Superstition 2 escrita por PW, Jamie PineTree, MV


Capítulo 13
Capítulo 11: The Road So Far


Notas iniciais do capítulo

Neste capítulo, voltamos com foco total na trama do presente e das vítimas do tsunami em Hadiah.

Escrito por Jamie PineTree



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Oxford, Reino Unido - 2 semanas antes

 

—Alguns textos ainda divergem sobre os reais motivos da ascensão repentina e a queda do reinado Hightower, que durou três gerações. Insistem uns que o último rei ainda estava abatido pelo massacre que custou a perda de grande parte da família real. Outros ainda julgam a má administração do extravagante rei anterior, onde ducados eram distribuídos para muitos que não souberam como manter. E que com o passar dos anos, a província nunca mais se recuperou dos déficits causados pelo saque aos cofres reais.

Jonathan Lancaster estava próximo ao fundo da sala, da faculdade de história de Oxford. O cabelo preso atrás das orelhas e a barba precisando de um corte urgente, passavam despercebidos pelo jovem que mal sabia o que estava fazendo ali.

—Mas é certo dizer que esses eventos ajudaram a preparar a Grã Bretanha para a verdadeira guerra que só iria ocorrer dezenas de anos depois, quando os Lancaster e os York a dividirem-na tão famigerada Guerra das Rosas. - Continuou o professor, um homem de barba branca que vestia-se como alguém que estivesse prestes a ver a Rainha.

—Até a Era Tudor se estabelecer em 1487 e por um fim na guerra toda. - Uma garota de óculos e sardas no rosto falou.

Ora tentando escutar o que o professor dizia, ora ouvindo piadas silenciosas sobre seu sobrenome, Jon não conseguia parar de olhar a cada dois segundos para a tela do celular, esperando por qualquer notícia que pudesse acalmar o nervosismo que transparecia através de suas feições.

Após Skylar precisar de sua ajuda depois do que aconteceu na apresentação de música na escola, ele havia sumido naquela manhã sem dar notícias. E seus pais, inaptos para entender o que se passava com o filho, ligaram para Jon, que sentia o peso daqueles problemas em suas costas afetar seus estudos. Consumido pela necessidade de ajudá-los, sem ao menos saber por onde começar.

Passado alguns minutos, Jon levantou os olhos verdes e suas olheiras, notando que estava sozinho no auditório. Todos seus colegas de sala partiram após o término da aula e ele, mergulhado em seus pensamentos, não percebeu um único ruído sequer.

—Aconteceu alguma coisa, Jonathan? - O professor arrumava alguns papéis na enorme mesa estilo colonial, colocando-os numa bolsa de couro.

—Mil perdões, senhor. - Gaguejou após se levantar bruscamente. Por causa do tamanho, Jon podia ser bastante desajeitado quando nervoso. - Não quis parecer com desrespeito.

—Mas pareceu. Não é a primeira vez que você aparenta no mundo da lua, durante as minhas aulas. - Disse o homem. - Suas notas tiveram uma queda considerável ultimamente.

—É o meu sobrinho de novo. Ele saiu da escola antes do horário e ninguém sabe onde está. Já é a quinta vez só nesse mês.

—Eu não ficaria assim se fosse você. - O professor fez parecer que era uma solução extremamente óbvia.

—O que quer dizer?

O homem suspirou um suspiro longo e pesado, movendo-se para apoiar uma mão no ombro do rapaz.

—Não pode proteger seu sobrinho para sempre. Um dia, terá que deixá-lo seguir seu próprio caminho. O maior erro de pais de crianças especiais, é querer colocá-los numa intocável redoma de vidro, para protegê-los de tudo o que há lá fora. Deixe que ele seja rebelde por um dia, que decida os próprios caminhos fora de suas asas.

—Tenho medo desses caminhos...

—Você é inteligente, mas não vê a quantidade de pessoas dentro do espectro, que só precisam de alguém que acredite e que confie neles. - Fez uma pausa para limpar a garganta. - Confie que seu sobrinho pode se virar sem você, Jonathan. E verá que ele pode.

Dito isso, o homem deu dois tapinhas no ombro do rapaz e foi embora. Após passar pelos corredores centenários do prédio da faculdade de história, Jon respirou fundo o ar gelado daquele dia nublado. Apertou-se no casaco azul e continuou a andar, com as palavras do professor ecoando em sua mente.

Durante a longa caminhada pelos outros prédios históricos que constituem a Universidade de Oxford, até o carro estacionado longe deles, Jon pôs se a pensar por onde deveria começar a procurar o sobrinho ou se realmente deveria fazer isso. Por tantas vezes, Jon correu ao auxílio de Skylar, que nunca dera a chance do garoto mostrar o que podia fazer quando estivesse longe dele.

Sabia que o irmão não tinha tato para lidar com o espectro do autismo, que a cunhada se esforçara tanto para entender o mundo fora da realidade em que o filho vivia, que se entristecia quando não conseguia. Apesar disso, nem Jon ou Skylar conseguiam culpá-los.

Um Impala 67 esperava por ele. Carro que fora do seu pai e do seu irmão antes de ser seu. E se não fosse por causa do autismo, seria de Skylar também.

Entrou no carro com o coração ainda dividido, arrumando o cabelo bagunçado pelo vento frio, completamente distraído com o mundo lá fora.

—Oi, tio Jon. - Skylar o cumprimentou do banco traseiro.

Um breve ataque cardíaco tomou conta do universitário, que estremeceu à frente do volante. Foi preciso mais de um minuto para assimilar o que estava acontecendo e acalmar seu coração, recebendo um olhar de estranheza do sobrinho.

—Como… Como entrou meu carro?!

—Pela porta. Por onde mais? Meu pai fez uma cópia da chave para mim, quando achou que eu poderia aprender a dirigir um dia.

—Onde você estava? Seus pais estão loucos atrás de você. - Não conseguiu se manter calmo. - Skylar, você não pode sair da escola, quando tem vontade. Você é especial, mas não tanto assim.

Skylar abaixou o olhar, não por causa tom de usado pelo tio, mas por saber que ele estava certo.

—Tem uma feira de mecânica e tecnologia perto daqui. - Disse num tom quase inaudível. - Por isso, peguei o trem depois da escola e vim. Os headfones ajudaram bastante nessa última parte.

Jon nunca vira Skylar dar mais de dois passos fora de Londres, ainda mais ir sozinho até Oxfordshire. Então, se lembrou das palavras do professor, para deixar Skylar ser rebelde como um adolescente normal, saboreando a ideia na mente.

—Quer me contar o que foi fazer nessa feira? - Ainda estava bravo, mas precisou ceder.

—Uma exposição de novos robôs para gente como eu, igual àquele que o Dr. Marvin usava quando eu tinha uns seis anos.

Grande parte do avanço de Skylar em interação social, se veio do tempo que passou interagindo com um robô próprio para isso. Estimulando sua curiosidade e a capacidade de distinguir emoções e expressões.

—Olha Sky, eu sei que fico brincando muito, mas você precisa ser mais responsável, principalmente agir que vamos para outro continente. Quando voltarmos de viagem, eu preciso me dedicar 200% nas aulas e para isso, eu tenho de ter certeza que você pode se virar sem mim. Você pode, Sky?

Ficou observando a expressão apática do sobrinho pelo espelho. Pensativo, Skylar tamborilou os dedos nervosos no banco de couro preto, mas por fim, sorriu em sinal de aprovação.

—Se isso te faz feliz, pode contar comigo.

Jon sentiu o peso sobre seus ombros desaparecer.

—Bom saber que estamos entendidos. - Girou a chave na ignição, fazendo o Impala tossir fuligem. - É melhor te levar para casa, antes que seus pais chamem a polícia.

—Espera, tio Jon. Tem um lugar que eu ainda quero ir. - Skylar passou para o banco da frente e usou o mapa do celular para lhe mostrar um local. - Salisbury, no condado de Wiltshire.

Conhecendo Skylar como conhecia, Jon não se surpreendeu, pois sabia exatamente o que havia lá para encontrar. E por fim, acelerou com o carro pela estrada para fora de Oxfordshire.

XXXXX

Hadiah, Indonésia - Tempos atuais...

 

Skylar foi a terceira pessoa a acordar da regressão.

Ver sua versão do passado despencar para a morte o fez gritar na vida real. Não sentiu a dor do impacto, mas sentiu o que passava na mente e no coração do garoto, sentiu a frustração de não ter cumprido o seu dever e principalmente, o poder que a fé tinha.

—Como se sente? - Andreas perguntou, olhando-o com cautela e cansaço.

Andreas tinha calculado ser quatro ou cinco da madrugada. Começou a regressão no por-do-sol e passou toda a noite escutando quatro relatos de pontos de vista diferentes. A tarefa acabou por consumir muito da energia física e mental de Andreas, que precisava se concentrar em guardar os relatos e conduzir a regressão da melhor forma possível com o pouco do treinamento que lembrava.

Não queria admitir para si mesmo, mas quanto mais adentrava na história da lista e nas sacerdotisas, Andreas ficava mais exausto mentalmente. Como se estivesse dentro de uma panela de pressão, prestes a explodir.

Andreas permanecia como o único sem saber o que sua contra-parte fizera no passado. Ele não podia aplicar a técnica consigo mesmo e com outros ao mesmo tempo, por causa da responsabilidade médica para o bem-estar mental deles e por ser o único que saberia o que dizer para que a regressão funcionasse.

Sendo assim, sua vida passada permaneceu um mistério.

—Meio enjoado. E com fome. - Skylar abraçou o corpo, ainda sentindo a água gélida da tempestade em sua pele. - Mais com fome do que enjoado, na verdade.

Sun trouxe um pouco de água para o garoto, afagando seus braços com delicadeza no toque, mas curiosa com o olhar.

—Você era a única pessoa que entendia um pouco de como a lista funciona naquela época. - Disse a detetive. - Consegue se lembrar de mais alguma coisa sobre ela?

—Ele só sabia que todos deveriam ter morrido, que de um jeito ou de outro, o destino ia acabar por se corrigir. - Retirou os cabelos suados da frente dos olhos. - Mas não os meios de como quebrar a roda.

Andreas não parecia surpreso.

—Claro que não. - Resmungou. - O trabalho dele era garantir que a roda continuasse girando.

Enquanto Skylar contava o que Hawley Lachlan fazia e pensava, Andreas o julgava silenciosamente, condenando suas atitudes. E Sun percebera isso muito bem.

—Sky, você pode esperar lá fora um pouco? - Sua voz era dócil e autoritária ao mesmo tempo. - Grite se precisar de alguma coisa.

O garoto obedeceu sem questionar.

—Não é culpa dele, Andreas. - Tinha dito ela para o terapeuta, quando o adolescente britânico saiu.

—Você não ouviu o que ele fez? Esse Hawley era um psicopata, o irmão também. - Disse em voz baixa, para não interferir na condução de Vânia. - O que garante que ele não pense igual?

—E eu era uma assassina, lembra? Liderando um bando de meninas para serem assassinas também. - Respondeu ela, sem gostar do gosto daquelas palavras. - O que nós fomos no passado, não significa nada agora.

Sun fora a primeira a despertar entre todos, depois de meia hora inerte na outra vida. Confusa e sentindo a cabeça doer, ela contou sobre a viagem de navio até a capital do reino e dos pensamentos de vingança da líder das dançarinas para Andreas, que guardou o máximo de informação possível durante o relato.

Lembrou do ódio que existia dentro da mulher, de todo o ressentimento pela perda do filho por culpa daquela família. Para a Sun do passado, aquilo era justiça, mas a Sun atual, pensava diferente, repudiando todos os atos cometidos pelo senso torpe da guerreira.

Até a conexão com o passado se romper de repente, por algo que ela não soube dizer o que era.

—Foi morta por uma flecha. - Dissera Andreas quando solicitado. - Logo depois da invasão ao castelo.

Horas depois após o despertar de Sun, Georgia foi a seguinte.

A jovem fora quem teve o acordar mais incômodo. Tentando respirar desesperadamente sem sucesso, se debatendo pelo chão de terra batida, chorando e se lamentando pela confiança quebrada. Andreas precisou parar a concentração que tinha com os demais para poder acalmá-la, levando alguns socos fracos no peitoral durante o processo.

—Já acabou, Georgia.  Nada pode te machucar aqui.

Demorou para ela perceber que o sofrimento não era real, mas sim um reflexo de como sua vida passada terminara.

—Se eu não tivesse passado por isso, jamais acreditaria se alguém me contasse. Aquela mulher… A caçadora. Eu senti exatamente o que ela sentia, pude sentir a dor e a desespero dela. - Sentiu os pelos do braço se eriçarem. - Acho que foi por isso que ficamos presos aqui em Hadiah. Para terminar o que foi começado séculos atrás.

—Então, alguma outra coisa deve ter acontecido nessa lista do passado. - Andreas virou-se para Vânia. - Algo que não vimos, que talvez explique porque a lista ou o “destino”, digamos assim, esperou tanto tempo para nos reunir de novo.

Com Skylar desperto, restava apenas Vânia, que relatava uma tortuosa viagem de carruagem, ao lado de um monge moribundo e uma comitiva de nobres. A empresária soluçava ocasionalmente, sentindo a dor da cigana pelos irmãos mortos, como se estivesse chorando pelos próprios filhos.

Vendo o sofrimento da mulher, o terapeuta tinha pensado em acordá-la para que ela se livrasse daquele tormento. Porém Gerogia o impediu, argumentando sobre a importância de saber como quebrar a roda.

—A lista já levou três de nós. Você, a Vânia e o Skylar conseguiram se salvar, mas e a Sun e eu? - Tinha um apreensão genuína em seu olhar. - Eu passei a vida aproveitando o hoje, sem me importar muito com o que aconteceria amanhã, pensando apenas em me divertir. Agora, é assustador pensar que a qualquer momento, tudo isso vai sumir.

Um silêncio solidário se fez na tenda escura, iluminada apenas fogueira que ardia num ponto distante.

Porém, o silêncio não durou muito.

—Sun! - Skylar gritou do lado de fora da tenda. - Lembra quando disse para gritar se acontecesse alguma coisa? Então… Aconteceu!

A detetive estreitou os já estreitos olhos novamente, cruzando-os com o semblante desconfiado de Andreas.

—Georgia. - Chamou ele. - Fique com a Vânia. Incentive ela a pensar na lista, não nos irmãos e continue a acalmá-la do jeito que puder. Nós vamos ver o que houve lá fora.

O tom de voz do garoto foi o bastante para fazer Sun entrar em estado de alerta, como fazia durante uma operação em seu trabalho. Uma vez ao ar livre da montanha, os dois encontraram Skylar parado entre o Ancião do templo e Sawar, com a vila inteira de Hadiah portando tochas atrás deles.

—Vocês realmente voltaram para cá, depois de tudo o que aconteceu na minha casa? São mais burros do que eu pensei. - Sawar os criticou em desafio, apontando um punhal de lâmina negra para eles. - Pois bem, pelo Deus Sem Face que rege o caminho que percorremos, eu digo que a estrada de vocês até aqui termina agora.

XXXXX

A câmera do cinegrafista acompanhava os helicópteros em pleno voo, que se dividiam e se dirigiam para diferentes áreas da cidade. A frente dela, um jovem engravatado escutava o apresentador do telejornal terminar de falar no ponto eletrônico em seu ouvido, para dar a sua matéria.

—Quase uma semana se passou desde o maremoto que varreu boa parte da costa indonésia. E matando centenas de pessoas entre turistas e moradores pelo caminho. Os sobreviventes estrangeiros foram encaminhados para os hospitais mais próximos do epicentro para receberem atendimento e depois, serão encaminhados para o aeroporto e enviados de volta para casa.

“O governo da Indonésia não se pronunciou sobre a demora no resgate, mas em uma nota oficial liberada para a imprensa, diz estar fazendo o possível para ajudar as vítimas. E como podem ver atrás de mim, helicópteros foram colocados no ar nessa madrugada para o resgate de sobreviventes em áreas mais afastadas da costa.”

“Segundo uma socorrista voluntária, ainda há turistas presos no topo do monte que abriga o Templo de Hadiah e entre eles, foi confirmado em primeira mão a morte da atriz Victoria Martin. Mais informações a seguir”

O repórter abaixou os olhos claros e tomou fôlego para respirar, escutando as últimas palavras do apresentador no ponto eletrônico, que agradecia pela matéria. Ele sorriu em sinal de educação e voltou-se para a câmera.

—Eu sou Ashley Green, falando diretamente da cidade de Hadiah. De volta ao estúdio.

XXXXX

Com o corpo gritando por mais descanso após uma noite mal dormida, Dawn Pierson recostou-se num banco de pedra, numa área ao ar livre do hospital. Perto dali, o repórter da The Hidden Oracle News continuava a pegar depoimentos das vítimas e Dawn os observava com um olhar cansado.

A situação se desafogava aos poucos, com casos graves respondendo bem e outros melhores recebendo alta, mas o número dos mortos no estacionamento também continuava a crescer, conforme os dias se passavam e os entulhos do desastre eram revirados.

Faltava ainda uma hora para amanhecer, mas quando estava deitada no quartinho confinado que ela e a equipe de resgate dividiam, sua mente não parava de pensar em como o noivo estaria. Dawn brincou com a aliança em seu dedo anelar, relembrando do dia do casamento, numa praia paradisíaca que agora não existe mais.

—Te trouxe café. - Uma voz grave e de sotaque europeu a tirou de seus pensamentos. - Pelo menos, eu acho que é café. Não sei falo indonésio.

Aparentemente em melhor estado, Jon lhe estendeu um copo descartável, contendo o líquido escuro e fumegante. Dawn agradeceu com os olhos em resposta.

—Você ficou muito bem vestido assim. - Elogiou a camisa quadriculada que ele usava, doada por outro paciente que salvou parte de sua bagagem.

—Pareço um daqueles caçadores americanos, sabe? Que andam numa caminhonete velha com um cervo morto amarrado no capô. Ou um alce, talvez.

Dawn não pode conter um leve riso que saiu de seus lábios.

—Mas o ferimento parece estar bem melhor agora. - Desabotoou alguns botões, mostrando os pontos da sutura. - Aquele garoto fez um ótimo trabalho.

—Tem razão. - Dawn pousou os dedos levemente na ferida. - Está cicatrizando bem, continue aplicando a pomada que eu lhe dei e logo poderá tirar os pontos. Mas a tatuagem vai ficar um pouco disforme depois disso.

Dawn continuou por mais alguns segundos, depois recuou a mão subitamente. Estava corada. E Jon percebeu isso, antes de abotoar a camisa quadriculada.

Um silêncio constrangedor se fez a seguir, amenizado apenas pelos burburinhos de pessoas que assim como eles, estavam esperançosos com o resgate.

—Então, também não conseguiu dormir? - Perguntou ela, sorvendo o café extremamente forte e quente.

—Encontraram o meu irmão e a minha cunhada ontem, debaixo de meia tonelada de areia. - Tentou manter-se calmo enquanto falava, para não chorar novamente. - Nem mesmo com todo o calmante do mundo, eu poderia dormir depois de ver o estado em que eles ficaram.

—Eu sinto muito, Jon.

—Mas outra coisa me tirou o sono também. Naquela hora que eu perguntei sobre o Amelia, eu percebi que você ficou mexida com isso, não sei direito. Se eu te falei alguma coisa indevida, peço-lhe mil perdões.

Dawn não esperava que ele tocasse naquele assunto novamente. Todas às vezes que ela escutava o nome do Amelia, era como se recebesse àquela ligação novamente, dizendo-lhe o que aconteceu. Seu irmão mais velho, James, e o namorado dele eram soldados na base aérea próxima ao aeroporto. E de diferentes formas, ambos tiveram suas vidas destruídas após o atentado e suas consequências.

Para ela, falar do Amelia Earhart era sofrer tudo aquilo de novo e de novo.

—Você não tem culpa de nada. - Respondeu, tentando não transparecer o que sentia. - Mas o que  você queria me dizer ontem? O que aquele lugar tem de tão importante, além das atrocidades que o exército tentou esconder esse tempo todo?

—Eu namorava com uma estudante de intercâmbio do Canadá, Christina Gomez. Você é um pouco parecida com ela até, mas ela é um pouco mais bronzeada. Sem ofensa.

—Vou tentar não ficar.

—O irmão dela, Louis, era piloto e frequentemente trabalhava no Amelia, até o dia em que o atentando aconteceu. A gente pensava que ele tinha morrido e que o corpo ainda não tinha sido achado, mas depois nós descobrimos a verdade.

—Que eles foram mantidos lá, para não revelar o que o governo escondia debaixo do aeroporto? - Jesse lhe confirmara isso quando a verdade foi exposta.

—Isso foi só a ponta do iceberg. A Tina não se conformou com a versão dada na televisão e passou meses tentando descobrir o que eles ainda escondiam. E isso a consumiu de tal maneira, deixando-a tão paranóica, que eu não soube mais como fazê-la parar. Até que meses depois, ela rastreou dois militares em Los Angeles e fomos para lá, em busca de uma explicação para tudo o que aconteceu no aeroporto.

Jon estava tão entretido no próprio relato, que mal percebeu o semblante dela. O britânico lutava para acreditar nas próprias palavras, mesmo temendo que Dawn achasse que ele era louco.

—Acontece que o Louis e outras nove pessoas tinham sobrevivido ao atentado, mantidos presos lá pelos militares para que o segredo não se espalhasse. Mas a Tina me disse que eles não morreram por causa do que descobriram e sim, por que um deles teve uma espécie de premonição sobre o acidente e os salvou por um tempo.

—Premonição? Então foi por isso que você me parou naquela hora, depois do que eu tinha contado sobre a Vânia?

Dawn remexeu o corpo no banco de pedra, tentando entender onde Jon queria chegar.

—É. Um dos sobreviventes disse que eles estavam em algum tipo de lista. Uma lista da morte. E que todos aqueles que tinha sobrevivido ao atentado, morreram um por um em seguida. Se o que aqueles homens disseram realmente for real, as pessoas que a Vânia salvou podem ainda estar em perigo. Incluindo o meu sobrinho, Dawn.

A loira se levantou bruscamente, caminhando em círculos perto de Jon, unindo o que tinha visto na montanha com o relato dele, percebendo a louca conexão entre elas.

—A atriz… A Victoria Martin. Caiu num rio e se afogou no dia seguinte, e antes disso, a Vânia também quase morreu num acidente estranhíssimo numa fogueira. Tudo foi tão anormal, que não consigo deixar de pensar que talvez, você esteja certo.

Jon ergueu as sobrancelhas grossas, impressionado por ela concordando.

—E o pai do seu amigo. - Ele completou. - É por isso que estou tão preocupado com o Sky. Se tiver um fundo de verdade nisso tudo, eu quero ter certeza que ele está bem.

Dawn fitou o copo descartável, refletindo sobre as palavras do britânico no líquido escuro.

—Está escutando isso? Os helicópteros finalmente chegaram. - Dawn se pôs de pé, olhando para o céu que começava a clarear. - Esse pesadelo está perto de acabar, Jon. Muito perto.

XXXXX

Em contrapartida, Sawar decidiu prolongar o pesadelo dos sobreviventes mais um pouco.

A mulher, suas três seguidoras e o Ancião trajavam vestes negras com capuz. Atrás do grupo, a vila de Hadiah foi tirada de seu sono para se juntarem à eles, para testemunharem o que aconteceria. Homens, mulheres e crianças de vestes simples, com a mesma expressão de medo que os sobreviventes tinham.

Georgia foi trazida pelos cabelos por uma das mulheres de Sawar. Uma nativa que tinha uma grande queimadura exposta no braço e em parte do busto, mas que não parecia sentir suas dores.

Jogada entre Sun e Andreas, os três tiveram seus braços colocados para trás, onde foram amarrados e forçados a se ajoelharem.

—Não! - Andreas tentou reagir, prestes a entrar em luta corporal com a mulher.

—Andreas… Faz o que ela manda. - Sun sussurrou. - Não estamos em vantagem aqui.

Andreas analisou o local, procurando qualquer outra solução, porém precisou cedeu e se ajoelhou. Mas como consequência, seu pescoço foi envolto vários vezes pela corda de vime, preso fortemente pelas mãos da mulher.

Skylar fez menção de se ajoelhar também, porém, Sawar o fez parar dizendo:

—Você não, criança. - Ele o pegou bruscamente pelos braços finos. - Mesmo se comportando como um idiota, ainda é de um nós.

—Agora eu entendo por que me senti tão fascinado dentro daquele templo. - Skylar disse nostálgico, sem olhar diretamente para alguém. - Isso estava comigo o tempo todo.

Andreas fulminou o garoto com o olhar. Eu sabia que ele ia acabar nos matando.

—Sky… - A voz de Sun tremia, por mais que ela tentasse se manter calma. - Não se deixe ser influenciado por eles. Você não é o Hawley.

—Eu fui o Hawley e outros mais, Sun. Nossas almas foram pulando de corpo em corpo desde 1467, vivendo centenas de outras vidas até nos reencontramos aqui. - Falou de forma determinada, se aproximando mais da sacerdotisa e sorrindo para ela. - Eu lamento muito, mas o Deus Sem Face ainda vive em mim.

Sawar gostou do que ouviu.

—Agora, tragam a visionária. Vamos acabar logo com isso.

As duas mulheres que amarraram Georgia e Sun entraram na tenda, trazendo uma visionária semiconsciente para fora. Vânia estava com um pé em cada realidade, vivenciando os dois mundos, mas sem alguém que a conduzisse nesse processo, ela não saberia como voltar para o mundo certo em segurança.

A mente de Vânia estava prestes a entrar em colapso.

—Eu preciso acordar ela, sua desgraçada! - Falou Andreas, visivelmente consternado. - Se continuar nesse estado, a mente dela pode nunca mais ser a mesma.

—E que mal há nisso? - Sawar deu de ombros. - É por culpa dela que todos estão aqui.

Andreas procurou por qualquer sinal de ajuda nas quase trinta pessoas da vila, que assistiam a cena com a mesma expressão de derrota. Em todos os moradores, ele podia ver nitidamente a face do medo e não podia culpá-los. Via a submissão na qual eram mantidos por Sawar e suas seguidoras, lideradas pelo Ancião que mesmo em silêncio, emanava mais poder e autoridade do que qualquer um ali.

Dentre as dezenas de rostos atrás de Sawar, ele reconheceu o garoto que Sun encontrou no restaurante, o casal que tinha doado roupas para eles, o homem que tinha carregado o corpo do Nicholas para a cova e vários outros, que em determinado momento ajudaram os sobreviventes.

Mas que pareciam não querer ajudar naquele.

—Pare de perder tempo, irmã. - O Ancião falou pela primeira vez, com sua voz asmática. E se dirigindo para o pessoal da vila, disse: - Estão vendo o que acontece com quem desobedece nosso Deus? Eu avisei todos vocês das consequências de ajudarem esses infiéis.

—Podíamos ter resolvido esse assunto antes, mas a traição de vocês custou o templo do nosso Deus. - Sawar continuou com a voz retumbante.

—Você acha mesmo que queríamos isso? - Georgia tomou coragem para falar. - Nós só queríamos passar as férias num lugar paradisíaco, não se envolver nessa brincadeira de mal gosto que seu Deus nos envolveu. E vocês, são ainda piores por não perceberem o que estão fazendo. Será que são tão alienados assim?

Sawar lhe lançou um olhar de desprezo apenas.

—Michael… Michael… - Perto de Georgia, Vânia murmurou em lágrimas.

—ME DEIXEM ACORDAR ELA, PORRA! - Apesar de compartilhar a ideia de que a culpa era da Vânia, a índole médica dele não podia deixá-la naquela situação. Vânia podia ter trazido sofrimento e dor de cabeça, mas ainda era um vítima do destino como ele.

A mulher forte apertou o nó da corda em seu pescoço, fazendo-o se calar e engasgar com a própria saliva.

Metros a frente, Skylar se viu refletido no lâmina do punhal. Mas não via apenas a si mesmo, via também Hawley Lachlan e o brilho frio no olhar do aprendiz de sacerdote. A regressão fizera mais do que compreender sua vida passada, como também o ajudara a entender o poder da fé e o que ela podia fazer no coração de uma pessoa.

O seu coração, em particular.

—Lembra das palavras, criança? - Perguntou o Ancião, lhe entregando um punhal de lâmina negra.

—Ele é um de nós. Ele está entre nós. Ele vai nos levar para casa. - Repetiu, escutando a voz de Hawley em sua cabeça.

O Ancião lhe sorriu um sorriso desdentado, como o Alto Sacerdote fazia raramente. Skylar viu os olhares de todos pousarem sobre ele, deixando-o nervoso. Em sua mente, diversos pensamentos se atropelavam e diziam coisas diferentes.

Um zunido baixo se fez audível de repente, fazendo os presentes se perguntarem o que eram e de onde vinham, erguendo seus olhos para a penumbra do céu.

—São… São helicópteros. - Georgia comemorou com nervosismo. - São helicópteros! O resgate!

Sawar não teve tempo para assimilar a chegada do som, pois a parte de trás de seu ombro foi invadido pelo aço da lâmina negra, rasgando em um sulco profundo a sua pele cor de oliva.Mesmo sendo fisicamente mais fraco e mais leve do que a mulher, Skylar enterrou a lâmina com toda a força de seu corpo, fazendo uma Sawar confusa cair de joelhos e trincar os doentes amarelos com força.

—Eu sou autista, não idiota. - Disse o garoto britânico, com a voz carregada de satisfação. - Tentei participar das aulas de teatro da escola uma vez, mas o instrutor disse que eu tinha muita dificuldade para fingir emoções. Queria que ele estivesse aqui para me ver agora.

A sacerdotisa gritou novamente, mais pela raiva de ter sido enganada, do que pela dor.

As duas mulheres que prendiam Sun e Georgia não tiveram tempo de reagir. A mulher de meia-idade soltou o laço de Georgia, sentindo o medo relampejar em seu corpo. A jovem ainda amarrada pelos pulsos, correu para perto de Vânia que tremia e parecia se contorcer. Aquela que exibia as queimaduras, congelou sem saber o que fazer.

—Ela não fala por vocês. - Skylar disse em voz alta, ainda segurando o punhal e fazendo a nativa gemer. - Se acreditam mesmo no Deus Sem Face, sabem que ele não prega a violência ou assassinatos, apenas oferece um caminho seguro para a sua casa.

Por meio minuto, nada aconteceu. Apenas o canto de alguns grilos distantes e o crepitar das chamas.

Foi quando o homem que tinha enterrado Nicholas tornou-se o primeiro a se mexer, tomando a mulher queimada de Sun e jogando-a com força metros a frente, quebrando o pulso dela no processo. A segunda, que libertara Georgia segundos antes, ainda tentou acertá-lo com o próprio punhal, sendo desarmada pelo homem e levando um soco no nariz, fazendo-a sangrar e largar o punhal.

Outros moradores da vila caminharam na direção da mulher forte que mantinha Andreas na forca. Ao contrário das outras, ela não expressava nenhuma expressão de medo, pensando apenas em terminar o que começara. O rosto de Andreas atingiu um novo tom de vermelho, seus ferimentos no rosto voltaram a verter filetes de sangue e o oxigênio faltou ao seu peito.

—Se eu morrer, você morre comigo. - Disse ela, forçando mais a corda.

—Hoje não, Satan…

Andreas pegou o punhal caído e o enterrou no pé direito dela, que abafou o barulho dos helicópteros com seu rugido. Procurou pelo Ancião, mas ele desaparecera antes que o terapeuta ou qualquer um se desse conta.

Skylar puxou o punhal de volta e deixou com que Sawar engatinhasse de dor, tentando tapar o ferimento com as mãos sujas de terra.

Malu! - Gritou um homem, antes de jogar uma pedra próxima ao rosto da sacerdotisa. - Pelanggaran!

Aib... - Murmurou uma idosa desdentada quando Sawar passou por ela. - Mengerikan.

Penghinaan untuk seluruh balapan. - Um coro de xingamentos em indonésio cercou Sawar e suas seguidoras, que machucadas, receberam uma chuva de pedras e pedaços de madeira. Alguns arremessavam suas tochas também, fazendo as sacerdotisas mancarem e seguirem para longe dos sobreviventes, deixando pegadas de sangue por onde passavam.

Enquanto isso, Skylar usou o punhal ensaguentado para liberar Sun e Georgia, que pareciam desacreditadas com a situação.

—Eu juro que vou matar você por isso! - Disse Georgia, fingindo estar com raiva. - Mas não hoje.

Vânia ainda murmurava palavras desconexas quando Andreas chegou até ela. Encharcada de suor e trêmula, a empresária repetia o nome da princesa de 1467, Evie, temendo pela vida dela.

—Ei, ei! Se concentra na minha voz, Vânia. Eu preciso que respire fundo e  faça o caminho contrário, que volte pela mesma estrada que está agora.

—Volte para nós. - Sun ajeitou os desgrenhados fios loiros e se ajoelhou, repetindo o que Andreas dizia.

As pálpebras de Vânia se abriram num rompante, revelando íris castanhas dilatadas de pânico. Ela tentou falar algo, mas sua pressão arterial caiu no mesmo instante e Vânia desmaiou nos braços de Andreas e Sun.

Os primeiros raios de sol surgiram sem timidez e junto com ele, três aparelhos de metal surgiram no horizonte. Skylar precisou cobrir as orelhas, mas pela primeira vez, sentiu que estava no controle de sua condição e que não iria surtar naquele momento.

Uma breve parede de poeira foi erguida quando o primeiro helicóptero pousou metros adiante, revelando dois homens carregando mochilas de primeiros socorros e uma maca.

—Americanos? - Perguntou o homem que se encaminha de uniforme militar, ainda distante deles. - Falam minha língua?

—Sim! - Georgia acenou, exibindo os dentes brancos de imensa felicidade. - Falo qualquer coisa que você queira.

Sem mais perguntas, Vânia foi colocada inconsciente na maca e levada para o helicóptero, com um Andreas genuinamente preocupado e uma Georgia eufórica. Sun ajudou Skylar a se levantar, conduzindo-o para o aparelho ensurdecedor.

—Você foi um herói. - Sussurrou próximo ao ouvido dele, mesmo que o garoto não pudesse escutar.

—Mais alguém? - Perguntou o militar, e mediante as palavras negativas dos quatro sobreviventes, o helicóptero alçou voo para fora da montanha e de seus perigos, em direção à uma alvorada calorosa que parecia sorrir para eles.

XXXXX

Uma comitiva foi montada no heliporto do principal hospital da cidade, quilômetros de distância da área devastada e com mais recursos para atender os sobreviventes.

Jon, Dawn, Kevan e dezenas de outras pessoas aguardavam ao lado de médicos, enfermeiros e equipes de TV locais. Todos olhando para o alto, esperando que os helicópteros trouxessem boas notícias.

Após duas máquinas trazerem pessoas desconhecidas, que foram recebidas por familiares chorosos e enfermeiros preocupados, o helicóptero contendo o sobreviventes pousou.

—Andie! - Uma voz feminina de fez mais alta que o barulho das hélices ainda girando.

Andreas foi o primeiro sair, ainda com as marcas da corda no pescoço e banhado por suor. Primeiramente, Dawn se assustou ao ver os diversos pequenos cortes no rosto do marido, mas a felicidade que transbordava de seu corpo falou mais alto e aquele detalhe passou sem importância.

—Você está usando minha jaqueta. - Ela brincou, se aninhando dentro dos braços fortes dele, sentindo o roçar da barba comprida no topo de sua cabeça.

—Assim eu podia sentir você comigo. - Beijou-a. - Você não faz ideia da falta que me fez. A gente nunca mais vai se separar, Dawn. Nunca mais. Eu te prometo.

—E o Milan? - A lembrança do amigo veio de repente. - Ele não veio?

Ele olhou para a esposa e meneou a cabeça, indicando que não.

Perto deles, Sun precisou discutir com um Skylar relutante em abandonar o helicóptero, até que um homem alto e com o cabelo tão comprido quanto o do garoto, apareceu atrás dela.

—Não vai me abraçar, campeão? - Jon precisou gritar para que ele escutasse. Ainda cobrindo as orelhas, Skylar se alegrou quando o tio o pegou pelos braços, levando-o para longe do som.

—Eu pensei que nunca mais te veria de novo. - Skylar o abraçou com o máximo de força que podia, sentindo o cheiro de suor na camisa. Doeu um pouco quando a cabeça de Skylar se chocou contra seu peito suturado, porém, Jon estava mais preocupado em como contar que o garoto estava órfão.

Mas não o fez, preferindo aproveitar o momento sabendo que seu sobrinho estava bem.

Vânia foi passada de uma maca para outra e levada às pressas para dentro por maqueiros e um dos socorristas, explicando os procedimentos médicos que ela deveria receber. Georgia saiu com mais timidez, escutando palavras de incentivo, acompanhadas de sorrisos fracos e olhares pouco expressivos, mas mesmo estando feliz por Andreas e Skylar terem encontrado seus familiares, ela sabia que não tinha ninguém ali esperando por ela.

—Vou procurar o meu marido. - Disse Sun esperançosa, se afastando do grupo. - Quero estar com o Hwang para ligarmos para nossas filhas juntos.

Georgia pensou em pedir para ela esperar, mas a detetive rapidamente sumiu na multidão. Mesmo cercada de várias pessoas aparentemente felizes por ela, Gergia abraçou o próprio corpo e sentiu algo que há muito tempo, ela desconhecia.

A sensação de como era estar sozinha.

XXXXX

Pantai Mamba Resort - Noite anterior ao maremoto

 

Cercada por corpos quentes que dançavam ao ritmo da música, Georgia brilhava dentro de seu vestido, tão quente quanto eles. Perto dela, Chandra parecia estar mais alta e solta pelo efeito da bebida.

Está dando aquele sorriso de novo. - Chandra falou perto do ouvido de Georgia para que ela escutasse.

—Que sorriso?

—Aquele que sempre dá quando está nervosa com o prazo de algum produto. Ou de olho em algum gatinho. Voto na segunda opção.

—É tão óbvio assim? - Mesmo com as luzes piscando prestes a lhe desorientar, Georgia o viu novamente. O mesmo homem que antes, parecia ter dado em cima dela. - Ai meu Deus! Ele está vindo para cá. O que eu faço?

—Perguntar se ele tem um irmão solteiro. Agora, escute o que a música diz e se divirta um pouco. - Chandra piscou para ela e se afastou, ainda no embalo da Cindy Lauper.

—Posso te pagar outra bebida? - Uma voz grave e com um forte sotaque indonésio perguntou.

Georgia virou o rosto e se deparou com o homem de meia-idade, confirmando que ele era ainda mais charmoso de perto, com aqueles fios branco contratando com o restante negro do cabelo. Julgou ser um habitante da ilha por causa dos olhos escuros e da pele tom de oliva.

—Posso pagar meus próprios drinks. Mas se quiser me pagar um… Não vou negar.

Ele mostrou um sorriso tão branco quanto o dela e chamou pelo bartender. Disfarçademente, Georgia procurou por Chandra com o olhar e a encontrou no outro lado do salão. Com os dois polegares para cima e a encorajando a pedir o telefone dele.

—Jesus… - Desviou o olhar.

—Disse alguma coisa? - O rapaz perguntou quando lhe entregou a bebida ornamentada com uma fatia de abacaxi.

—Não. Quero dizer… Obrigada.

Ela tirou uma mecha da frente dos olhos e tomou o primeiro gole, sentindo borboletas no estômago.

—Me chamo Naveen. E você? - Ele se aproximou tanto do rosto dela, que Georgia pode sentir o perfume ameiderado do pescoço dele.

—Georgia. - Piscou, sendo sexy sem tentar ser.

Não era novidade ela ser abordada por outros rapazes e garotas nos bares da vida, mas dificilmente sentia mais do que uma atração física, aproveitando apenas os momentos onde conseguia chegar ao seu êxtase. E repetindo na semana seguinte, se possível.

Apesar de não ganhar excessivamente bem como revendedora, Georgia sabia como aproveitar seu dinheiro em prol do próprio prazer superficial. Mas ainda sim, por mais que preenchesse o seu tempo com festas e pessoas bonitas, a sensação de um grande vazio sempre se fazia presente, quando as luzes de neon noite se apagavam.

Os dois foram para o varanda do lugar, sendo banhados pela luz da lua e envoltos pela maresia. A conversa durou mais de uma hora, intercalada por risos e mais drinks. Naveen tinha con

—O que vai fazer amanhã? - Perguntou, esvaziando o último copo.

—Tem um grupo que vai até o templo de Hadiah pela manhã, mas depois tenho o dia inteiro livre. - Moveu os ombros, sentindo o calor daquela noite.

—Amanhã então. Okay? - Ele se levantou, alinhados os cabelos grisalhos bagunçados pelo vento.

—Okay.

Naveen se despediu dando-lhe um beijo respeitoso no rosto, Georgia o viu se afastar e assim que ele sumiu, ela voltou o olhar para o mar. Vendo o movimento das ondas e percebendo que daquela vez, não se sentia vazia.

XXXXX

Vânia acordou com o barulho de um bipe, seguido por outro bip em um ciclo contínuo. O barulho incomodou sua cabeça, que doía como se uma bomba nuclear tivesse explodido ali dentro.

Sentia o corpo gelado, embora o vento quente daquela manhã soprasse para dentro do quarto através das persianas abertas. Mesmo que estivesse coberta por um lençol grosso, ela abraçou o corpo com seus braços dormentes pelo efeito dos remédios, numa tentativa de se aquecer.

—Georgia? - Espantou-se ao ver a jovem perto da cama, encolhida numa cadeira de metal.

—Oi. - Disse quase sem voz, exibindo-lhe um sorriso fraco, mas verdadeiro. -Sente-se melhor?

Vânia pousou a mão no peito, percebendo os olhos vermelhos de tanto chorar da jovem. Odiava ver Georgia naquela situação e se odiava por estar tão impotente, diante de uma pessoa com quem teve uma grande ligação.

Nos momentos ruins em sua maioria, Georgia estivera ao seu lado e ajudou a superar a ideia de provavelmente ter matado um homem, mesmo que não soubesse o que tinha acontecido de verdade após o tiro. Georgia dissera que fora o seu instinto de sobrevivência falando mais alto e que se não fosse por seu ato de coragem, o pior poderia ter acontecido a todos os cinco.

—O que aconteceu? Deu alguma coisa errada na regressão, eu posso sentir que sim.

—Bom, basicamente aquela mulher que tentou te matar no primeiro dia voltou e tentou de novo, tentando matar a todos nós dessa vez. Tudo isso no meio da sua regressão.

—Eu não lembro de nada… - Até mesmo um suspiro fazia sua cabeça doer. - Alguém se machucou?

—Nada de grave aconteceu. - Preferiu poupá-la dos detalhes. Mas o Andreas disse que você teve um desgaste mental muito grande, por muito pouco, ele não conseguiu te acordar.

Vânia voltou o olhar castanho para cima, tentando lembrar dos últimos momentos da sua regressão. Ela se viu numa estrada cercada por pessoas, acompanhada por uma grande tristeza desoladora, mas após isso, um espaço em branco formava lacunas em sua memória. A única coisa certa, era que ela estava perdida, sem saber qual caminho a seguir.

—Eles querem que você fique de observação hoje. - Georgia voltou a falar. - Se amanhã estiver melhor, vão te colocar imediatamente num avião.

—Os meus filhos… Preciso falar com eles.

—Você ainda vai ter tempo de fazer isso. Está salva, lembra?

Vânia não tinha muita certeza disso. Tudo o que sabia era a probabilidade de existir um padrão, mas o esquema da morte ainda era uma dúvida que não a deixava dormir. Em sua visão do passado, sob a pele da cigana, a ordem das mortes tinha acontecido ao contrário da atual, mas o motivo ainda era um mistério.

Olhou para Georgia, que parecia mais abatida e sem o brilho no olhar que Vânia tanto admirava.

—Saber agora que estou tão perto da morte, me faz pensar na vida. Em tudo o que e não fiz. Das coisas que eu ainda poderia fazer. - Georgia umedeceu os lábios, fungando e se segurando para que mais lágrimas não caíssem. - Eu não quero morrer. Não agora.

—A gente vai dar um jeito nisso. - Vânia esticou o braço dormente para ela, para pegar em sua mão.

—Você está fria. - Georgia se assustou levemente, como se estivesse tocando num bloco de gelo. - É melhor eu pegar mais cobertores. Eu volto logo.

Georgia se levantou, deixando Vânia com uma sensação presa na garganta.

O vento quente deu lugar à uma rajada gélida, envolvendo seu corpo e congelando-a por dentro. Muitas pessoas disseram que Vânia tinha uma pedra de gelo no lugar do coração e naquele momento, parecia ser verdade. Sentiu o coração doer e a mesma sensação das vezes anteriores, de quando os outros morreram e ela nada pode fazer.

Ela é a próxima! Georgia é a próxima da lista.

Tentou levantar da cama e correr atrás de Georgia, temendo pela vida dela. Porém, seu corpo fraco desabou no chão não muito limpo daquele quarto, como se fosse uma estátua de gelo, fazendo-a gritar como jamais havia gritado na vida.

XXXXX

A barreira linguística a impediu de conseguir o que queria de imediato, mas após encontrar rostos confuso que não entendiam o seu inglês. Ela tardiamente encontrou uma mulher que trabalhava como enfermeira e mesmo com um pouco de dificuldade, compreendeu o que Georgia queria.

A enfermeira gentilmente lhe indicou um depósito no fim do corredor onde estavam, deixando-a pegar quantos fossem necessários. Ela agradeceu e seguiu pelo corredor, passando por paredes onde havia tinta descascando e luzes acima de sua cabeça, que piscavam irritantemente.

—Que lugar precário...

Encontrou o pequeno depósito apertado, onde prateleiras de madeira cobriam as três paredes do piso ao teto. Georgia passou os olhos entre produtos químicos para limpeza, com os rótulos desgastados escritos no idioma nativo da ilha e símbolos que ela não conseguia identificar.

Próximo à uma pequena janela aberta, usada para ventilação, Georgia encontrou diversos lençóis na prateleira mais alta, em cima de dois pequenos galões de metal e fora do alcance de suas mãos.

—Como vou pegar isso?

Georgia voltou para o corredor, procurando alguém que fosse alto o bastante para ajudá-la, mas justamente naquele momento, nenhum paciente ou funcionário do hospital passava por ali.

Voltou para o depósito, mantendo a porta aberta atrás dela, pensando apenas em como Vânia precisava de sua ajuda. Ela esticou o corpo o máximo que podia, ficando na ponta dos pés descalços, mas mesmo assim, tudo o que conseguiu foi tocar no fundo do galão frio abaixo dos lençóis.

Voltou para o corredor novamente, dessa vez com uma expressão apreensiva e perdida no rosto.

—Alguém pode me ajudar?

Colocou o pé na primeira prateleira, certificando-se que a placa de madeira aguentaria o seu peso. Após uma breve ranger, nada aconteceu e Georgia se sentiu mais segura para continuar e esticar o braço novamente, sentindo a superfície do galão.

Foi quando a primeira prateleira quebrou sobre seus pés, fazendo Georgia se assustar e puxar os lençóis e o que estava embaixo deles. O galão e a tampa mal colocada tombaram do alto, despejando seu conteúdo líquido em cima de Georgia e cegando-a numa cortina de vapor frio que ascendeu após a queda.

O choque inesperado fez com que ela se batesse na porta, trancando-a por dentro. O cheiro do produto queimou seu nariz e Georgia logo sentiu um frio imediato envolver seu corpo, além da temperatura do ambiente despencar vários graus abaixo de zero.

XXXXX

Sun achou Hwang, mas não da forma que queria.

Após perguntar para vários funcionários, ela achou um que de forma bem taciturna, pediu que ela olhasse para uma pasta cheia de fotografias. Estampados de forma gritante, a loira precisou olhar para o rosto morto de cada homem que batia com as descrições do marido.

A cada página ultrapassava, Sun alimentava a esperança de que não o encontraria ali, de que Hwang estaria em outro hospital qualquer da cidade, ainda reclamando da dor nas costas.Até que finalmente, o rosto que tanto amara apareceu.

Ou pelo menos, metade dele.

Anotações em inglês diziam que a causa da morte fora por uma forte pancada no rosto, que destruiu sua face direita e afundou-a para dentro do crânio instantaneamente.

Sun estava acostumada ver pessoas mortas, mas olhar para Hwang a fez querer vomitar, mesmo não tendo nada em seu estômago. Ela precisou ficar repetindo para si mesma que precisava ser forte. Ser forte por Hwang.

—Um telefone, por favor. - Ela prendeu as lágrimas dentro de si. - Preciso falar com as minhas filhas.

Sentido pela perda da mulher, o socorrista americano lhe deu o próprio celular. Um jovem bastante forte e de olhos grandes e escuros, ela percebeu, que se pareceria com Nicholas se o fisioterapeuta fosse vinte anos mais novo.

Sun agradeceu sem jeito, tentando se lembrar do número e discar com os dedos trêmulos.

Os segundos até a chamada ser completada foram como uma eternidade, deixando-a a mulher ainda mais nervosa. Até que uma voz doce atendeu, fazendo o outrora nervosismo dar lugar à felicidade.

—Kim Jo! Filha!

Mamãe? - A voz dela foi o suficiente para Sun sorrir. - Mamãe!

—Sou eu, meu amor. - Ao fundo, ela podia ouvir a voz doce da mais nova, Eun Bi, pedindo para falar também. - Como vocês estão?

Com saudades, mamãe. A vovó tá aqui. Ela fez biscoitos de gengibre.

—Que bom, meu amor... Eu estava morrendo de saudades também.

Mas e o papai?

O coração de Sun foi destroçado de vez. Como daria a notícia para uma criança de quatro anos? Imaginou todas as vezes que lidou com crianças que perderam os pais no trabalho, forçando palavras para suaves, que de nada adiantavam quando aquela dor não podia ser sentida por ela.

Seja forte, repetiu em sua mente. Seja forte por elas.

—Lembra quando o vovô precisou ir morar no céu? O papai… O papai foi encontrar com ele, meu amor… Ele está no céu agora.

Dessa vez não pode controlar as lágrimas, que verteram de uma vez só de sua face de porcelana. A determinação sumiu de seu corpo, entregando-se a dor.

—Sun? - Era a voz de sua mãe. A mesma que sentiu-se decepcionada pelas escolhas da filha, preferindo manter distância e participando o mínimo possível de sua vida.

O telefone escorregou de suas mãos, batendo na escrivaninha e encerrando a ligação. De repente, sua visão ficou turva e Sun se viu sem forças para continuar de pé, apoiando seu corpo fraco na mesa.

—Moça, está tudo bem? - O rapaz perguntou, tentando segurar o corpo dela, com o estetoscópio balançando no pescoço.

—Tudo bem… - Respondeu zonza e com o rosto pálido, sem forças nem para manter os olhos abertos. Não estava nada bem.

—Quando foi que se alimentou pela última vez? - Ele a ergueu, colocando-a delicadamente numa cadeira.

Vendo o mundo girar ao seu redor, Sun tentou vasculhar em sua memória, mas por mais que ela se esforçasse não conseguia lembrar nem dos copos de água pegos no poço da vila.

Sun definitivamente não se lembrava.

XXXXX

Andreas lançava pequenos gemidos de insatisfação, com o algodão embebido de álcool que Dawn usava para limpar melhor os cortes no rosto. Mas por estar fora da montanha, por tocar o rosto da mulher que amava, ele mal se importava com o desconforto.

A pressão de outrora, de toda a carga negativa que tinha acumulado nos dias tensos e incertos na vila de Hadiah, foram amenizados. Tudo o que Andreas mais queria - agora que estava salvo da morte - era poder voltar para casa e retomar sua vida.

—Eu falei com meus superiores sobre a nossa partida. - Disse Dawn para ele e para os Lancaster, na área externa do hospital e com vista para o estacionamento de corpos. - As vítimas mais graves serão colocadas num avião equipado e viajarão imediatamente, mas quanto a nós, ainda deve demorar um pouco.

—Já passou quase uma semana. - Skylar resmungou.

—Nossos nomes foram colocados numa lista de espera e tudo o que posso responder agora, é que ainda vai demorar um ou dois dias.

—Meus pais irão também? - Skylar perguntou de forma solene. - Não quero deixá-los aqui.

Jon precisou contar que o corpo do casal, já preparado para conter o sobrinho se isso o afetasse. Em resposta, Skylar mostrou as cicatrizes recentes no braço, dizendo que tinha calculado as probabilidades de alguém tão perto da praia ter sobrevivido e que já estava preparado, para àquela notícia.

Logo após, Dawn perguntou sobre a morte de Milan e Andreas precisou contar o que suspeitava. Contou da possibilidade de existir uma lista e da determinação das mulheres da vila, em garantir que ela fosse finalizada.

Contou que ele, Skylar e Vânia tinham passado por situações de quase morte, que segundo o que Skylar tinha aprendido no templo, lhe garantiram viver mais tempo.

—Isso parece ser roteiro de filme blockbuster, difícil demais para ser verdade? Mas depois do que o Jon me contou, tudo parece real demais para ser ignorado.  - Dawn comentou, jogando fora o algodão sujo. - Vocês acham mesmo que estão fora dessa tal lista?

—Não tem mais nenhuma explicação. Eu pelo menos não tenho. - Olhou para Skylar, apesar de não conseguir deixar de lado a conexão dele com os sacerdotes.

—Mas tem algo que ainda não se encaixa. - Skylar falou, franzindo a testa. - Na visão da cigana, ela morria por último, mas nessa, a Vânia foi a primeira a quase morrer.

—Onde quer chegar?

—E se a morte de Vânia não estiver relacionada com a lista? A Sawar devia saber que os visionários são sempre os últimos, mas mesmo assim, ela tentou apressar a morte da Vânia fora da ordem. O que ela fez não faz nenhum sentido!

Buscou na memória se o Ancião ou se o Alto Sacerdote tinham dito algo sobre a morte prematura da visionária, atraindo os olhares dos três ali. Tudo o que sabia, era que o trabalho dos sacerdotes não era de se envolverem diretamente na lista, como a Sawar fez.

—Skylar. - Andreas chamou sua atenção. - Procure pela Georgia e a pela Sun, nós não tivemos tempo para conversar depois da regressão, mas precisamos fazer isso agora.

Skylar fez o que lhe foi ordenado, indo para a escadaria de emergência a contragosto. O restante do hospital ainda estava ocupado por muitas pessoas, deixando-o desconfortável por estar num ambiente novo e cheio de desconhecidos, numa mistura de vozes que ele não podia aguentar.

Empurrou a porta de ferro e começou a subir as escadas para o andar superior, percebendo um homem escondido nas sombras do local. Ele se aproximou para ver melhor, porém, as luzes de LED que iluminavam o local começaram a piscar ao mesmo tempo, num ritmo frenético e enlouquecedor para pessoas como ele.

Skylar fechou os olhos tarde demais, sentindo uma supernova explodir dentro de sua cabeça. Confuso, ele tropeçou nos próprios pés e rolou um lance inteiro da escadaria, batendo seu corpo com força nos degraus de ferro do primeiro andar.

—Pobre criança rebelde… - O homem nas sombras aproximou-se do garoto com passos lentos, saboreando o momento em sua mente. - Deveria ter mais cuidado por onde anda.

Usando o mesmo manto negro de mais cedo, o Ancião assistiu o garoto contorcer-se no chão, tanto pela dor da queda, quanto pela terrível sensação provocada pelas luzes. Não mostrou expressão em seu rosto enrugado, mas a lâmina negra brilhava alegre em sua mão.

XXXXX

https://youtu.be/vGlqcJ9OX3M

O choque térmico foi o bastante para atordoá-la e fazê-la sentir o ar abandonar seus pulmões, como se estivesse mil pequenas lâminas penetrando seus músculos até atingir os ossos. O nitrogênio líquido tomou conta do ambiente e de seu corpo magro, fazendo a garota se encolher no chão congelante e sentir sua pele queimar aos poucos.

Primeiramente, seu corpo tremeu em espasmos cada vez maiores, diminuindo conforme sua temperatura corporal caía também. Percebeu seus dedos numa coloração azulada e seu coração que antes célere, agora batia cada vez mais com lentidão, enquanto os minutos se passavam dentro daquele mundo frio.

I came home, in the middle of the night
My father says "What you gonna do with your life?"

Seu corpo ficava cada vez mais rígido por causa da hipotermia, tirando-lhe toda a sensibilidade de seus músculos. Georgia não conseguia mais sentir os pés queimados pelo frio, muito menos descolá-los do chão ou mover os braços sobre seu peito. Seus lábios estavam rachados e o peso dos cílios congelados, fechava suas pálpebras contra a sua vontade.

Well daddy dear, you know you're still number one
Oh girls, they wanna have fun
Oh girls, they...

Cristais de gelo seco cobriam seu cabelo e sua roupa estava dura como pedra, assim como os lençóis caídos ao seus pés, pelo efeito rápido do congelamento. Georgia manteve as mãos azuis cobrindo o nariz e a boca, para não inalar os gases do produto químico, mas ainda sim, sentia estar aérea e cada vez mais, fora daquela realidade.

Sem querer, lembrou do dia em que chegara ao resort, pensando na aventura que guardaria para vida toda.

The phone rings, in the middle of the night
My mother says "When you gonna live your life right?"

Podia ouvir a voz de outras pessoas do outro lado, mas o frio estava deixando-a sonolenta o bastante para que ela conseguisse falar algo. Sua mente estava divagando nas lembranças, quando ela era quente como o sol, quando sua única preocupação, era aproveitar o que a vida tinha para lhe oferecer.

Well momma dear, we're not the fortunate ones
Oh girls, they wanna have fun
Oh girls, they...

Lembrou da noite que conheceu Naveen, visualizando a imagem do homem que fizera surgir borboletas em seu estômago. Se perguntou o que teria acontecido com ele, se teria mesmo esperado que ela voltasse da excursão.

That's all they really want...
Those girls, they wanna have fun

Com os olhos fechados, lembrou de seu melhor amigo, Sebastian e da forma como ele não admitia um relacionamento público com Chandra, a mulher que trouxera um pouco de luz em sua memória.

Some boys take a beautiful girl,
Oh, and they hide her away from the rest of the world.

E principalmente, de quando conheceu Vânia. Não da mulher de ferro para qual Chandra trabalhava, mas da mulher com quem dividiu seus sentimentos e que tornou seus dias na montanha mais suportáveis, sabendo que havia encontrado uma boa amiga.

But not me, I wanna be the one in the sun.
Girls, they wanna have fun

Oh girls, they...

E dentro daquelas lembranças, Georgia preferiu permanecer num mundo quente e divertido, enquanto seu coração parava de bater no outro mundo.

That's all they really want...
Those girls, they wanna have fun

XXXXX

Não podia abrir os olhos, pois a hipersensibilidade os manteve fechados, mas podia sentir o hálito azedo do sacerdote perto de seu rosto e seus dedos enrugados tocando-lhes os cabelos. Skylar tinha aversão ao toque de pessoas desconhecidas. E até mesmo, das pessoas conhecidas também.

—Tem enxaguante bucal lá em cima, se quiser. - As palavras saíram sem que ele pensasse, por causa da falta de noção do perigo.

—Eu deveria matá-lo agora mesmo. - O homem o levantou, encostando o punhal de lâmina negra no pescoço dele. O mesmo punhal usado contra Sawar, ainda sujo com o sangue dela.

—Não pode me matar ainda, lembra? - Skylar riu de forma quase histérica. - Não é a minha hora.

—Acha que vim brincar, traidor? - O Ancião tinha uma voz baixa e pacífica, mas que carregava um tom de ameaça mais do que se estivesse gritando. - Você queimou o templo do nosso Deus, incentivou a vila contra nós e feriu minha irmã, uma sacerdotisa juramentada. Como o Deus Sem Face ainda permite que continue vivo?

—Eu reclamei quando vocês tentaram me matar lá no templo? Não. Então não reclame agora, meu senhor. - Permaneceu apoiado contra uma parede, ainda de olhos fechados. - Eu lembro de tudo o que me ensinou naquele templo, e o que a Sawar fez conosco é contra tudo o que diz seguir. Ela deveria oferecer um caminho para morte da melhor forma possível, não tentando queimar pessoas numa fogueira ou jogando elas pela janela.

O Ancião não podia discutir. Por anos ele agiu nas sombras, cumprindo com os desígnios do Deus Sem Face, sem precisar agir de forma extrema, como Sawar e sua compulsão por roubar, fazia.

—Minha irmã me decepciona como sacerdotisa e com seus métodos impulsivos, mas você… Foi uma decepção ainda maior.

O homem ainda tinha suas memórias como o Alto Sacerdote. Ainda podia se lembrar dos sete anos que passou ensinando Hawley Lachlan e do orgulho que sentiu por sua criança, ao saber que cumprira o seu dever como sacerdote até o fim. Pensou que pudesse fazer o mesmo com Skylar e acreditou, mesmo que por pouco tempo, que havia conseguido.

—Ela ia matar todos a sangue-frio lá em cima e sabe bem disso. - Esticou uma mão nervosa para frente, encontrando o capuz do homem. - O que aconteceu comigo e com o Dr. Pierson pode ter iniciado isso, mas foi a Sawar quem estragou qualquer caminho que o Deus Sem Face poderia ter com a gente, quando tentou matar a Vânia naquela fogueira.

Skylar não se atreveu a abrir os olhos para ver a expressão do homem, mas imaginou que o sacerdote talvez não soubesse daquele detalhe.

—A estrada que nos trouxe até aqui é repleta de sofrimento, eu sei. Mas de uma forma ou de outra, não importa os desvios que tentem fazer, criança rebelde, o caminho a seguir em frente será sempre o mesmo.

Tinha um amargor em sua voz asmática, como se não quisesse admitir que o garoto estava certo.

Skylar dificilmente entendia quando alguém não falava explicitamente e por isso, esperou que o Ancião explicasse o que queria dizer, mas isso não aconteceu. O Ancião se moveu de forma rápida, contrariando tudo o que geriatras dizem sobre agilidade na terceira idade, pressionando a cabeça do garoto contra o metal frio do corrimão. Skylar só pode gritar quando seu nariz aquilino explodiu como um balão de sangue quente.

—Você tem razão sobre uma coisa. Não posso tirar-lhe a vida, mas posso fazer com que sofra. - O Ancião agarrou o cabelo de Skylar e num gesto grosseiro com a lâmina, o cortou, antes de sumir no ar.

 


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Notas finais do capítulo

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