Superstition 2 escrita por PW, Jamie PineTree, MV


Capítulo 15
Capítulo 13: Pyrophobia (Parte I)


Notas iniciais do capítulo

Devido o tamanho do capítulo, ele foi dividido em duas partes e será postado em dias diferentes. Esta primeira parte traz a resolução da trama que ocorre no passado. Aproveitem!

Escrito por PW (em colaboração com JamiePineTree e MV).



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Inglaterra, Europa Medieval - 1435

Uma brisa fria bagunçou os fios de cabelo que caíam sobre a face rígida de Dalia, despertando-a de um sono que aparentava ser profundo. A cigana abriu os olhos, recuperando o fôlego. Não lembrava-se do que tinha acontecido, muito menos do sonho que tivera, mas a sensação era de que tinha sido muito ruim.

Virou-se na cama e assustou-se com a figura silenciosa de um monge ajoelhado ao lado de sua cama, compenetrado em suas preces. O jovem percebeu que ela havia acordado, de modo que levantou, sem tirar os olhos de Dalia.

— Você acordou… — Caminhou a passos curtos e arrastados até um móvel, de onde trouxe um prato e uma caneca. — Imaginei que despertaria com fome, por isso, providenciei um pouco de pão e vinho. Eles não iam precisar de tanto para o ritual eucarístico desta noite.

Dalia começava a entender a ocasião aos poucos e, deparando-se com o curativo no ombro, lembrou-se vagamente do que vivenciou. Ela possuía somente alguns rastros de memória, começando por: onde fora atingida por uma flecha, durante a perseguição dos homens da Casa Lachlan e do Duque de Monterruna; também fora resgatada com a ajuda de Michael e Evie. Onde poderiam estar? Será que estavam bem?

— Eu conheço você? — Dalia perguntou, a voz um pouco enfraquecida. — Seu rosto me é familiar.

— Oh, perdão minha indelicadeza. Meu nome é Khan. Nós já se vimos algumas vezes, mas… Você não deve lembrar de mim, eu era mais novo. — Sorriu de bom grado, dando de ombros. — Talvez lembre dos meus primos… Eles eram ciganos, assim como você.

Dalia analisou os traços doces do rosto de Khan. Sua pele mais bronzeada, olhos escuros e sobrancelhas grandes atiçavam sua memória. Talvez ela tivesse mesmo mantido contato com a família daquele monge, e tivesse o visto anteriormente, mas no momento não conseguia lembrar.

— Me desculpe, eu… Minha cabeça está doendo. Por quanto tempo eu dormi?

— Por três dias. — Ele respondeu, incerto. — Bom, sem contar com sua saída do mosteiro. Agora, eles sabem de tudo.

Dalia ficou confusa com a afirmação, franzindo o cenho.

— Saída? O que quer dizer? Não lembro de ter feito nada, antes de acordar aqui nessa cama. — Sentou-se, aflita. Uma pontada no ombro e Dalia fez uma careta.

Khan segurou seu ombros, pedindo que ela retornasse ao seu lugar.

— Descanse, não está totalmente recuperada.

— Não vou a lugar algum. — A mulher deu uma leve tapa na mãos do monge, que recuou. — Mas você precisa me ajudar a lembrar… Khan, não é? O que aconteceu enquanto eu dormia?

Ela percebeu que o monge ficara bastante nervoso com a indagação, sem saber onde esconder as mãos trêmulas, já que acabara de depositar seu alimento em um móvel ao lado da cama.

— Tenho que ir — Ele engoliu em seco. — Só achei que poderia fazer bem a você que eu orasse um pouco pela sua recuperação, e ele não me deu autorização para ficar aqui por muito tempo.

— Ele quem?

— O Irmão Michael.

X-X-X-X-X

— Pode ir agora, Irmão Michael. E avise ao Irmão Khan sobre as consequências de seus atos. — A voz do Irmão Hanso, líder do mosteiro, era dura e afiada como aço.

Contrariado, Michael assentiu com a cabeça e deixou os aposentos do senhor que o criara e que também fizera dele um clérigo. Seguindo pelo corredor iluminado pelos candeeiros que nunca apagavam de cabeça baixa e com as mãos juntas, digerindo as duras palavras que escutara antes.

Os hematomas já não incomodavam tanto, quanto fizeram parecer dias atrás. Os acontecimentos em Monterruna, porém, ainda o perturbavam, mas suas preces noturnas o deram forças para continuar dia após dia. Até mesmo, perguntou-se durante as orações o que teria acontecido ao aprendiz de sacerdote que ameaçara sua vida, Hawley Lachlan.

“Estarás agora queimando no inferno, junto com os três irmãos Leventi”, lembrou de ter pensado.

Em seus pensamentos, Hawley era um garoto cego, que negara o verdadeiro Deus e usara sua fé fervorosa contra o presente da vida. Enquanto os ciganos, eram seguidores do demônio, como aprendera enquanto ainda era um jovem acólito, antes de ser abandonado pela mãe e se tornar um irmão da ordem dos clérigos.

Sua infância era um borrão parcialmente indecifrável, mas resquícios de uma voz gentil vinham em sua mente em momentos como aquele. Michael não conseguia mais se lembrar do rosto, mas ainda tinha a voz de sua mãe em suas memórias, lhe encorajando quando precisava.

“Siga em frente, meu Michael. Siga em frente.”

Além da voz, Michael lembrava-se apenas que morava em um lugar repleto de livros, tantos que sua visão se perdia ao tentar contá-los quando pequeno, mas sobretudo, lembrava das histórias que a mãe lhe contava. Ainda podia a voz lhe contar sobre os brilhantes cavaleiros, que percorriam longas distâncias salvando donzelas e com isso, conseguindo o amor delas. Sobre os povos guerreiros que usavam chapéus com chifres, e que se digladiavam até a morte nas terras de sempre inverno.

Dos imperadores em seus palácios de marfim, das jovens de porcelana que dançavam com espadas envenenadas, dos grandes monumentos feitos de areia e dos guerreiros que conquistaram o oriente, usando em seus seus navios brilhantes, o fogo vivo que nem mesmo a água podia vencer.

Michael parou de frente para um dos candeeiros, que ornamentavam as paredes de pedra fria, observando a substância esverdeada que iluminava o seu caminho. Os segredos da fabricação do fogo grego se perderam, junto com seus criadores, mas os anciões conseguiram criar uma versão parecida, mais poderosa e luminosa que o fogo normal, para afastar a escuridão do mosteiro.

Ainda iluminado pela luz brilhante, Michael chegou até seus simples aposentos, com a conversa tida com o Irmão Hanso ainda o perturbando. Dias antes, ele fora até a capital do reino para interceder pelos ciganos sobreviventes, que a pedido do Irmão Khan, mantinham acampamentos ao longo das terras pertencentes ao monastério.

Pela janela estreita de seu aposento quente, ele podia ver a fumaça colorida que ardia na fogueira cigana, metros além. Pessoas que não havia como simpatizar, mas que também não mereciam o destino que viria logo a seguir. Michael apertou o crucifixo embaixo da batina e novamente, pediu por orientação.

— Sabia que o encontraria aqui. — Uma voz feminina o tirou de seus pensamentos.

Não havia muitas mulheres no clero, mas mesmo assim, era proibido que um homem e uma mulher ficassem juntos no mesmo quarto, para que a tentação da carne não os fizessem quebrarem seus votos. Michael não se sentia tentado ao ver Dalia, vestida de tecidos comuns e que revelavam parte de sua pele bronzeada, mas ainda sim, a simples presença da mulher era o bastante para deixá-lo desconfortável. Ela finalmente tinha acordado.

— O que faz aqui? — Engoliu em seco ao perguntar.

— É o meu povo lá embaixo. Minha família. Pelo menos, o que sobrou dela. — Disse ela, com a voz distante e nostálgica. — Chegou até meus ouvidos que um de vocês os ajudou, depois do que os soldados do rei fizeram. Quase não acreditei que um clérigo, o Khan, ajudaria pessoas como nós.

Khan é uma boa alma, mas vocês ciganos não são.

Ela estava tão próxima, que Michael podia sentir o calor e o cheiro doce de canela que emanava da cigana.

— O que está acontecendo ali? — Michael apontou com o dedo para fora. — O que aquela mulher está fazendo com o soldado do príncipe?

Dalia precisou espreitar os olhos para ver melhor.

— Quiromancia. — Respondeu ela. — A arte de ler o futuro na palma das mãos. Nossos antepassados nos ensinaram como prever o futuro e nós os repassamos, de geração em geração.

Isso não é arte, é bruxaria.

— Posso fazer isso com você. — Ela disse, tomando as mãos dele sem pedir permissão.

Michael puxou as mãos de volta num rompante, com o rosto rígido e um olhar enojado. Dalia sentiu uma súbita vergonha, percebendo seu rosto enrubescer.

O tratamento que recebia na igreja não era muito melhor que o que recebera em Monterruna, mas ali, ela esperava se sentir segura. E com Michael, ela esperava que as diferenças culturais fossem postas de lado, enquanto a misteriosa lista da morte ainda era um mistério a ser resolvido.

Com exceção do fogo crepitando alegremente no corredor, ambos ficaram em um silêncio constrangedor de alguns segundos.

— O Irmão Hanso não os quer mais em nossas terras. — Michael quebrou o silêncio. — Eu lamento.

O rosto vermelho de Dalia ficou ainda mais escuro pelo desapontamento, junto com a rigidez que tomou conta de seu corpo.

— Mas o que Khan disse… A princesa me confirmou que podíamos ficar aqui até que todos estejam fortes para procurar um novo lugar.

— As leis de Deus são maiores que as leis dos homens. — Desviou o olhar da janela e principalmente, desviou do confuso olhar castanho dela. — Servimos também à princesa, isso é verdade, mas ela não tem autoridade aqui.

— Eu salvei a sua vida. — Uma lágrima escorreu a face de bronze. — Dei-lhe uma nova chance.

— Minha vida não era sua para que a salvasse, muito menos do garoto Hawley para que a tirasse. Minha vida pertence à igreja e somente à ela eu sirvo.

Foi quando escutaram barulhos vindos de fora. Andares abaixo, os acampamentos eram derrubados por clérigos mais fortes, fazendo os homens pegarem em armas e assustando mulheres e crianças.

Uma mão fria apertou o coração de Dalia ao ver o que novamente, estava acontecendo ao seu povo. Sua memória voltou ao dia em que soldados do rei, numa tentativa clara de massacre, fez ela e o irmãos partirem em busca de vingança.

Vingança, que nada adiantou e que apenas lhe trouxera mais perdas.

— Você e Hawley são mais parecidos do que pensa, sabia? Duas faces de uma mesma moeda.

— Não me compare com aquele pagão, mulher!

Michael não viu acontecer, apenas sentiu seu rosto queimar após o tapa que Dalia lhe dera. Tocou a face dolorida e sentiu uma pequena gota de sangue despontar de seu lábio inferior, quente e espessa.

Michael pensou em revidar com palavras, porém, precisava admitir que a dor do tapa era uma pequena fagulha, se comparada com a dor que queimava dentro de Dalia.

— Vá embora, cigana! Leve o seu povo, leve sua família e talvez… Talvez sobrevivam ao fogo.

A cigana ficou paralisada por uma onda de eletricidade que invadiu seu corpo. Por algum motivo, seu senso de perigo aumentou, fazendo-a rebater a investida:

— Antes, preciso ter certeza de que a princesa ficará a salvo.

X-X-X-X-X

O brilho da lua decorava a noite e o alto das árvores.

Embaixo de vestimentas grossas fornecidas pelos monges, Evie mantinha-se aquecida. Ela andava por um caminho tortuoso de grama rasteira recém-tratada. Aquele era um hábito comum entre os homens que viviam reclusos nas dependências no monastério. Além de zelarem pelo jardim do claustro, durante certo período no verão, saíam para cuidar da vegetação que rodeava sua fortaleza religiosa.

A trilha serpenteava até encontrar uma singela ponte de madeira, que se estendia a fim de unir as margens do rio que corria sob a estrutura. Era um rio pequeno, mas que possuía uma corrente furiosa. Evie encarou suas águas lutarem bravamente contra as armaduras de pedra espalhadas ao longo do seu percurso.

Prestou atenção no movimento brusco das águas e deu um sobressalto quando uma mão tocou seu ombro.

— São para a senhorita. — A voz masculina a acalmou.

A princesa respirou fundo e deparou-se com Jerry Hightower segurando um ramo de flores brancas. Evie não sabia identificá-las, apesar de que sempre teve um jardim imenso com variedades de flores à sua disposição. Seriam lírios colhidos ali na beira do rio?

— São lindas, obrigada. — Agradeceu, aproximando o rosto do ramo para sentir o aroma. De fato, era muito agradável.

Jerry e alguns de seus soldados de confiança haviam escoltado a carruagem que a trouxe até o mosteiro. Nesses últimos dias, tinham sido muito bons para o grupo, montando guarda e vigílias noturnas. Alguns deles se misturaram fácil entre os monges, por conta de suas crenças coincidirem. O príncipe também era católico, mas não dava muita atenção para as leis de Deus, preferindo propagar a lei dos homens, a qual ele tinha mais acesso.

— Sair das dependências do monastério durante a noite é muito arriscado, princesa. — Ele comentou, caminhando ao lado da jovem.

— Minha vida está em risco desde aquela fatídica cerimônia de coroação, Jerry. Não há lugar realmente seguro para mim. — Suspirou com pesar.

Sua seriedade chegou a espantar o acompanhante. Os dois subiram a ponte para atravessar o rio, e chegando na metade do trajeto, o homem em suas roupas de alta costura parou e ficou de frente para a nobre de cabelos ruivos.

— O que a aflige?

— É mais complexo do que possas imaginar. — Evie tocou a madeira fria da ponte, dando as costas ao príncipe e se pondo diante do rio.

Só então, notou que naquele lado, escondida por grama alta, uma casa de madeira e pedra se erguia na margem. Era uma construção barulhenta de dois andares, sendo um deles, na altura da correnteza. Onde jazia uma grande roda de madeira repleta de pás, girando em um som incômodo de galhos arranhando. Cada pá mergulhava na corrente do rio e subia novamente, para realizar o mesmo percurso outra vez, em um eixo vertical. Evie conhecia aquele mecanismo. Lembrou de ver um desses no jardim do Castelo de Lothair quando era criança.

Tratava-se de um moinho hidráulico, encarregado de moer grãos para fabricação de cereais e outras especiarias. A força das águas fazia a roda girar e, lá dentro do casebre, uma segunda engrenagem interligada ao primeiro eixo era empurrada para a moagem dos grãos. O moinho já estava um tanto desgastado e velho, de modo que não eram tão usados quanto antes, já que a descoberta dos moinhos eólicos facilitou a vida de muitos produtores de grãos da região.

— Isso pertence aos monges? — A jovem perguntou, intrigada. — Parece abandonado.

— Ainda está funcionando. — Jerry constatou. — Mas não vamos mudar de assunto, princesa, quero saber como ajudá-la nesse momento difícil.

Evie deu um riso nervoso e ao mesmo tempo entristecido. Ele era persistente. Se Jerry soubesse, ficaria longe dela ou de qualquer coisa que pudesse aproximá-los.

— Tudo começou naquela noite. — Disposta a contar tudo, a ruiva disse, sem se virar. — Eu finalmente iria me tornar a rainha que fui destinada a ser, que meus pais estimaram. Porém, sequer dera tempo de acostumar-me com o peso da coroa. Após o ataque das dançarinas, o topo da nobreza nunca ficou tão distante. E elas me tiraram tudo… Tudo! Meus pais, meus amigos, Pete…

Os olhos claros de Evie já estavam tomados por lágrimas, a voz trêmula pelas lembranças atribuladas. A imagem de Pete sendo lançado no alto da torre e indo direto ao fosso fez seu coração apertar, e ela sentiu o hálito fresco de Jerry atrás de si. Ele era tão parecido com o irmão; seus olhos fumegantes, seus lábios agridoces, que Evie mal podia olhá-lo diretamente por mais do que o necessário.

— Ele foi um homem muito forte e destemido. Lutou até o fim. — Murmurou o príncipe, enchendo-se de boas memórias do irmão, apesar de não conseguir demonstrar com clareza seus sentimentos. — Sua soberania seria dura e justa, como um fogo ardente. Tenho certeza disso.

Evie fungou e limpou uma lágrima que aquecia suas bochechas.

— Você não entende, Jerry. — A nobre retrucou, tremendo. — Os males não se dissiparam na noite do incidente. Definitivamente, tudo ao meu redor pereceu. Os sobreviventes que ficaram para trás, meu fiel amigo Dean… Todos eles foram levados por algo muito maior do que nós, do que os desígnios de Deus. Nosso título não tem valor para a morte. Ela não escolhe dia, lugar ou circunstância, Jerry. Ela apenas planeja nosso fim e o executa.

O príncipe não sabia como reagir ou o que dizer. O discurso melancólico de uma Evie completamente diferente deixou-o confuso, mas ele queria ir além. Não deixaria que a princesa passasse por isso sozinha.

— Eu quero entendê-la. — Respondeu firmemente. — Sei como é tenebroso olhar para trás e ver que o que restara é apenas corpos e destruição. Nossa dor é compatível, tivemos perdas irreparáveis e agora preciso lidar, também, com um reino quebrado e sem poder. Os Hightower estão perdendo credibilidade, o vilarejo desacreditado se vê sem uma liderança e rebeliões podem acontecer se alguém não assumir o trono.

— Sim, és o único herdeiro vivo, mas aonde quer chegar?

— A verdade é que não conseguirei sozinho. — Para ele, doera assumir. — Pete era o mais velho, ele crescera carregando o título de futuro rei de Hightower sobre suas costas. Meu pai depositava toda sua convicção no reinado de meu irmão. Sempre o invejei por isso, por ser abastado de responsabilidades. Entretanto, agora que as tenho em minhas mãos, é muito mais difícil. Preciso de uma pessoa valente, justa e de bom coração ao meu lado, Evie. Uma princesa como você.

Suas palavras surpreenderam Evie, que apertou a madeira da ponte entre os dedos pálidos. Ela recusou-se a virar e fitá-lo, mas sentia suas pernas bambas embaixo da indumentária. O que era aquele sentimento? Ela sempre admirou Jerry por seu caráter e benevolência para com seus subservientes e para com o reino, mas não deveria estar sentindo atração por ele. Não depois do que houve com Pete, não depois de ver seu falecido cônjuge projetado na face do irmão caçula.

A ruiva recuou.

— Perdoe-me, Alteza, mas não sei posso corresponder às suas-

Evie não percebeu, mas sua indumentária havia ficado presa entre as farpas da madeira. Ouviu um rangido e o som de algo se partindo sob seus pés. Tentou afastar-se do príncipe e acabou se desequilibrando. Seu corpo desajeitado bateu contra a lateral da ponte, que devido à madeira podre, quebrou-se em vários pedaços.

Ela gritou, sem ter onde se agarrar.

Evie caiu na água fria do rio, submergindo em seguida.

Indo em direção ao moinho hidráulico.

X-X-X-X-X

Quando retornou à superfície, a princesa começou a debater-se debilmente. Não sabia nadar. Ergueu a cabeça o máximo que pôde para que pudesse procurar fôlego, mas a correnteza empurrou uma quantidade absurda de água para dentro de sua boca e nariz. Via apenas borrões da noite, o cabelo cor-de-cobre grudado na pele. Tossiu, enquanto seu corpo era arrastado para longe da ponte e para longe de Jerry.

O príncipe olhava atônito a jovem ser levada pela água, mas pouco depois já estava se atirando dentro do rio, na tentativa de alcançá-la a tempo. Avistava os braços de Evie se debaterem frenéticos mais à frente. Ela engolia muita água, de modo que sua voz não era mais ouvida, apenas borbulhas ao redor do rosto.

A jovem afundou outra vez, e voltando à superfície, encarou a construção crescer diante de seus olhos. A roda do moinho rangeu vertiginosamente e pareceu maior do que era. Suas pás giravam à medida em que a água passava pelo mecanismo circular.

Evie conseguiu gritar outra vez até seu rosto atingir uma pedra no caminho, o suficiente para fazê-la tontear. Estava ficando sem forças e pronta para desistir. Será que aquela era a única forma de sentir Pete outra vez? De ver sua família? Talvez fosse a coisa certa a fazer. Dean era a única pessoa que a prendia ali, e ele também havia partido.

Começou a fechar os olhos.

— Evie! — Ouviu o príncipe berrar.

Jerry, por favor!

Ele vinha nadando a favor da correnteza, há poucos metros. Estava prestes a alcançá-la, mas o corpo da nobre já havia chegado perto o suficiente das pás do moinho d’água. Sua indumentária foi a primeira coisa a ser enroscada em uma das inúmeras pás, que puxou o tecido para baixo com força. O mecanismo queria girar, mas o tecido o impedia, e o braço de Evie era a próxima coisa a ser tragada pelo moinho.

A ruiva berrou, sentindo uma dor excruciante no braço machucado. Ela não aguentaria, sentia seu corpo extremamente fraco, como se fosse apagar a qualquer momento.

O tecido rasgou e Evie ouviu o mecanismo voltar a girar com força. Até que sentiu os braços fortes de Jerry agarrá-la no último minuto.

X-X-X-X-X

Um cheiro forte invadiu o nariz de Dalia, que acordou em um sobressalto.

A cigana tentou mover os braços, mas estranhamente não conseguiu, algo segurava seus pulsos.

Olhou ao redor, sua cabeça doía muito por conta do cheiro forte de canela e vinho que entrava pelas suas narinas e embriagava seu cérebro. Deitada em uma posição desconfortável, a mulher sentia as solas dos pés arranharem nos pedregulhos do solo. Só então, entendeu que estava sendo arrastada.

Os inúmeros monges cochichavam ao seu redor, mas nenhum deles dirigia a palavra a ela. Estariam rezando? Os maiores deles seguravam os pulsos da cigana, levando-a para o desconhecido. Dalia repentinamente encarou o céu escuro e imaginou que pudesse estar sonhando novamente, ignorando o brilho alaranjado que se erguia nas paredes de pedra das construções que ficavam nos fundos do mosteiro.

A temperatura do ambiente subiu e a mulher concluiu que os demais monges se aproximavam com velas em mãos, preparados para uma espécie de ritual.

Os clérigos ergueram seu corpo do chão e, levantando o rosto, Dalia pôde encarar cada figura religiosa prostrada sobre ela. Mãos justapostas, faces resignadas, sorrisos cínicos. Nenhum deles parecia se importar com seu desespero. Pelo contrário, aparentavam alívio diante da cena.

— O que vocês vão fazer? — Perguntou, entre ranger de dentes.

Em silêncio, os monges que a seguravam, apontaram seu olhar para a pequena clareira. Degraus de pedra do jardim do claustro levavam até uma cama de pedra e no meio dela, três metros acima do chão, uma estaca de madeira. A cigana balançou a cabeça em negação e assim que notou os monges dando passos na direção dos degraus, teve de resistir.

— Por que estão fazendo isso?! Parem! Me soltem! — Fez força para que seus pés não saíssem do chão, mas eles eram maiores e mais fortes.

Dalia começou a debater-se, entre protestos.

— Vocês não podem!

— Na verdade, é nosso dever, bruxa. — Uma voz rouca e poderosa soou no jardim.

Irmão Hanso apareceu entre os monges. Ele era alto, ossudo e tinha a pele marcada pelo tempo que passara recluso. O rosto carrancudo transmitia frieza e sua barba escura se destacava entre os outros. Sua túnica era maior e com detalhes mais notáveis, enquanto em suas mãos, um apoio de madeira semelhante a um cajado.

Ele mancou até Dalia.

— A lei é clara, minha jovem. — Disse sério, os olhos cinzentos. — Aquele que não é com Deus, é contra ele. Aquele que insiste em zombar de seu poder, fere sua existência. Ninguém neste mundo é igual ou maior do que Deus, e aquele que acha que pode assumir seu papel no presente da vida e no desígnio da morte, deve ser punido em nome do Senhor.

— Eu nunca quis ferir o seu Deus! — Dalia cuspiu.

— Vocês, ciganos, não merecem as chagas de Cristo… Acham que podem trapacear o plano divino, burlar as leis de Deus! E para quê? — Estendeu os braços. — Para benefício próprio, presumo. Bruxaria e Feitiçaria são artes das trevas, práticas pagãs e diabólicas, e serão tratadas como devem.

— Como pode ser tão pobre de espírito? — A mulher murmurou, rindo de nervosismo. — Não sabe o que está dizendo, Monsenhor, porque não há nada aí dentro… Só o vazio… Tão fundo quanto um poço.

Os lábios de Dalia tremiam, ela queria se desvencilhar dos clérigos e fazer a arte da bruxaria acontecer diante de seus olhos, assim como ele dizia. A cigana nunca usara de suas habilidades para o mal, apesar de que ela e seus irmãos já tiveram que se sujeitar a situações onde precisaram de lábia e trapaça para saírem ilesos. Agora, ela não tinha como fugir, nem como enganá-los. Estava encurralada.

Irmão Hanso ignorou a petulância da mulher, engolindo as palavras de maldição que iria proferir. Limpou a testa suada e disparou:

— Talvez nada disso estivesse acontecendo, se não tivesse ido até a floresta adorar ao diabo junto dos seus amigos pagãos.

Em meio à raiva e aflição, Dalia franziu.

— O que tanto fiz naquela floresta que despertou o lado obscuro dos seguidores de Deus?

— Não finja ingenuidade, sabe muito bem que estou falando do ritual repleto de depravação e… — O Monsenhor fez uma careta. — Sangue.

O Khan tentou me falar sobre isso…

— Eu não me lembro de nada!

X-X-X-X-X

— Michael! — Dalia gritou a plenos pulmões, enquanto era levada degraus acima, os olhos lacrimejando. — Michael me ajuda!

— Eu soube que ambos criaram um vínculo, mas o Irmão Michael é um de nós, e ele não irá destruir seu voto de obediência para ajudar uma mulher suja e perversa feito você. — Monsenhor Hanso sibilou. — Apenas aceite sua sentença.

— Onde ele está? O que fizeram com ele?!

— Pedi que buscasse uma surpresinha para os seus amigos ciganos no porão do monastério. Ele logo se juntará a nós, não vai demorar.

Ele acompanhava os monges empurrarem a cigana resistente contra a estrutura de madeira enterrada de pé na mesa de pedra. Debatendo-se, Dalia tentava acertar chutes e cotoveladas contra os homenzarrões, ofendendo-os com palavras duras. Em vão, eles eram como estátuas de sal, ignorando tudo que ela dizia e fazia com plenitude.

Ela é muito corajosa, constatou o Monsenhor. Ninguém em sã consciência desafiaria a Igreja daquela forma, mas a mulher parecia disposta a ir até o fim para não desembocar no seu destino final.

Os braços de Dalia foram amarrados atrás da estaca, acima de sua cabeça. Ela ergueu o queixo, encarando-os profundamente. Fuzilava-os com seu olhar opaco e flamejante. A cigana estava sendo acusada de bruxaria por ter, inconscientemente, participado de um ritual tradicional na floresta, onde as mulheres dançavam nuas ao redor de uma singela fogueira para reiniciar um novo ciclo de fertilidade. Era um ritual feito de tempos em tempos, também para agradecer seus corpos e suas famílias.

Contudo, estava sendo condenada por ter previsto o acidente em Hightower e agido antes. Por ter prolongado a vida dos sobreviventes e tê-los fadado à morte precoce.

Indiretamente, Dalia ajudou nos planos sombrios da Morte, entregando suas vidas numa bandeja bem-servida. Ela era realmente culpada?

Do fogo veio, ao fogo ela voltaria.

Dalia sentiu o líquido molhar seu rosto, escorregando pelas sua camisola branca. Outro golpe do líquido e o cabelo longo da cigana grudou contra seu rosto. Ela rangeu os dentes na direção dos homens, mostrando que não choraria em seu último momento.

Eles não teria aquele gosto de fraqueza.

Dalia sentiu o cheiro do líquido invadir seu nariz. Querosene. Eles precisam de um combustível... De repente, viu a tocha laranja nas mãos do Monsenhor Hanso, o qual sorria por trás das chamas, satisfeito com o desenrolar da ocasião. Aquele sorriso sórdido lembrou-a de Harlaw Lachlan, o Duque de Monterruna. E como o homem perseguiu seus irmãos, decaptando-os sem escrúpulos algumas noites antes.

Ainda podia ouvi-los pedindo que ela fugisse, eles nunca desistiram. Seus irmãos sempre foram as pessoas mais destemidas e fortes que a irmã já vira. E apesar de não terem conseguido sobreviver às espadas afiadas dos soldados do duque, continuavam vivos dentro do seu coração e ainda moviam seus passos. Johann, Stefford e Davill eram a base o que regia sua sobrevivência. Seus irmãos sempre foram seu combustível.

Monsenhor aproximou-se com sua perna manca e seu olhar pretensioso. Atrás dele, um dos monges trazia a tocha que acenderia a fogueira, pronto para jogá-la na cama de pedra, repleta de galhos e madeira. Era como se tivessem se preparado psicologicamente durante toda a vida para serem capazes de controlar a frieza e calmaria diante da morte de um mulher que, aos seus olhos, era merecedora de perecer numa fogueira ardente.

— Vocês são os verdadeiros monstros aqui! — Dalia pensou alto, engasgando no querosene que queimava seus lábios. — Seu Deus nunca aprovaria isso!

Irmão Hanso riu.

— Tu não entendes nada de fé, bruxa. Guarde seus lamentos para quando chegares no inferno. — E virou-se para o monge mais próximo. — Ateie fogo na bruxa!

— PAREM!

A voz feminina e imponente paralisou o monge, fazendo-o parar no meio do percurso, recuando a tocha.

Monsenhor olhou adiante e visualizou a princesa Evie, fraquejando na direção da mesa de pedra. Acompanhando-a, o príncipe Jerry Hightower. Os nobres estavam completamente encharcados, enquanto nas mãos da ruiva, um arco-e-flecha erguido, apontado na direção do líder religioso; Jerry retirou sua espada, que reluziu à luz alaranjada do fogo.

— O que pensa que está fazendo, princesa? — Irmão Hanso bradou.

— Matar esta mulher é um erro! — Respondeu ela, pondo-se diante deles, o arco seguindo o curso do olhar.

— Infelizmente não é de sua alçada intervir em um assunto exclusivo da igreja como este, Vossa Alteza. Sugiro que afaste o arco e volte para dentro, o príncipe vai adorar levá-la até nossa enfermaria para tratar do machucado em seu braço. - Comentou o Monsenhor, notando o ferimento que comprometia a posição do membro da ruiva. Esperava que sua autoridade dentro do mosteiro intimidasse os nobres.

O que não aconteceu. Evie deu mais um passo desajeitado na direção deles, empunhando seu arco. A flecha estava na mira do monge com a tocha.

— Dalia, eu acho que entendi o que está acontecendo conosco. — A princesa disse, sem se virar. — Há alguns minutos, eu quase morri no moinho hidráulico nos fundos do mosteiro, mas Jerry me salvou. — Houve um contato mínimo com o olhar atento do príncipe. — Assim como salvei Michael da morte em Monterruna.

A informação nada abalou o Monsenhor, que continuou ouvindo o discurso da nobre.

— Não sabemos ao certo o que aconteceu aos dois sobreviventes que deixamos para trás na cidade, mas minha intuição diz que eles estão mortos agora. Assim como o jovem Hawley e Dean. — O nome de seu fiel companheiro pesou em sua garganta. — A morte tentou nos levar esse tempo todo, como forma de consertar seus planos. — Ela pigarreou.

— Lembra do que Hawley Lachlan disse no jantar? Estamos em dívida, mas Michael e eu conseguimos nos salvar e posso salvá-la também!

Os olhos de Dalia brilharam.

— Não ouse se envolveres nisso, Alteza. — Repudiou o Monsenhor, encarando a face rígida da jovem. — Deus não poupará seu título, ninguém está acima dele.

— Estás mesmo ameaçando os futuros Rei e Rainha de Hightower, reverendo? — Jerry sibilou, erguendo sua espada diante do próprio rosto e surpreendendo Evie, que ficou sem palavras. — Sabe no que isto pode implicar, certo? Embora esteja no topo deste lugar, ele ainda foi construído sobre minhas terras.

Monsenhor Hanso riu outra vez, incrédulo, olhando no fundo dos olhos concentrados de Jerry.

— Seu pai não era um homem diplomático, admito. Agora vejo que são muito mais parecidos do que imaginava, acham que tudo gira em torno de poder e riquezas... Tolos!

— Apoiou-se no cajado com a outra mão. — Estão mesmo fazendo isso por uma bruxa, cujo tempo é ocupado em servir demônios?

— A morte está atrás de mim, reverendo. Eu não me importo mais, não tenho nada a perder. — Evie replicou, dando de ombros, tomada por adrenalina. Então, aquela era a sensação de rebeldia que nunca pudera sentir? — Libere a cigana da condenação que lhe foi dada e partiremos do mosteiro imediatamente.

— Perdoe-me, Alteza, mas não há nada que possas fazer. O julgamento já foi feito e a acusada foi condenada à fogueira. Ela será queimada de uma forma ou de outra. — O homem de barba grossa concluiu, tomando ele mesmo a tocha das mãos do monge.

— Isso é o que vamos ver. — Retrucou a princesa, pronta para lutar pela vida de Dalia.

X-X-X-X-X

Longes de qualquer centelha e protegidos pelo frio das paredes de pedra, os frascos contendo o viscoso líquido verde e altamente volátil, ficavam armazenados nos porões do monastério. Fogo Grego era uma substância com vida própria, que não se apagava por nada e ardia intensamente por mais tempo que o fogo comum.

Michael já imaginava o que devia estar acontecendo no lado de fora e para que os fracos serviriam, causando uma divisão no que o seu coração dizia, contra o que sua mente dizia ser o certo. Entre cumprir seus deveres e ajudar a mulher que o acompanhara naquela jornada mortal.

Descendo os intermináveis degraus da escadaria que levavam ao porão, Michael e Khan seguiam em silêncio. Khan conseguia ser ainda mais quieto do que Michael achava ser possível, tendo uma sombra recobrindo seu rosto acobreado e escondendo suas feições tristes.

Você nos colocou nessa situação, Khan. Esse é o certo a se fazer e você sabe disso.

Chegaram ao final da escadaria e Khan destrancou uma enorme porta de madeira, que rangeu ao ser aberta. Michael aguardava a alguns passos de distância, segurando um castiçal aceso e mantendo-o o mais afastado possível, enquanto Khan entrava sozinho dentro do cômodo.

Mesmo com a chama quente próxima ao seu rosto, Michael sentia-se gelado, tremendo, como se houvesse mais alguém ali no escuro além deles.

As paredes e o piso eram recobertas com muita areia, funda o bastante para que os pés de Khan afundassem até os tornozelos naquele mar granulado, que protegia o fogo grego. Um único frasco poderia encher todos os candeeiros do mosteiro por vários dias, já um armazém lotado, poderia destruir o mosteiro e tudo ao seu redor numa fração de segundo, até que não sobrasse nenhuma pedra. Por isso, a areia impedia que qualquer frasco rachado causasse um incêndio de proporções gigantescas.

Michael não sabia exatamente do que era feito, mas imaginava ser uma derivação do óleo negro que era extraído da terra, com outras substâncias fora de seu alcance. Segredo guardado para produzir a bela chama esverdeada, que os clérigos usavam nos candeeiros e que futuramente, seria usado contra os ciganos.

“Que deixes-o queimar até chegarem ao inferno, lugar que nunca deveriam ter saído.” A voz dura do Irmão Hanso ainda reverberava em sua cabeça. “Deixe-os queimar.”

Khan pegou o frasco mais próximo da porta, com cuidado para que o líquido temperamental não se agitasse com o movimento trêmulo de suas mãos.

Ele não quer isso, Michael percebeu ao ver o irmão de batina tremer. Então por que os trouxe aqui, Khan? O que estava tentando provar?

Khan não conseguia ver Michael perdido em seus pensamentos atrás dele. Com cuidado, o clérigo pegou o frasco, ultrapassando o mar de areia fina, trancou a porta atrás de si e seguiu escadaria acima, metros de distância de Michael e a chama de sua vela, que seguia atrás dele na escada em espiral.

Conforme se distanciava do restante do fogo grego no porão, a sensação gelada abandonava o corpo de Michael, levando embora as incertezas sobre estar protegido pela fé.

Já estavam chegando ao topo da escadaria circular, quando Khan parou de repente, fazendo Michael parar de subir também.

— Não quero fazer isso. — Khan murmurou. — Pensei que pudesse ser diferente, pensei que…

— Não quer, mas terás de fazer. — Michael respondeu, com a chama do castiçal tremeluzindo entre eles. — Eles adoram ao desconhecido, praticam bruxaria e mesmo que alguns deles pareçam amigáveis, ainda são o que são.

Sem anunciar, Khan o empurrou fortemente com a mão vazia e o clérigo sentiu os degraus de pedra sumirem em baixo de seus pés. Segundos depois, Michael deixou o castiçal cair e rolou toda a escadaria de volta até o porão, sentindo seu corpo bater sem controle nos degraus de pedra e a dor arrancar-lhe o ar dos pulmões.

— Irmão Khan, não faça nada que vá se arrepender depois. — Michael gemeu metros abaixo. — Me ajude e essa blasfêmia será perdoada.

— O sangue que corre neles também corre em mim, Michael. Por isso os ofereci abrigo, para que talvez pudessem ver que eles não são os demônios que aprendemos a acreditar. — Khan brincou com o frasco de cerâmica nas mãos. — A igreja foi meu lar durante todo esse tempo, mas como você mesmo disse, Michael, nós somos o que somos e eu ainda sou um cigano.

Khan se abaixou e verteu o frasco na borda do topo da escada, observando o brilhante líquido verde embeber degrau por degrau, na direção do castiçal ainda aceso, caído no meio da escadaria. Enquanto um dolorido Michael, no último degrau, observava a tragédia que estava prestes a acontecer.

X-X-X-X-X

Tema: [https://www.youtube.com/watch?v=RDQkQCQ8JvE]

— Você não fará o que creio que fará, princesa. — Monsenhor Hanso ironizou. — Afinal, estarás atentando contra um líder religioso. — Ele ergueu a tocha, pronto para jogá-la contra o combustível.

Dalia trocou um olhar rápido com Evie e fechou os olhos. Não pretendia ver seu corpo definhar nas labaredas, senti-lo sendo devorado já era o bastante.

A nobre, em posse do arco, apontou-o na direção das mãos enrugadas do clérigo, respirando fundo. Suas fugas dos exercícios de harpa para treinar arco-e-flecha, na adolescência, finalmente serviriam de algo.

Então, ouviu um baque e viu, de canto de olho, Jerry cair ao seu lado, desacordado. A atenção roubada por breves segundos e Evie virou o rosto a tempo de ver Monsenhor Hanso lançar a tocha de ferro forjado na direção da cama de pedra. A princesa gritou, os olhos marejados.

Apontou o arco na direção do objeto e disparou a flecha. Seria sua única tentativa. A flecha passou cortando o ar centímetros de distância dos rastros de fogo. E a tocha caiu sobre os galhos e palhas colocados aos pés da estaca. As chamas logo lamberam os vestígios de combustível.

O desenho do fogo deslizando ao redor da estaca se formou e Evie soltou um gritinho, sendo agarrada por dois monges grandes.

— Me soltem! Dalia! — Berrou para a mulher, que abriu os olhos melancólicos atrás das chamas.

A cigana viu a parede de fogo se levantar embaixo de seus pés e gritou a plenos pulmões, erguendo a cabeça e encarando o céu nebuloso. Acima de sua cabeça, teve a breve sensação de que uma aura obscura rodeava sua cabeça, dançando junto da fogueira. O Deus Sem Face… Chegou a minha vez. Dos olhos, lágrimas sôfregas saltaram.

Dalia começou a se debater, os braços apertados contra a estaca, sentindo a pedra esquentar as solas sensível de seus pés. O fogo deslizou como uma serpente vertiginosa, tocando o querosene em um beijo venenoso.

A morte queria agir depressa. Dalia ficaria em chamas em poucos minutos.

O olhar perdido de Evie vagou pelo jardim e o que avistou, poderia ser sua última esperança.

As labaredas brilhantes e vorazes tocaram os pés da cigana, que paralisada pela dor excruciante, sentiu como se seus dedos e tornozelos estivessem desaparecendo junto com cada trago de fogo.

X-X-X-X-X

Tema (se estende para a cena seguinte/ouça em repeat): [https://www.youtube.com/watch?v=BCQuD_bEQYk]

“Siga em frente, meu pequeno Michael. Siga em frente.” Foi o que a mãe dissera ao deixá-lo na estrada que levava ao mosteiro.

Mesmo com cérebro quicando dentro de sua cabeça, Michael impulsionou seu corpo para frente, tentando dar um passo, apenas para descobrir, que alguns ossos ainda não identificados haviam sido quebrados durante a queda.

Wish upon star well it might true

But while you're Starring at the sun you neglect the moon

With your back turned bracing up against the wall

You'll be Picking up the pieces of what you want

Sentiu comos se agulhas quentes estivessem cobrindo seu corpo, aprofundando-se a cada movimento que ele fazia. Não conseguia identificar de onde a dor vinha, mas mesmo assim, ultrapassou um degrau da escada acima.

Siga em frente, meu pequeno Michael. Siga em frente.”

A substância volátil descia feliz pelos degraus, em pequenos rios brilhantes da cor verde. Degraus abaixo, a chama do castiçal consumia a cera da vela, ficando cada vez mais forte conforme os segundos passavam.

The storm is a coming so you better run

The Coldness is hungry like loaded gun

Com um espasmo, Michael arfou e um pouco de sangue escorreu de sua boca. Tentou enxergar o que acontecia, mas tudo o que conseguia ver era o brilho verde tentando encontrar o brilho da chama. O clérigo ignorou a dor o máximo que pode, rangendo os dentes e cuspindo mais sangue.

“Siga em frente, meu pequeno Michael. Siga em frente.”

Sharks are circling out in the deep

you Dream for tomorrow when you can't sleep

Seus pensamentos não era mais sobre a traição de Khan, ou no que acontecia com a cigana e o seu povo, mas sim em seu Deus, implorando que o pior não acontecesse. O crucifixo balançava debaixo do manto, seguindo as batidas céleres de seu coração.

Engatinhou por cima de dois degraus, sentindo seus joelhos friccionando na pedra fria e falhando ao tentarem o colocar de pé. Michael mantinha o olhar a chama que aguardava a cascata viscosa lhe encontrar, sem nenhuma leve brisa estar ali para tentar apagá-la.

— Só mais um pouco…

When the sun goes down

When the sun goes down

When the sun goes down

Sua mão esquerda suportava seu peso, enquanto a direita o fazia gritar toda vez que ele tentava se apoiar nela. Alguns poucos degraus separavam Michael e o fogo grego, que pingava como sangue para perto da vela acesa, fazendo o clérigo se contorcer a cada movimento desesperado que era obrigado a fazer, enquanto a sensação de ser penetrado por agulhas quentes cada vez mais aumentava.

“Siga em frente, meu pequeno Michael. Siga em frente.”

O brilhante rio verde chegou ao degrau, onde a chama da vela caída esperava em diferentes tons de verde e Michael viu seu próprio inferno acontecer a sua frente. Um poderoso soco ar de quente o atingiu, queimando seus cabelos e fazendo seu corpo ser impulsionado para trás mais uma vez, voando sobre os degraus envolto em um vívido turbilhão cor de jade.

There's nowhere to hide

Nowhere to hide,  When the sun goes down

O abraço do fogo veio escandalosamente quente, que até as lágrimas em seu rosto evaporaram no mesmo instante. Michael fechou os olhos e sentiu o calor consumir seu corpo até sua alma gritar enlouquecida.

Michael atravessou a pesada porta de madeira como se ela fosse feita de papel, ouvindo o guinchar da madeira ser destroçada e reduzida às cinzas num piscar de olhos. As chamas vivas tomaram conta de todo ambiente, lambendo as paredes de pedra e reduzindo o grosso manto de Michael em pó.

My Spirit is sinking like a ship's beens wrecked

Old History repeating trying to forget

O clérigo caiu de costas no mar de areia com um baque surdo, contorcendo seu corpo em espasmos que o fizeram guinchar com toda a força que ainda lhe restara. Sua pele derretia sobre seus músculos, agora tão escura quanto carvão e o ar se preenchia de fumaça e o cheiro violento de carne queimada.

A fervorosa vida de Michael findou quando seus olhos ferveram e seu coração murchou até ser reduzido a nada. Em pouquíssimo tempo, o resto de seu corpo desapareceu em cinzas negras, deixando no lugar, apenas uma silhueta na areia iluminada pela demoníaca luz esverdeada.

Waves are crashing up against me now

Make it out of here Someway somehow

Sombras verdes dançavam nas paredes do porão, enquanto as poderosas chamas lambiam preguiçosamente os frascos de cerâmica restantes.

X-X-X-X-X

Monsenhor Hanso enxergou um clarão verde sucumbir o térreo da ala mais próxima do monastério, onde ficava o porão, e um estrondo sacudiu o jardim. Alguns monges foram ao chão, tamanha fora a força do tremor.

Sendo assim, Evie conseguiu escorregar entre os braços dos clérigos e correr na direção de Dalia, procurando em seu campo de visão algo que pudesse ajudá-la a apagar as chamas assustadoras. Atrás dela, monges vinham em seu encalço, para evitarem que ela destruísse o ritual.

Fight like thunder til my body breaks

I've Nothing left to lose it's been taken away

O líder de barba espessa chamou um grupo de seus servientes religiosos para conferirem o que houve no porão. Ele já tinha suas suspeitas, como o fracasso de Michael em suas missão, mas precisava ter certeza.

— Vão! — Bradou, tomado por furor.

Atrás da cama de pedra, Jerry rastejava com sua espada inseparável em mãos. O príncipe ajoelhou-se e conseguiu se apoiar na mesa de pedra, escalando-a com cuidado, mesmo com sua cabeça latejando da pancada anterior.

Everything precious now is gone

Forever I'll be Waiting for the rising dawn

O crepitar do fogo na parte inferior da madeira esquentou seu rosto e o fez congelar ao mesmo tempo. O corpo de Dalia era engolido gradativamente pelo fogo, enquanto dentro de seu sofrimento desesperador, urrava por ajuda. A voz falhando, os membros fervendo e cheirando à carne queimada.

Dalia perdia os sentidos.

There's a flame

There's a flame

Até que as cordas grossas que envolviam seus pulsos, desapareceram nas chamas e os braços da cigana tombaram na frente do corpo. Com um movimento preciso de sua espada, Jerry partiu as amarras e puxou Dalia para trás. Os dois tombaram juntos direto no solo. A mulher tossiu algumas vezes, o rosto um pouco chamuscado e o cabelo com um odor forte de fumaça.

— Você está bem, agora, senhorita. Acorde! — Jerry segurou a face desligada da cigana e reparou em suas vestes escuras e seus membros inferiores em carne-viva.

There's a flame in the darkness

There's a flame there's a flame

Evie chegou em seguida, esbaforida e vermelha de tanto correr. Ela havia alcançado seu arco e sua flecha, e encarava o corpo desfalecido de Dalia. Seus olhos marejados não resistiram e as lágrimas desceram úmidas contra suas sardas.

— Não me diga que ela… — Evie começou, mas não conseguiu terminar a frase.

When the sun goes down

When the sun goes down

When the sun goes down

Um dos monges apareceu por trás da princesa, portando outra tocha e regado de más intenções. Ele acabou assustando a ruiva, que mirou o arco na sua direção e desferiu uma flechada certeira em seu ombro. O clérigo caiu com um gemido.

Atordoada, Evie olhou por cima da cama de pedra. Não haviam mais monges ou presença do Monsenhor por ali. Todos tinham ido atrás do foco do clarão verde. Voltou seu foco para os outros dois, indagando de maneira trêmula:

— E então, ela está viva? Nós conseguimos?

There's nowhere to hide

Nowhere to hide,  When the sun goes down

Seus olhos azuis, fixos na feição da cigana, brilhavam a cada segundo. Em meio a tanto caos, eles precisavam de uma boa notícia.

Repentinamente, as íris castanhas de Dalia deram seu sinal de vida.

X-X-X-X-X

Meses depois...

O órgão ressoava pelo antigo Salão Real dos Hightower, enquanto uma multidão observava atentamente o arcebispo chegando ao altar real carregando a bela coroa, pronta para ser colocada na cabeça do novo rei: Jerry Hightower.

Afastada da cena, ao lado de em um trono menor, Evie assistia a cena emocionada. Era impossível não se lembrar daquela terrível noite em que a coroação acabou em um verdadeiro massacre e o pior pesadelo de sua vida começou. O massacre dos Hightower, como já era chamado, vitimou centenas de nobres e outros transeuntes presentes ali, mas o grande foco tinha sido a família Hightower, que praticamente perdeu tudo.

Depois de ter sido atacada e ter vários membros assassinados como o rei, a rainha e o próprio herdeiro Pete Hightower, ainda foram saqueados antes de iniciar um processo de reconstrução, agora comandado por Jerry, o irmão mais novo de Pete que sobrevivera ao ataque.

Mas o pesadelo apenas tinha começado para Evie que se viu frente a frente com uma bizarra sequência de mortes, relacionadas a uma misteriosa figura divina: o Deus Sem Face. Que inclusive levaria o seu melhor amigo: Dean Noble.

O homem tinha cuidado de Evie desde seu nascimento, e era quase como um segundo pai para ela. E apesar de Dean achar que Evie não suspeitava, ela sabia de seu relacionamento secreto com o Duque de Winters mas isso não mudava nada o que ele significava para a agora rainha.

Algo que ficou provado quando parou a cerimônia para ouvir o que Dalia tinha a dizer, e por conta disso, escapou de falecer naquele massacre. Para Evie o que realmente e sempre importou era a virtude de uma pessoa, o seu interno. Não importava quem você era ou de onde você vinha. O importante era ser bom e justo.

Neste momento, Jerry finalmente se assentou no trono, usando o manto azul com o brasão dos Hightower. E assim Evie, agora rainha, se sentou ao lado do seu esposo. E rei.

Vivat Rex in aeternum!

Enquanto a multidão aclamava o novo rei, Jerry olhou para Evie, que derramava lágrimas pelo seu rosto, completamente emocionada.

— Está tudo bem, Evie? — Jerry perguntou.

Vivat Rex in aeternum!

Evie olhou para Jerry, e sentiu a mão dele segurando na dela, e enquanto sentia algumas gotas descerem pelo seu rosto alvo, sua mente pensava em muitas coisas ao mesmo tempo.

Pensava nas pessoas que tinha deixado para trás, na grande jornada em que tinha embarcado sem querer e os rostos desfilavam pela sua mente, todos os que tinham ficado pelo caminho.

Vivat Rex in aeternum!

Pensou em Dean, Dalia, Pete, a rainha. E agora finalmente estava realizando o que fora interrompido, casada com o seu verdadeiro e real amor esse tempo todo.

Os clarins então começaram a tocar, anunciando a abertura das portas do Salão, para a multidão aclamar o novo rei. Foi aí que Evie finalmente falou, respondendo a pergunta de Jerry:

— Depois de tudo... Não poderia estar melhor.

Evie apenas fechou os olhos, e sentiu o momento, enquanto podia ouvir os gritos da multidão.

Aclamando o novo rei e a rainha daquele reino.

X-X-X-X-X

O caminho era tão longo, que Dalia não conseguia enxergar seu final no horizonte. Colinas monstruosas se erguiam, esmagando o céu estrelado. A brisa da noite de verão era quente e aquecia a ponta do nariz da cigana.

Coberta de vestimentas grossas, porém simples, seria fácil se camuflar em seu trajeto. Poderiam surgir ladrões ou outras espécies de perigo, e olhando para seu estado, diminuiria as chances de se colocar em situação de risco novamente.

Caso fosse necessário, Dalia era hábil em esconder seus truques embaixo da manga. Uma mulher nômade, que foi criada perambulando por reinos, tinha suas formas de se defender.

Ela não sabia dizer exatamente por quanto tempo caminhava sem rumo, mas tinha certeza que chegaria a algum lugar. De preferência, um lugar bem distante de Hightower, Monterruna, Winters ou qualquer outra província. Dalia não queria mais estar ligada àquelas tragédias, queria deixá-las para trás e esquecê-las, mas se dependesse do fundo da sua cabeça martelando para que recordasse dos momentos ruins, aquilo não a abandonaria nunca mais.

Estava sozinha, mas sentia o calor da presença de seus irmãos em espírito. Eles lhe dariam paz e força para seguir naquela peregrinação.

Os pés descalços e enfaixados, recipientes com comida e água nas costas, tudo oferecido por Evie. A princesa fora um elemento essencial em sua recuperação. Ao lado de Jerry Hightower, ofereceram-lhe: abrigo, roupas, comida, banho, tratamento para as queimaduras e tudo o que pudesse precisar. Ma cigana não pretendia ficar nos aposentos.

Dalia já tinha decidido que iria embora, mesmo sob protestos da realeza. E era muito grata, mas seu coração pedia para ir.

A essa altura, eles já são rei e rainha. Foi um prazer conhecê-la, Evie. Seja tão destemida e forte quanto fora em dias difíceis…

Os longos cabelos da cigana sopraram agitados em seu rosto, com o vento zunindo ao pé dos ouvidos. Ela parou de frente para um abismo e olhou para baixo. Quilômetros adiante, em mais um horizonte cinzento, um acampamento. O caminho de Dalia até seu destino, traria novas histórias para contar.


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Notas finais do capítulo

A partir da próxima parte, assim como o último capítulo que chega em seguida, teremos apenas resoluções da trama do presente.

Espero que tenham gostado! Não esqueçam de comentar, as reviews são muito importantes para a continuidade do projeto.



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