Superstition 2 escrita por PW, Jamie PineTree, MV


Capítulo 16
Capítulo 13: Pyrophobia (Parte II)


Notas iniciais do capítulo

Devido o tamanho do capítulo, ele foi dividido em duas partes. Esta segunda parte traz a resolução da trama que ocorre no presente. Aproveitem!

Escrito por PW (em colaboração com MV).



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No terraço do hospital, a porta se abriu com força, rompendo o silêncio causado pela ida da chuva. Jon surgiu das escadarias completamente cegado pelos seus sentimentos e pelo brilho do dia. O britânico correu alguns metros, passando por poças, enxergando quem procurava mais à frente.

De braços abertos, caído no meio do terraço de concreto, jazia Skylar. Uma imensa poça de sangue espalhava-se embaixo de seu corpo franzino e ausente de vida. O garoto tinha uma expressão serena no rosto, e diferente do que se poderia concluir vendo a cena, seus últimos momentos poderiam ter sido de paz. Se não houvessem os inúmeros arranhões e cortes profundos espalhados com fúria pelos braços.

Jon ignorou a presença do sangue, e de joelhos, enfiou seus braços embaixo do corpo pálido, embalando o sobrinho. Com os cabelos sobre o rosto, Jon gritou e chorou, rangendo os dentes com as pontadas de dor que sentia no peito, também por conta dos pontos. O sentimento de perda era mil vezes mais devastador de quando perdera o irmão. Esperou que Skylar o surpreendesse com algum movimento premeditado ou o bombardeasse com sua sinceridade peculiar. Nada aconteceu, o corpo continuou amolecido.

Seu garoto havia partido de vez.

Atrás do britânico, Andreas e Sun surgiram, ela um pouco depois, devido seus passos letárgicos. Os dois entreolharam-se e Sun moveu os lábios sem dizer nada, paralisada.

— Você não poderia ter feito isso! — Jon berrou entre as lágrimas. — Sky, você não… Tinha o direito!

O homem trouxe o garoto para mais perto, abraçando-o fortemente. Assim como a detetive, Andreas também não sabia como agir diante da atitude do adolescente. Skylar tomou uma decisão que no momento não teria utilidade nenhuma para o grupo. Ele tirou a própria vida quando a morte esperava levá-lo. Ele só apressou o processo...

— Por que ele fez isso? — Sun externou seu pensamento num murmúrio dolorido.

— Podem ter sido diversos fatores, mas nenhum deles faz sentido pra mim nesse momento. Ele parecia tão decidido a lutar contra a morte quanto a gente. — Andreas respondeu, dando meia-volta.

— Aonde você vai?

— Tenho que encontrar a Dawn. Você pode ficar com ele? — O psicólogo tocou o ombro ossudo da loira.

Sun assentiu, estranhando sua reação. E ao vê-lo afastar-se, deu alguns passos na direção de Jon, que agora punia a si mesmo, repetindo coisas das quais ela não conseguia ouvir de onde estava, mas tais palavras saíam enraivecidas.

Jon sentia-se culpado pelo acontecido. Ele queria dar espaço para o sobrinho, vê-lo tomar seu caminho com suas próprias pernas. Mas lá no fundo, sabia que Skylar ainda não estava pronto, que seu emocional sem percepção de riscos o deixava vulnerável. Foi o que aconteceu. O jovem não soube lidar com a circunstância e acabou ferido. Pior, morto. Jon não se perdoaria tão cedo, ele era responsável pelo sobrinho, ambos eram a única família que restara um ao outro. Foi por sua causa, Jonathan! Skylar poderia estar vivo se você não tivesse sido negligente e irresponsável!

Ele não tinha mais forças para chorar. Levantou, ainda com o corpo nos braços e virou-se para Sun. A detetive encarou-o com ternura e pesar, acenando positivamente com a cabeça. De alguma maneira, ela queria lhe passar conforto.

— O que quer fazer agora? — Perguntou, segurando as lágrimas.

Jon respirou fundo, jogando a franja insistente para o lado, as lágrimas já secas sobre o rosto.

— Eu não sei, eu… Não sei se consigo fazer alguma coisa. — Fungou. — Pode me ajudar?

— É claro! — Sun respondeu prontamente. — Primeiro, tiramos o corpo daqui, vem, eu te ajudo a descer.

X-X-X-X-X

Do lado de fora do hospital, Dawn trazia o comboio de sobreviventes de volta às tendas, assim, ela e os outros profissionais poderiam reorganizá-los para tentarem fazer o transporte depois de serem pegos de surpresa pela tempestade. Kevan era um deles, trazendo o grupo de crianças pela segunda vez. Adiante da tenda, haviam três caminhões fornecidos para as vítimas e partiriam para o aeroporto de Hadiah logo que fossem preenchidos.

Kevan pediu que algumas assistentes sociais e voluntários acompanhassem o comboio, já que ajudariam na parte burocrática do processo. Dawn empurrou a escada de ferro que dava acesso aos caminhões e ajudou a primeira parte de sobreviventes a subir. Era uma mistura de vozes preocupadas e animadas. Ela estava feliz de estar fazendo sua parte para enviá-los de volta para casa, mas dentro de si havia um buraco que também precisava ser preenchido. A dúvida de quando ela poderia retornar e refazer sua vida ou, pelo menos, continuar de onde parou.

Olhou para o céu por um momento. As nuvens se dispersavam aos poucos e davam lugar a um cenário menos caótico. Pranchetas de anotação nas mãos, fotos e informações dos sobreviventes que estavam sendo levados, Dawn só queria que o serviço fosse seguro e eficiente. Eles não tinham muito tempo.

— As crianças já foram acomodadas. — Kevan comentou, soprando o cansaço para longe e limpando o suor da testa com o pulso. — Os idosos e as gestantes já podem subir.

A loira assentiu, caminhando rapidamente em direção ao grupo de mulheres grávidas e idosos que aguardavam na tenda, todos esgotados. Mas antes de chegar até lá, deu de cara com Andreas, que chegava na tenda carregando uma expressão séria.

— Nós precisamos conversar. — Ele disparou.

— Será que pode esperar um minuto, meu amor? Tenho que levá-los para os transportes. — Dawn respondeu, olhando por cima dos ombros e apontando para as vítimas. — Estamos bem perto, Andie… Finalmente.

A loira começou a abrir um sorriso, se afastando, mas foi surpreendida pela pegada brusca e firme em seu braço.

— Você não tá entendendo, a situação está se agravando.

A enfermeira franziu a testa, completamente confusa. Sentia a palma da mão fria do homem. Os olhos cor-de-mel de seu companheiro estavam diferentes, ela notou. Avermelhados, fundos e inquietos. Havia muita coisa passando pela sua cabeça, as quais ela não soube decifrar. Diante da reação perdida, Andreas balançou a cabeça em negação.

— Acho que posso esperar um pouco. — Soltou o braço da esposa devagar.

— Andie, tem algo que eu precise saber? — Dawn indagou de maneira séria, estreitando o olhar.

— Está tudo certo, não se preocupe. — Mentiu. Ela não tem que se abater com o Skylar ou se preocupar comigo agora, ela tem tanta coisa a fazer... — Você está bastante atarefada, cuide deles. A propósito, onde a Vânia está? Passei no setor da enfermaria e ela havia sumido.

O tom de voz e o olhar de Andreas mudaram bruscamente. Dawn estava de frente para um marido menos abalado, desta vez. Ele pareceu se recompor em questão de segundos, provavelmente para não demonstrar nenhum gesto que pudesse entregar sua condição emocional depois de passar por tantos acontecidos. Andreas não gostava de mostrar seu lado desprotegido para ela. Era sempre a figura estável e segura de si.

Então, a enfermeira voluntária deixou que ele acreditasse que conseguiu enganá-la e respondeu:

— Chegou até mim que tiveram que realoca-la ao lado de mais alguns pacientes para o bloco 13, um setor afastado das alas afetadas pela chuva. Longe das goteiras, dos riscos de curto-circuito e…

O psicólogo não deixou que Dawn terminasse, apenas depositou um beijo rápido em sua testa e apressou-se na direção oposta à tenda.

X-X-X-X-X

Jon permanecia inconsolável, sentado em uma cadeira no corredor iluminado por uma luz sóbria do hospital.

O rosto abatido e silencioso dizia muito sobre os últimos minutos e sobre dois enfermeiros estarem levando o corpo do sobrinho embaixo de um manto branco e manchado de sangue. Ele procurou os homens para juntar Skylar ao corpo dos pais. Não sabia se conseguiria levá-los de volta para Londres e enterrá-los lá. Era muita burocracia, mas faria o possível.

Sun limitava-se a apenas manter contato visual. O britânico estava passando por um momento doloroso, e ela não queria interferir, sabia o quanto era complicado lidar com um luto. Era verdade que cada indivíduo reagia de maneira diferente a uma perda, os reflexos da morte de Hwang ainda espremiam seu coração, mas ao contrário do rapaz, ela mantinha-se resistindo. Só de imaginar que chegaria sozinha em casa, encararia suas filhas e o oriental não estaria lá para pedir um abraço a todas elas, aceitou que uma lágrima descesse longe da vista de Jon.

— O que vamos fazer agora? — O homem disparou, levantando da cadeira, tentando passar uma imagem forte.

— Sobre o quê?

— A morte. Você, Vânia e Andreas ainda estão vivos, certo? Ainda há uma chance de conseguirem se salvar.

— Não fazemos a mínima ideia de como proceder. — Sun respondeu, cabisbaixa. — Não é como se viesse com manual de instruções. Sabemos que vamos morrer e que podemos ser pulados, mas isso só nos leva ao final da fila. Eventualmente a morte volta.

— Não é o caso de reunirmos todos antes que seja tarde? — Perguntou ele. — Talvez conseguiremos pensar em um plano.

— Tem razão. Segundo a ordem cíclica da lista, o Andreas é o próximo e me disse que estaria com a Dawn. Vamos encontrá-los! — A detetive concluiu, saindo pelo corredor com Jon seguindo-a.

X-X-X-X-X

Os olhos cerrados de Vânia acostumaram-se devagar à claridade do corredor. Vez ou outra alguma lâmpada oscilava, mas nada que comprometesse sua visão. O corredor era extenso, de coloração desbotada, pintura descascada e uma porta semiaberta sinalizava para a saída daquela ala. Era como se estivesse indo de encontro ao paraíso. Com a cabeça inclinada para o lado e a postura completamente enfraquecida, a mulher observou placas hospitalares e suas escrituras indonésias passarem pelo canto dos olhos.

Ainda estava no hospital, mas não recordava nitidamente o que acontecera até o momento. Lembrava-se apenas de estar em um novo leito. Sentia-se perdida e zonza, embora acompanhasse o rumo que levava a cadeira de rodas na qual estava sentada de maneira entorpecida pelo efeito do sedativo em suas veias. Vânia tentou se mexer e percebeu a bolsa de soro pendurada em um suporte na cadeira, as rodas rangendo pelo piso.

A empresária olhou por cima dos ombros e franziu o cenho.

— Andreas? O que está-

— Descanse, Vânia. Você não deve se esforçar. — Interrompeu o barbudo, que guiava a cadeira de rodas pelo corredor. Tocou levemente seu ombro.

— Para onde está me levando? — Ela virou o olhar confuso para frente, novamente encarando a porta cada vez mais próxima. — Onde estão os outros… Sky, Sun? Não consigo lembrar de muita coisa...

Vânia fez uma careta, sentindo uma pontada no braço. Certificou-se de que a agulha ainda estivesse enfiada em sua veia. A presença do terapeuta não a incomodava, muito pelo contrário, trazia a ligeira sensação de estar pouco mais segura, diferente de quando estivera sozinha.

— Já pedi que não se esforce. Logo tudo se esclarecerá, e enfim, estaremos livres. — Ele argumentou. Constantemente o homem enviava olhares desconfiados para os lados, sentindo uma forte corrente fúnebre tomar conta de seu peito.

Andreas poderia jurar que estava sendo observado a cada passo que dava, isso aumentava sua tensão e o suor frio em suas têmporas. Antes de passar pela porta que oferecia acesso à área externa da ala 13, arriscou olhar para trás. Para seu alívio, o corredor estava vazio e em contrapartida, a sensação não havia passado.

Determinado a prosseguir com seu objetivo, conduziu a cadeira de rodas além da porta e parou no topo da rampa. À sua frente, o estacionamento dos fundos do hospital.

X-X-X-X-X

Seguindo além dos destroços e da paisagem destruída pelo maremoto, os borrões do fim da tarde davam lugar a um anoitecer pacífico, depois da maioria dos sobreviventes terem sido levados até o aeroporto de Hadiah.

Os adultos mais fortes e menos feridos ainda eram organizados aos poucos e seus comboios seriam preparados pelos enfermeiros e demais funcionários do hospital. Era verdade que a equipe de resgate ainda tinha algum trabalho árduo pela frente, mas a concentração de pessoas e o tumulto foram contidos e o pior já tinha passado. Em breve, todas aquelas pessoas com saudade de casa estariam indo reencontrar seus parentes.

Dawn aceitou um pequeno copo de café oferecido por Kevan e sentou sozinha em um banco perto da tenda. Ficou observando o vapor do líquido escuro subir, enquanto ele aquecia o próprio rosto consumido por estresse e preocupações. A sensação era agradável e poderia dar um fim a todos os seus problemas. Seria mais fácil aceitar que a situação estava fora de controle, principalmente por não saber lidar com o que aquelas pessoas inocentes enfrentavam. Entre elas, seu marido, Andreas.

A vida possuía suas ironias e Dawn tinha a mente flexível o bastante para aceitar seus termos e se readaptar à novas condições, mas quando se tratava da lista da morte, todo seu posicionamento caía por terra. A cada minuto, seu conceito acerca da salvação mudava. Ora acreditava que conseguiriam sair desse buraco sombrio, ora tentava se convencer de que não havia escapatória.

Entretanto, Andreas era um fator decisivo para que seu pensamento não se tornasse verdade.

Eles haviam casado na praia de Hadiah, ela prometera uma longa vida ao lado do amado, e ele prometera que nunca a deixaria. Até que a morte nos separe… Isso é besteira! Dawn bebericou um gole do café e deixou que ele aquecesse seu corpo também, já tinha esquecido como as noites naquele lugar poderiam ser frias, mesmo embaixo do casaco vermelho da equipe de resgate.

— Dawn, que bom que te achamos! — A voz feminina surpreendeu-a.

Sun surgiu diante da enfermeira, mancando. Jon estava ao seu lado, sofrido demais para alguém que reencontrara seu sobrinho, um novo motivo para sorrir depois da morte do irmão e da cunhada. Dawn franziu o cenho, esperando que se manifestassem.

— Onde está o Andreas? — Sun perguntou prontamente, a respiração ofegante.

— Eu não sei, ele não me disse muita coisa. — Respondeu a loira, erguendo-se do banco e fitando os outros dois. O café balançou no copo. — Sun, tem algo que eu precise saber? A hora de falar é agora, eu quero ajudar!

— A lista andou. Perdemos o Sky. — Jonathan revelou de forma dura, segurando as lágrimas e arrancando um gritinho de Dawn, que tapou a boca. Ela lembrou-se do que Andreas dissera sobre a situação estar se agravando.

— Oh, Jon, eu sinto muito… — Seus olhos ficaram marejados. — Como aconteceu?

— Ele tomou uma grande decisão sozinho, escolhendo ir. — Explicou com dificuldade, sentindo o nó das palavras se formar em sua garganta. Lutou contra as lágrimas, mas uma delas desceu solene.

Em silêncio, Dawn o abraçou e Jon sentiu o aroma dos seus cabelos. Ele poderia ficar resguardado naquele abraço pelo resto da noite, mas a situação pedia que fossem estratégicos e rápidos. O homem desfez o gesto e entreolhou-se com Sun um pouco desconcertado.

A detetive já estava enchendo o peito, pronta para falar:

— Nós temos que encontrar Andreas e Vânia o quanto antes. Talvez se estivermos juntos, possamos impedir que mais mortes aconteçam. Por isso é importante que estejam do nosso lado.

Dawn comprimiu os olhos, forçando a mente por alguns segundos. Enquanto buscava informações cruciais, sua consciência foi invadida por um pensamento que imediatamente pesou seus ombros. Como num estalo, disparou:

— Se o Skylar se foi, isso quer dizer que o Andie é o próximo? — Os olhos perdidos da enfermeira arregalaram-se.

Uma corrente fria chacoalhou seus cabelos e derrubou o copo de café entre os dedos esqueléticos, sujando seus sapatos. A gravidade forçou-a a sentar de volta no banco e perder o olhar em um ponto qualquer.

— O pior de tudo foi que ele tentou me avisar. Ele queria conversar, mas o afastei. Estava estranho, nervoso, tinha algo diferente naquele olhar… Nunca o vi daquele jeito. Ele só queria saber para onde Vânia havia sido removida. — Foi inevitável que as lágrimas umidecessem suas bochechas rosadas. — Se eu soubesse que o Andie precisava de ajuda, poderia ter ficado com ele naquele momento. Eu deveria ter percebido! — Dawn esmurrou os joelhos, aborrecida diante da impotência.

— Se ele omitiu isso, não tinha como você saber. Mas ainda pode ficar com seu marido. — Sun segurou seus braços. — Chegou a hora de nos ajudar, Dawn, precisamos saber para onde o Andreas foi.

— Ala 13. Foi pra lá que mandaram a Vânia. — Fungou.

Jon pigarreou, encarando a enfermeira, que o encarou de volta mais retraída desta vez.

— Disse que ele estava estranho. O que acha que o Andreas quer com a Vânia?

— Andie nunca faria mal a ninguém, tá bom? — Dawn rebateu, se sentindo ofendida com o tom do britânico.

Ela ergueu-se do banco e respirou fundo, dizendo por fim para a dupla:

— Eu vou junto, é da vida do meu marido que estamos falando.

X-X-X-X-X

A noite já tinha engolido o céu completamente e Andreas empurrava a cadeira de rodas pelo estacionamento aberto nos fundos do hospital. Poucos veículos estavam estacionados, ele teria poucas opções.

Se fosse há alguns anos atrás, não se via tendo que fazer escolhas daquele tipo. Uma das suas maiores qualidades era entender as pessoas e mostrar a elas que sempre havia um caminho alternativo, uma válvula de escape. Que elas tinham poder para tomar decisões que não as destruíssem.

Porém, pela primeira vez, não conseguia entender exatamente o que passou a mover suas ações. Instinto de sobrevivência? Andreas resolveu correr todos os riscos. Por ele, por Dawn, por Milan, Kamesh e todos os outros. E de forma apressada, guiou Vânia entre os carros estacionados e encarou-a delirar algumas vezes, falando coisas desconexas. Coisas sobre o passado de Dalia, sua contraparte que vivera na era medieval. Ela estava zonza demais para reagir, aquilo lhe daria tempo.

Atrás do estacionamento, a mata de Hadiah se erguia, escura e densa; ainda sim, diferente do que vira no alto da montanha. Ele não saberia dizer por quantos quilômetros a vegetação se estendia. Entre seus devaneios, Vânia viu o homem forçar contra a porta de um dos carros, aborrecido por não ter conseguido abri-la. E foi assim com todos os veículos que o terapeuta via pela frente. Sua última opção era um jipe que parecia velho demais para funcionar. Tão velho, que ninguém se importaria de trancá-lo.

Andreas forçou contra a porta do carro e comemorou quando ela abriu-se em um som arranhado. Começou a vasculhar tudo o que via diante do painel e dos bancos, torcendo para encontrar seu pote de ouro no final do arco-íris. Minutos depois, seus olhos brilharam com o óbvio. A chave havia caído do painel. Então, Andreas voltou-se para Vânia e encarou-a de volta.

Houve um breve sorriso no meio das palavras seguintes:

— É sua chance de consertar tudo isso, Vânia. Não vá me decepcionar, ok?

A mulher arqueou as sobrancelhas completamente confusa e o viu dar a volta no carro e colocá-la nos braços. Vânia gemeu em descontentamento, tentando se mover, mas logo estava apoiada no encosto do banco do jipe, sua bolsa de soro jogada no colo. Tombou a cabeça para o lado e ouviu um barulho metálico na traseira do veículo velho. Andreas dobrou e depositou a cadeira de rodas no porta-malas, fechando-o com força.

— O que vai fazer? Pra onde vai nos levar? — A empresária balbuciou letargicamente, mas não recebeu respostas do barbudo.

De repente, gritos.

O psicólogo olhou pelo retrovisor, suado e ofegante. Assim como o trio que surgiu no estacionamento. Dawn correu à frente dos outros, abanando os braços, chamando a atenção do marido. Andreas bateu os punhos no volante, mas não deu o braço a torcer. Isso vai acabar logo, meu amor, eu prometo. E girou a chave, ligando o carro e acelerando para fora do local.

— Pra onde ele vai? — A enfermeira pôs as mãos na cabeça, desorientada.

Jon apressou o passo e correu por alguns metros, pedindo que o terapeuta parasse, mas o jipe já estava arrancando em direção à estrada de terra que cortava a lateral do estacionamento. Sun olhou em volta e avistou um rapaz nativo descer de sua moto. Ele retirou o capacete e observou a mulher e seu ar impetuoso se aproximarem.

A detetive puxou-o pela gola da blusa e o tirou de cima da motocicleta. Jon e Dawn encararam a cena um tanto chocados e entreolharam-se.

— Me desculpe por isso, vou trazê-la de volta. — Avisou a oriental.

— Nós vamos segui-los! — O britânico disparou, correndo até a moto e subindo na mesma.

— Fique aqui, voltaremos logo, Dawn. — Sun pediu, acenando positivamente com a cabeça, colocando o capacete. — O Andreas vai ficar bem, não vou deixar que nada aconteça com ele ou a Vânia.

Dawn compreendeu, concordando.

Rapidamente dirigiu-se até o motociclista caído, conversando algo ininteligível com ele. Ela não queria apenas assistir as coisas acontecerem diante dos seus olhos. Acreditava que Sun pudesse dar um jeito, mas a enfermeira era o tipo de pessoa que gostava de agir.

Sua atenção foi redobrada para o barulho que a moto fez, zunindo na direção da mesma estrada de terra.

X-X-X-X-X

Vânia estava grogue demais para ter noção de para onde estava sendo levada.

Borrões verdes devoravam o céu noturno da Indonésia, quase como uma nova tsunami pronta para submergi-la. A mulher chacoalhava no banco, tentando encontrar uma posição confortável para seguir o trajeto, mas não conseguia sequer mexer as pernas. Gemeu outra vez, a agulha pressionava sua pele, ela não poderia fazer movimentos bruscos sem que o objeto quebrasse dentro de seu braço.

Vânia, então, olhou para o outro lado, observando a expressão concentrada que Andreas mantinha na estrada terrosa. Os cabelos longos tinham suor suficiente para grudarem na testa e seu rosto parecia ter sido abatido por um medo irreparável, cobrindo sua outrora apresentável aparência. A joalheira queria saber o que ele pensava, enquanto dirigia mata adentro.

— Onde estão os outros? — Vânia soltou a primeira pergunta pendurada na ponta da língua. Aquela não era a única, ela tinha várias. — Por que estamos sozinhos nesse carro?

— Porque nós somos os únicos que podemos resolver isso. — Ele respondeu sem manter contato visual. Não por conta da dificuldade do caminho, mas por não querer encarar a passageira.

— Resolver o quê?

— Skylar está morto, Vânia. Ele se matou porque não aguentou a pressão da lista, adiantou os planos da morte. Satisfeita? — Os olhos do terapeuta tinham um brilho opaco, manchado pelo pavor. — Só restam três e eu sou o próximo. Posso morrer a qualquer momento, sabia? Posso morrer aqui e agora!

— Andreas eu… — Engoliu em seco. — Sinto muito, mas vamos achar um jeito. Ninguém mais precisa morrer.

O barbudo riu.

— Não se preocupe, já achei um jeito. — Retrucou, arqueando as sobrancelhas. Virou-se para encará-la por um segundo. — Sabe o que é engraçado?

O jipe chacoalhou mais algumas vezes e uma placa passou na lateral do veículo, indicando uma propriedade desativada mais adiante.

Andreas pigarreou.

— É muito irônico. Tudo começou quando não embarcamos naquele ônibus. Nossa sobrevivência era incerta naquele hotel, é verdade… Porém, também é verdade que Sawar queria você o tempo todo. O alvo está nas suas costas desde o início e sem a responsável pela origem da lista, ela não faz sentido. — Seus olhos vagaram paralisados de volta no trajeto sinuoso. — Faz sentido pra você, Vânia?

— Você está ficando paranoico. — Vânia afastou-se no banco, encolhendo-se como um bicho encurralado.

Estava com medo da nova linha de raciocínio do terapeuta, ele não poderia ter se deixado levar até tal ponto. Era difícil reconhecer os mesmos traços de personalidade de quando o conheceu no meio daquela confusão de pensamentos.

Mas já que as cartas estavam sendo colocadas sobre a mesa, Vânia queria expor o que pensava, dizendo:

— Eu salvei não só sua vida, como a de todas aquelas pessoas.

— E pra quê?! Para que morrêssemos de novo? Não porque mereçamos, mas porque a morte não acertou as contas com Dalia Leventi ou seja lá quem você foi no seu passado. — O jipe começou a diminuir a velocidade, fazendo um barulho de motor desajustado. — Por causa desse acerto de contas estamos aqui.

— Carma?! — Vânia cuspiu, encarando-o incrédula. A situação soou risível para a joalheira. — É essa a explicação que tem pra morte de todos aqueles inocentes… Carma? Doutor, você é uma piada!

De repente, o veículo freou bruscamente e o pescoço da morena fora jogado para frente com o baque, seus cabelos agitados sobre a expressão apavorada. Ela gritou quando sentiu a pontada no braço.

A agulha teria quebrado?

Sem esperar por respostas e aproveitando a inércia do veículo, Vânia teve que pensar rápido e jogou-se contra a porta do jipe, caindo para fora e sentindo o ombro latejar ao rolar pela terra úmida por conta do temporal. Ela teria pouco tempo até que Andreas, com o dobro do seu tamanho e condicionamento físico, a alcançasse. Então, começou a arrastar-se, evitando olhar para trás e dar de cara com seu algoz.

Poderia estar às cegas em relação ao propósito do barbudo em trazê-la até um lugar isolado no meio da mata, mas decerto não era algo bom. Vânia estava cansada de surpresas, e fora agindo por conta própria, que viera sobrevivendo. Não seria daquela vez que deixaria que lhe fizessem mal.

Alguns metros afastada do jipe, arrastando o corpo dolorido pela lama, Vânia sentiu uma forte vertigem. Olhou para o braço e percebeu que a bolsa de soro continuava pendurada, arrastando junto dela. A joalheira respirou fundo e puxou o dispositivo hospitalar do braço, arremessando-o para longe.

Um ardor, seguindo de uma sensação quente em seu braço. O filete de sangue desceu, misturando-se às poças, enquanto os passos precisos de Andreas afundavam nelas.

— É triste te ver desperdiçando forças dessa forma, Vânia. Poderia estar colaborando, afinal, vai salvar duas vidas se fizer isso e fazer justiça por todos os outros. — A voz macia do terapeuta estalou nos ouvidos da mulher.

Vânia tentou alcançar uma cerca de metal para se segurar, mas Andreas já a agarrava pela cintura e dava um jeito de prensar seus braços para que não escapasse da armadilha corporal. Ela debatia-se debilmente, enquanto gritava por ajuda.

A garganta à beira de explodir, a morena não desistiria. Dava socos enfraquecidos no ar, esgotando tudo o que tinha.

Até que levantou o olhar cabisbaixo e avistou um prédio.

X-X-X-X-X

Apenas um andar e ausente de janelas, a construção era revestida por uma camada de tinta verde descascada, antiga o suficiente para ser descrita como abandonada por quem um dia cuidara daquele espaço. Arbustos crescendo por todos os lados, paredes abarrotadas de plantas que se emaranhavam acima do chão; andaimes e outros objetos de obras enferrujados e perigosos, jogados pelo terreno. O abandono em seu estado puro.

A nuca de Vânia arrepiou no instante em que colocou os pés adiante da cerca de arame. Aquele era um péssimo sinal, indicando que algum acontecimento terrível acometeria sobre eles nos próximos minutos. Quantos destes minutos ela ainda teria para virar o jogo? Como Andreas dissera, era ele quem estava andando na corda bamba agora. Significava que, sob condições extremas, estava disposto a fazer de tudo para que não fosse pego pela entidade. Assim como ela também estava.

Entretanto, não sabia se ele teria mesmo coragem de tirar sua vida.

— Que lugar é esse? — Vânia observou o prédio e percebeu que o nome na placa apagada sobre a entrada estava deteriorado. Letras embaralhadas, muito provavelmente em indonésio, sumiam entre a poeira e os detritos do material da placa, de modo que desistiu de ler.

— Digamos que não vai gostar do que vai encontrar aí.

Andreas voltou a puxar a empresária para dentro da construção, em meio a toda sua resistência.

— Me solta, Andreas! Juntos podemos pensar em um plano melhor, fazemos um acordo ou qualquer coisa assim!

— Cala a boca e seja útil! — Prendeu seus braços magros atrás do corpo, empurrando-a com os joelhos a fim de que avançasse.

Acima dos dois, novas nuvens carregadas de escuridão anunciavam que a tempestade não havia se dado por satisfeita e cairia outra vez, prometendo varrer o ar. Andreas foi ligeiro e logo, ambos adentravam nas instalações abandonadas, onde uma coluna de poeira os recepcionou.

Portanto, foram incapazes de ouvir o ruído elétrico na estrada, dentre os primeiros pingos de chuva chocando-se contra as folhas das plantas e o solo arenoso.

A motocicleta fora estacionada cuidadosamente atrás da cerca de proteção perigosamente velha. De modo hábil, Sun desembarcou do transporte, enviando seu olhar acurado para o ambiente medonho ao seu redor. Encostou as mãos castigadas no metal frio da cerca e repassou mentalmente cada acontecimento desde a chegada do resgate à montanha. Não conseguia compreender como ou quando as coisas ficaram tão descontroladas.

Tudo parecia finalmente estar se encaixando. Estavam ficando cada vez mais próximos de reencontrar a família, de deixar Hadiah para trás. A ida à cidade não passaria de uma sombra na memória, reclusa e distante, guardada no fundo da mente. Sun apagaria esses rastros e viveria sua segunda chance ao lado de quem mais amava. Mas agora, suas filhas eram órfãs de pai e Sun lutava para que Hwang também não se tornasse uma sombra na memória.

Será que a detetive conseguiria retomar a rotina no departamento de polícia, tendo ciência de que sua história fora borrada? Será que venceria de uma vez por todas os obscuros distúrbios alimentares? Sun viveria para ajudar suas filhas a lidarem com o luto? Só o nascer do sol no dia seguinte responderia a tantas perguntas.

Jon entendeu o silêncio de Sun e apenas tocou seu ombro, perguntando em todo seu sotaque britânico carregado:

— Tudo bem contigo? Podemos entrar? Seus amigos precisam de você agora.

A detetive recompôs-se e recobrou a postura policial, afirmando com a cabeça. Nem mesmo a chuva que encharcava o cabelo loiro e o sobretudo usado sobre as roupas finas lhe impediria de ir até o fim por um final feliz.

X-X-X-X-X

O nariz de Vânia coçou com a quantidade de poeira do interior do prédio. Aos tropeços, espirrou e tossiu algumas vezes, mal enxergando um palmo na sua frente.

O primeiro corredor para o qual foi obrigada a seguir era escuro e poucas luzes vindo do lado de fora orientavam para onde deveria caminhar. As paredes eram cobertas por azulejos encardidos e rachaduras rompiam sorrateiramente o concreto, decretando a decadência do lugar; assim como vigas de madeira jogadas pelo chão e armários velhos bloqueando parte da passagem. Então, um relâmpago acendeu o céu e consequentemente, o clarão foi fatiado pelos plásticos de obras esburacados nas janelas.

— Andreas, onde estamos? — Vânia perguntou temerosa pela centésima vez, cambaleando cansada e sem rumo. Aquele lugar estranhamente lhe fazia lembrar uma área hospitalar.

— Chegamos.

O homem foi cauteloso e acionou apenas o interruptor de um painel em péssimo estado e pontos de luz esverdeados surgiram em cantos específicos do cômodo, como um varal de lâmpadas a serem refletidas pelo manto aquático de uma piscina suja. Só assim, a joalheira pôde visualizar o imenso maquinário cinzento para o qual o terapeuta apontava. Parecia ter sido retirado diretamente da cozinha de uma fábrica. Tinha cheiro de fritura e ferrugem recente, mas em contrapartida, também parecia ter parado no século passado. A sala da caldeira de um navio cargueiro perderia feio.

— Sabe o que é isso? — Andreas balbuciou, aproximando-se junto de uma Vânia relutante e passando o dedo pelo revestimento entupido de sujeira.

— Deus do céu, Andreas! Isso é… Um incinerador! — Os olhos da mulher arregalaram-se, fitando a gaveta de grades que repousava atrás da portinhola dupla entreaberta.

A empresária desesperou-se e deu um solavanco repentino, livrando-se dos braços do barbudo e correndo para fora do cômodo, mas não teve êxito em ir muito longe. Andreas puxou-a pela gola da vestimenta hospitalar que ainda escorregava sobre a pele suada e derrubou-a no chão contra sua vontade.

Vânia rangeu os dentes com o baque surdo no piso empoeirado, reclamando da dor.

— É esse seu plano? — Encarou-o no fundo dos olhos, rindo de nervosismo. — Me jogar aí dentro?

— É exatamente isso. — Ele cruzou os braços, caminhando ao seu redor, como um abutre sobrevoando seu resto de carne. — Eu soube que esse lugar pertencia ao hospital, já que servia como crematório, mas foi desativado há alguns anos.

— Além de ingrato, você é doente! Que merda de psicólogo é você, hein? Comprou sua licença?

Andreas apenas ignorou os insultos e caminhou devagar até a máquina, seu assobio sendo abafado pelo barulho da chuva torrencial do lado de fora.

Vânia acompanhou-o com as pupilas dilatadas e o coração saltando do peito. Quando o viu sacar uma caixa de fósforos do bolso da calça.

— Andreas, não faça nada que possa se arrepender depois…

— Se não funcionar, vou estar morto mesmo. — Ele deu de ombros, abrindo a portinhola e arremessando o palito que acabara de acender para dentro.

As chamas subiram num piscar de olhos, dançando e crepitando alegremente debaixo da gaveta.

Cara a cara com o fogo, a mulher berrou em resposta.

O medo do fogo nunca esteve tão vivo em seu corpo. Acionava cada célula nervosa e cada sensor de alerta espalhado pelo seu organismo. Só a sensação quente lambendo seu rosto era o bastante para provocar calafrios, formigamentos e falta de ar. O fogo roubava sua sanidade e crescia, enquanto ela encarava-o arder. Vânia não conseguia se mexer, paralisada diante de sua maior inimiga: a pirofobia.

E muito mais do que uma herança da cigana Dalia na fogueira do mosteiro, ela lembrava-se do dia exato em que a fobia entrou e acomodou-se em sua vida.

X-X-X-X-X

10 anos atrás. 2008.

Era véspera de Natal.

A casa de Vânia estava enfeitada para a data com uma bela e frondosa árvore de natal em um dos cantos da sala da casa em que ela vivia, junto de seu marido e seus três filhos pequenos, estes dormindo nos quartos do piso superior do sobrado. Velas também decoravam o ambiente, enquanto do lado de fora, luzes natalinas piscavam incessantemente.

David, Steve e John tiveram uma véspera de Natal animada com a mãe, que fez de tudo para que a ausência do pai, que se tornava frequente, não afetasse o clima natalino e deixasse as crianças para baixo. Óbvio que a pergunta de onde o pai estava veio, dessa vez através de David, o menor dos três irmãos, mas Vânia se limitou a explicar que o pai deles estava trabalhando.

Embora as crianças tenham acreditado, não foi o caso de Vânia. O casamento de sete anos já andava em crise constante desde o nascimento de David, há quatro anos atrás. Muitas vezes Vânia se pegava pensando se não tinha casado cedo demais, e logo depois amaldiçoava a família do seu marido, Newton. Assim que a família do homem percebeu que Vânia estava grávida de Newton, correram para arrumar um casamento arranjado entre os dois.

Vânia sempre tinha sido contrária a isto, mas a família de Newton estava decidida a casar o filho com a mulher, que era 5 anos mais nova que ele.

Eles queriam era tirar o Newton de casa. Agora eu entendo o porquê.

Enquanto devaneava, Vânia limpava a mesa da sala que ainda estava com os restos da ceia de Natal. Seu plano aquela noite era arrumar aquela bagunça que ali estava, apagar as velas ainda acesas pela casa e depois pegar os presentes das crianças, colocando embaixo da árvore de Natal.

— Os meninos vão ficar tão felizes. — Vânia falou sozinha, enquanto já imaginava os filhos em festa por terem recebido presentes do Papai Noel.

Enquanto levava uma travessa vazia para a cozinha, ouviu o estrondo da porta da frente se abrindo. Instintivamente a moça correu para o faqueiro e de lá retirou o objeto cortante, completamente assustada.

— Newton?

— Vânia… — A voz arrastada de Newton tranquilizou a mulher por um instante, até o momento em que Newton surgiu na soleira da porta, quase caindo. Na sua mão, uma garrafa de cerveja ainda cheia.

Vânia ficou estática, olhando o marido se mover pela cozinha completamente bêbado, enquanto este se apoiava na bancada de um dos armários.

— Mulher, sobrou alguma coisa pra eu comer? Eu… — Newton não conseguiu terminar a frase. Diante do silêncio de Vânia, Newton repetiu: — Vânia, tem alguma coisa pra comer?

— Tem, mas isso não significa que você vá comer. — Vânia falou friamente, enquanto explodia de raiva por dentro.

— E quem disse que eu não vou? Você?

— Newton! Eu não tô crendo que você ainda tem a cara de pau de me responder. Você mente pra mim e fala que está trabalhando, quando na realidade você foi pra merda do bar beber até cair?

— Vânia, para com isso… — Newton falou, cambaleando em direção a mulher.

— Não, Newton! Eu não vou parar. E tem mais: hoje é véspera de Natal! Você esqueceu que tem família… Que tem filhos? O John, o Steve, o David… Todos queriam saber onde o pai estava. O que eu falo pra eles, que o pai estava enchendo a cara?

— Vânia, as crianças estão bem. Elas vão ficar bem… — Newton se aproximou e abraçou a mulher, que no instinto o empurrou, fazendo-o cair no chão. Com a queda, a garrafa de cerveja que ele carregava rolou com força até a parede e quebrou, molhando a cortina branca com o líquido alcoólico.

— Não. Encosta. Em. Mim. — Vânia falou, olhando-o com repulsa. — Meu Deus, você sequer consegue parar em pé sozinho!

Assim que Newton se levantou, Vânia pôde perceber que algo havia mudado no homem. Seu olhar passando fúria por ter sido desafiado daquela forma. Newton ainda falou:

— Vânia, fica calma. Podemos resolver-

— Tira a mão de mim!

Naquele mesmo momento, o homem correu e segurou Vânia pelos dois braços, movido pela raiva e extremamente alterado. Enquanto Vânia tentava se esquivar do marido, sentiu seu hálito podre.

— Me solta, Newton!

— Eu falei pra gente conversar! — Mesmo bêbado, ele tinha uma voz trovejante e rígida.

— Conversar sobre o quê? Eu estou com nojo.

Assim que Vânia falou tal frase, tentou novamente se soltar do homem, mas acabou sendo empurrada violentamente por ele, se desequilibrando no processo.

O corpo de Vânia desabou na direção de uma estante, fazendo sua cabeça entrar em rota de colisão com o móvel, atingindo sua parte traseira em cheio.

Com o impacto, Vânia sentiu a cabeça arder em dor, enquanto sua visão se tornava turva. A última coisa que viu antes de apagar completamente foi a cortina embebida por cerveja balançando ao sabor do vento, na exata direção de uma vela sobre a bancada.

Então tudo escureceu.

X-X-X-X-X

— Mãe? Mãe, acorda!

Vânia piscou os olhos algumas vezes, antes de finalmente perceber onde estava. A primeira visão que teve foi do seu filho John, prostrado sobre ela.

— Mãe! Ainda bem que a senhora tá bem!

Com dificuldade, Vânia se sentou no chão ainda zonza, mas logo sentiu o calor.

— A gente precisa sair daqui!

Foi então que Vânia finalmente notou o que estava acontecendo ao seu redor. A cortina havia pegado fogo, caída sobre a bancada da cozinha, alastrando o fogo pela madeira. As chamas lambiam o teto do ambiente, mas não havia sinal de Newton.

Instintivamente, a mulher levantou e encarou a saída para a sala de jantar, pouco antes de um grande pedaço do armário da bancada desabar naquela direção em um estrondo que levantou chamas e cinzas para todos os lados.

Vânia então olhou para o filho John, que abraçava forte a mulher, chorando.

— Nós vamos morrer… — Ele falou baixinho.

— Não, filho. — Vânia falou, enquanto olhava ao redor do cômodo para achar alguma saída. Eu não vou deixar você morrer, John.

Foi quando ela lembrou da outra janela na cozinha e logo percebeu que o fogo ainda não tinha chegado ali. Rapidamente Vânia ajoelhou-se até ficar no tamanho de John e então falou:

— John, onde estão os seus irmãos?

— Eu acho que… Ainda estão dormindo. — O menino respondeu com uma voz chorosa.

Vânia respirou fundo, tentando manter a calma enquanto o mundo ao seu redor desabava.

— John, eu preciso que você seja corajoso agora, tudo bem? Faça isso pela mamãe e pelos seus irmãozinhos.

Diante do sinal de “sim” feito pela cabeça por John, Vânia pensou rápido e pegou uma cadeira que ainda não tinha sido atingida pelo fogo. A mulher levantou a cadeira correndo na direção da janela, e com toda a força que conseguiu impor, jogou o móvel contra o vidro, estilhaçando-o.

— Filho, vem cá! — Vânia falou, enquanto erguia John para passar na abertura feita no vidro. Assim que o menino conseguir pular para o outro lado, ficou esperando Vânia.

A empresária disparou:

— John, me espera na porta da frente, tudo bem? Espera a mamãe lá, que eu vou buscar seus irmãozinhos!

— Mãe!

— O que foi, filho? — Vânia falou, enquanto já suava dentro do cômodo que subia de temperatura rapidamente, os móveis sendo consumidos pelo fogo.

— Toma cuidado, tá?

Em resposta, Vânia abriu um sorriso sincero para o pequeno. Mas não havia mais tempo, ela precisava ir atrás de Steve e David, antes que o fogo se alastrasse pela casa.

Ao se virar na direção do acesso para a sala de jantar, percebeu que teria de passar muito perto do móvel em chamas. Embora parte dele tivesse caído e quase bloqueado o acesso, Vânia ainda conseguia perceber uma brecha. A mulher não tinha com o que se defender do fogo, mas precisava sair daquele cômodo antes que morresse intoxicada ou queimada.

Fechou os olhos, e então falou em voz alta para si mesma:

— Um. Dois. TRÊS! — Ao falar o último número, Vânia abriu os olhos e saiu correndo na direção da porta, passando nela como um raio e entrando na sala de jantar. Logo depois, sentiu uma ardência absurda na região do estômago.

A mulher levou as mãos instintivamente ao local, enquanto a dor excruciante da queimadura tomava conta do seu ser. Foi inevitável o grito de dor, que saiu do fundo da sua alma. Quando Vânia percebeu, a sala também já estava sendo engolida pelo fogo.

Quando ela pensava em desistir de tudo, principalmente com a dor terrível que sentia, lembrou-se dos filhos mais novos. Ela tinha que salvar Steve e David. E com as mãos ainda no ventre, Vânia mancou até a escada e começou a subi-la, gritando o nome das crianças:

— David! Steve!

Subitamente, quase se desequilibrou e caiu, segurando-se por pouco. Vânia baixou o olhar mais uma vez, engolindo em seco, e continuou a subir.

— Meninos!

— Mamãe! — O pequeno David apareceu correndo no corredor de cima, seguido por Steve, sendo que ambos tossiam em meio a fumaça que subia para o pavimento superior. David correu e abraçou a mãe, seguido por Steve. Vânia apertou os dois mais forte, mesmo sentindo a sua queimadura arder.

— Mãe, a casa tá pegando fogo! — Steve falou. — O John não tá aqui.

— Fiquem tranquilos, ele já está lá fora. Agora precisamos sair! — Vânia bradou, enquanto pegava o pequeno David no colo, chorando de medo, e dava a mão para Steve.

Os três desceram as escadas com pressa e logo correram na direção da porta da sala de estar, que por sorte tinha sido escancarada.

Newton. — Vânia pensou.

Vânia soltou David e Steve e estes saíram correndo na direção de John, que esperava eles do lado de fora, enquanto alguns vizinhos já se aproximavam com baldes de água para tentar conter o fogo. Vânia ainda deu uma última olhada para trás, apenas para ver a árvore de Natal caindo completamente em chamas.

Desesperada, Vânia correu na direção dos filhos e os abraçou como se nunca mais os fosse soltar. Lágrimas escorriam pelos seus olhos e molhavam suas bochechas vermelhas pelo fogo, enquanto seu cabelo preto e longo estava repleto de fuligem.

A queimadura ainda doía, mas era quase como se ela estivesse anestesiada por toda a tensão e alívio do momento. E em meio ao choro contínuo, Vânia falou:

— Eu amo vocês, meus pequenos.

X-X-X-X-X

A ideia de queimar para sempre era aterradora.

O passado de Vânia havia preenchido-a de queimaduras internas e ela suportou todas elas. Ultrapassou o calor de uma vida inteira para reerguê-la e reconstruir seu império. Entretanto, ainda tinha muito para viver e conquistar. Fora até Hadiah para negociar o crescimento de seu legado. Vandelli era um sobrenome forte para uma mulher forte e não precisaria passar por tudo de novo para provar que merecia continuar tentando ser feliz.

Vânia aproveitou um descuido de Andreas e deu uma cabeçada em seu queixo.

Atordoado e sentindo o gosto amargo do sangue escorrendo do corte em sua língua, o terapeuta acabou afrouxando os braços e a empresária ganhou uma brecha para deslizar na direção do chão. Seus joelhos magros bateram no piso e ela engatinhou até ter altura suficiente para ficar de pé sem ser apanhada.

— Eu não vou morrer, eu não sou a próxima! — Gritou Vânia, decidindo correr para fora do crematório.

De repente, um trovão sacudiu o cômodo e o brilho de um relâmpago ultrapassou a janela. Ele clareou o local, iluminando o rosto aflito de Vânia, como também um punhado de vigas de madeira encostadas na parede. A empresária notou os objetos pesados balançarem.

A vibração do chão foi suficiente para fazê-las caírem em sequência e Vânia deu alguns passos atordoados para trás, caindo sentada. Andreas girou nos próprios calcanhares, depositando seu olhar atento em volta. Estava acontecendo.

Entretanto, a joalheira sentiu o solavanco outra vez, Andreas voltava a puxá-la para sua sentença. Assim como Dalia fora arrastada pelos monges. Tudo estava se repetindo como num ciclo inquebrável, mas Vânia não iria desistir. Ela lutaria pela vida e pelo sonho de rever seus três meninos.

— Solta ela, Andreas! — A voz masculina trovejou no cômodo verde, levando Andreas a perseguir a origem do som.

Jon estava acompanhado de Sun, ambos estampando expressões congeladas, fitando o fogo crepitar atrás da outra dupla. Andreas parou de deslocar a joalheira e encarou-os.

— Não faça nenhuma besteira, por favor. — Sun implorou, ao mesmo tempo em que sorrateiramente enfiava a mão dentro do bolso do sobretudo que usava. — Nós estamos juntos nessa, não vamos deixar a morte riscar todos os nomes.

Para a detetive era fácil reconhecer os riscos daquela delicada situação. O algoz sob controle da vítima, totalmente resoluto e decidido a machucá-la. O olhar paranoico e perturbador buscando um alicerce racional no meio do pavor. Sun teria que redobrar a cautela.

— Fiquem longe! — Ele rosnou.

Os músculos do rosto do terapeuta tremeram. Ele realmente não acreditava naquelas palavras. Não depois do que acontecera com as demais vítimas da lista. A morte provou ser uma força arrebatadora, capaz de vir de qualquer lugar, usando qualquer artifício para concretizar seu objetivo. E o único jeito de detê-la, era se livrar diretamente da fonte da maldição secular. Se Vânia Vandelli morresse, Dalia morreria com ela. A lista morreria com ela.

Então, Andreas segurou Vânia pela vestimenta hospitalar e empurrou-a contra o incinerador, mas sentiu seu corpo torcer antes que pudesse vê-la queimar.

Sentiu uma onda de choque apertar seu abdômen, a dor arrancando-lhe um urro que fez todo seu corpo estremecer. Olhou para o lado e viu o que havia acontecido com o próprio corpo. Uma Taser era pressionada contra seu dorso, liberando uma descarga elétrica, enquanto o rosto destemido de Sun repousava sobre seu ombro.

Andreas caiu de joelhos logo em seguida.

Sun deixou que o homem se contorcesse e correu até Vânia. Por sorte, a joalheira não havia caído dentro da câmara crematória. Entretanto, seu rosto tinha vestígios de cinzas e um ferimento havia sido aberto em sua testa. Jon veio em seguida, ajudando a levantar a mulher desorientada e completamente fraca, que conseguiu erguer o braço e apontar.

Sun franziu o cenho e olhou na mesma direção do seu dedo indicador.

— Para onde ele foi? — A oriental arregalou os olhos, observando o lugar onde Andreas deveria estar.

Agora vazio.

X-X-X-X-X

Andreas cambaleou para fora da construção, ainda sentindo suas pernas formigarem do choque. As nuvens do céu tempestuoso de Hadiah prestes a engoli-lo. Com a cabeça tomada por latejos, o homem saiu do crematório e seguiu pelo terreno de terra batida sem olhar para trás. Fora um erro atentar contra a vida de Vânia. Não sabia se conseguiria ir até o fim, mas sabia que não deveria ficar perto da empresária.

Ela continuaria sendo amaldiçoada, a responsável por trazer a maldição para o grupo. A morte está perto quando a Vânia está por perto! Se eu ficar longe, talvez…

— Andreas!

O terapeuta acreditou por um segundo que fosse Sun ou a própria Vânia chamando pelo seu nome, de modo que não parou. Estava tão confuso por conta do barulho alto da chuva, que precisou de mais alguns segundos para discernir que a voz não vinha do crematório, mas sim dos portões do terreno.

Not tryna be indie

Not tryna be cool

Just tryna be in this

Tell me, are you too?

Mesmo com as gotas furiosas caindo ininterruptamente, Dawn desceu de uma bicicleta e correu ofegante até o marido. Levou as mãos nervosas até a pele dele, tocando seus braços e seu rosto, certificando-se de que estava inteiro. Era reconfortante vê-lo vivo, mas haviam muitas explicações a serem dadas ainda.

— Onde estão os outros? Eu vi a moto que a Sun utilizou ali estacionada próximo das cercas. — Dawn disparou, segurando firme o rosto abatido de Andreas, para que pudesse olhá-la nos olhos. — Andie, o que… — O receio de completar a pergunta para não saber a resposta se fazia presente. — Você fez?

O barbudo baixou o olhar envergonhado, negando-se encarar a mulher com quem estava cansado há alguns dias apenas. Mesmo que não tivesse matado Vânia, ele quis fazê-lo. Era um sentimento sujo demais para ser admitido em voz alta. Ainda que fosse uma questão de sobrevivência, Andreas não queria ter cogitado acabar com a vida de alguém.

Can you feel where the wind is?

Can you feel it through

All of the windows

Inside this room?

— Me fala, Andreas! Você machucou a Vânia? — Dawn segurou seus braços, sacudindo-os, os olhos marejados. — Porra, Andie, tenho que saber!

— Não, eu não fiz nada. — Ele respondeu seco.

— O que estava pensando, arrastando ela pra cá? Você pensou em se livrar dela? Achou que poderia decidir por todos algo como assassinato? Você não é assim, não é um cara ruim!

'Cause I wanna touch you, baby

And I wanna feel you too

I wanna see the sun rise

On your sins, just me and you

Dawn começou a chorar e suas lágrimas logo eram levadas embora pela chuva. Não se casara com uma pessoa capaz de cometer um crime. Andreas era o homem mais centrado e justo que conhecia. Era absurdo refletir que o companheiro que escolhera para dormir ao seu lado todas as noites e com quem passaria o resto de sua vida poderia fazer mal a alguém daquela forma.

Bem no fundo, Dawn queria ser capaz de fugir, mas ela amava-o o bastante para deixá-lo convencê-la do contrário. Foi o que o terapeuta tentou fazer no instante seguinte:

Light it up, on the run

Let's make love tonight

Make it up, fall in love

Try

— Estou com medo, Dawn. — Seus lábios molhados e trêmulos balbuciaram. — Eu sou o próximo e não quero morrer. Demorei pra entender que não temos chance contra os desígnios que o destino ou seja lá o que for, preparou pra nós. Mas não aguentei pensar em partir e te deixar sozinha, desamparada. Não consigo ver um mundo sem te ter comigo, porque quero ver o sol nascer outra vez e ter certeza de que estarei aqui.

A enfermeira limpou uma lágrima que eventualmente cairia dos olhos de Andreas e o observou em silêncio por algum tempo. Ouviam somente a chuva e os trovões assolando os céus. O tempo não pararia e a morte também não. Ela era imparável.

But you'll never be alone

I'll be with you from dusk till dawn

I'll be with you from dusk till dawn

Baby, I'm right here

De repente, Dawn viu Sun e Jon surgirem na porta da construção abandonada. Mesmo suturado, o britânico auxiliava a caminhada letárgica de Vânia, quase desacordada, ao mesmo tempo em que Sun dava passos calculados na direção deles. A expressão alertada da mulher dizia tudo para Dawn, que também cerrou o olhar na figura debilitada da empresária.

— Nós vamos passar por isso juntos, ok? — A loira voltou-se para o marido, o cabelo inteiramente encharcado sobre o rosto. — Até que a morte nos separe, foi isso que prometemos um para o outro.

O terapeuta ignorou o que ouvira e percebeu a presença do trio, começando a puxar a amada para longe. Sem entender, Dawn deu passos desconcertados, procurando se desvencilhar dos braços fortes de Andreas. Olhou chocada para ele.

I'll hold you when things go wrong

I'll be with you from dusk till dawn

I'll be with you from dusk till dawn

Baby, I'm right here

— O que tá fazendo? — Indagou, dando um solavanco.

— Vamos embora agora. Não podemos ficar próximos da Vânia, ela nos coloca em perigo!

— De novo essa conversa, Andie, está me assustando! — Sentia os dedos ao redor do seu pulso apertarem. — Para com isso, estamos todos do mesmo lado! Não perca a porra do controle!

— Só vamos estar a salvo bem distantes desse lugar. Ela causou tudo isso, você não vê?!

Havia um medo real e involuntário estampado na face do terapeuta, de modo que Dawn se sentiu extremamente persuadida pelo semblante aterrorizado do barbudo. Era como se ele realmente estivesse temendo continuar perto da mulher, como se Vânia fosse matá-lo com as próprias mãos num piscar de olhos.

Ela respirou fundo, tocando levemente sua mão, tentando retirá-la do pulso com afago.

— Ok, nós faremos isso, amor, mas não vamos deixá-los para trás. — Sibilou ela, antes de receber um olhar incrédulo do marido em resposta.

X-X-X-X-X

Andreas ficou sem reação diante da fala de Dawn, enquanto observava a enfermeira se dirigir até o trio e verificar o estado físico de Vânia, notando o sangue deslizar de sua testa. Não havia muito a ser feito naquele momento, já que estavam longe de aparatos de primeiro-socorros, mas ela daria um jeito.

Impaciente e bravo por tudo estar dando errado, Andreas começou a passar a mão inquieta pelos cabelos. Estava pensando no que fazer nos próximos minutos. Dawn não o ouviria mais, então ele teria que tomar outras medidas. Medidas drásticas, talvez. Andou apressadamente até perto do andaime, onde viu uma caixa de ferramentas descansar sobre uma tábua.

Sun era observadora demais para não ter percebido. Tratou de segui-lo, sem mesmo sinalizar para os demais, o barulho da chuva abafando seus passos largos.

O barbudo chegou até o andaime e ouviu a estrutura de ferro ranger. Olhou para cima e no topo, uma barra de ferro balançou com a força do vento. Ele entendia o que aquelas pequenas ironias significavam. A morte estava preparando terreno, mas ele chegaria antes e daria um presente muito melhor.

Assim que mexeu na caixa de ferramentas e tomou uma enorme chave de fenda em mãos, o homem ouviu um barulho e virou-se. Sun o encarou e estendeu a mão, dizendo:

— Você não quer fazer isso. Me dá a ferramenta, Andreas.

O barbudo segurou firme a chave de fenda entre os dedos e respirou fundo, pairando o olhar acima dos ombros da oriental e buscando Vânia em seu campo de visão. Na sua percepção, Sun também seria grata pelo que ele estava disposto a perder e a fazer para não ver mais ninguém sofrer.

— Você não entende o sacrifício. — Andreas falou, fazendo os pêlos da nuca da detetive se arrepiarem.

— Sua esposa está certa, isso é o que o medo da morte pode fazer conosco. Fica calmo. Posso resolver as coisas pra você, mas vai precisar me dar essa ferramenta… Antes que alguém se machuque. — A mulher fez menção de tocar o objeto.

O gesto surpreendeu Andreas, que puxou o braço e se desequilibrou. Bateu seus ombros na base do andaime e a estrutura de metal balançou vertiginosamente. Ambos sentiram um vento ameaçador perpassar entre eles. O andaime chacoalhou mais forte com a ventania e fez um rangido estridente.

— Vamos sair daqui, agora!

Como numa reação em cadeia, as barras de ferro da estrutura começaram a se soltar, despencando contra a dupla. Uma, duas, três barras de ferro. Mais tábuas caíram em uníssono. Sun conseguiu agarrar a blusa de Andreas e o puxou para o chão. Os dois rolaram, encolhidos, enquanto ouviam os ferros se chocarem contra a terra molhada.

Uma barra de ferro passou rente ao rosto da detetive, que gritou apavorada. A estrutura zuniu ao mesmo tempo em que mais partes do andaime viravam sobre eles. Uma tábua empurrou seu corpo para o lado e pousou sobre suas costas, servindo de proteção, mas a alguns centímetros Andreas continuava desprotegido.

O homem engatinhou atordoado, tentando desviar ao máximo da estrutura de metal que caía, mas seu esforço durou pouco. Dawn viu o exato momento em que a ponta enferrujada de uma das barras atravessou a mão esquerda e as costas de seu marido, cravando-o no solo. Seu grito eclodiu por todo o lugar. Tudo durou poucos segundos, mas o estalo dos ossos foi audível mesmo no meio da chuva.

De joelhos dobrados e olhos arregalados, Andreas encarou a terra, cuspindo muito sangue.

X-X-X-X-X

Toda a estrutura de ferro já espalhada pelo terreno, Sun retirou a tábua das costas. De coração apertado, a primeira coisa que notou ao levantar foi o corpo sôfrego do terapeuta. Ele dava alguns espasmos, como se quisesse mexer o braço que não fora atingido para retirar a barra penetrada em sua mão empalada. A oriental sentiu-se sendo rasgada por dentro. Mesmo que tivesse agido impulsivamente e de forma histérica, Andreas não merecia ter sido tragado.

Dawn ajoelhou-se próxima do corpo. O mais doloroso, era que seu marido ainda permanecia vivo, ainda que estivesse andando na linha tênue entre os dois mundos. Diante do que via, mais do que querer que ele tivesse sobrevivido aos golpes, queria que partisse rapidamente.

— Não, não, não, não… — Seus dedos trêmulos percorreram a mão empalada, a barra de ferro atravessada na pele, presa à terra. Dawn não queria tocá-lo e causar ainda mais dor.  — NÃO! NÃO! NÃO!

Entre todo o sangue, encarou solenemente a aliança no seu dedo e foi golpeada novamente pela realidade. Cedeu às lágrimas incansáveis, berrando. De olhos comprimidos, sentia sua garganta explodir em desespero, ao passo em que a chuva lavava seu rosto.

Sun posicionou-se atrás da enfermeira e depositou a mão em seu ombro, ouvindo-a soluçar. Andreas parou de reagir e amoleceu, significando sua partida. E então, passou a ser sua vez de novo.

Depois, caminhou até Jon, que observava a cena com pesar. A dor de perder alguém de forma tão brutal era irremediável, e ele sentira na pele essa dor. Vânia não respondia, inconsciente em seus braços, de modo que o britânico recostou seu corpo contra a parede e se afastou um pouco para falar com a oriental.

— Não sei mais o que fazer. — Sun disse de maneira cansada, ouvindo o choro copioso de Dawn ao fundo. — É como estivéssemos jogando um jogo que já perdemos.

— Deve ter algo que possa ser feito. Vocês estão vivas, quer prova maior de que nada está ganho?

Sun fungou e foi andando na direção das cercas, a chuva diminuindo seu ritmo. Era muita coisa para sua cabeça. Ela vira todos lutarem, serem fortes, confiantes. Em contrapartida, vira o último de todos eles também. Me desculpem por não feito o suficiente Kim e Eun Bi. Eu amo vocês…

— SUN, CUIDADO! — O grito de Vânia veio anunciar a tragédia.

Então, a oriental ouviu um estrondo trovejante e um clarão invadiu o recinto. Sua reação foi a de se abaixar, só aí presenciando o enorme feixe de luz rasgar o céu na direção do terreno. Um raio. Sun fechou os olhos, o brilho era forte, mas a pancada causada pelo fenômeno fez seu corpo tremer e seus ouvidos zunirem.

Quando teve coragem de encarar a cena, Sun viu a bola de fogo na qual a moto estacionada havia se transformado, enquanto faíscas dançavam na cerca. O raio havia atingido-a. Arregalou os olhos, seu coração saltando pela boca.

Sun decidiu correr e avistou Jon correr em sua direção, mas já era tarde.

O veículo explodiu em vários pedaços, arremessando seus detritos pelo ar em meio a uma bola alaranjada. E o maior deles tinha um percurso reto e certeiro. Com os cabelos platinados grudando no rosto, a oriental arriscou observar o estrago por cima dos ombros.

Jon estava a centímetros da detetive, quando o motor fumegante fez um ruído e atingiu a cabeça da mulher. Primeiro, o cheiro de carne queimando e logo em seguida, jogou seu corpo para frente, esmagando seu pescoço e sua cabeça ao cair por terra. O motor quente continuou queimando a nuca esmagada de Sun, enquanto seu corpo desfalecido permanecia de bruços e partes do seu crânio deformado escondidas sob o mecanismo.

Jon recuou, de boca aberta, pronto para despejar um grito que nunca saiu. Entreolhou-se com uma Dawn completamente acabada e então não viu mais nada.

X-X-X-X-X

Vânia sentiu seu corpo formigar e seu rosto esquentar repentinamente. Então, abriu os olhos. A primeira coisa que viu diante de si travou seus músculos doloridos. Os olhos de âmbar voltaram a encarar as chamas ferozes do incinerador e seus lábios trêmulos se separaram em um grito que sequer chegou a sair.

Era como se ela tivesse voltado alguns minutos no tempo.

All smiles, I know what it takes to fool this town

I'll do it 'til the sun goes down and all through the night time

Rapidamente a empresária recuou, procurando ficar o mais longe possível do fogo. Devido os ferimentos e o esgotamento físico, rastejou pelo cômodo sujo, suas vestes hospitalares em trapos. Visualmente, Vânia estava um caco, mas por dentro seu único desejo era poder ter uma vida outra vez.

Ela levantou a cabeça, recobrando devagar a consciência e repassando na mente os últimos acontecimentos. A maioria deles vinham de forma embaralhada, mas ela sentia que estava chegando no fim de seus dias. Seu olhar desorientado percorreu a sala e visualizou, no canto dela, duas pessoas caídas. Vânia engatinhou até lá com um aperto no peito e engoliu em seco quando reconheceu Dawn e Jon, ambos desacordados.

Oh yeah, oh yeah, I'll tell you what you wanna hear

Leave my sunglasses on while I shed a tear

It's never the right time, yeah, yeah

Um trovão rugiu nos céus e, no ímpeto, Vânia virou-se. O coração da joalheira acelerou no momento em que notou uma silhueta se mover na frente do fogo.

— Finalmente a sós, mulher. — A voz arranhada de um inglês improvisado fez Vânia arregalar o olhar. — Preparada para nos levar de volta para casa?

I put my armor on, show you how strong I am

I put my armor on, I'll show you that I am

A silhueta logo deu forma ao rosto familiar do ancião do templo, que colocou-se diante dela como se fosse uma aparição divina, enchendo a boca de um sorriso amarelado sórdido. Ele esticou o braço, estendendo a mão em sua direção, o que a fez enrijecer e encará-lo com repúdio. Desde o início, ele era o elo que os ligava. Vânia sentia que tudo havia começado naquela manhã, pouco antes do tsunami, quando esbarrara-se na figura prostrada e frágil do homem de idade. E desde então, ele vinha causando desconforto para o grupo, aparecendo e desaparecendo, deixando rastros de mistério por onde passava e depositando dúvidas uns sobre os outros.

Era como se ele a acompanhasse através dos anos.

I'm unstoppable

I'm a Porsche with no brakes

I'm invincible

Yeah, I win every single game

— O ciclo deve se fechar para que o Deus Sem Face possa nos levar para casa. E você, Dalia, é a parte que falta. A parte que ele procura.

Vânia franziu, mas logo se deu conta de que ele estava chamando-a pelo nome da cigana Dalia. Nem em mil anos, aquela menção seria coincidência. O ancião sabia muito mais do que ela poderia imaginar, assim como Sawar e seus seguidores no vilarejo. O velho estava no controle de tudo e se seus problemas começaram com o encontro entre eles, também deveria acabar da mesma forma.

Um ciclo que se fecha… Não é isso que ele quer dizer?

— Vou dar a você o que quer. — Ela sentenciou.

I'm so powerful

I don't need batteries to play

I'm so confident, yeah, I'm unstoppable today

O velho pareceu satisfeito com a resposta e sentiu a mão trêmula da mulher pousar entre as rugas da palma de sua mão. Assim que se pôs de pé, Vânia encarou-o no fundo dos olhos opacos e obscuros. Um arrepio consumiu seu corpo e ela respirou fundo.

Ele então fez um movimento com o polegar na testa de Vânia, como se estivesse prestes a abençoá-la. Foi a brecha que a joalheira precisava.

Break down, only alone I will cry out now

You'll never see what's hiding out

Hiding out deep down, yeah, yeah

Reunindo seus últimos resquícios de força, Vânia agarrou as vestes maltrapilhas do ancião e arremessou-o na parede, esbravejando a plenos pulmões. O velho caiu na escuridão do cômodo e desapareceu do seu campo de visão. Rapidamente, a empresária aproveitou para mancar até o casal desfalecido.

— Por favor, acordem! Vamos, Dawn… John! — Ela sacudiu o corpo dos dois, seus olhos enchendo-se de lágrimas, mas nenhum sinal de consciência por parte deles.

— Eles não vão vir ao seu auxílio, mulher amaldiçoada. — Sibilou o ancião, saindo do breu e saltando sobre Vânia.

I know, I've heard that to let your feelings show

Is the only way to make friendships grow

But I'm too afraid now, yeah, yeah

Os dois rolaram no chão empoeirado e mais uma vez, a mulher sentiu os ossos estalarem e uma dor lancinante invadiu seu ser. Estava ficando cada vez mais fraca.

O ancião não hesitou e agarrou Vânia pelos cabelos, batendo sua testa contra o piso do crematório. Uma, duas, três vezes. Já completamente desorientada, a empresária sentiu seus braços serem estendidos e suas pernas começaram a se mover. Ela olhou para cima e encarou o teto. Conseguia ver o vulto do ancião arrastando-a.

I put my armor on, show you how strong I am

I put my armor on, I'll show you that I am

Ele estava levando-a na direção do fogo que crepitava alto na câmara industrial. Quando notou o que aconteceria, a mulher começou a se debater. Vânia despejou gritos e mais gritos sôfregos por uma ajuda que nunca viria. Naquele momento, ela estava sozinha.

— Isso tudo já vai acabar, mulher. O Deus Sem Face vai nos levar para casa.

— Cala a boca, velho maldito! — Vânia esbravejou e cuspiu, procurando arranhar os braços do ancião.

I'm unstoppable

I'm a Porsche with no brakes

I'm invincible

Yeah, I win every single game

Até que, no meio do trajeto, no canto de seu olhar, ela avistou um grande e velho cadeado. No momento em que seu corpo dolorido passou ao lado do objeto de ferro, ela o apanhou e fechou os punhos ao seu redor.

Após várias tentativas de se desvencilhar do seu algoz, Vânia sentiu a ponta de seus dedos esquentarem. Ela estava se encaminhando para seu pior pesadelo, e ironicamente para seu último suspiro. Sua garganta fechou imediatamente e seu olhar atordoado percorreu todo o crematório. A pirofobia iria matá-la antes mesmo do fogo.

I'm so powerful

I don't need batteries to play

I'm so confident, yeah, I'm unstoppable today

Aquela situação lhe lembrou o que seu ex-marido causara. De como sua vida mudara através do fogo e de como aprendeu a valorizar cada segundo ao lado dos filhos, depois do trauma. Ela não deixou sua vida acabar no incêndio, não deixou que o tsunami varresse sua existência e agora não deixaria que o velho lhe enviasse de volta às chamas.

Dalia havia conseguido. Ela também conseguiria.

Unstoppable today, unstoppable today

Unstoppable today, I'm unstoppable today

Vânia fez força para frente, dando um forte solavanco e deixando que parte de sua madeixa castanha fosse junto do punho do ancião. Ela rosnou e virou seu corpo, apenas para acertar o cadeado contra a parte de trás do crânio do velho, que tombou para o lado, mas não caiu.

— Diga pro seu Deus Sem Face, que eu não vou com ele.

Seu corpo torto se moveu desestabilizado devido à pancada e um olhar diabólico encarou Vânia uma última vez. A mulher pensou ter visto uma figura cadavérica formar-se na sombra de seu rosto e fechou os olhos por breves segundos. Em seguida, tomada por adrenalina, segurou o homem pelos braços e o levou na direção do incinerador.

O grito estridente do ancião alcançou todo o cômodo assim que seu corpo adentrou nas chamas. Vânia recuou imediatamente, observando a cena chocada, enquanto as chamas dançavam ao redor do corpo do nativo. Ela caiu de joelhos e apoiou-se no chão, recobrando a respiração. Na sua frente, o fogo lambia cada centímetro de tecido e pele do velho, ao mesmo tempo em que Dawn e John levantavam ao fundo.

Vânia engoliu em seco, sem saber o que dizer. E na presença dos outros dois, aterrorizados e confusos, viu a chuva cessar do lado de fora.

Por fim, encarou as próprias mãos queimadas e apagou completamente.

 


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo será nossa season finale. É isso, Superstition 2 está chegando no seu fim.

Espero que tenham gostado! Não esqueçam de comentar, as reviews são muito importantes para a continuidade do projeto.



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