Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica escrita por Gizelle PG


Capítulo 16
Fixação


Notas iniciais do capítulo

Olá gente bonita que a minha página habita! Kkkkkk

Trouxe mais um capítulo bem musical pra vocês!

“Luisa e Melissa continuaram com sua rotina escolar... Estavam bastante empolgadas com tudo, mas mesmo com tantas novidades acontecendo diariamente, não há como fugir por completo da monotonia da rua Bannerman. Bem, isso é o veremos. Nunca se sabe as surpresas que a vida nos reserva”.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/748924/chapter/16

   Tiveram mais duas aulas antes de ir embora. Estas, de acordo com o horário de Luisa, seriam de Espanhol e Artes/ Teatro. A professora de Espanhol e era uma sujeita engraçada: Tinha os cabelos castanho escuro, soltos, nariz fino e pontudo, os cílios eram carregados de muito rímel, usava um vestido florido com um xale por cima e uma sandália de verão. Ela era muito sarcástica e não poupava nenhum aluno que bagunçasse em sua aula, de ser castigado com detenções ou mesmo reprovado. Mas até que as aulas eram animadas. Logo de inicio, ela fez todos aprenderem a contar em espanhol, pronunciar o alfabeto e até mesmo cantar sua primeira música na língua. Foi uma aula um pouco desgastante, mas valeu muito a pena.

A aula seguinte, a de Artes/ Teatro, foi executada por um professor novo. E acredite, quando se diz novo, não se está sendo modesto –refere-se naturalmente a pouca idade do rapaz. Ele era só uns seis anos mais velho que a maioria dos alunos presentes. Tinha vinte anos. Seu nome era Spencer Shay –o irmão de Carly. Ele era alto, tinha cabelos escuros, como os da irmã, mas nada alinhados. Tinha também uma barbicha que dava-lhe ar de maduro –pena que essa não fazia jus a sua pessoa. Ele era tão bagunceiro e desorganizado quanto os próprios alunos, e foi exatamente esse ponto que fortaleceu os laços dele com a turma. Ninguém nunca tinha tido um professor tão... maroto. Acho que foi isso mesmo que tornou também, sua aula ainda mais divertida e memorável.

Eles começaram fazendo as devidas apresentações, o que foi muito engraçado, pois Spencer escorregou em uma poça d’água ao tentar fazer uma reverencia para a sala (mas não se machucou, felizmente). Todos riram, mas solidários, ajudaram-no a se levantar. Ele próprio riu da situação e prometeu fazer aulas sempre alegres e cheias de vida, como esta estava sendo.

Foram divididos em grupos: Alguns cantaram e dançaram dentro dos estúdios, outros encenaram em um palco (eram tantos os que já estavam usando as fantasias do protesto, que Spencer achou uma pena não fazerem um teatrinho improvisado –que a propósito, ficou muito bom), os demais pintaram um pouquinho. Foi uma aula muito divertida e estimulante, daquelas na qual o tempo corre mais do que todos desejam.

As aulas acabaram meio dia e meia. O sol irradiava seus raios fortemente, o céu estava azul... Tudo parecia perfeito. Luisa saiu com os demais alunos, mas parou para esperar a amiga, que estivera em outra aula no ultimo período. Foi só aí –quando o sinal tocou –que ao se deparar com tal vista, ficou pasma. Nem percebera anteriormente como a rua da escola era bonita. Também não era de se admirar, afinal, no horário em que chegou à escola, o dia ainda estava começando a nascer, o tempo estava nebuloso e enfurruscado. Não era a toa que ela não conseguiu desfrutar adequadamente da paisagem.

Pegou-se de repente, pensando em uma lembrança boa. Na verdade, nem sabia se era uma lembrança. Sentiu-se feliz com aquele pensamento bom e tentou estimulá-lo. Colocou os fones de ouvido e pôs para tocar uma de suas músicas favoritas do Coldplay - A Sky Full of Stars. Fechou os olhos para poder curti-la melhor... Foi aí que saiu de órbita. De repente não estava mais na escola. Seu corpo talvez, mas a alma estava em outro lugar... Ainda de olhos fechados, vislumbrou um quarto que ganhava forma agora ao seu redor. A garota estava de frente para uma janela. Através da vidraça, contemplou um céu noturno e estrelado. Sabia que havia uma rua ali fora, mas não conseguia enxergá-la. Bem, parcialmente. Aos poucos foi reconhecendo os traços de uma pracinha central bem conhecida... Contornada de todos os lados por pequenas casinhas e becos –Estava de volta a Pisa. A garota sorriu. Mas esse não foi o principal motivo... Sentiu uma mão tocar seu ombro. Em seus devaneios, esta pertencia a um amigo muito querido. Cabelos bagunçados, orelhas um pouco avantajadas, olhos misteriosos e sonhadores, expressão divertida e acolhedora no rosto, casaco marrom de gola larga, All Stars e gravata-borboleta vermelha... Ela ficou ainda mais ansiosa quando despertou e percebeu que alguém realmente tocava seu ombro. Empolgada -tendo certeza de que se tratava do rapaz, virou-se dizendo:

—Eu nem acredito que é você, Dout... 

—Tá falando com quem? –exclamou uma voz, que a menina rapidamente reconheceu ser de Melissa. Luisa não entendeu aquela confusão que sua mente fizera: Aquela ali era Melissa. Mas como assim era Melissa? Ela tinha certeza que se tratava do amigo Doutor. Sentira sua presença logo a suas costas... Se não fosse isso, o que teria sido aquilo tudo que ela vira e sentira? Aquela lembrança não deveria ter um poder tão intenso sobre ela, deveria? Logo a compreensão veio à tona: O Doutor não esteve mesmo ali. Por outro lado, sua presença, de alguma forma, parecia ter se materializado perto dela, tão próximo e tão caloroso que era difícil de acreditar que ele não estivera ali, nem por um instante sequer.

Luisa balançou a cabeça, procurando se desvencilhar com afinco daquela sensação. Não queria transparecê-la para a amiga, que tinha o olhar sob ela. É difícil de acreditar, mas tudo aconteceu em uma pequena fração de segundos, de modo que nem chamou a atenção de Melissa.

Quando finalmente deu por si, Luisa percebeu que a amiga contemplava-a com um sorriso vitorioso e um estranho brilho nos olhos –por algum motivo incerto.

—Quê foi? –perguntou Luisa.

—Estamos LIVRES! –berrou uma Melissa saltitando alegremente. –Estamos livres! Livres! Mas o que estamos esperando? Vamos logo pra casa!!!

 Encontraram a senhora Jackson com o carro, esperando para apanhá-las. Ligaram o rádio na qual agora estava tocando a música da Legião Urbana –Quase Sem Querer. No caminho da volta, a mãe de Luisa especulou-lhes como fora o dia (coisa de mãe, que sempre tem que saber de tudo...). Elas contaram-lhe tudo o que se lembraram, de ambos os períodos diferentes, sobre os professores, alunos e evidentemente, sobre o protesto.  

Acharam melhor não mencionar a parte delas terem participado do protesto, afinal o que Sally pensaria de tudo isso? Mencionaram apenas a parte em que o pessoal se rebelou e a diretora cedeu de bom grado –mesmo sendo difícil de acreditar –abolindo a política do uniforme de uma vez por todas. Bem ou mal, elas conseguiram retorcer um pouquinho a verdade até chegarem a uma explicação explicitamente favorável de tudo aquilo. Conversaram até chegar em casa, depois cada uma foi para um lado, tomar banho e comer alguma coisa, esperançosas para o resto de tarde livre que teriam, juntas.

*    *    *

Oito horas marcadas e contadas no relógio. *A Thousand Miles –Vanessa Carlton tocando no rádio, que aumentou de volume ao toque de um dedo pálido e delicado que alterou o som, lentamente.

Luisa seguiu até a janela, pensativa. Estava sozinha. A amiga havia ido embora há uns minutos para jantar. Ela ficou novamente só, ela e seus pensamentos.

Pensava em muitas coisas; Primeiro no dia em que se mudou, em como sentiu-se deslocada no começo e agora transparecia seu pouco tempo de conhecimento sobre o lugar. Pensou em como agiu bem naquela manhã, no protesto. Lembrou-se dos professores que conhecera, dos amigos que subitamente fizera, quase como se estivesse destinada a isso. Cativara-os aos montes, e não eram apenas dois ou três, eram mais da metade dos primeiros anos.

Ela sorriu afetada, ao contemplar a lua; alguma coisa estava errada. Mesmo com tudo deslanchando da maneira correta, algo ainda estava faltando para que tudo estivesse perfeito. Algo ou quem sabe, alguém...

Foi quando ela ameaçou tirar a franja do rosto que uma lágrima despenco-lhe pela bochecha. Ela enxugou esta rapidamente, mas outro filete tornou a escorrer. E outro e mais outro. Não tinha jeito. Quanto mais passava as mãos sobre os olhos, mas ela chorava –isso até desabar de vez ao lado da cama. Deixou-se escorregar de costas para a parede, até tocar o chão. Quando o alcançou, encolheu-se e pôs-se a chorar em silencio. Assim ficou durante um bom tempo. Não sabia ao certo o verdadeiro motivo daquilo... Talvez fosse cansaço ou mesmo por influência da música lenta... Isso ela não sabia dizer, só tinha certeza de que alguma coisa muito forte havia despertado aquele sentimento desenfreado nela.

Francamente, Luisa tinha um pequeno palpite, envolvendo um certo Senhor do Tempo... Mas mesmo assim, não iria dar o braço a torcer. Não. Não poderia ser aquilo. Não mesmo! Ela mal o conhecia... Não poderia estar... Apaixonada... Poderia? Não. Isso seria ridículo, certo?

Mas a verdade era só uma: ela tinha medo de nunca mais poder vê-lo de novo. De um jeito ou de outro, ela gostava dele. Na real, talvez fosse muito cedo pra dizer que ela gostava de uma forma diferente... Afinal, até então, ela nunca se apaixonara de verdade, e por isso mesmo, não saberia dizer se estava de fato acontecendo ou não.

Porém, não poderia negar que sentia alguma coisa forte por ele... E que sua ausência a estava incomodando um bocado.

Naquele momento, ela não queria mais nada. Sentia-se exausta psicologicamente. Não via mais como poderia recuperar a alegria. Queria muito ter evitado aquelas lágrimas, pois com elas vinham sempre uma onda de desanimo e tristeza, difíceis de se espantar depois que estes se alojam quase que “permanentemente”, querendo se apoderar totalmente dela. Luisa já lutara contra isso antes, mas era mesmo preciso uma grande influencia para ajudá-la a se recompor e naquele instante, estava sozinha de tudo. Estava de frente para seu pior inimigo: O orgulho. Não queria admitir o que sentia de verdade e isso, a estava consumindo por dentro. Ela estava prestes a dar um basta, socar um travesseiro ou coisa parecida quando algo a fez parar. Uma voz firme interveio em seu subconsciente. Uma voz que já ouvira antes, em momentos de aflição. Seria sua consciência? Não, era algo muito maior, muito mais poderoso que esta. Tão poderoso, a ponto de dispensar todos aqueles pensamentos confusos que a torturavam tanto, mandando-os com o poder de um deus para um lugar inalcançável, onde ficariam trancados e não tornariam a perturbá-la. Exatamente neste instante ela ouviu a tal voz dizer:

“Luisa. Luisa, você tem que se controlar... Mantenha o controle, que os pensamentos ruins irão embora. Confie em mim”.

Ela concentrou-se naquelas palavras... Sentiu um alivio prévio, seguido por uma imensa paz interior que a deixou relaxar os ombros tensos. Seu corpo formigou suavemente por uma fração de segundos... Ela deitou-se na cama como se nada tivesse acontecido, e adormeceu instantaneamente.

*   *   *

Dia seguinte, mesma rotina. Aulas diversificadas? Sim. Mas mesma rotina ao terminar os estudos. Mesma, menos por um detalhe: O sobrado branco do lado esquerdo da casa de Luisa. O que isso parece ter de tão estranho? Bem, antes de explicarmos essa parte, vamos falar um pouco sobre noite passada.

Luisa não deu muita atenção para seu estado na noite passada. Na verdade ela acordou tão renovada e tão alegre que as lembranças de uma noite triste se vaporizaram, de modo que desta vez, fora ela quem surpreendera Melissa, indo acordá-la em sua própria casa, “invadindo seu quarto” e tudo mais. Ela arrumou-se antes da amiga e sua empolgação pelo segundo dia de aula era tanta que até chegou a contagiar o espírito “quase sempre entediado” de Melissa que entrou na escola saltitando junto dela. O dia foi muito produtivo, mas agora só restava a tarde monótona na rua Bannerman. Foi então que, como se alguém atendesse a seus pedidos desesperados por algo legal para se fazer naquela tarde ensolarada de verão, que surpreendentemente, algo chamou-lhes a atenção: Aquela porta branco encardido entreaberta atraiu-as como imã ao ferro. Tantas perguntas, tantas dúvidas, tanta... Curiosidade. Elas se aproximaram a passos largos e, ao fazê-lo, ouviram as notas de uma música vinda não se sabia de onde, mas que ia ficando mais alta e intensa. Elas quase tiveram um troço quando descobriram, por dedução, que esta vinha de dentro do sobrado abandonado. As duas pararam com o rosto colado à porta, sem empurrá-la por completo, tentando reconhecer melhor aquele som: Era com certeza uma música conhecida, mas como não estava sendo acompanhada pela letra, as meninas não conseguiram distinguir exatamente de qual se tratava. Não se ouvia nenhuma voz, somente uma melodia animada composta por uma inconfundível bateria, uma guitarra e... Talvez um baixo? É, parecia se tratar mesmo de um baixo. Mas o que mais as intrigava era o fato dela estar soando dos fundos daquela casa. Justo da casa que estivera freqüentemente –de acordo com Melissa –abandonada por catorze anos (ou mais), agora tinha a porta da frente escancarada e música soando pelos corredores vazios que ecoavam a melodia para todas as direções, fora e dentro do ambiente. As duas hesitaram uma ou duas vezes, até que, sem agüentar mais de curiosidade e quase topando com a porta, elas a abriram de vez, terminando o serviço, e mergulharam no breu de seu interior com cheiro de mofo múltiplo. Então caminharam às cegas, até os fundos da casa, de onde vinha o som. Ao fazê-lo, quase de imediato, uma voz conhecida se rebelou.

Seu rosto na tv, parece um milagre... Uma perfeição, nos mínimos detalhes—cantou uma voz feminina.

—Eu conheço essa música! –disse Luisa animada. –É Fixação, do Kid Abelha. É uma das minhas músicas preferidas deles! Eu disse que conhecia a melodia...

—E eu acho que conheço a dona da voz –anunciou Melissa, no breu.

—Parece ser a Julie. –falou Luisa. Melissa encarou-a e puxou-a pelo braço.

—Vamos até os fundos!

 Elas caminharam, terminando o percurso pelo corredor comprido que levava aos fundos da casa e depararam-se com uma Edícula. Um tipo de mini-garagem ou barracão, parecido com o que Luisa tinha em seu quintal dos fundos, que servia somente para guardar bugigangas; Esse, porém, parecia guardar algo a mais do que simples bugigangas: Parecia ser um tipo de estúdio, na qual uma banda estava se apresentando, e aquela voz... Ah! E como era conhecida... As meninas rapidamente se lembraram do Protesto Honesto, em que a dona desta voz esteve presente, cantando maravilhas, ao público juvenil.

Elas andaram nas pontas dos pés até estarem emparelhadas com a parede da edícula e, através de uma janela com veneziana, olharam para seu interior para confirmar suas suspeitas.

 E era mesmo verdade.

—É mesmo ela? –indagou Luisa, enquanto a amiga dava uma segunda espiada pela janela. -Isso está me parecendo um ensaio. Dá pra perceber que a sonoridade dos instrumentos não é igual ao de um CD.

—Sim, é ela mesma que está cantando! –conferiu Melissa. -Mas como será que ela consegue tocar bateria, baixo e guitarra ao mesmo tempo?

—Talvez haja mais gente com ela... –Luisa deu de ombros.

—Não há. Ela está sozinha e... –Melissa forçou um pouco mais a veneziana que se abriu por completo. As duas meninas se encolheram atrás da parede, elas sabiam que seriam deduradas pela escotilha enferrujada que rangera alto de mais ao se abrir. Não havia para onde correr, a dona da casa perceberia o movimento lá fora e veria conferir do que se tratava. Elas esperavam a qualquer momento serem pegas no flagrante... Luisa já ensaiava o que ia dizer em sua defesa, quando Melissa interferiu em seus pensamentos, fazendo sinal para dentro da edícula, a música não parara. –Ufa. Fomos salvas pelo volume da música. Eles nem ouviram a escotilha se abrindo!

—Ótimo... –suspirou Luisa, aliviada. –Acho melhor irmos embora... Podemos não ter tanta sorte da próxima vez.

—Eu só quero dar mais uma espiadinha... –Melissa endireitou o corpo e foi levantando lentamente até a altura da vidraça da veneziana, fazendo sinal para a amiga continuar abaixada. Melissa observou novamente o interior da edícula, porém desta vez, seu queixo caiu. –Caramba! Como é que ela faz isso? Os instrumentos... Oh! Mas isso não é possível...!

—O que não é possível?

S-são os instrumentos. As batutas da bateria... Elas estão se movendo sozinhas! E as cordas do baixo e guitarra também! Os instrumentos estão suspensos no ar como se uma força invisível segurasse-os, mas não há ninguém lá! E o pior: Ela nem parece se incomodar com isso...

—Como é? Tem certeza? Será que já existem instrumentos flutuantes que funcionam sozinhos?

—Não, Lu! Isso seria ridículo. Tem que ser um truque! Estou vendo luzes coloridas projetarem-se de um refletor no teto, que está iluminando a edícula toda. As luzes devem ser as responsáveis... É. Deve ser um efeito visual.

 Luisa ergueu-se para espiar também.

—Não são as luzes. Olha só! –ela apontou rapidamente para a guitarra vermelha e branca que ergueu-se quase reta no ar e foi posta de lado novamente, como quando um guitarrista faz um solo, balançando o instrumento de um lado para o outro, mostrando toda a sua capacidade e dedicando-se por inteiro para o instrumento. –Isso não me parece um efeito de luz. Nem parece ter cordas de náilon amarradas, também. Acho que sobram somente duas opções: Ou é isso mesmo que estamos vendo, ou endoidamos de vez! 

—Eu voto pela segunda opção –afirmou Melissa. –Eu disse a você que não devíamos ter andado com aquele maluco do Doutor, agora estamos ficando igual a ele!

—Não seja boba Méli, loucura não é contagiosa.

—Rá! Hoje em dia qualquer coisa pode ser contagiosa... Especialmente loucura. –retrucou ela arregalando os olhos. –Você está mesmo vendo ela ali, não está?

—Quem? A Julie? É claro que estou. A pergunta é, se ela também está vendo, ou não, todo o resto que estamos vendo...

—Eu acho que não. Se estivesse, acho que ela teria corrido.

—Eu temia que você dissesse isso. Quer dizer que nós estamos mesmo ficando loucas?

—Ou é isso, ou o mundo inteiro é maluco e nós estamos sãs.

—Ótimo –bufou Luisa. –Agora além de tudo mais, sou louca. Duvido que vou conseguir um bom emprego e, de que adianta eu me dedicar tanto à escola? Quando se vira louco, o único lugar para o qual você tem que se preocupar em ser aceito é no hospício. –lamentou-se ela.

—Não perca ainda as esperanças. –disse-lhe Melissa. –Eu acho que não somos as únicas loucas no recinto... Olhe.

—Eu não acredito! –Luisa viu a amiga chamada Julie, agradecendo uma parede por tocar a bateria, apertou “a mão” de alguém que supostamente estivera tocando o baixo e abraçou um suposto guitarrista invisível.

Vocês foram incríveis!

—Nem tanto Julie. —respondeu uma segunda voz. –Vamos fazer de novo, mas desta vez, vamos subir um pouco a tonalidade...

—É. O campo harmônico ainda não está adequado para a sua voz, mas vamos chegar lá! Aos poucos, a gente chega lá... —incentivou uma terceira voz. Luisa e Melissa ergueram-se de seu posto ainda á tempo de ver Julie dar palmadinhas onde seria o suposto ombro do guitarrista invisível, como que parabenizando-o.

—Não pode ser! –brandiu Luisa um pouquinho auto de mais, de modo que Julie ouviu sua voz e tratou de sair da edícula e ver o que fora aquilo. A situação anterior se repetira, mas desta vez, não haveria música alta que as salvasse. É obvio que não havia como elas correrem antes de Julie abrir a porta, e também não havia onde se esconder, então deixaram-se ser pegas em flagrante.

Quem está... Ah, são vocês! Luisa e Melissa...—ela pareceu respirar fundo. -Mas o que vocês duas fazem aqui? Como conseguiram entrar aqui? —perguntou, torcendo a manga da camiseta, um pouco ansiosa, como se temesse ter sido vista fazendo alguma coisa errada.

—Nós moramos aqui. Digo, nas casas ao lado –explicou Luisa. –E a porta estava destrancada... Há quanto tempo você vem aqui?

—Eu moro aqui. –falou Julie. –Bom, moro agora. Meu pai, eu e meu irmão caçula nos mudamos para cá hoje mesmo. Bom, na verdade a mudança meio que ocorreu enquanto estávamos na escola... Eu nem sabia direito como era a casa. Nem sei como foram me descobrir aqui...

—Dois motivos: Sua voz e o fato desta casa estar a venta há “séculos”. –falou Melissa. –Não tinha como não reparar na diferença. Nós chegamos em casa e a primeira coisa que notamos foi que esse sobrado “caindo aos pedaços” estava com um ar “habitável” de mais para uma casa abandonada.

—Nossa! Sério que vocês deduziram tudo isso só por observação? –surpreendeu-se Julie, parecendo um pouco mais à vontade. –Nossa! Vocês são mesmo muito boas com detalhes...

—E a sua mãe? Ela não veio? –perguntou Luisa, ao perceber que Julie não mencionara a mãe.

—Ela não pôde vir. Está trabalhando. É basicamente o que ela faz, trabalhar e conhecer o mundo. –disse Julie, num misto de orgulho e decepção.

—Ah. Parece muito interessante... –analisou Luisa. –Ela trabalha de quê exatamente?

—Ela resgata amimais. Está agora em uma missão na Antártida, socorrendo pinguins, focas e qualquer outro animal que precise de ajuda, ou se encontra em extinção.

—Mais que legal! –sorriu Luisa animada. –É muito bom saber que tem gente ajudando a preservar a vida animal do nosso planeta. Sem essas pessoas, os efeitos poderiam ser ainda mais catastróficos...

—Pois é. –afirmou Melissa. Ela não queria interromper a amiga, mas estava desesperada por respostas e precisava chegar rapidamente no assunto em questão. -Ah... Julie. Desculpe nossa intromissão, mas nós ouvimos uma música... Era você cantando?

—Sim. Era eu. –ela apreçou-se em dizer.

—Ah, sei. E, por falar nisso, você estava treinando a música acompanhada de alguém?

—É –continuou Luisa, apoiando Melissa. –É que o solo estava muito bom... Era de um CD? Porque não parecia ter sido editado... Na verdade, estava parecendo ser ao vivo mesmo...

—Tem razão. Não era um CD.—ela pareceu se complicar um bocado para conseguir dizer isso. –Eu estava ensaiando na edícula...

—Ah! Então era mesmo um ensaio. Estava muito bom... –anunciou Melissa. -Eu gostaria de poder cumprimentar os músicos da sua banda particular...

—Banda? Eu não tenho nenhuma banda... –disfarçou Julie. Infelizmente, sua tentativa não convenceu-as.

Então era você tocando baixo, guitarra e bateria ao mesmo tempo? —interveio Melissa. –E tem mais um pequeno detalhe: Nos meio que passamos sem querer perto da janela e por acaso vimos os instrumentos pendurados... Alguma razão específica para deixá-los assim?

—Vocês estão me interrogando? –Julie ergueu uma sobrancelha. –Na minha própria casa...?

—Não se trata de onde estamos, trata-se do que está acontecendo ao nosso redor... –Melissa contornou-a e dirigiu-se para a porta de edícula.

—Não! –Julie tentou se controlar, mas quando deu por si, já estava posta na frente da porta, barrando a passagem. Parecia cada minuto mais nervosa.

—Nossa... Você parece estressada! –comentou Melissa, analisando-a. –Fizemos alguma coisa de errado para deixá-la assim?

—É! Nós pedimos desculpas pela nossa intromissão, mas é que somos assim, inquietas, e só conseguimos mesmo sossegar quando vemos todas as coisas esclarecidas... –explicou Luisa, simplista.

—Eu entendo o lado de vocês, é só que... É um pouco complicado de explicar assim, de repente. –ela olhava nervosa na direção da porta, as suas costas, e foi recuando cada vez mais para essa como se desejasse entrar correndo e se trancar lá dentro, fora do alcance delas.

—Mais qual é o problema? O ensaio é restrito? O que pode ser tão complicado a ponto de você achar que não compreenderíamos? –insistiu Melissa. –Tenho certeza de que vamos entender perfeitamente se você nos explicar...

—E eu tenho certeza que vocês duas vão me tachar de louca se eu começar a falar... –ela cruzou os braços receosa. -Não adianta! Olha, eu sei que vocês duas são legais, mas eu tenho motivos suficientes para crer que não vão acreditar em mim. –ela suspirou. -É melhor vocês duas irem embora...

—Experimente tentar nos explicar. –incentivou Luisa. –Acaso não entendermos, Melissa e eu fingiremos que nunca ouvimos você dizer o que tiver dito. Nada que você disser comprometerá a nossa amizade. Pode confiar em nós... –Luisa pensou um pouco antes de continuar. –Você pode encarar isso como um laço de confiança entre amigas, se quiser. Nós podemos até nos tornar mais próximas, afinal somos vizinhas! 

Julie prestou bastante atenção em seu argumento.

—Não precisa se preocupar. –assegurou-lhe Melissa. -Nós já vimos coisas bastante estranhas. Acho que o seu “problema complicado” não será um desafio tão grande para esses nossos olhos...

Julie respirou fundo por um instante, então, depois de fitá-las demoradamente e tentar interpretar o sorriso amistoso plantado no rosto de cada uma, ela finalmente cedeu.

—Tudo bem então –concordou Julie. –Mas que isso esteja bem claro: Só estou abrindo essa exceção porque vocês duas são minhas amigas mais próximas na escola... Além disso, porque moram bem ao lado da minha nova casa, e, cá entre nós, é muito difícil esconder um segredo das amigas. –ela sorriu e as outras duas retribuíram. –Mas, para os outros terão que guardar segredo, certo? Se alguém perguntar, vocês nunca me ouviram falar nisso. Combinado?

—Claro! –disseram Luisa e Melissa ao mesmo tempo, depois de se entreolharem, cúmplices.

—Certo. Então lá vamos nós...

Elas entraram na edícula da qual Julie fechou instantaneamente a porta e arrastou as cortinas nas janelas, evitando mais olhares curiosos. Então elas pararam e contemplaram o pequeno e entocado espaço em que estavam, repleto de tralhas amontoadas (devido a mudança), pôsteres nas paredes, alguns instrumentos encostados à parede e uma estante de madeira com discos e CDS diversificados. Elas silenciaram e esperaram até que Julie dissesse algo.

—Bem, vamos ver então... Fiquem mais ou menos por aqui. –Julie passou a frente das outras duas e tentou agrupá-las em um canto, longe da parede oposta á da porta, onde estavam todos os instrumentos, agora silenciados e largados por aí. Ela dirigiu-se para aquela direção e depois voltou-se para as duas meninas uma ultima vez. –Ah, só avisando, isso pode demorar um pouco...

Luisa e Melissa se entreolharam.

—O que está havendo aqui? –insistiu em saber Melissa.

—Eu não estou Louca! –começou Julie. -Quero dizer, isso vai parecer muita loucura, mas se vocês tentarem acreditar nas minhas palavras por apenas um minutinho...

—E quem foi que disse que duvidaríamos da sua palavra? –interveio Luisa, acalmando-a. –Comece apenas pelo começo e deixe tudo fluir... Na certa, será mais fácil do que você pensa, ainda por cima com duas garotas tão compreensivas quanto nós!

—Está bem. –disse ela, vencida. Como se sua ultima tentativa de convencê-las do contrário houvesse dado errado. –Bem... Vocês são as primeiras pessoas de fora que vão me ouvir dizendo isso...

Silêncio completo no recinto e expectativa no ar.

O quê? Que o silêncio é contínuo?—instigou Melissa vendo que daquele mato não saia cachorro.

Vocês disseram que iam levar á sério!—disparou ela em dizer, como se algo estivesse entalado em sua garganta há muito tempo. –A questão é que eu não tive escolha, nós já nos conhecíamos da minha antiga casa. Eles já estavam lá quando eu me mudei para lá e nós nos tornamos amigos. Agora que tive que me mudar de novo, eles vieram comigo. Eles são minha banda, não poderia ir embora sem eles. Mas eu não estava querendo me mudar, eu gostava da minha antiga casa...  É tudo tão injusto...!

Melissa e Luisa se entreolharam, e essa ultima completou:

—Sei como é ter que se mudar. Eu fiz o mesmo há uma semana... E ainda estou me ajustando.

—Sério? –perguntou Julie como se aquilo fosse uma piada. –Então você também é nova? –disse procurando apoio.

—Sou sim. –Luisa sorriu. –Graças á Deus eu conheci Melissa logo de inicio, e aí não me senti tão perdida...

—Acho que posso dizer o mesmo de vocês... -Julie sorriu para elas.

—Você disse algo sobre ter trazido a sua banda... Então você tem uma banda! –analisou Melissa. –Por que mentiu dizendo que estava ensaiando sozinha?

Julie ergueu a cabeça devagar.

—É que os meus músicos não são bem o que se pode chamar de comuns...

—Ah, fala sério! –riu Melissa, descontraída. –Não vai me dizer que eles são duendes...

—Não –Julie retorquiu séria. –São Fantasmas.

Outro momento silenciado. O trio se entreolhou por um longo tempo. Julie ficou ansiosa ao ver as expressões diversificadas que tomaram os rostos das meninas.

Quer dizer que tem fantasmas aqui? Fantasmas de verdade em uma edícula? —Luisa sorriu maravilhada, fitando com cuidado todos os cantos da mini-garagem.

—É, bem... É verdade. –admitiu Julie, sorrindo de leve. –Vocês não me acham louca?

Louca? Você? Ah, Julie, nos poupe...—interveio Melissa. –Nós sabemos o que é loucura... Viajamos com o mestre da loucura uma vez... E isso, não chega nem perto das doideiras que ele era capaz de dizer!

É mesmo?—sorriu Julie. –Depois quero ouvir essa história melhor...

—Combinado, mas só se for outra hora... Vai! Nos apresenta pra eles! –pediu Luisa. Julie sorriu ainda mais.

—Vocês são as primeiras pessoas á acreditarem em mim –ela disse. –Fora eu e meu irmão Pedrinho, ninguém mais sabe da existência deles... E nem deve saber! —acrescentou rapidamente.

—Fique tranquila, seu segredo está seguro conosco... –prometeu Melissa. –Mas será que podemos voltar aos Fantasmas? Isso é mesmo incrível! Catorze anos que moro aqui e finalmente encontro uma casa assombrada! Finalmente um pouco de ação na velha e pacata rua Bannerman! Eu mal posso esperar para poder vê-los! Nem sei se poderei acreditar em meus próprios olhos...

—Bem, não pode ainda, porque você não os está vendo. –acrescentou Julie, satisfeita por terem acreditado nela. –Antes de qualquer coisa, vocês devem saber que eles não podem aparecer para os vivos. Na verdade, nem deveriam estar aparecendo para mim. Mas eles só o fazem porque sabem que eu sou confiável. Se eles perceberem que vocês também são de confiança, talvez resolvam aparecer, tipo numa piscada...

—Ora, então chame-os! Avise que somos de confiança... –disse Melissa, olhando para todos os lados da edícula, mal podendo se conter. Luisa também estava cheia de expectativas, ambas adoraram a idéia de haverem fantasmas de verdade no lugar. A situação era meio Scooby-Doo, o que as deixavam inquietas e ao mesmo tempo maravilhadas. Depois de ver Aliens na Torre de Pisa, elas necessitavam viver outras aventuras, nem se fossem promovidas por si próprias. Qualquer coisa, um pouquinho que fosse fora do comum, já era considerada sugestiva o bastante para empolgá-las.

—Tudo bem –Julie virou-se de costas para elas e andou até a estante de discos e CDS, da qual apanhou um disco denominado Apolo 81. Rumou na direção de um vinil, uma vitrola antiga, e pôs o disco pra tocar. –Esses aqui na capa são eles, Daniel, Martins e Félix. –ela explicou. –Bem, essa foi a parte fácil... Agora vem a parte complicada: convencê-los a dar as caras! Ta legal... Pessoal? Podem aparecer... Essas são minhas amigas... Podem aparecer!

No começo nada aconteceu, então ela usou de uma tática para atrair os fantasmas:

—Alguma de vocês toca digamos... Um instrumento? –murmurou ela para as duas meninas.

—Eu toco violão. –anunciou Luisa. –E Melissa tem uma voz melodiosa.

—Modesta à parte, mas é verdade. –confirmou Melissa. –Minha voz é sempre elogiada pela maioria das pessoas... Menos quando eu grito com alguém, é claro.

—Perfeito. –sorriu Julie, preparando-se para tentar de novo. –Meninos, essas são Luisa e Melissa. Luisa toca violão e Melissa canta. As duas gostariam de poder se juntar a nós no ensaio... E aí? Vocês topam?

O silencio continuou. Dava para ver o suor começando a se formar na testa de Julie, mas antes que ela se pusesse a implorar para que “os fantasmas” aparecerem, o impossível aconteceu.

Num minuto nada. No outro surgem visivelmente no mesmo lugar, ao lado da vitrola, na qual elas estiveram contemplando até aquele momento, três garotos mais altos que elas, com faces muito pálidas (tinham grandes olheiras escurecidas bem embaixo dos olhos e seus lábios não tinham cor, como se o sangue não corresse em sua circulação), roupas estilo anos 80 e aparência sinistra apareceram e ficaram a contemplá-las. Um deles tinha cabelos cor de palha achatados em destaque na franja que ficava de lado, usava uma camisa cinza brilhante com uma gravata preta por cima e calça e sapatos escuros, tinha um olhar travesso e divertido no rosto. O segundo tinha cabelos escuros espetados e desalinhados, usava uma camisa com estampa de patinhas minúsculas de cachorro e por cima usava um paletó preto, sua calça era justa, na cor roxa, e seus sapatos também, ele tinha um olhar melancólico e medroso, parecia estar receoso sobre terem aparecido para as convidadas. O Ultimo dos rapazes parecia ser o líder do grupo; usava uma camisa vermelha, casaco preto com abas largas por cima e calça da mesma cor, tinha cabelos encaracolados, era o mais sério, também o mais alto e aparentemente o mais entediado de todos. E o primeiro a se pronunciar, murmurando:

—Um treino aberto ao público? Puxa, que ótimo... –disse sarcástico. – E agora nós viramos atração de circo, é isso? Olhe, nós combinamos em cooperar com você, e a “senhorita Julie” resolve trazer mais vivos para ver o Show de Aberrações! Espero pelo menos que desta vez você tenha cobrado ingressos...

—Daniel! Não seja tão rude! –repreendeu Julie.

—É cara! Assim você vai acabar afugentando todo mundo... –interferiu o rapaz de cabelos cor de palha.

—É, tá, tá bom... Você diz isso agora, mas é o primeiro a tirar uma com a cara dos vivos quando presume que a situação seja apropriada, não é Martins?—retrucou Daniel cínico, revirando os olhos.

—Eu não sei do que você está falando. Na verdade é o Félix o primeiro a se pronunciar nesses casos. Ele vive defendendo a tese de que não devemos interagir com os vivos. Também, medroso do jeito que ele é... –cutucou Martins, ao rapaz de cabelos desalinhados.

Dos fundos da edícula, o terceiro rapaz se remexeu revoltado.

Muito engraçado Martins! —gemeu Félix. –Fique você sabendo que eu nunca tive essa índole para ficar afugentando e mexendo com os vivos. E se isso chegar aos ouvidos do Demétrius? –replicou Félix.

—Caramba Félix, e eu que achei que você não podia ser mais medroso! Até parece que o Demétrius vai ficar no nosso encalço logo agora... Nós sempre nos divertimos às custas dos vivos. E você sabe disso! E além do mais, nós falamos com a Julie e o Pedrinho á um tempão... Nós infringimos um monte de leis pra falar a verdade... E depois da lição que nós demos no Demétrius da ultima vez, duvido que ele tente nos impedir de tocar novamente! Não acredito que você ainda tenha medo dele...

—Ué, eu tenho. E você também devia ter... Fique sabendo que ele redobrou a guarda da Polícia Espectral...

—Uh! A Polícia Espectral... Estou morrendo de medo... –Martins brincou, fingindo estar assustado.

—Ah! Pelo amor de Deus! Calem-se vocês dois! –reclamou Daniel, intervindo na conversa, ficando entre os dois e tentando fazê-los recuperar o foco. –Vocês enlouqueceram? Ficaram muito tempo em baixo de sol? Parem agora com essa idiotice! Vocês estão me deixando com dor de cabeça, e não é a coisa mais comum do mundo um Fantasma ter dor de cabeça, não acham? Considerando o fato de eu não ter mais sistema nervoso, nem vasos sanguíneos...

—Fantasmas!!! —brandiram Luisa e Melissa, ao mesmo tempo empolgadas e bastante surpresas.

—Ah, francamente Julie! Você não as preveniu sobre nada? Devia ter dito tudo á elas antes de nos apresentar... Assim nós ficamos mesmo parecendo atração de circo! –Daniel franziu a testa e revirou os olhos. –O que esperavam que fossemos? Anões de jardim?

—Esperávamos que fossem fantasmas! –disse Luisa ainda pasma.

O trio de fantasmas se entreolhou.

—E nós somos fantasmas... –afirmou Martins.

—Eu sei! –ela saltitou. –Cara, isso é muito legal!!! Você parecem gente viva, só que são muito mais pálidos... Vocês conseguem atravessar coisas, certo? Já que vocês não são feitos de matéria...

Você se acha muito espertinha, não é garota? Mas será que é realmente tudo o que aparenta ser?—Daniel alfinetou Luisa.

Daniel!—Julie repreendeu-o novamente, então sussurrou para as outras duas ao seu lado: –Foi mal meninas... O Daniel é assim mesmo... Nunca toma jeito! Mas não se preocupem, a melhor forma de conquistá-lo é mostrando do que você é capaz... –ela apanhou um microfone e estendeu-o a Luisa.

Os fantasmas se entreolharam.

—Tudo bem Julie, em que podemos ser úteis? –perguntou Félix finalmente.

—É Julie! Quer que preguemos uma peça em alguém? Ou que façamos desaparecer seu dever de casa? Podemos assustar algum professor de que não goste... São muitas as possibilidades! –sugeriu Martins entusiasmado. Daniel pegou-o pelo braço.

—E que tal se “nós calarmos a boca?” –interferiu Daniel, cortando a euforia do amigo. –Julie! Diga logo o que você quer, antes que esses dois comecem a ter mais idéias...

Martins e Félix amarraram a cara por alguns instantes para o líder do grupo. Julie hesitou por um momento. A intensidade do olhar de Daniel pareceu fazê-la perder o foco.

—Hã... Não é nada de mais. Na verdade eu só queria treinar mais um pouco e, como temos convidadas que ainda por cima gostam também de música, poderíamos treinar em conjunto...

Daniel esperou-a terminar de falar, então se pronunciou.

—O quê? Sem chance! –negou. –O que você pensa que somos? Vivos? Não vamos nos juntar com outras que não forem você! Você já é nossa vocalista, não precisamos de mais ninguém na banda!

—Ei! Que é isso Daniel? –interveio Martins.

—É! E desde quando você fala por nós? –replicou Félix. –Não me lembro de ter esquecido minhas opiniões no caixão! Acho que pelo menos a nossa dignidade manteve-se viva, e o direito de dar opinião fortaleceu-se junto a ela!

—Está bem! Está bem! Parem de chorar no meu ouvido! –reclamou Daniel. –Vocês decidem, o.k?

—E aí? –perguntou Julie esperançosa.

—Eu gosto da idéia. –sorriu Félix.

—Eu já amo essa idéia... –concordou Martins, olhando para Luisa e Melissa. Seu radar mulherengo voltando a funcionar. –E aí meninas, o que vocês gostariam de tocar primeiro?

—Ah! Se ele vier de novo com aquela maldita cantada barata de “tocar alguma coisa” eu me mato! De novo! —sussurrou Daniel com seus botões. –Certo! Certo! Vamos logo á música. O que vamos tocar?

—Pode ser Fixação de novo, desde o começo? Se não for incomodar, é claro. –pediu Luisa, simplista.

Fixação? —Daniel lhe lançou um olhar severo. Então sorriu de repente. –Ótima escolha! Claro que pode ser Fixação.

Pela primeira vez, Luisa pôde vê-lo sorrir como uma pessoa positiva e alegre e não como um cara pessimista, cínico, insensível e arrogante, como de fato parecia ser normalmente. Como ela sabia de tudo isso? Bem. Digamos apenas que ela é Luisa –a garota com poderes de Visualizadora. Isso já deve bastar como explicação. Mesmo com fantasmas, o incrível poder da garota funcionava super bem. O fato deles estarem mortos não atrapalhava, pois a Visualização funcionava, acima de tudo, em seres que tivessem alma. E eles com certeza possuíam uma, apesar de já estar fora do corpo material.

Sem que ninguém percebesse, Daniel virou-se para os outros dois e sussurrou:

—Até que ela não parece ser tão cretina quanto eu pensei...

—Ah, que novidade! Você sempre acha todo mundo cretino á primeira vista... –lembrou Félix.

—Mas depois acaba mudando de idéia... Especialmente se essa pessoa for uma garota de bons gostos musicais...

Ah, calem a boca!—chiou Daniel descontraído ao colocar sua guitarra á tira-colo, voltando-se para as três meninas á sua espera. -Vamos lá então?

—Espera aí! Como elas vão cantar e tocar se nossos instrumentos são restritos? –observou Martins.

—Não se preocupem com isso –Luisa colocou a mão dentro da bolsinha e revirou-a como fazia normalmente. Todos ficaram fitando-a por alguns segundos, esperando para ver no que aquilo ia dar, e o que ela tanto procurava, quando de repente, a menina puxou o braço de um violão de tamanho normal, de dentro da pequena bolsinha, fazendo todos hesitarem. Melissa, que já estava acostumada com aquele tipo de coisa, ajudou-a a segurar o instrumento enquanto ela puxava algumas outras coisinhas como microfones, fios de extensão, e um pedestal dobrável para partituras e um outro para fixar o microfone na altura certa. Ao terminar de apanhar tudo que precisava, deparou-se com todos os olhares assombrados sobre ela, o que a deixou pouco à vontade.

—Gente... Que foi? São só umas coisinhas à toa! Qual é? Vocês nem ficaram impressionados... Parem de me encarar como se eu fosse a anomalia na sala! Vamos tocar música!

—Tá legal! –brandiram todos, voltando a si.

—Mas fala sério, qual é a da bolsinha rosa?—perguntou Félix.

—Ah! Meus caros fantasmas... Vocês acharam que já viram de tudo? Bem. Eu sou um mistério em andamento... Não sei como, nem o porquê! Só sei que é assim que as coisas são... Eu tive um amigo que me deixou bem ciente disso. Tem coisas inexplicáveis nesse universo, mas que são evidentemente maravilhosas! Não me perguntem algo tão específico... Agora, se quiserem saber como foi que comecei a aprender violão, aí a coisa é diferente...

—Está bem, stra. Misteriosa. Então mostre-nos o que sabe! –incentivou-a Daniel, com um sorriso no canto dos lábios.

—Com prazer! –sorriu de volta a garota, que mandou ver. Durante várias horas eles ficaram tocando. Luisa no violão, Daniel na guitarra, Martins no baixo, Félix na bateria, Julie e Melissa no vocal. Cantaram espetacularmente Fixação -Kid Abelha, seguido de muitas outras músicas. Sentiam-se bem juntos. Parecia um começo promissor para um grupo iniciante, especialmente para Julie, que pensava que ninguém acreditaria naquela doideira de “fantasmas músicos”. Ela se sentia muito melhor, sabendo que poderia compartilhar seu segredo com suas novas amigas, e que poderia confiar nelas, ainda mais agora que se encontrava em um lugar novo, sem nenhum conhecido por perto. Com certeza foi um ótimo “boas vindas” para ela, na nova casa. Todos curtiram muito o dia. Parecia uma realização poder tocar e cantar, mostrar seu talento e capacidade para novas pessoas. Luisa estava encantada com tudo isso; Ela nem imaginava que o que estivera bom, ficaria ainda melhor... É como dizem: A vida é uma caixinha de surpresas, e alguns dias são mais inesperados que outros.

Estavam todos concentrados, afinando seus instrumentos e treinando a voz quando a campainha tocou.

—Ai Caramba! –gemeu Luisa, lançando um olhar significativo para Melissa. –Chagamos em casa e não fomos almoçar... Nossas mães vão nos matar, sabia?

—Ah, droga... Temos que correr! –disparou Melissa, porta da edícula à fora, voltando logo em seguida, como se tivesse esquecido algo. –Só uma perguntinha: Eu vou ter que atender?  

—Algum problema nisso? –perguntou Daniel provocativo.

—Não. Bem, é uma mãe zangada... Não estou muito a fim de encarar essa barra sozinha... –ela olhou para Luisa como que pedindo apoio psicológico em uma súplica silenciosa. –Luisa?

—Ah, sim. –prontificou-se a garota erguendo-se em pé, em resposta. –Deixe que eu vou lá dar as explicações, o.k?

—Você é o máximo! –sorriu Melissa, abraçando a amiga quando essa passou pela porta da edícula.

—Não seja modesta. –retorquiu Luisa. -Qualquer um que te salvar de uma encrenca já é automaticamente “o máximo”.

—Bem, tem razão. –admitiu Melissa. –Mas você é minha melhor amiga... –sussurrou ela.

—Sei disso. –sorriu Luisa. –Vou indo... Amigos, me desejem sorte! —os fantasmas e Julie desejaram-lhe sorte e acenaram para ela.

Luisa e Melissa trocaram um ultimo sorriso e Luisa partiu rumo á uma provável bronca, ou bem, se suas preces fossem ouvidas...

Ela abriu a porta e foi então que tudo mudou de foco: Não era nenhuma mãe irritada, nem um estranho qualquer. Era ninguém mais, ninguém menos do que uma garota um tantinho mais baixa que ela, cabelos castanhos e meio crespos, levemente espaventados, presos em uma trança; Seu rosto era rosado, tinha um sorriso acolhedor e um olhar sonhador. Usava uma blusa roxa, jaqueta jeans cor de grafite, bermuda jeans e tênis de corrida. Era ela, sua prima Maria Jackson. Não só a principal causa, como também a principal influencia para que Luisa e os pais viessem se mudar para a rua Bannerman, no bairro das Turmalinas. Durante sua infância, elas foram criadas juntas, até que, há uns dois anos atrás, Maria foi obrigada a se mudar por conta da separação dos pais. Ela ficou com o pai, e aquele encontro entre primas estava sendo adiado há bastante tempo... Já era hora de alguém se pronunciar e Luisa ficou muito feliz por sua prima tê-la procurado.

—Maria? –gaguejou Luisa, espantada, ameaçando um sorriso de satisfação. –Você aqui? Como me encontrou?

—A tia Sally disse que você estava na rua. Imaginei que viria até aqui. Sedo ou tarde, todo mundo vem.

—O que você quer dizer?

—É uma casa antiga e abandonada. Muitas pessoas tem curiosidade sobre lugares como esse. –ela fez uma pausa, fitando o interior do local, como se o “muitas pessoas” fizesse jus a ela também. –Alguns dizem ser assombrado...

Luisa soltou uma risadinha. A idéia de Daniel, Martins e Félix serem chamados de “assombrações” pareceu diverti-la. Agora que os conhecera, era quase impossível imaginá-los sendo “espíritos malignos”, “perturbadores da paz” ou coisa parecida.

—Só se for por traças e cupins. –afirmou Luisa. –Confie em mim, não a nada com que se preocupar. A casa nem está mais abandonada. Foi comprada essa semana por uma garota chamada Julie.

—É? A Julie da escola? A garota que cantou junto da Violetta naquela apresentação?

—Você viu aquilo tudo? –sorriu Luisa animada. –Não sabia que estava estudando lá também! Eu não a vi durante nenhum momento...

—É que eu estive ocupada –falou Maria, pouco esclarecedora. –Coisa à toa. Nada de importante.

—Eu nem acredito que você está aqui! –brandiu Luisa abraçando a prima que retribuiu o abraço, também muito feliz pelo reencontro. –Senti muito a sua falta, prima!

—Eu posso dizer que compartilho do mesmo sentimento, prima –disse Maria. -Foi quase insuportável ter que ter me mudado, ficar longe da família e tudo mais... Mas isso já faz tempo. Eu logo me acostumei a viver aqui, espero que não esteja tendo dificuldades.

—Eu não! –riu Luisa. –Conheci uma garota... Melissa. Ela mora na outra casa ao lado da minha. Ela é bem legal. Ficamos amigas logo no meu segundo dia de mudança... Acho que teríamos nos tornado amigas no primeiro dia, se eu tivesse saído para conhecer os vizinhos naquela tarde, é claro.

—Eu acho que ouvi meu nome... –surgiu uma Melissa saltitante às costas de Luisa. –Eu ouvi certo? Hein? Hein?

—Ouviu sim, e devo admitir que isso me assusta parcialmente –admitiu Luisa. –Eu não disse seu nome auto o bastante para que você ouvisse, mas tudo bem... Essa é você: improvável como sempre.

—É isso aí! –sorriu Melissa, lançando olhares curiosos para Maria, que fazia o mesmo para com a outra. –E que é ela?

—Essa é minha prima, Maria Jackson. –explicou Luisa. –Foi ela e meu tio que convenceram meus pais a virem morar aqui.

—Ah! Foi você a responsável por trazer essa louca pra cá? –perguntou Melissa como se aquilo fosse um crime. –Gostei de você, garota!

—Ah... Obrigada, eu acho. -Maria lançou um sorrisinho tímido à Melissa, que aos seus olhos, em primeiro momento, parecia um pouco espalhafatosa demais. –E aí, então quer dizer que você é a tão mencionada, Melissa?

—Sim senhorita. Sou eu mesma! –apresentou-se Melissa. –Eu já vi você por aqui. Maria Jackson, você não me é estranha. Já devemos ter nos visto no mercado ou na padaria...

—É provável que sim. –sorriu Maria, simpática. –Enfim, eu só vim procurar por você, Luisa, e saber se vocês querem jantar conosco hoje...

—Mais é claro! Estou louca para conhecer sua casa... –concordou Luisa empolgada.

—Bom, eu acho que vou pra minha casa, comer alguma bobagem qualquer, me entupir de comidas calóricas, refrigerantes comprometedores e coisas do tipo... –interveio Melissa, entediada.

—Você também está convidada –falou Maria e, por sua surpresa, o que veio a seguir foi um abraço em trio, incentivado por Melissa, bastante contente.

—É isso aí! Jantar e bate papo. É disso que eu estou falando! –festejou ela entrelaçando os braços nos pescoços das duas garotas. –Que horas vai sair o jantar?

—Ah... Não sei. Ainda estamos no horário do almoço. –lembrou Maria.

—Tem razão. –disse Melissa. –Então acho melhor almoçarmos primeiro, né?

—Meu estomago concorda com você... –confirmou Luisa. –Devemos avisar Julie, não acha?

Melissa virou-se para traz por um só instante. Os braços ainda entrelaçados junto das outras duas. Então voltou-se para Luisa.

—Acho que ela saberá em breve –e lançou-lhe uma piscadela.

Luisa olhou para traz também, disfarçadamente, e conseguiu ver rapidamente um vulto de cabelos cacheados fechar a porta e fazer um breve aceno de cabeça. Daniel devia informar as notícias. Julie não ficaria chateada por terem ido embora. Ela sabia que elas precisavam almoçar e no momento estava muito contente por ter feito duas boas amizades de confiança.

As três seguiram para a casa de Luisa. Esta estava doida para mostrar tudo para a prima. Agora mais do que nunca, estava ainda mais feliz do que imaginava ser possível. Em um só dia, tinha descoberto mais quatro amigos na casa ao lado –três fantasmas e uma estudante, assim como ela. Conseguiu rever a prima depois de dois anos inteiros de afastamento. Sua melhor amiga e sua prima pareciam estar se dando bem, e que notícia melhor para se ter num dia do que um jantar em família? As tardes poderiam ser normalmente monótonas na rua Bannerman, mas daqui pra frente, as coisas pareciam ficar cada vez melhores.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E aí? Gostaram do capitulo de hoje?

kkkkkkk Fazia bastante tempo que eu não voltava para reler esse capitulo, e quando o fiz nesta semana, me deparei com a descrição da tal professora de espanhol, lá no comecinho do primeiro paragrafo... E aí pensei: What? kkkkk
Eu achei esquisito, porque todos os professores que eu fiz questão de colocar na história, são personalidades conhecidas... Menos essa dita cuja. Intrigante não? É algo para se pensar: "Será que eu realmente quis descrever alguém, ou isso foi uma pequena tentativa de criar uma personagem?" É... Parece que nunca saberemos.

Julie e os Fantasmas é sensacional! Eu TINHA que colocá-los na história cedo ou tarde.

Kid Abelha é uma das minhas bandas preferidas. E combinemos que “Fixação” combina bem demais com eles!

Essa semana estava escutando Clodplay, e falando sobre coincidências. Tipo, vários trechos da minha história estarem se encaixando certinho no momento atual em que estou vivendo... É aí que entra o Coldplay! Eu estava ouvindo essa semana, e sem querer, apareceu uma musica deles na fic. Coincidência? Jamais! :)

Bem, espero que tenham gostado!

Beijos, e até semana que vem!

Deixem comentários!!!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.