainda não termos começado com nosso pequeno ritual. –ele ressaltou, ardilosamente. –Posso notar que você está impaciente hoje, Mira. Por que isso? Logo agora quando estão tão perto de conseguir o que querem...

—Foi o que eu disse à ela! –Lucas enfatizou. –Mira se nega a esperar que o processo se cumpra no prazo estipulado. -alegou.  

—Paciência, Mira... –disse o alien. –Você é esperta. Sabe que não podemos aceitar seu pagamento antes de testarmos e termos certeza de que estamos fazendo mesmo uma boa troca. –ele indicou a menina e o Senhor do Tempo, com a mão. Imediatamente, os dois sentiram um arrepio angustiante. Os dois estavam sem dúvida, encrencados. Luisa mordeu o lábio. O Doutor segurou sua mão, como se tivesse adivinhado que ela estaria precisando de um apoio emocional imediato. Os dois se entreolharam, por uma fração de segundos. Ela não estava mais brava com ele. Ele sabia disso. Nenhum dos dois sabiam o que viria pela frente. Ela estava com medo. Ele respirava fundo. Ela ficou com os olhos marejados. Ele sorriu. Ela também sorriu. Estavam juntos para o que der e vier. Isso era o mais importante.

Infelizmente, ninguém estava se importando com seu encorajamento silencioso. As criaturas que se agrupavam perto de Mira e Lucas tinham outros planos que não envolviam, nem de longe, o bem estar do casal.

—Podem ir. Por hora, vamos testar o produto. –disse o alien. Luisa ainda não conseguira engolir o fato de que estaria sendo tratada feito uma mercadoria. Um objeto qualquer... A criatura prosseguiu: -Não se preocupe. Assim que acabarmos, prometemos que a primeira coisa que faremos será comunicar a vocês. Os Sextos e o mestre Lucas receberão sua recompensa de acordo com nosso aproveitamento.

—Não! Isso não estava no acordo! –Mira se rebelou, novamente.

—Mira... –Lucas a puxou para o lado. –Já ouviu aquele ditado “quem muito quer, nada tem?—intensificou. –Eles só estão nos deixando á par das regras do seu joguinho particular. Independente do que eles forem fazer com esses dois, isso não importa! Nós vamos receber nossa recompensa. Confie em mim! Eu os fiz prometer...

Mira semi-serrou os olhos, duvidosa, mas acabou cedendo. Que escolha ela tinha? O futuro dos Sextos estava em jogo... Ela precisava dos mantimentos!

—Está certo. Façam bom proveito. –ela desejou aos aliens, um pouco arredia. –Nós voltamos mais tarde para rever o acordo.

—De acordo. –o líder das criaturas juntou as mãos e curvou-se para frente. Depois que Mira e Lucas foram embora, ele e os outros cinco se voltaram para a dupla, parados ainda no mesmo lugar, só observando, preocupados. –Muito bem, caros amigos... Nós somos os Hipnóts. E vocês serão nosso divertimento, por hoje.

Luisa engoliu em seco. Aquele “divertimento por hoje” ecoou estranhamente dentro de sua cabeça.

—Não demonstre medo. –alertou o Doutor, para ela, em plenos sussurros. –Tá legal: eles são grandes. E aparentemente, muito fortes... E nós nunca os vimos antes. Certo. Isso nos deixa quase sem ação. Muito possivelmente, seremos dominados por eles... Mas não fique amedrontada! Essa nunca é uma opção. Lembre-se: só eu tenho permissão de entrar em pânico. -então, sorriu, sem mais nem menos. –Que é isso!? Vamos ser racionais: não estamos em total desvantagem... Nós ainda temos uma arma secreta...

Luisa arregalou os olhos, esperançosa.

—Temos? E qual é?

—A TARDIS! –ele disse como se fosse óbvio. –Ela será nosso elemento surpresa.

Luisa ergueu as mãos pro céu, indiscretamente. Porém, sua empolgação não era das melhores. Com o passar dos segundos, o Doutor compreendeu que ela não fizera o gesto por satisfação nem entusiasmo. Na verdade, estava bastante irritada.

—Doutor. A TARDIS está na floresta! Longe de nós... Não podemos apostar nossas vidas nela!

—Também, falando assim... –ele fez uma careta, ofendido.

—Sinto muito. –ela se desculpou tocando-o no ombro. –TPM atacando de novo... Desculpe.

—Ah. –o Doutor desviou os olhos. –Bom. Pelo menos você admite que não estamos em desvantagem...

Luisa ergueu as sobrancelhas, com ar de riso.

—Ah, claro! Eles são apenas seis alienígenas enormes e nós somos dois pobres coitados. –ela fez uma careta sarcástica. –Se eu acho que estamos em desvantagem? Talvez. Um pouquinho. Preste um pouco de atenção. –ela disse de um jeito cômico. –Seis contra dois... Só aí já temos uma grade desvantagem!

—Qual o problema meus rapazes? Relaxem!—disse o líder dos Hipnóts, envolvendo o Doutor e Luisa em um abraço amigável, que só os deixou ainda mais ansiosos.

—É um pouco difícil, não concorda? –o Doutor falou, incomodado. Aquela reação social era demasiada suspeita, até mesmo para os Hipnóts. Seja lá o que fosse um Hipnóts.

—Você tem humor, meu caro rapaz! Disso eu não posso discordar... –o alien contorceu a boca felina, com dentes de porquinho da índia, no que parecia ser um sorriso. –Esse é o espírito dos verdadeiros campeões!

—Campeões? –Luisa inquiriu. -Desculpe... Vamos participar de algum esporte?

—Por enquanto, vocês vão lanchar com a gente –disse um outro Hipnóts, que estalou os dedos e fez aparecer uma mesa com oito xícaras de chá, um bule, torradas, manteiga, açúcar e biscoitinhos doces.

O Doutor e Luisa deram de ombros um para o outro. Não sabiam o que estava se passando. O Doutor nunca vira um Hipnóts antes, então não sabia o que de fato aconteceria a seguir. Isso não tranqüilizava nem um pouco Luisa.

—Sirvam-se, prestigiados convidados! –anunciou outro Hipnóts.

O Doutor e a garota se entreolharam. Os dois pensaram a mesma coisa.

—Ah... Queira nos desculpar. Não estamos com fome...  –o Doutor coçou a nuca, desconfortável.

Os aliens se entreolharam. Eles sabiam qual seria o próximo passo.

—Nós insistimos! –um deles deu um tapa nas costas do Doutor que o fez perder o equilíbrio e cair sentado na cadeira, á mesa.

—Ah... Certo. Certo. Ótimo. –o Doutor ponderou, ajeitando a camisa desalinhada. –Acho que agora já estou escutando meu estômago começar a reclamar.

—Brilhante! –as seis criaturas exclamaram satisfeitas, então mudaram o foco inconveniente para Luisa. Ela sentiu as bochechas corarem e afirmou seguidamente:

—Eu... Não sei se devia...

—Pois deve sim! Deve sim! –apressou-se um dos Hipnóts, empurrando-a pelos ombros até a mesa. Ela foi obrigada a se sentar ao lado do Doutor; os demais sentaram-se sem pudor e serviram-se de chá. Permaneceram em silêncio até que um deles comentou: –Pra quê ter tanta cautela? O que ganhamos com isso hoje em dia...?

—Nada! Absolutamente. –afirmou outro Hipnóts, que passava manteiga em uma torrada. –Pronto, menina... Está bom assim?

—O quê? –Luisa ainda estava em choque quando foi bombardeada pela pergunta. –Ah, sim... Está ótimo.

O Doutor sorriu, animadamente.

—Sabem... Nunca imaginei que estaria na era dos dinossauros tomando chá com biscoitos. –comentou. –Olha só pra isso: geléia e calda de caramelo! É o sonho de consumo de todo lunático...   

—Não sei se alguém já sonhou com algo parecido... –Luisa argumentou, mastigando sua torrada. –Poderemos contar isso aos netos...

—Com certeza! –o Doutor assentiu. –Por favor, anfitrião Hipnóts, me passe a calda de chocolate. 

Depois de algum tempo de degustação liberal, eis que houve o momento de servir o chá. Os dois já estavam bastante descontraídos e os Hipnóts apreciaram muito isso.

—Tomem. Vamos brindar ao dia de hoje! –disse o líder Hipnóts, erguendo sua xícara.

—Um brinde com chá? Mais que curioso... –o Doutor ergueu seu copo. –Adoro costumes novos. Tin-tin!

Luisa e o Doutor beberam, mas os Hipnóts apenas fingiram engolir o conteúdo da xícara. Quando o rapaz e a moça colocaram as xícaras de volta no pires, os seis se entreolharam com olhares comparsas e vitoriosos. Conseguiram o que queriam. Em pouco tempo, o Doutor e Luisa apresentaram ambos os mesmos sintomas: a visão se duplicou, tudo começou a girar e a cabeça latejou como se fosse um maldito gongo, estremecendo ao ter a superfície apunhalada com um martelo inconseqüentemente perverso.

—O que é isso? –Luisa gemeu. –Minha cabeça dói... Não consigo ver nada!

—Não entre em pânico! –o Doutor emendou rapidamente. –Ah! Há algo de errado com meu estômago... Droga! Estou em pânico!

Irmãos Hipnóts!—o líder agitou os braços na direção dos demais. –Nossos amigos fizeram a gentileza de cooperarem conosco. Muito em breve, estarão totalmente convertidos! –e riu virtuosamente.

—Como é que é? Convertidos? –o Doutor engasgou. Teria dado um soco naquele trapaceiro, mas estava tão confuso por causa da vista duplicada, que acabaria arrumando briga com um Hipnóts ilusório. Mesmo assim, tentou outra abordagem: talvez não pudesse se defender, mas ainda poderia dar no pé. Bom, ao menos em teoria. –Vamos Luisa! Vamos embora... Eu já cansei desses palhaços! –ele a puxou pelo braço, mas quando ergue-se da cadeira, sua pressão baixou, seus joelhos cederam e ele acabou caindo, levando a companheira junto.

—Ai! –ela resmungou, quando seu corpo bateu contra o solo. –Você está bêbado ou o quê? Vamos embora, Doutor!

—Não estou bêbado! –ele protestou. –Shhh! Fica quieta! Não fala nada! Eu estou me concentrando...

—Concentrando?

—É! É mais um dos meus vários truques... Na verdade, eu consigo saber o que está afetando meu corpo e arranjar um antídoto para combater os sintomas antes que seja tarde... –ele gemeu. –Se eu me concentrar o suficiente, talvez eu possa reverter esse quadro e nos salvar...

—Então ande logo com isso... –Luisa suplicou. –A enxaqueca está piorando... E eu não vejo nada!

—Bem vinda ao clube... –ele arquejou. –Péssimo clube!

—Impossível! –eles ouviram um dos Hipnóts murmurarem. –Eles são mesmo fortes! Sabia que Mira nos traria bom entretenimento, mas isso é quase um milagre! Vai ser divertido por sua coragem á prova...

Luisa abafou um grito de dor e confusão. Apertou as duas mãos contra a cabeça e se encolheu, em desespero. O amigo não estava em melhor situação. Ficou chocado com o diagnóstico, quando este veio á tona:

—Alguma coisa está bloqueando minhas enzimas! O sangue começou a coagular! Os batimentos estão fora de sincronia! Nós fomos envenenados!

Oh, Deus! —Luisa choramingou. –Eu temia que você dissesse isso...

—É Androrignon Anicatiun. Uma substancia encontrada apenas em planetas com superfície arenosa. É completamente tóxica. Serve principalmente para... –ele não conseguiu completar a frase. Arregalou os olhos, então fez uma cara de dor, e disse, bastante aflito: -Não tem jeito... Eu vou ter que me regenerar!

—NÃO! DOUTOR! –o desespero de Luisa só se intensificou, afinal, ela sabia que se ele chegasse á ponto de apelar para a regeneração, então ela estaria completamente perdida. Mesmo sem conseguir ver direito, a garota tateou até conseguir localizar a mão dele, e segurou-a com força. –Você não pode morrer agora! Sabe que não morremos agora! O Oráculo falou, lembra? Nós ainda temos muito pela frente...

—O tempo pode ser reescrito! –ele disse, trincando o maxilar. –Eu não consigo! Não posso impedir! Eu! Eu não... Eu... –e desmaiou, ao que o mesmo aconteceu com Luisa, poucos segundos depois.

 

*    *    *

Acordou na arena. A mesa havia sumido. Não havia nem sinal do Doutor ou dos Hipnóts. Ela estava sozinha. No escuro. Mas não por muito tempo...

Como em respostas ás suas indagações silenciosas, holofotes se acenderam no teto, que era tão alto que chegava a ser quase impossível ver onde terminava. As luzes só serviram para atrapalhar sua vista. Ofuscaram tudo em um segundo, mas no outro, as coisas tomaram novamente forma e ela pode perceber, com espontâneo assombro, que não estava mais usando suas roupas habituais, e que segurava firme em uma das mãos, uma lança espantosamente afiada.

Reparou nas novas vestimentas. Pareceu estranhá-las no começo: eram nada menos que uma armadura feminina. Uma blusa tomara que caia, costurada com fios de ouro e duas conchas prateadas de aço, em cima dos seios, servindo de proteção. Logo abaixo, uma saia com cortes provocantes, um tanto pesada por conta de outros detalhes em aço, revelando parte das pernas e cintura. Nos pés, uma sandália simples que brilhava e era muito leve. Era um típico visual egípcio da nobreza. O tipo de coisa que a rainha Cleópatra usaria. Percebeu, ainda em completo êxtase, que o cabelo estava arrumado, as unhas pintadas e tinha um par de grandes brincos nas orelhas. Brincos que evidentemente não eram seus. Nem sabia de onde vieram. Ela piscou, estupefata, quando contemplou sua imagem no reflexo das unhas, perfeitamente pintadas de prata (á ponto de darem o efeito exato de um espelho). Sim, ela estava maquiada. E vestida de modo provocante. Maquiada e provocativa... Aquela não era ela! Melissa, talvez, mas não ela! Não podia ser! Era um pesadelo...

—Meu Deus! Eu estou tão madura! –ela gemeu. –Como isso aconteceu?

—Tenho uma pergunta melhor pra você... Vossa majestade está com sorte hoje? –uma voz ressoou no espaço e Luisa logo a reconheceu. Pertencia a ninguém menos que seu inimigo Julho César. Não! Não era isso... Ela quis dizer, ao Doutor. Doutor? Mas quê Doutor? Aquele era Julho César! Ou não era? Claro que sim! Reconheceria aquele olhar imprudente á distancia... De qualquer forma, o rosto lhe era familiar, apesar de causar um certo estranhamento por não coincidir com a escolha de roupagens apropriadas: Seu visual atual seguia uma tendência completamente romana. Tinha sob o peito, uma armadura de aço, que deixava os braços de fora. Caia-lhe sobre as costas, uma comprida capa vermelha. A parte de baixo não era nada mais que uma comprida e estranha saia com cobertura de aço, que também era parte do conjunto. Suas pernas, assim como as dela, estavam desnudas. Nos pés, tinham o mesmo tipo de sandálias. Estava armado também com uma lança incrivelmente afiada. Usava na cabeça uma coroa de louros. Os cabelos, normalmente despenteados, (ao menos, era o que ela assimilava), estavam delicadamente penteados para trás e fixos com gel em excesso, ou alguma coisa que substituísse gel naquela época. Por algum estranho motivo, ela sentiu repulsa ao vislumbrá-lo. Ao mesmo tempo que sua estranha reação a assustou. Sentia uma sensação estranha na boca do estômago e teve uma singela impressão de que o sorriso largo do oponente não seria um bom sinal...

—Como é que é? –ela riu, ansiosa. A piada fora mesmo engraçada.

—Se sente com sorte, querida? Ela está ao seu favor hoje? Será que os Deuses estão do seu lado? –ele afrontou.

Como se atreve!—ela respondeu com grosseria. Meu Deus! Nem sabia que era capaz de falar dessa forma... De onde vinha tanto ódio?—Seu desprezível! Sua lábia asquerosa nunca me gerou o menor tremor interno!

—É isso que diz aos seus súditos, alteza? –ele sibilou, maliciosamente. -Porque isso vai mudar, minha querida... –disse, de um jeito impiedoso. –Isso eu posso lhe garantir... Iaaa!!!—e ergueu a lança com as duas mãos, correndo na direção dela, como um alucinado. –Não vai roubar meu reinado, maldita Cleópatra! Isso eu lhe prometo!

Do quê me chamou? Luisa não estava entendendo nada. Mas estava. Como podia? Era como se seu corpo estivesse dividido no meio. Metade estava confusa e achava aquilo tudo um perfeito absurdo. A outra metade suplicava pela batalha... Parecia até estar gostando do modo como aquilo estava se desenvolvendo.

—Ah! Por favor... Você é patético! –ela se desvencilhou com uma facilidade inacreditável, no último instante, deixando o outro passar reto e percorrer mais alguns passos com a lança em punho, antes de frear os pés, dar meia volta e travar o olhar novamente na imprevisível rival.

—Você e seus truques baratos... Não adianta orar para seus gatos, águias, cães, cobras e escaravelhos por aqui! Estamos em Roma, meu amor! Seus deuses são inúteis nas minhas terras!

O Doutor tinha um brilho perigoso nos olhos. Aqueles olhos, que antes irradiavam bondade, agora exalavam ódio, raiva e rancor. Emparelhou a lança ao rosto, empunhando-a como se sua vida dependesse disso. E de fato, poderia depender. Ele trincou o maxilar, enquanto ela respondia com azedume:

—Ao contrário, César! Meus Deuses jamais ma abandonarão! Não importa onde eu estiver... Eles estarão sempre despejando sua força, sabedoria e justiça á meu favor. –ela empunhou a lança mais uma vez. –Você não tem a menor chance! Iaaa!!!

Os dois correram um na direção do outro. Duelaram bravamente durante um longo tempo. Ele fazia movimentos espetaculares com a espada, ela rodopiava como uma bailarina e escapulia, desvencilhando-se, ao mesmo tempo que fazia uma ginástica sensual com o corpo, depois voltava, sem dó nem piedade e tacava-lhe novos golpes mortais. Em um dado momento, ele tentou atingi-la pelas costas, mas ela saiu triunfante. Rodopiou e lascou-lhe um ferimento superficial no ombro, que imediatamente começou a sangrar. Afastou-se com orgulho estampado na face. Queria ver o semblante do Imperador Romano agora. César olhou o corte por um segundo. Esperava que ardesse. Esperava alguma sensação pouco gratificante, mas o que sentiu foi prazer. Apenas prazer. Mas porque reagira desta forma? Não compreendeu de imediato. Continuou a lutar com mais garra que nunca. Abordou-a desprevenida, mas ela acabou sendo mais rápida: chutou-lhe um local sensível, desvencilhou-se e atingiu-o no rosto. Entretanto, seus joelhos não cederam. A imensa dor não aconteceu. O rosto também não ardeu. Novamente prazer. Ele apenas tocou a própria face e abriu um enorme sorriso triunfante. Sentia prazer. Isso era tudo. Prazer por ter feito a melhor descoberta dos últimos séculos: Ele não sentia dor. Podia se machucar quanto fosse. Quanto quisesse! Não sentiria nem uma fisgada. Fitou os cortes com indiferença, depois lançou o mesmo tipo de olhar para a oponente. Indiferença era a palavra chave. Cleópatra o fitou com espanto.

—Está vendo? –ele disse todo cheio de si. –Não pode me machucar... Não pode me fazer mal, mulher devassa! Os meus deuses me tornaram imortal!

O rosto dela se encheu de uma cólera doentia.

Mentira!—ela apunhalou-o na cintura, mas desta vez, foi sua vez de ser pega desprevenida. Ele a encurralou com sua espada, atrás da cabeça, olhou-a com desprezo, depois chutou-a no peito com força e a arremessou para trás. Ela caiu com tudo no chão e ficou lá, imóvel. Julio a contemplou, sem pena.

—É isso que você ganha por tentar competir comigo, cara colega... –ele aproximou-se e fitou-a em pé, com os pés próximos de suas canelas encolhidas. -Uma rainha tão fraca... O Egito perecerá, com você no comando. Porque é isso que você é! Porque é isso que você sempre foi, Cleópatra! Um inconveniente exemplar do sexo feminino. Uma mulher! Você é fraca... Pode fingir ser forte e destemida, mas eu sei que bem lá no fundo, você não passa de uma megera, fraca e indefesa!—ele disse com ar superior, torcendo o nariz. –Você é mulher. Não há lugar nesse mundo para mulheres no comando de uma nação... Esse tipo de estratégia não dá em nada. Você é nada.

Sem dizer uma só palavra, ela deu-lhe um chute na canela que o derrubou. Ele caiu. Obviamente, não sentiu o tombo, mas o jogo sujo dela realmente mexeu com ele. César estava revoltado com tamanha ousadia. Quando deu por si, Cleópatra tinha o pé em cima de seu tórax. As mãos na cintura. O olhar reprovador.

—Pense duas vezes antes de falar mal de minha pessoa e de todo o sexo feminino. –ela disse superiora. Então sorriu amplamente. –Deixe eu te contar um segredinho, meu amor... –ela aproximou-se do rival e pronunciou em seu ouvido: —Eu também não sinto dor. —disse com ar ardiloso. -Fui abençoada pelos meus deuses, assim como você foi pelos seus... Acho que estamos empatados, querido.

César se revoltou ainda mais com aquilo. Odiava aquela mulher! Ela era muito atrevida. Se pudesse fazer um trato com o diabo, pediria para que ele a trancasse em uma cela, jogasse a chave fora e a deixasse queimar no fogo do inferno. Se já se gostaram alguma vez? Evidentemente. Mas, com o passar do tempo... Amantes. Traições. Batalhas. Conflitos. Um pedido de aliança renegado... Agora, o que restava era apenas raiva e puro rancor. Encontraram-se por acaso naquela bela arena de batalhas... Por que não lavar a roupa suja logo de uma vez? Além disso, ela era sexy... Fazê-la sofrer seria divertido. A única coisa com o qual ele não contava, era com o prazer na própria dor. Mas que se dane! Era apenas uma vantagem á mais, que infelizmente, ele não mais tinha somente para si.

—Estou adorando massacrar você... –ela disse triunfante, por cima dele. –Pena que nunca tentamos isso na cama. É tão relaxante...

Ele fitou-a com desejo, por um instante. Quantas vezes mais poderia ter aquela mulher tão desejada, nas suas mãos? Poderia fazer o que quisesse com ela. Ela estava com as pernas abertas, encaixadas contra o tronco dele. Estava em cima dele. Com o peito colado ao seu. Naquele momento, ele soube: só precisava tomar a decisão certa... Que ela seria dele. Totalmente. A batalha ficaria de lado e ambos se envolveriam em uma adrenalina muito maior. Era só fazer a escolha certa...

E ele fez. Inclinou-se e beijou-a com urgência. Aproveitou que ela estava se entregando completamente. Aproveitou que as espadas estavam longe dos punhos. Aproveitou o relaxamento de ambos... Para atacá-la de surpresa. 

Sem dizer uma palavra, apunhalou-a com uma pequena navalha, bem na barriga. Ela ergueu-se indignada, enquanto o sangue jorrava.

O que você fez, seu insolente!—ela trovejou, com as mãos na cintura. –Acabou de perfurar o meu melhor vestido egípcio!

César sorriu torto.

—E pretendo deixar muitas mais marcas em você, minha querida... –ele disse zombeteiro. –Venha aqui... Vamos dançar!

E a batalha recomeçou. Mais brutalmente que antes. Mais incansável que nunca. Os dois estavam amando aquele combate mortal... E a imortalidade era bem vinda. Tudo se tornou mais pesado desde então. A batalha se tornou mais séria e doentia. Os dois se apunhalaram de diversas formas. Em diversos lugares. Sem dó. Sem trégua. Sem piedade. Quanto mais se perfuravam, mais sentiam prazer. O calor da luta aumentava e eles se envolviam como dois enlouquecidos. Não havia quem pudesse pará-los. Não havia quem pudesse impedi-los de serem cruéis. Não havia viva alma, em todo o universo, que pudesse se sentir mais poderosa que eles dois naquele momento.

—Covarde incapaz! Garanto que isso não cicatrizará tão cedo!

—Atrevida insolente! Lhe darei um golpe que jamais esquecerá! Será no formato de um estupendo “C” de César!

Eles estavam conectados de uma forma incomum. Ambos na mesma linha de esperteza, agilidade e estratégia. Pareciam feitos um para o outro. Decorrentemente, a fúria se tornava desejo e o desejo se tornava fúria. Eles já não controlavam mais seus sentimentos. Estavam cegos pela batalha. Apenas sabiam que o jogo tinha que continuar e que, com a imortalidade, poderiam ficar lutando por horas, dias, meses, anos e até mesmo séculos e não se sentiriam cansados, nem incapazes. Era isso que sentiam. Era nisso que acreditavam. Era isso que ocorria. Mas não para sempre. Não sempre.

Já imaginou que sua vida poderia mudar da água pro vinho em um estalar de dedos? E que o vinho poderia voltar a ser água, a partir do mesmo gesto inicial?

Lá estavam eles: A Ordem dos Seis Sábios. Assistindo de camarote invisível a batalha sangrenta sem óbitos. Só esperando o momento certo de agir. De se manifestar. De finalizar. De manipular. De estalar o dedo.

Lá embaixo, na arena, seus fantoches de Cleópatra e Julho César estavam lutando com garra e determinação, sem imaginar o que viria pela frente. Sem desconfiar do que viria no final. Do que ainda os aguardava... Sem questionar sua imortalidade nem por um segundo sequer. Estavam convictos de que a benção viera diretamente de seus deuses e jamais se oporiam á um presente tão gratificante. Afinal, eles faziam por merecer... Eram ninguém menos que o Imperador de Roma e a Rainha do Egito. Não eram?

Sem explicação as luzes piscaram. E tudo ficou em breu por uma fração de segundos. Cleópatra firmou os dedos ao redor do cabo da lança. Tudo só ficava cada vez mais emocionante... César piscou por um segundo, incomodado com a escuridão repentina. Não gostava de surpresas, e movimentos não programados se encaixavam perfeitamente nessa descrição. Gostava de estar sempre á frente do inimigo. Apreciava ter estratégias melhores e caçoar do rival, durante a batalha. “Isso é o melhor que você pode fazer?” era uma de suas frases preferidas, usadas com freqüência por ele em seus duelos. Era ótimo em prever movimentos e bolar estratégias precisas e ardilosas, entretanto, naquele momento, ele estava mais por fora da situação do que peixe fora d’água. Sentiu um formigamento estranho na cabeça. Bem lá no fundo... Como se alguma coisa estivesse dormente dentro de seu cérebro. Balançou a cabeça, meio tonto. Tonto? Como poderia ficar tonto no escuro? Mais um mistério para se investir... A única coisa mais clara que a falta de luz, foi a presença de uma terceira pessoa no recinto, que provavelmente acabara de invadir o lugar. Os dois não viram nada em momento algum, mas o que escutaram, deixou muitas dúvidas...

Primeiro um tropé descompassado, depois uma respiração acelerada, e por fim, uma freada brusca com os pés. Então a voz de uma garota ansiosa e quase sem fôlego roubou a cena.

—Meu Deus! Me desculpa... Me desculpa mesmo... Eu me atrasei desta vez. –ela disse, sem que nenhum dos dois pressentisse de onde. –Eu vim te ajudar... Não podia ter me atrasado. –ela fez uma pausa, sentindo-se culpada. -Isso poderia ter acabado muito mal e seria tudo minha culpa. –tomou fôlego e sussurrou no ouvido de César: –Doutor Quem.

César sentiu o formigamento aumentar gradativamente. O que aquela mulher estava fazendo? Ela estava controlando aquilo? Podia fazer parar?

—Quem é você?

—Não pergunte. Garanto que não faz diferença. –ela disse, indiferente. –Afinal, você vai se esquecer mesmo disso, depois que recuperar a consciência. Ela também. –ergueu os olhos por um instante na direção da rainha egípcia. -Pensará que foi sorte. “Coisa dos Senhores do Tempo”. Essa é praticamente sua resposta para tudo...

—Senhores do Tempo? Do que está falando? –ele tentou se mover em direção á ela. Queria reagir. Onde já se viu se referir á Julio César como “Você”? Ele era um Imperador Romano! Merecia o devido respeito... Ia protestar, mas quando tentou se mover, sentiu tudo ficar imobilizado, como se acabasse de tomar consciência de que não passava de uma estátua de bronze em um museu velho e poeirento. –O que aconteceu comigo? O que você fez?

—Eu reanimei suas células com uma carga extra de Nitrógaro. O reagente certo do veneno ilusório Androrignon Anicatiun, do planeta arenoso. –a garota falou com tom de extrema esperteza. -Vocês vão ficar bem.

—Como ousa... Ai! –Cleópatra deu um pulinho, quando a garota aplicou-lhe o antídoto. Ninguém podia vê-la, mas com certeza sabiam que ela estava lá.

—Muito bem... Certo. –a garota parecia por demais ansiosa. –Preciso ir. Estou atrasada para outro compromisso... Acho que é no Alasca. Bem, de qualquer forma, foi muito bom vê-los... –ela checou o visor do relógio (Deus sabe como, no escuro). -Ótimo! Não demorei mais que trinta segundos. A Ordem dos Seis Sábios ainda não tirou o traseiro do sofá. Nem terão tempo de verificar a falha no sistema porque não haverá necessidade! –ela sorriu amplamente, no escuro, falando contra um aparelho preso ao pulso. –Porque eu terminei meu serviço... Já posso ir agora! –então virou-se para César e disse uma última coisa em tom de recomendação: –Por favor, se lembre de quem você realmente é... Eu sei que é difícil, mas faça um esforço! Lembre-se do Doutor. –e desapareceu no segundo seguinte, ao mesmo tempo que a luz voltou e tudo prosseguiu, como se nunca tivesse ocorrido uma falha no sistema. O líder dos Hipnóts ajeitou-se no assento da arquibancada invisível, satisfeito com o prosseguimento do ritual, sem questionar o motivo da pausa e da falta de luminosidade da arena. Na verdade, estava tão envolvido com a batalha que era capaz de esquecer até mesmo de respirar (e isso valia também para seus outros cinco irmãos). César e Cleópatra prosseguiram com a batalha a partir de onde haviam parado anteriormente, antes das luzes apagarem. A garota do escuro estava certa... Não se lembrariam de nada.

Lutaram bravamente por uma curta seqüência de tempo. Em um último movimento, a disputa acirrada seria encerrada. E esse momento chegaria muito em breve. Os dois já estavam maltrapilhos aquela altura do campeonato, mas isso era sem dúvida o de menos... Porque o momento finalmente chegara. Em um pequeno descuido de César (sentiu uma dor de cabeça intensa e inexplicável), Cleópatra contornou-o, rodopiou, tomou-lhe a lança das mãos e armou-se com as duas, uma em cada punho. A sua e a dele. Encurralou-o com ambas as lanças, uma na jugular, no pescoço, a outra atrás da cabeça, próxima á nuca. Estava acabado. Ela o tinha em mãos. Mesmo sem mortes... Ela era a vencedora.

—Ah... –ele gemeu e piscou, confuso. Parecia mais distante que nunca... Nem tomara consciência de que ela lhe ameaçava com duas espadas. –Minha cabeça... Essas lembranças todas... Esse homem. Em minha cabeça. Esse Doutor. Ah... Ele queima como fogo... Ele é a tempestade que se aproxima. Ele é o tempo e o espaço. É fúria e bondade. Ele é o caos e a bonança. Ele faz parte de tudo e tudo faz parte dele...

—Está blefando! –Cleópatra arrematou, de queixo erguido. –Eu venci! Está dizendo coisas sem nexo para tentar embaralhar meus pensamentos... Mas eu estou bastante concentrada. Maldito seja você e seu povo desalmado, César! 

—Eu não sou César... –o outro disse, resistindo. Contra todas as expectativas, caiu de joelhos diante dela. Parecia estar lutando contra alguma coisa dentro de si mesmo.

Cleópatra franziu a testa, incrédula com o que estava presenciando.

—O quê? Não me venha com charadas logo agora! –ela pareceu ficar sem reação por um instante. Seu oponente estaria acovardando-se? O que estava acontecendo? Confusa, ela só viu uma opção a ser feita: entregou-lhe de volta uma das lanças. –Vamos! Pegue isso. Vamos terminar nosso combate... Eu lhe dou outra chance!

Ele não se moveu. Fez uma careta de dor e apertou a cabeça com as mãos.

Ai! Isso dói. Dói demais...

Cleópatra franziu a testa, apreensiva com todo aquele rebuliço. Aquela “ceninha” não era comum de César. Ele nunca faria uma coisa dessas. No mínimo, morreria com honras. Jamais bancaria o bebê-chorão, especialmente na frente dela!

—Levante-se e lute... Herói!—ela pressionou, sem mais saber o que fazer. Ainda estendia a espada para que ele a apanhasse, na expectativa de que a luta recomeçasse. Mas ele continuou gemendo e falando coisas sem sentido.

—Eu não posso... –disse, quase em um lamento. –Olha o que eu fiz com você... Tem sangue por toda parte... –ele parecia horrorizado.

—E o que eu fiz com você não conta? –ela interpôs, baixando as armas. –Estamos empatados! Eu já disse que lhe dou mais uma chance... Pegue a lança. Ela é sua. Exerça sua função com honras ou morra tentando! –e estendeu-lhe o punhal, de novo. Ele apenas fitou o objeto com pesar.

—Desculpe te desapontar. Mas não vou continuar com isso. –ainda ajoelhado, ele ergueu a cabeça devagar e fitou-a bem nos olhos. E então ela viu o verdadeiro poder oculto, daqueles olhos castanho-esverdeados. Nunca foram tão intensos quanto naquele instante. Como em todos esses anos ela nunca havia reparado neles? Depois de tantas batalhas, confrontos e sexo. Como ela se esquecera de como eles eram... Lindos. –E eu lhe instruo que faça o mesmo.

—Quem você pensa que é para me dar ordens? Eu sou Cleópatra, seu infeliz!—ela rugiu, feito uma leoa. Ele continuava na mesma posição, sem desviar os olhos.

—Você é tão linda... –disse à ela, em um suspiro. –Eu tinha uma amiga... Ela era assim, exatamente igual a você. Talvez até melhor... –ele disse devagar. –Eu acho. As lembranças ainda estão muito confusas aqui dentro... –e deu algumas batidinhas na moleira, com a ponta do dedo indicador. –O nome dela era Luisa. E nós éramos amigos... Bom, nos somos ainda, eu espero. –disse, receoso, ao fitá-la tão sombria. –Ela era uma boa pessoa... Sabe? Me compreendia. Já teve alguém compreensivo ao seu lado? Com quem pudesse contar em todas as horas? Se teve, por acaso é uma mulher de muita sorte, minha rainha... –ele disse com a voz fraca. –Nós éramos tão próximos, e agora estamos aqui, ferindo um ao outro injustamente. Insensivelmente. Sem razão. Manipulados por alguma força maior... –então apontou para as laterais da arena. –Você não pode vê-los, mas eles estão aqui... Nos observando.  Ah, se estão!

—Eles quem?

—A Ordem dos Seis Sábios.

—Do que está falando? –ela riu confusa, como se ele houvesse dito algo ridículo. –Não tem ninguém aqui. Não banque o emotivo! Não sei o que quer dizer com nada disso, mas...

Ele não a ouvia mais. Estava completamente hipnotizado pelo horrível corte na barriga da garota. Pensou na passagem do Expresso Oriente. Lembrou-se de quando ela tivera o sonho sobre gravidez e começara a sentir os sintomas... Sentiu-se intimamente culpado por aquilo. Ela parecia completamente indiferente ao corte, mas aquela visão já começava a feri-lo por dentro.

—Puxa, me desculpa. Me desculpa mesmo... –ignorando completamente tudo ao redor, ele estendeu a mão para tocá-la. Tentaria ajudá-la no que fosse necessário, agora que as lembranças começavam a vir á tona.

Como ousa me tocar!?—ela gritou, irritadiça, dando um tapa em sua mão. Imediatamente, mudou de atitude, apontou as duas laminas para ele, imobilizando-o novamente. A raiva e o desprezo dando de novo as caras. –Jamais. Me. Toque. —ela falou devagar, como se respirasse por meio de pausas.

—Tudo bem. Tudo bem... Sua majestade. –ele disse de imediato, com as mãos para cima em sinal de rendição. –Mas saiba que você não é assim. Você não é de todo violenta e vingativa... Em algum lugar aí dentro, estão os fragmentos da pessoa boa que lhe constituem. Você apenas precisa resgatá-los... Mas faça isso rápido! Logo pode ser tarde demais.

Ignorou suas instruções. Sorriu triunfante e olhou-o com displicência.

—Tente permanecer imóvel. Vou acabar com isso de uma vez por todas... –planejava matá-lo. E o faria sem pestanejar. Já que aquele estúpido não aceitou a lança de volta, e com ela, a segunda chance de batalhar, então a rainha do Egito ficaria, logo de uma vez, com o merecido crédito.

Ele obedeceu. Não haviam mais truques. Nem investidas. Não havia como contornar a situação. Estava acabado. Só surgira uma dúvida na cabeça do "poderoso César": Se tivesse a cabeça cortada por Cleópatra, ele de fato morreria? Teria que esperar para ver...

—Comece a rezar aos seus prezados deuses romanos para que também sobreviva á isso. –ela sugeriu. -Só tenho algo a lhe perguntar, amado César... –Cleópatra anunciou, cínica. –Está com sorte hoje?

Ele fechou os olhos, receoso, já ciente do que viria á seguir. Ela preparou-se para golpeá-lo... Apontou as laminas para os pontos adequados para lhe proporcionar uma morte rápida e indolor... E parou. Deteve-se no último segundo. Por que? Alguma coisa embaralhou dentro de sua cabeça. Sentiu uma confusão interna muito forte e caiu em si. Luisa olhou para o que tinha feito. Focalizou a situação toda com assombro. Reconheceu o melhor amigo de joelhos e, em completo desespero, atirou as armas para longe, como se sentisse nojo e repulsa de ambas. O som da lâmina se chocando com o chão, fez o rapaz abrir os olhos novamente e fitá-la com surpresa.

Garota Fantástica... –ele balbuciou com dificuldade. Ambos estavam com a respiração acelerada. Tudo parecia sangrar. Tudo parecia estar errado e girando. Girando muito rápido... Luisa tinha vontade de chorar. Estava desesperada. Em meio a tudo isso, ouviu-se um estalar de dedos. No mesmo momento, ela sentiu uma corrente de dor agonizante percorrer seu corpo por inteiro. Sua pressão baixou, as pernas cederam e ela caiu de joelhos, de frente para o rapaz. Não entendeu o que estava acontecendo. Não sabia mais onde estava. Apenas ergueu a cabeça, assustada, e inesperadamente viu o melhor amigo revirar os olhos nas órbitas e tombar para o lado, desacordado.

—DOUTOR!


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Notas finais do capítulo

E esse foi o capítulo de hoje! Beeeeem tenso.

Tem aliens novos na parada!
*Esses Hipnóts são criação minha. Eles são de outra história que criei, mas a primeira aparição oficial foi aqui, nesta fic♥

Semana que vem continua a história ;)



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