Superstition 2 escrita por PW, Jamie PineTree, MV


Capítulo 12
Capítulo 10: Supplications


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!
Este é o último capítulo que se passa totalmente na trama do passado. A partir do próximo, teremos a trama do presente, e antes da season finale, um capítulo com os desfechos de ambos os núcleos.

Escrito por PW



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A sala de jantar do castelo era um enorme cômodo recheado de pratarias e aço que brilhavam à luz tímida das velas. Incontáveis castiçais foram distribuídos simetricamente pela extensa mesa de madeira, que abrigava duas dúzias de cadeiras de assentos revestidos em couro.

Um brasão imponente na parede encarou Dalia adentrar no local um pouco retraída, ainda respirando com certa dificuldade.

Sendo trazidos por serviçais, os ciganos não conseguiram conter o susto inicial perante a excentricidade dos Lachlan de Monterruna ao chegarem para comer. Antes de dormirem, Hawley havia convidado-os para sentarem-se à mesa e assim, desfrutarem de uma ceia preparada com capricho para matarem a fome. A viagem havia sido cansativa. Para ele, uma exigência simples, mas que não agradou a todos, principalmente ao duque.

Momentos antes, Hawley fora recebido pela mãe e reunira-se com ela e os irmãos em um banquete familiar, a sós, por exclusivo pedido da matriarca. Rowena ficara extremamente preocupada com o filho após Tion contar-lhe o que havia acontecido na terras de Hightower. A mulher dentro do melancólico vestido preto aproveitou para prestar suas condolências à princesa e convencê-la a se juntar aos Lachlan no banquete. Tudo para mascarar o luto pela perda recente de seu próprio cônjuge, o Duque Higor.

Embora agradecesse pela sua solidariedade e gentileza, Evie se desfez cordialmente do convite, causando certa estranheza por parte da senhora de Monterruna.

A contragosto, a princesa optou por esperar no aposento preparado com pompa pelos funcionários, enquanto Dean lhe fazia companhia, como o fiel escudeiro que provou ser. Ele não tinha ciência do tamanho de seu gesto, em não deixá-la sozinha. Evie permanecia incerta sobre o que faria, caso sua mente lhe transferisse de volta à tragédia e não houvesse alguém para ampará-la, como o alfaiate real fizera todo esse tempo.

Os dois também foram conduzidos até a sala de jantar pelos serviçais, juntos aos ciganos e ao clérigo, que fazia uma oração copiosa no momento em que foi avisado da ceia. Hawley pretendia unir todos para lhes contar o que sabia sobre o destino do grupo dali em diante.

O jovem rapaz esperou que todos estivessem acomodados e bem alimentados para fazer seu pronunciamento. Os ciganos deram um pouco mais de trabalho, eles pareciam famintos e dispostos a ir até o último pedaço de carne. Hawley foi paciente, e logo que acabaram, bateu suavemente um dos talheres de prata contra a lateral do cálice de vinho que segurava, chamando a atenção dos convidados.

— Espero que tenham saciado a fome. — Ele falou de forma cortês, baixando o cálice. — Mas agora preciso dividir com vocês uma angústia que carrego desde o incidente em Hightower.

Hawley tinha olhares tortos e confusos apontados para si. Uma sentença equivocada poderia estragar tudo. Por vezes, o discurso formado na sua cabeça foi embaralhado e o jovem respirou fundo.

— Estamos aqui, agora, graças à cigana e sua clarividência. — Ao dizer isso, todos os olhares se voltaram contra Dalia, e pela primeira vez, os de seus irmãos também se cruzaram com os demais. — Porém, o que não sabem, é que ela não é a única responsável pela nossa salvação repentina.

— Temos outra bruxa entre nós? — O clérigo perguntou espantado, mas foi interceptado pelo olhar ofendido de Evie. — Perdoe-me alteza.

Dalia sentiu seus ombros pesarem. A princesa recobrou a postura e prosseguiu:

— Poderia ser mais claro?

— Era nosso propósito sermos vítimas do ataque. As linhas do nosso destino foram traçadas unicamente para nos levar até a fortaleza alta e alcançarmos a morte esta noite. — As palavras de Hawley saíram tão frias quanto a brisa rasteira que envolveu o cômodo.

A angústia que o rapaz citara gelou o peito de Dean, de modo que o homem atritou os próprios braços, mesmo que suas vestes fossem grossas e aconchegantes. Essa era uma das vantagens de se trabalhar diretamente com a realeza, eles forneciam tecidos macios, de qualidade e outros benefícios que só quem se mantinha dentro daquelas muralhas, recebia. Dean já estava se cansando da vida que levava e mesmo que quisesse ir embora da fortaleza, nunca pensou que seria sob aquelas circunstâncias.

— É aí que a cigana entra…

— Dalia. — A mulher se impôs pela milésima vez naquela noite e Hawley assentiu.

— Pois bem, Dalia. — O jovem anfitrião se ergueu da cadeira e começou a andar atrás dos assentos de cada um dos convidados, as mãos justapostas atrás do corpo. Parou atrás da moça. — Você interrompeu o curso natural do ciclo, você nos viu morrer e impediu que isso se concretizasse.

— Estás fazendo soar como se fosse algo ruim. — Evie sacou as palavras depressa.

— Nossa situação não é boa, Vossa Alteza. — O aprendiz de sacerdote retrucou, tentando ser mais claro, os olhos azuis refletindo as chamas das velas. — Nossa sobrevivência não era esperada, logo, não somos mais bem-vindos neste mundo. Estamos em dívida com a morte e precisamos pagá-la.

Calmamente Hawley se propôs a trazer uma bandeja, e sobre ela, oito taças. Tanto para ele, quanto para os outros sete ali presentes. Ele depositou cada taça na frente de cada hóspede e voltou ao seu lugar inicial de maneira ritualística. A substância dentro dos recipientes era escura e desconhecida, mas Dalia pôde sentir um gosto amargo crescer na boca antes mesmo de encarar a sua bebida.

Seus irmãos prontamente sentiram-se ameaçados e do outro lado da mesa, Michael apertou o crucifixo entre os dedos.

— Devemos beber todo o líquido, pois o Deus Sem Face está aguardando nossa chegada. Ele vai nos levar para casa. — Hawley murmurou, erguendo sua taça no ar.

Aquela foi a gota d’água que faltava para Michael transbordar. O clérigo não suportou ouvir tal alegação e se levantou da cadeira, tomado por furor. O crucifixo balançando envolto ao punho tornou evidente sua indignação.

De rosto vermelho, o homem de batina cuspiu:

— ISSO É UMA BLASFÊMIA! Não existe nenhum Deus Sem Face, Cristo é nosso senhor e é ele quem decide quando chega a hora de partimos, e não esse seu deus pequeno e perverso!

Michael marchou para fora da sala de jantar sem olhar para trás, decidido a ir embora. Ele não ficaria mais nenhum minuto naquela propriedade. A julgar pelo tempo que esperou, o mestre dos cavalos já deveria ter preparado sua montaria e ele anteciparia sua chegada ao mosteiro para antes do amanhecer. Ele buscava apenas um motivo que fizesse sentido no seu coração para fugir daquele lugar sombrio, e havia encontrado-o.

X-X-X-X-X

As estrelas se esconderam repentinamente no céu, prenúncios de uma noite chuvosa. Michael apertava o crucifixo contra o peito e marchava na direção dos estábulos. Assim como seus muros, a entrada do castelo também ficava distante a cada passo que o clérigo dava. Deixar aquela sensação ruim para trás era sua prioridade.

O semblante atormentado que carregava era o mínimo que poderia expressar diante do impacto que sofrera ao encarar um Hawley maldoso atrás daquela face angelical. Pela primeira vez, Michael conseguiu enxergar a sombra que habitava no olhar impenetrável do filho da casa Lachlan. Era como a sombra que cobria aquelas terras, que se mostravam amaldiçoadas, tendo algo em comum com os Hightower.

Completamente imerso nos pensamentos desconfortáveis, o clérigo tropeçou em um batente, caindo de joelhos na frente de uma porta. A porta abriu com a força do vento, revelando um corredor estreito, e nele, um tapete estirado até um altar. Várias velas acesas lutavam contra a brisa para proteger a soberana imagem de Jesus Cristo pregado à cruz feita do mais puro mármore de Monterruna.

O clérigo rapidamente levantou, deixando os joelhos esfolados embaixo da bata suja de musgos. Limpou-a e adentrou no recinto com seu corpo entorpecido pelo ar petrificado vindo de dentro da capela. Parecia um lugar intocado pelos malefícios do mundo e lhe trouxe um cheiro de casa.

A porta atrás de si voltou a fechar-se e só então, ele notou que estava sem seu insubstituível crucifixo. Quando pensou em voltar para procurá-lo, ouviu a chuva cair do lado de fora. Pesada e ameaçadora, ele preferiu ficar recluso no recanto divino a ter que se arriscar com a febre de verão, que segundo corriam os boatos, também vinha com as tempestades de verão.

Michael aproximou-se do altar com cautela e juntou as palmas aquecidas de suas mãos na frente do rosto, contemplando a santidade. Lá no fundo do seu ser, agradeceu aos cristãos da família por terem edificado a morada de Deus para purificar seus pecados. Ali, o clérigo sentiu-se seguro para respirar fundo até que estivesse montado em seu cavalo para partir.

Distraído, ele não percebeu a chuva entrar e escorrer pela torre do sino, pendurado no alto da capela.

X-X-X-X-X

Dalia e seus irmãos andavam às pressas pelos corredores do castelo, engolidos pela parca escuridão e dispostos a ir o mais longe que pudessem da sala de jantar. A cigana ainda poderia sentir vestígios da falta de ar nos pulmões, do rosto suado, mas nem a sensação foi capaz de desestabilizá-la.

— O que tinha naquelas taças? — Johann indagou, confuso.

— Não queria ficar para descobrir. — Dalia foi firme em sua resposta, tentando não desacelerar seus passos — Mas não parecia ser bom.

— Dívida com a morte, linha do destino… — Davill se pegou pensando alto. — O que será que ele quis dizer com isso?

— A dívida tem a ver com termos sobrevivido ao ataque das dançarinas. Isso é claro para mim. — A cigana concluiu o pensamento.

— Isso não é nada mais que uma segunda chance. Graças às nossas habilidades, estamos tendo outra oportunidade e deveríamos agarrá-la pelos nossos familiares. — Stefford relutou, mesmo que aquele pensamento arrogante fosse contra o princípio ancestral que seguiam.

Por mais que seu irmão estivesse irredutível, Dalia não deixaria que eles pagassem pela sua suposta responsabilidade. Ela havia previsto o massacre, evitou que aquelas pessoas morressem e alterou o fim de cada uma delas. Portanto, a cada minuto, a cada batida do coração, ela sentia que o tempo estava diminuindo, como se o cair rápido da areia de uma ampulheta determinasse seu novo e curto período de vida.

— Aqui não é mais seguro para nenhum de nós. — A cigana afirmou. — Tenho um plano, mas para isso, temos que encontrar os outros e avisá-los do perigo que correm.

— Os outros? Quer dizer, o padre, a princesa e o alfaiate? — Stefford soltou uma risada nervosa. — Eles não estão ameaçados, minha irmã. Todos possuem prestígio por serem quem são, enquanto nós vivemos à margem, humilhados e perseguidos. Dalia, sabe o que somos! Se há pessoas aqui que estão correndo risco, somos nós!

— Stefford, não fale assim com ela! — Repreendeu Johann. O irmão mais alto e mais velho se colocou na frente de Dalia.

Entretanto, contrariando suas expectativas, Dalia caminhou até Stefford, sua face mergulhada em complacência. Ela o abraçou com ternura e deixou que ele despejasse lágrimas duras sobre seus ombros desarmados. A mulher de longos cabelos castanhos entendia que eles deveriam permanecer juntos, por mais que a situação parecesse demasiada ruim. Era uma das lições primordiais da vida nômade.

— Confie em mim, meu irmão. Coloquei a todos nessa situação e não quero me arrepender por não ter feito nada a respeito. — Dalia murmurou, enxugando uma lágrima que casualmente cairia. — Me ajudem a encontrar aquelas pessoas, é tudo o que peço.

As palavras de Dalia tocaram seus ouvidos como a música doce e agradável vinda de uma harpa, de modo que o trio prontamente assentiu.

— Estamos com você. — Eles disseram.

X-X-X-X-X

Dean certificou-se de que o corredor estava vazio e fechou a porta, trancando-a em seguida. Ele jogou as mãos para baixo, tateando as coxas, incerto do que poderia dizer ou fazer. Impaciente, olhou para a princesa, sentada na cama e paralisada diante de um pequeno espelho de mão. Passava os dedos delicados entre as madeixas ruivas, tentando não transparecer qualquer indício de insegurança.

Ela era a princesa de Lothair, e por pouco não fora rainha. Agora, mais do que nunca, precisava manter-se fortificada.

— Esta é a sua vontade, Alteza? — Indagou, nervoso.

— Sim, agora pode acalmar-se e baixar um pouco a guarda, Dean. — Evie sugeriu, vendo de perto a aflição do alfaiate. O homem respirou fundo pela primeira vez em minutos. — Obrigada. Assim ninguém vai entrar ou ouvir nossa conversa.

Evie levantou, largando o espelho em cima da cama e andando lá e cá pelo quarto, arrastando a barra de seu volumoso vestido pela tapeçaria do aposento. O vestido que o alfaiate havia confeccionado para ela, para aquela noite da inesquecível da coroação. Por mais que a celebração tivesse sido destruída e aquela peça de roupa não valesse o mesmo de antes, a dedicação e a criatividade de Dean estavam presentes naquele tecido. E Evie reconhecia seu talento e serviência, de modo que nunca deixara o homem de meia-idade ser substituído. Mesmo quando seu pai parecia ter uma decisão irrevogável, enquanto ela era apenas uma criança que vivia embaixo de suas asas.

— Vou falar com a senhora Rowena em breve. Quero ir embora, mas ainda não sei para onde. Não quero ficar aqui, muito menos voltar à Hightower. — Evie deixou o nó da garganta desatar, como se tirasse um peso de suas costas.

As lágrimas presas não desceram e Dean percebeu. A sua família… Ela não tem ninguém agora. Comovido, disparou:

— Vossa Alteza pode ficar na minha antiga casa, em Winters, se preferir. É pequena e humilde, mas pelo menos, não vai lhe trazer os fantasmas da tragédia.

Poderia ser uma boa ideia, aquela província não era tão distante e ela não chamaria muita atenção, já que as duas cidades não mantinham relações de negócios recorrentes. A princesa parou e encarou a face cansada do alfaiate. As marcas de expressão se destacavam na alvura da pele, havendo muita dor escondida ali.

— Faria isso por mim?

Desde que as habilidades de Dean chegaram aos ouvidos da realeza de Lothair, Evie quis conhecê-lo. Ele vinha de outras terras, um estrangeiro gentil e prendado, na casa dos seus trinta anos. E a pequena herdeira ficara encantada com a sua forma de cuidar dos tecidos. Dean era delicado, atencioso e metódico. Quando mais nova, a princesa gostava de invadir seu ateliê para vê-lo criar. Eram belíssimos vestidos para ela e sua mãe, adornos de pele para seu pai. Ela ficava deslumbrada por horas, perdendo atividades importantes como suas aulas de música, por exemplo.

Além de bom costureiro, Dean veio de um lugar onde princípios nobres como lealdade e honestidade, eram essenciais. Ele costumava aplicá-los em todos os momentos de sua vida, e aquele momento pelo qual passavam tornou-se o momento decisivo para mostrar a que veio. Proteger sua princesa e honrar seus valores.

O homem de barba decorada de fios grisalhos apenas assentiu e Evie meneou a cabeça positivamente, agradecendo. Desta vez, a ruiva deitou na cama solenemente e encarou o dossel de madeira escura que a cobria, ao mesmo tempo em que as cortinas vermelhas balançavam ao seu lado, como uma cascata de sangue.

Comentou:

— Ainda não sei como abordar a senhora Rowena no estado em que se encontra. Em seu lugar, eu também não iria querer que importunassem meu luto.

Por um milésimo de segundo, Dean sentiu-se ofendido pelas palavras, mas ignorou o sentimento. Puxou uma cadeira para perto da cama e sentou-se.

— Luto? — Ele ergueu uma sobrancelha, curioso.

— Você não soube? O Duque Higor, Senhor de Monterruna, faleceu há alguns dias por conta da febre de verão que assola o reino. — Evie comentou com certo pesar. — Por fora, Rowena está inquebrável, mas por dentro, vejo uma mulher devastada...

O coração de Dean pareceu se estilhaçar. Não pela notícia em si, mas pela cicatriz recém-aberta. Ela tinha um título de nobreza e um nome: Duque de Winters. O homem pelo qual Dean apaixonou-se perdidamente, e que encontrou seu fim pela mesma febre de verão. O alfaiate fazia questão de guardar as melhores lembranças e afastar a imagem do homem de olhos apagados, deitado sobre a cama, em estado dolorido. A pessoa para quem prometeu dar tudo de si e amá-lo até a morte.

Até que aquela promessa se concretizasse e o duque partisse.

Agora, o que lhe restava, era a certeza de que ele nunca poderia amar alguém como o nobre. O amor era proibido, eles sabiam, ninguém aceitaria que dois homens se amassem como o casal criado por Deus. Adão e Eva nunca saberão como é amar um semelhante, Dean chegou a pensar. Com a igreja católica abominando-os, assim como qualquer outros que fossem contra sua doutrina, ambos precisaram se esconder desde que descobriram o pecado do amor. E amaram, pecaram, até que lhes fosse tirado tudo. Inclusive a vida.

Após a morte do duque, o alfaiate não conseguia pensar em outra explicação, que não fosse o castigo dado pelos céus. Desde o acontecido, convivia com dois fardos: o de ter uma morte em seu ombro e o de não poder revelar publicamente o que seu ser gritava por dentro.

Evie logo notou o silêncio e os olhos marejados do alfaiate, tocando suas mãos geladas.

— Aconteceu algo?

Dean sorriu no meio das bochechas coradas e respondeu:

— Também perdi meu grande amor para a febre de verão.

— Oh, perdoe-me! Não sabia que esse assunto era tão delicado para você. — A princesa chocou-se de imediato e recuou.

— Tudo bem, Alteza. Afirmo com certeza que ele está em um lugar bem melhor agora. — Dean limpou as lágrimas, endurecendo a tez.

Evie percebeu que se tratava de um homem, mas nada disse. Ignorou o detalhe, concordando.

X-X-X-X-X

Michael aproximou-se cuidadosamente da janela quadrada da capela e ergueu o rosto, observando a chuva cair lá no alto. De repente, um relâmpago acendeu o céu e a luz o assustou. Instintivamente, o clérigo afastou na direção do altar, o mais longe possível da chuva. Colocou o capuz do manto sobre sua cabeça e procurou aquecer-se perto das velas.

Pensou em ajoelhar-se para ter um momento de oração e pedir clemência a Deus, mas desistiu devido ao barulho que fazia lá fora. Se ele estava vivo, era graças ao Senhor e apesar de ter sua parcela de gratidão pela cigana, Michael não queria confiar inteiramente nela. Dalia continuava sendo uma mulher duvidosa e atormentada por um lado obscuro o qual ele não queria saber.

O missionário era conhecido por sua notável empatia por todos a sua volta, exceto quando suas crenças eram ameaçadas. E tanto Hawley, quanto a cigana, ganharam uma atenção especial do seu sensor de alerta.

Ao som da chuva, Michael ajoelhou-se e permaneceu minimamente incomodado com os joelhos esfolados tocando o chão. Sua criação dentro dos muros do monastério exigia bastante disciplina, de modo que qualquer tipo de dor deveria ser combatida. E era assim que o clérigo seguia com a vida, anestesiando tudo o que pudesse lhe causar dor.

Não se passou um minuto completo, até que Michael ouviu um barulho. A porta rangeu e uma segunda figura encapuzada entrou a passos lentos no corredor estreito da capela. Apenas os relâmpagos e as velas iluminavam o recinto em um jogo de luzes perturbador.

— Quem está aí? — Michael bradou, nervoso, enxergando apenas flashes da silhueta se aproximando.

— Não se preocupe, sou eu. Vim aqui para me desculpar pelo que houve durante o jantar. — A figura retirou o capuz, os cabelos ensopados na testa.

Era Hawley carregando uma expressão arrependida. Outro relâmpago deu um último vislumbre da mesma expressão, desta vez, com um leve sorriso escapando no canto dos lábios.

X-X-X-X-X

Evie e Dean estavam envolvidos por um silêncio sepulcral há alguns minutos. Nenhum deles tinha algo a dizer. Porém, foram interrompidos por batidas da porta.

Num ímpeto, a princesa fez um movimento brusco para se levantar e um pedaço do vestido acabou ficando preso na aresta da cama, entre a cortina e a madeira. O som do tecido se rasgando foi audível apenas por ela, e imóvel, acompanhou Dean levantar da cadeira para atender a porta.

— Não! — Ela exaltou, cobrindo a parte que faltava.

O homem virou, já com sua face estampando preocupação.

— Aconteceu alguma coisa, princesa? — Estendeu os braços.

— Meu vestido… Meu vestido rasgou. — Evie apontou. — Eu tinha adorado-o. Fizeste com tanto afinco...

O alfaiate teve que pensar rápido. Destrancou a porta e encarou uma das serviçais se curvando. Um único instante e ele se sentiu como parte da realeza, como um verdadeiro nobre. Como o cônjuge do Duque de Winters. Mas no fundo sua consciência martelava: a reverência não é sua, seu tolo, é para a princesa!

— Dean, ela pode fazer algo a respeito! — Evie ergueu um pouco a voz atrás do homem, adiantando-se.

— Pode deixar que eu resolvo tudo, Alteza. — Dean virou de volta para a funcionária do castelo. — Infelizmente houve um infortúnio com o vestido da princesa, e como seu alfaiate real, ofereço meus serviços para consertá-lo. Poderia me conduzir até o ateliê do castelo?

— Oh, sinto informar que o ateliê está inacessível desde o falecimento do Duque Higor, sequer o limpamos. — Disse a jovem constrangida com a situação. — Ainda preciso pedir permissão para a Senhora Rowena.

Dean chegou mais perto da funcionária, inclinou seu corpo e passou a sussurrar:

— É uma emergência. Não vai querer que a Princesa de Lothair espere mais do que o necessário para ter o vestido de sua coroação em bom estado outra vez, certo?

Bastou aquele jogo de persuasão, com toques de chantagem, para que a serviçal concordasse. Dean sentiu-se horrível por ter que fazer aquele tipo de abordagem, mas fora pela sua princesa. A mulher e o alfaiate esperaram no corredor, enquanto Evie se trocava dentro dos aposentos. Ela vestiu uma longa camisola branca, que ia até seus tornozelos, cobrindo boa parte de sua pele extremamente pálida, e entregou o vestido para Dean.

Aproximou-se do ouvido do protetor, dizendo:

— Não se demore, por favor. — Tremeu de frio. — Não me sinto segura aqui, principalmente por ter infinitos guardas vagando pela propriedade, e ainda sim, sentir que posso sofrer algum tipo de ataque a qualquer momento.

Dean entendeu perfeitamente o que aquelas palavras significavam e balançou a cabeça em sinal positivo. Ele não a deixaria por nada.

— Levará apenas alguns minutos, Alteza. E estarei no ateliê, caso a situação tome circunstâncias perigosas. — A voz aveludada quase tranquilizou a nobre, que tentou estabilizar a própria insegurança. A contragosto, ela acabou deixando-a escapar mais do que gostaria.

— Ficarei bem, pode ir.

“Tranque a porta”. Dean mexeu os lábios sem proferir nenhum som, arrancando um sorriso de Evie, antes que pudesse se recolher de volta aos aposentos.

E trancar a porta, assim como ele sugeriu.

Ao sair no corredor, Dean viu uma armadura tombar no chão, deixando cair seu machado reluzente.

X-X-X-X-X

Na torre do sino da capela, a chuva caía ininterruptamente. As paredes de pedra cedidas ao lodo que as contaminava, mantinham-se encharcadas ao redor do instrumento de aço. Ao mesmo tempo em que o mecanismo de metal e as cordas que suportavam o sino, pareciam frágeis demais para sustentar seu peso.

A lateral do mecanismo, feita de madeira, estalou e o barulho foi abafado por um trovão.

Perto dali, Michael tremeu.

— Não era minha intenção assustá-los, eu não quis que nossa conversa fosse tumultuada. — Hawley começou se explicando para o clérigo. — Peço perdão se ofendi seu credo, padre.

Michael ouvia tudo atentamente, esperando o momento certo para perdoá-lo. Ele estava disposto a fazer isso e os olhos azuis do garoto pareciam transparecer uma verdade incontestável, mas depois de tudo o que viu e ouviu naquela sala de jantar, Michael prometeu a si mesmo que não correria mais riscos.

Só queria voltar para seu mosteiro, contar tudo o que vivenciou aos outros monges, e ficar resguardado dentro daquelas paredes, onde mais nada pudesse atingi-lo. Então, utilizou de suas palavras reconfortantes para manter a conversa no mais perfeito equilíbrio:

— Está tudo bem agora, meu jovem. Sua crença diverge da minha, mas temos o livre arbítrio de seguir aquilo que nosso coração escolher. Se é isso que você quer, a única coisa que posso fazer é interceder pela sua alma. — A sentença saiu embargada, mas não abalou sua postura.

— Então você entende, não é? — Hawley deu um passo na direção do clérigo, que recuou. O garoto percebeu o gesto e franziu a tez. — Está com medo de mim, reverendo?

Michael olhou por cima do ombro, incerto, antes de respondê-lo. Visualizou apenas o altar atrás de si, uma porta do lado direito e um corredor escuro do lado contrário. Fechou os olhos por alguns segundos e respirou fundo, refletindo as possibilidades.

— Não entendo, reverendo… Você disse que temos o livre arbítrio, que acreditamos naquilo que sentimos com o coração, que irá interceder por mim… Porém, só consigo enxergar medo na sua face. — Hawley deu meia-volta e arrastou os passos pela capela, dando a volta pelas laterais e subindo os poucos degraus do altar. — Parece um coelhinho apavorado, prestes a virar a refeição de um caçador.

Todas as vezes que o aprendiz de sacerdote saía de seu campo de visão, Michael procurava encontrá-lo e o seguia com o olhar.

— Você não entendeu mesmo. — Hawley baixou a cabeça e riu como uma criança, se divertindo com a situação. — Michael, somos semelhantes e fazemos parte do mesmo propósito divino, seja ele o do seu deus ou do meu Deus Sem Face.

— EU NÃO SOU SEU SEMELHANTE! Você não serve ao Deus da bondade, do amor e da compaixão! — O rosto do clérigo ficou extremamente vermelho, mas logo voltou ao normal. — Contudo, ainda há tempo para se redimir perante o Senhor. Arrependa-se da devoção ao paganismo e será poupado da sua ira no juízo…

No mesmo momento, Hawley sentiu um vento frio percorrer o recinto, bagunçando seus cabelos. Seria o sinal de que era hora de realizar sua tarefa? Em seguida, um estrondo sacudiu tudo, como se um trovão retumbasse dentro da capela, e o Lachlan viu o crucifixo tremer perigosamente atrás do altar.

Michael foi rápido e se apoiou na primeira coisa que viu, a bancada, deixando que algumas velas acesas caíssem e outras rolassem para trás do altar. Ele não tirou os olhos do aprendiz de sacerdote e viu quando o jovem sacou uma adaga brilhante do manto, apontando-a na sua direção.

— É chegado o momento, o Deus Sem Face está entre nós. Ele vai nos levar para casa.

Michael arregalou os olhos e num rápido sinal da cruz, o peso de mil orações.

X-X-X-X-X

A tontura chegou para Dalia tão rápido quanto um relâmpago. A cigana sentiu uma vertigem, comprometendo sua visão do corredor e não pôde mais comandar suas pernas. Foi ao chão em seguida, sendo amparada pelos irmãos.

— Dalia, você está bem? — Johann indagou, seus braços fortes envolvendo-a. — Está pálida e fraca, eu disse para comer algo no jantar.

— Ela não tocou nem nos vegetais. — Stefford lembrou, com os outros se entreolhando. Sua irmã amava frutas e vegetais, e por este motivo, a afirmação espantou o trio.

— Não consigo digerir nada… Desculpem-me rapazes. — Ela fungou.

— Vamos encontrar comida. Agora, mais do que nunca, tem que se alimentar. — Foi Davill quem sugeriu desta vez.

— Oh, não se preocupem comigo. — Dalia retrucou, decidida a não deixar que esquecessem seu real objetivo. — Eu não sou a prioridade no momento. Aquelas pessoas precisam de nós…

— Você mal consegue se sustentar. — Stefford observou.

Ele tinha razão. A fisionomia da cigana havia mudado drasticamente desde que foi encontrada nos braços do clérigo na área externa dos estábulos. Aquele tinha sido um dos motivos decisivos para Hawley ter planejado o jantar, sua recuperação. Antes, Dalia passou pelos empregados do castelo e por um curandeiro da família, que cuidou de seus machucados. Agora, longe dos cuidados, ela não poderia escorregar.

De repente, uma rajada de vento assobiou pelo corredor, gerando arrepios na cigana, que olhou além da escuridão apenas para avistar um imenso clarão. A luminosidade os engoliu e um ruído agudo e contínuo feriu seus ouvidos.

Dalia queria gritar, mas era como se tivesse ficado surda. Não suportou e tapou os ouvidos.

Segundos depois, o barulho se foi.

— Vocês viram e ouviram isso?! — Ela berrou, sem ter certeza do volume de sua voz.

— Gritando assim, vai atrair a atenção dos guardas, que já devem estar procurando por nós! — Stefford advertiu.

A mulher apontou para a escuridão.

— Ali, ali tinha uma luz muito forte… E tinham aquelas badaladas…

— Badaladas? Como as de um sino? Eu não ouvi nada. — Comentou Davill.

— Estou sentindo que algo muito ruim vai acontecer. — A cigana pensou alto, o suor escorrendo das têmporas.

Um sino, é isso! A mente de Dalia estalou e ela não esperou. Libertou-se do abraço do irmão, tomada por adrenalina.

— Encontrem o padre! — Dalia ordenou, sem deixar de lado sua liderança. Mesmo sendo a irmã mais nova da família, ela sempre soube fazer ser ouvida e se cuidar sozinha. — Eu vou atrás da princesa em seus aposentos. — E desatou a correr pelo corredor, sem saber se sua intuição estava correta.

— Dalia, espera! Você não pode-

Ela ignorou o que um de seus irmãos dizia e continuou correndo, lutando contra sua fraqueza.

— Encontrem o padre! Agora! — Foi a última coisa que ela disse, antes de desaparecer no meio da escuridão.

X-X-X-X-X

A única informação que Dalia possuía da localização da princesa, era a de que tinha se recolhido aos seus aposentos. E diferente do quarto onde ficara com os irmãos, ela sabia que eles não deixariam que alguém da realeza dormisse próximo de aldeões maltratados como eles.

A solução que encontrou foi procurar nos dormitórios opostos, os quais ela desconfiava que ficassem na mesma ala dos senhores da casa Lachlan. Dalia poderia dar um jeito de descobrir onde a princesa estava com alguns apetrechos e suas técnicas ancestrais, como sempre fazia ao lado de seus irmãos, durante seus últimos anos. A diferença, era que a nova persona que a mulher criara, de nome delicado e transbordando perseverança, precisava continuar.

O papel que Dalia recebera naquele mundo não era trapacear pessoas, não era realizar desejos a quem estivesse disposto a pagar, mesmo que tenha sido o papel em que acreditava. Mas sim, o de impedir que aquelas pessoas tivessem um fim trágico, como não pôde fazer com os ciganos de seu grupo, ao qual aprendeu a chamar de família. O poder da clarividência abriu novos caminhos e um deles parecia obscuro demais até para ela.

— Ei, você aí! — Ouviu uma voz grave ressoar pelo corredor.

Dalia não precisou olhar para trás para ouvir o metal da armadura arranhando enquanto se deslocava. Era um guarda.

A cigana pensou em correr, mas eventualmente ele a alcançaria. Estava fraca e não conseguiria ir muito longe. Então, esperou que ele chegasse perto o suficiente e assim que o homem o fez, carregando sua lâmina, ela disparou:

— Eu tenho que entregar um recado do senhor Hawley para a princesa… Mas estou me sentindo tonta. — Apoiou-se no peito do soldado, mas ele a afastou de maneira rude.

Em seguida, Dalia deixou seu corpo cair no chão. O guarda rodeou-a desacordada e coçou o queixo, confuso. Resolveu checar se a mulher respirava.

Abaixou-se só para ter seus olhos perfurados por dois dedos rígidos da mão da cigana. Dalia não deixou que ele terminasse de urrar e acertou sua cabeça com a ponta da espada que tirou de sua armadura, enquanto estava debruçada sobre o aço frio do peito do homem.

— Realmente tenho um recado para a princesa e ela não pode esperar. — Ela murmurou para o desacordado, antes de voltar a correr ofegante.

E logo notou que, ao terminar aquele corredor, encontrou uma porta grande e bem vigiada por dois guardas, se escondendo para não ser vista. Ao contrário do anterior, ela não conseguiria passar por esses. Por sorte, a porta abriu-se e do dormitório saiu uma princesa impaciente, que foi interceptada pelos dois ogros de armadura.

— O que estão fazendo? — Ela indagou.

— Temos ordens de não deixá-la sair, Alteza. — Um dos homens respondeu.

— Princesa!

Evie olhou na direção de onde vinha o grito e ficou paralisada novamente ao ver Dalia. Era um sentimento inconsciente, mas o qual ela sabia que significava apenas ter que reviver o ataque das dançarinas e a cigana salvando-a.

— É bom saber que estás bem, Dalia. — Evie sorriu com os olhos.

Os guardas fizeram menção de partir para cima da cigana, mas a ruiva interceptou-os desta vez, levantando a mão.

— Ela está comigo. — Disse, vendo eles recuarem. — Você está com um péssimo semblante. Está pálida, parece atormentada...

— Princesa, me ouça com atenção, por favor! — Dalia sequer ouviu seu comentário. Tocou as mãos quentes de Evie, que a primeiro momento, espantou-se. — Corremos perigo nesse lugar. Desde que Hawley disse aquelas coisas durante a ceia, sinto como se nossas vidas estivessem em risco. É algo maior, algo que não consigo ver ou tocar, mas sentir…

Evie não soube o que dizer, pois era o mesmo sentimento que impregnou em seu corpo desde a saída de Dean dos aposentos.

— Há algo que eu possa fazer?

— Vir comigo.

A ruiva não entendeu, franzindo o cenho.

— Não temos tempo, precisamos deixar esse lugar o quanto antes. — Dalia falou mais baixo dessa vez, para que os guardas não ouvissem a conversa.

Evie não refletiu muito. Ela também queria partir de Monterruna e já havia deixado claro para Dean sua vontade. Entretanto, sua maior preocupação era partir na companhia dos ciganos. Suas dúvidas ainda eram implicadas pelo mistério que exalava do quarteto.

— E quanto ao Dean? — A nobre disparou. — Não irei sem ele.

— Podemos pegá-lo no caminho. Onde ele está?

— No ateliê, consertando um vestido.

Dalia assentiu, olhando de soslaio os dois homens parrudos que a encaravam.

— Princesa, peço que não dispense os guardas. Eles serão muito úteis para não levantarmos suspeitas.

Evie virou-se para os soldados e mudou de postura, erguendo o queixo, para assim ordenar:

— Acompanhem-nos até o ateliê.

X-X-X-X-X

As velas começaram a se apagar em sequência, arrastadas pelo frio.

Hawley investiu contra o reverendo. Michael não esperou que o garoto fosse tão rápido com sua adaga e fez a primeira coisa que veio à cabeça para se defender do golpe, que seria certeiro. Jogou-se atrás do altar e viu a lâmina passar por ele raspando, levando um pedaço do tecido de sua batina.

— PARE COM ISSO! — Berrou o clérigo, engatinhando atrás do balcão de pedra. — O que pensa que está fazendo?

— Ajudando o Deus Sem Face a cumprir seu propósito, Michael. Chegará a vez de todos, não se abale.

Calmamente o aprendiz de sacerdote rodeou o altar, procurando pelo reverendo. Encontrou-o fugindo pela lateral. Despreparado, Michael bateu o ombro contra a lateral da bancada e mais velas foram derrubadas no processo, enquanto as chamas das demais velas caídas já lambiam a parede de cortinas atrás do crucifixo, causando um pequeno incêndio.

Vendo o homem de fé correndo por sua vida, Hawley foi forçado a apressar-se também, seguindo-o pela capela.

Mesmo usando um grande manto, o filho da casa Lachlan conseguia ser rápido e ágil, desviando de obstáculos que casualmente surgiam na sua frente, inclusive um banco de madeira. Já Michael não teve a mesma sorte. Esbarrou em dois pedestais de mármore, machucando seus joelhos arrebentados e prejudicando sua corrida.

— Socorro! — A voz angelical de Michael se desfez em um grito de pavor.

Esbaforido e com o rosto vermelho, o clérigo invadiu um corredor estreito e úmido. Começou a subir desesperadamente os lances de degraus da escadaria de madeira, que pela altura e formato circular da estrutura, concluiu estarem indo de encontro ao alto da torre do sino. Que Deus me ajude. Através do canto dos olhos, podia ver Hawley subindo de dois em dois degraus logo abaixo, sua adaga cortando o ar e seu manto se tornando um vulto negro na escuridão.

— Você não tem para onde correr. — O aprendiz sibilou, satisfeito com a possibilidade.

— E quem disse que irei correr? — Michael retrucou ofegante.

Ao fim da subida, Hawley ouviu o ruído de algo cedendo e pisou no último degrau, que quebrou em um som crocante. Acompanhou seus pedaços desapareceram lá embaixo e por pouco ele não caíra junto.

Recuperado do susto, finalmente encarou o vão que servia de abrigo para o sino. Parcialmente escuro, vazio, silencioso e sem sinal do clérigo. Na extremidade do vão, apenas uma pequena janela redonda de vidro, e lá fora, a tempestade caindo sem cessar.

De repente, um raio desenhou o céu e Hawley enxergou seu brilho pela janela. Estava perto demais. Todo o andar estremeceu com a pancada.

— Vamos, apareça! Não vai se esconder para sempre. — Bradou o jovem, riscando sua adaga contra uma das hastes de ferro que levavam ao suporte do instrumento.

O som arranhou a audição de Michael que encolheu-se em seu esconderijo.

Acima dele, a chuva continuava entrando por uma abertura no telhado, sem sequer ser notada e terminando de apodrecer todo o mecanismo preso ao teto.

X-X-X-X-X

O trio de ciganos saiu do infindável setor dos corredores e então, os três passaram a percorrer a área comum do castelo, ao lado do jardim de rosas e orquídeas. O cheiro peculiar das flores misturou-se ao da lama forjada pela chuva.

Eles não se importavam se o céu cinzento estava desabando sobre suas cabeças, só pensavam em fazer o que a irmã pedira. Johann nunca vira Dalia tão assustada, de modo que ajudá-la com aquela pequena missão aliviaria seu sentimento de culpa por não estar tomando conta dela como seus pais gostariam que tomasse.

— Com certeza, o padre não está aqui fora. — Stefford murmurou, rangendo os dentes de frio, pensando em desistir da tarefa. — Foi arriscado seguir o plano da Dalia. Nem sabemos o que ela pretende fazer. Nós temos que ir atrás dela.

Johann tocou seu ombro solenemente e como irmão mais velho, ele era deveras respeitado pelos outros, tendo a confiança como ponto forte de suas características. Por muitas vezes, Stefford desafiou-o, mas entendia que não era hora para fazê-lo. Davill observava a cena se discorrer sem dizer nada, ensopado, já que dos três era o mais novo.

— Nossa irmã nos deixou encarregados desta busca e não vamos parar, enquanto não conseguirmos cumprir. Estamos de acordo?

Stefford deu de ombro, respondendo:

— Faça o que tem que fazer.

Houve um silêncio breve, até ouvirem o som de botas pesadas chiando de encontro às poças formadas pelo temporal. Pontos de luz alaranjados surgiram nas imediações do jardim e os ciganos ficaram em alerta, abaixando. Muitas vozes se misturaram e por vezes, ouviam galopes.

— Tem certeza que viram os indigentes vindo nessa direção? — A voz grosseira era familiar.

Duque Harlaw estava montado em seu cavalo no meio da tempestade. Acompanhado de mais meia-dúzia de seus homens, alguns à pé, eles procuravam pelos ciganos. Assim que chegou ao seu conhecimento que os convidados do irmão não voltaram aos aposentos, logo  convocou alguns de seus guerreiros subordinados para caçá-los.

Davill enxergou um monumento adiante e cochichou:

— É a capela… Podemos nos esconder até que o perímetro fique limpo desses vermes.

Tendo Johann e Stefford concordando com a ideia, o trio permutou-se entre as paredes esverdeadas de vinhas e trepadeiras do jardim, e correram na direção da construção cristã.

— Eles não vão conseguir sair, e se atentarem contra suas vidas, vocês têm minha autorização para matá-los! — Harlaw deixou claro e continuou seguindo com seu cavalo. — Espalhem-se!

X-X-X-X-X

[Tema: https://www.youtube.com/watch?v=IGN3u8TBO4w]

O temporal abafava as súplicas de Michael.

Apertado entre dois tonéis vazios, o clérigo recorria a todos os tipos de preces para que, enfim, Cristo lhe ouvisse e lhe mandasse um sinal divino de que sua vida seria poupada, de que não deixaria ser ferido por um devoto pagão feito Hawley.

O homem abriu os olhos castanhos inquietos e um relâmpago acendeu o vão. O flash mostrou a localização do anfitrião coberto pelo manto. Ele estava procurando por Michael no outro lado do andar. Aquele era o momento perfeito para passar por ele e fugir. O clérigo engatinhou até ter espaço suficiente para levantar.

Mas Hawley já esperava que ele saísse de algum lugar e virou, olhando-o no fundo dos olhos. Michael estava encurralado e apavorado, seu corpo mal respondia ao seus comandos e ele poderia sentir a adrenalina latejar em seus ossos, tremendo. Nunca pensou que sentiria tamanho medo dentro de uma casa sagrada, da morada do Senhor, mas Hawley tinha um fogo no olhar que lhe fazia suar.

“Você e seus demônios não são bem-vindos”, ele lembrou.

Foi o que o irmão do aprendiz havia dito quando chegaram. Hawley havia trazido demônios consigo e o clérigo concluiu que eles estavam na capela junto dele.

— Nós podemos resolver isso, eu prometo. — Michael tentou, levantando os braços em rendição.

— Já estou com calos na língua de ter que repetir, reverendo. — O jovem suspirou, descansando os ombros. — Todos precisam morrer, eu só tenho que garantir que isso não seja um mártir e que acabe logo.

— Ninguém tem que morrer… — Michael murmurou, cabisbaixo.

Ele queria chorar, mas não mostraria sua impotência perante alguém tão cruel e baixo.

— Não importa o que seu Deus Sem Face prega, ele não pode interferir nos filhos do único Deus capaz de realizar milagres! — Cuspiu.

— Patético. — Hawley sibilou, inconformado com a cegueira do homem de batina. — Vai esperar um milagre acontecer, reverendo?

Michael teve que pensar rápido, antes que fosse surpreendido novamente e chutou o barril em que outrora se escondia. O objeto cilíndrico de madeira estava repleto de ferrarias e rolou pelo vão, derrubando o aprendiz de sacerdote, que virou sobre o cilindro e caiu de bruços, batendo o rosto no chão. As ferrarias se espalharam pelo piso, e algumas delas atingiram a base das hastes do mecanismo do sino.

As colunas de madeira foram arrancadas, deixando o mecanismo fragilizado no suporte, pendendo para baixo.

O clérigo tapou a boca, chocado por ter machucado o garoto e se afastou.

— Ainda não acabou. — Hawley rangeu os dentes.

Só então, o clérigo tentou fazer a volta para acessar as escadas. Antes que pudesse chegar até lá, Hawley agarrou sua batina e o solavanco puxou Michael direito para o chão. Suas costas bateram contra o piso de madeira e ele gemeu.

— Alguém me ajude! Socorro! — Debateu-se, tentando se livrar das garras do aprendiz. Apesar da aparência franzina, Hawley tinha bastante força. Seu condicionamento mental era tão importante quanto o físico.

O brasão da casa Lachlan brilhou no manto de Hawley, que montou sobre o clérigo, tapando sua boca.

— Feche os olhos, reverendo e deixe que o Deus Sem Face leve-o para casa em segurança.

Michael ouviu um estalo e olhou para o lado, ignorando o devoto pagão erguer sua adaga, pronto para lhe deferir o golpe que daria fim à sua vida. No suporte do sino, uma das cordas não aguentou a chuva apodrecendo-a e cedeu, cortando o ar.

O clérigo nada disse.

No último instante, Hawley desviou e a corda passou por ele com velocidade. Molhada, seu peso triplicou. Um golpe do objeto e ele ficaria com uma marca terrível no rosto. Engoliu em seco, e quando percebeu, Michael desvencilhou-se, correndo. Hawley ainda tentou alcançá-lo com um golpe em seu calcanhar, onde um filete de sangue desceu, mas o homem de batina chegou ao sino depressa.

Com força, o clérigo tocou o grande instrumento. Uma, duas, três badaladas, que estremeceram o piso. Os ouvidos de Hawley pareciam estourar por dentro e ele urrou com a pressão exercida. Michael desequilibrou e caiu no chão, a tempo de ouvir um trovão.

Recuperando-se das badaladas do sino, Hawley observou o reverendo caído de joelhos e olhando diretamente para ele. Gotículas caíam do alto sobre o homem e ele notou que havia uma abertura no teto, por onde a chuva entrava. De repente, um clarão invadiu o vão e uma pancada monstruosa entrou rasgando o ar do recinto. No segundo seguinte, o telhado do alto da torre foi levado pela ventania, no meio da noite tempestuosa.

Um raio atingira a torre e levara parte do teto embora. O chão rangeu e a estrutura abaixo dos seus próprios pés pareceu inclinar.

— Ainda há tempo de saírmos daqui! — Michael berrou, sentindo o calcanhar arder.

— Nosso tempo acabou, reverendo. — Hawley abriu o sorriso mais ingênuo que o clérigo já vira em toda sua vida. Nem o sorriso de Khan era tão sincero como aquele. Nem o sorriso de Tion era tão sincero como aquele. Seus olhos brilhavam e ele aparentava estar em paz com a situação.

Podres, todas as cordas do mecanismo do sino prateado arrebentaram em uníssono e o suporte metálico não resistiu aos danos, rompendo do teto. O som do sino atravessando o andar foi como um coro de súplicas, atingindo o centro do vão. Onde Hawley se encontrava. Ele apenas fechou os olhos e deixou que o Deus da Morte fizesse o resto do trabalho. O chão do andar foi destruído pelo impacto, abrindo um buraco, e o pesado sino afundou, sucumbindo a madeira e o corpo do aprendiz de sacerdote juntos.

Por pouco Michael não foi tragado, agarrando-se a uma viga.

Foram três andares de queda livre. O sino ia abrindo espaço entre os andares escuros e úmidos, enquanto o corpo agraciado de Hawley caía sem ter ideia do que aconteceria quando chegasse lá embaixo. Seria dolorido? Deixaria muitas marcas? Sua mãe conseguiria lhe reconhecer nos escombros?

Tion sorriu em algum lugar do pensamento do jovem e desapareceu tão rápido quanto sua aterrissagem.

O sino caiu com a boca virada para baixo, causando um estrondo assustador no chão da capela, que ecoou por toda a propriedade. Uma nuvem de fumaça subiu, os olhares curiosos dos ciganos lá embaixo tentando enxergar algo além dela. Os três se aproximaram da fonte do barulho de maneira receosa e esperaram a nuvem de fumaça se dispersar. A visão que restou foi aterradora.

Hawley estava deitado sobre a estrutura de metal presa ao topo do sino. Seu dorso fora brutalmente esmagado e quebrado na queda. Seus membros, amolecidos, balançaram até parar. Os cabelos bagunçados sobre o rosto e a adaga escorregando entre os dedos pálidos, assim como o sangue descendo devagar, que desenhava a lateral do sino.

Eles arregalaram os olhos, chocados. Só então, Johann, Davill e Stefford perceberam o fogo atrás do altar, que aumentava a cada segundo e uma nova nuvem negra começou a se formar na capela. Michael apareceu em seguida, mancando. Os ciganos não souberam dizer de onde, mas o ampararam sem fazerem perguntas.

Saíram dali antes do fogo se espalhar, mas deram de cara com o Duque de Monterruna, além de Tion e seus homens, que entravam no recinto sagrado, agora, amaldiçoado pela morte. A primeira coisa que Harlaw viu, foi o corpo de seu irmão estirado sobre o sino. O homem de face resiliente pôs o braço na frente da boca, a fim de não deixar que seu jantar fosse colocado para fora, mas foi inevitável. Vomitou no tapete da capela.

Ergueu o olhar vermelho, em chamas, sendo amparado pela mão de Tion em seu ombro.

— Meu irmão está morto… O que… O que vocês fizeram?! — Perguntou, encarando os ciganos, a boca ainda embalada no líquido gástrico. — Eu sabia que era uma péssima ideia deixá-los ficar, mas aquele tolo insistiu…

— Não é isso que está pensando, Duque. — O clérigo murmurou, abalado.

— O que pretende fazer, senhor Duque? — Tion perguntou com a voz embargada, sentindo o estômago revirar, ele se negava a olhar mais uma vez para o corpo do protegido.

— Vocês não sairão impunes das terras de Monterruna! Na verdade, sequer sairão. GUARDAS, ORDENO QUE MATEM OS CIGANOS!

X-X-X-X-X

Dean encontrava-se sentado de frente para uma mesa de madeira empoeirada. Com o mesmo pedaço que fora rasgado da indumentária real de sua nobre princesa, o alfaiate tratava de recosí-lo, a fim de que nenhum erro ficasse visível. Ele gostava que seu trabalho saísse com perfeição e não precisava se esforçar muito para tal resultado.

O cômodo reservado ao ateliê era um pouco maior que seu dormitório, mas grande o suficiente para abrigar variados utensílios de costura. Tecidos coloridos pendurados em suportes: veludos, pele, couro, seda; quadros pintados à mão da senhora Rowena utilizando as peças feitas pelo seu alfaiate, novelos de lã e algodão espalhados pelo local. A maioria dos equipamentos vieram de outras províncias através de mercadores.

A excentricidade dos Lachlan não ficavam reservada à sala de jantar, o jardim ou à sala dos senhores. Estendia-se também à alfaiataria escondida sob as ameias de seu castelo. Onde agora, Dean cantarolava baixinho alguma canção do seu agrado, enquanto concluía seu serviço.

Por um minuto, levantou e procurou por outra cor do tecido de algodão, mais próxima da cor do vestido de Evie. Distraído, esbarrou em um recipiente redondo de madeira com algumas grossas agulhas e tachinhas de ferro, que tilintaram ao se espalharem pelo piso.

— Está vendo o que você fez, Dean? Isso acabará rendendo-lhe mais alguns minutos. — Repreendeu a si mesmo em voz alta, cansado, enquanto abaixou para juntar as agulhas.

Um vento frio eriçou os pelos de sua nuca e o homem de meia-idade virou-se somente para fitar o ateliê vazio.

As chamas das lamparinas grudadas na parede — acima de um brasão de ferro com dois machados sobrepostos — dançaram com a mesma brisa, prestes a se apagarem. Dean torceu o nariz. Havia algo dentro do seu coração que dizia que alguma coisa estava errada, mas ele ignorou o sentimento de agouro.

Dean rapidamente juntou o máximo de tachinhas e agulhas que conseguiu, e guardou-as de volta no recipiente. Entretanto, esqueceu-se de algumas e não evitou que sua bota fosse de encontro com as sobras. O material foi penetrado pelas tachinhas e agulhas e o alfaiate caiu, reclamando da dor. A sola do seu pé tinha sido perfurada.

Dalia abriu a porta do ateliê num rompante, encontrando o serviente gemendo detrás de uma mesa. Evie entrou em seguida, mas logo que viu seu funcionário, correu até ele.

— Oh, por Deus, Dean você está bem? — Disparou, levantando-o. Percebeu o que acontecera e ajudou-o a retirar o calçado, observando a mancha de sangue de formar na meia.

— Como conseguiu esse ferimento? — Dalia perguntou, atritando os braços. E diante do silêncio do alfaiate, tornou a repetir: — Onde conseguiu o ferimento?!

— Eu pisei em algumas agulhas afiadas, só isso. Foi um descuido meu.

— Não acho que tenha sido descuido. — A cigana comentou, olhando ao redor. Viu o fogo das lamparinas ameaçando apagar. — Estou sentindo de novo… Precisamos tirá-lo daqui.

— Do que ela está falando? — Dean olhou para Evie, esperando que ela tivesse uma resposta.

— A Dalia acha que corremos perigo. Por isso, vamos embora.

Ele não estava em condições de contestá-la, vira o que Dalia podia fazer, de modo que aceitou o que disseram. A princesa recebeu a ajuda de Dalia para conduzir o alfaiate real até a saída. Porém, uma estante onde ficavam rolos de alguns tecidos, tombou de repente sobre a porta, obstruindo a passagem. As paredes vibraram.

X-X-X-X-X

[Tema: https://www.youtube.com/watch?v=UHvGpxOMN6U]

Dalia afastou-se da dupla e enfiou o rosto entre as prateleiras da estante. Do lado de fora, nenhum sinal dos guardas que lhe trouxeram. Ela via um foco de fumaça próximo dali e seu coração doeu ao vê-lo.

— Estamos presos. — Evie resmungou. — Como vamos sair?

— Vi uma passagem nos fundos, talvez ela nos leve para fora. Sinto o cheiro do jardim... — Dean murmurou, resistindo à dor na sola do pé através do aroma forte das flores.

Evie deu de ombros e os três deram a volta pelo ateliê, caminhando na direção da porta.

O primeiro estrondo assustou Evie. A princesa sentiu seus pés tremerem, estranhando o barulho alto. No segundo, Dalia olhou para trás, vendo a porta ser forçada. No terceiro, Dean tropeçou na própria perna machucada e deslizou dos braços da ruiva, caindo no chão.

— Abram a porta! — Gritava um dos guardas, do lado de fora do cômodo.

Empurrando alguma coisa pesada contra a porta, eles tentavam arrombá-la. A estante caída mal se movia, mas as lamparinas na parede tremiam a cada batida. Rastros de poeira desciam dos blocos de pedra e faziam o trio tossir.

— Tem um móvel caído, nos prendendo aqui dentro, seus inúteis! — Evie respondeu aos berros, mas eles não pareciam ouvi-la, estavam longe demais.

O outro guarda bradava algum comando, enquanto a porta voltava a ser forçada.

A cigana revirou os olhos, alertando:

— Nosso tempo está acabando.

Evie se aproximou do alfaiate novamente para erguê-lo, mas algo aconteceu.

Dalia olhou para cima, a tempo de ver mais poeira caindo. Não da parede, mas do emblema pendurado, que carregava os dois machados. A porta do ateliê foi arrombada com um último impacto, jogando a estante longe junto com os pedaços de madeira.

O impacto foi o bastante para derrubar todas as lamparinas sobre o trio.

— Protejam-se! — Dean pediu.

Dalia puxou Evie pela manga da camisola, mas a princesa não conseguiu alcançar Dean. O alfaiate tentou se proteger, erguendo um pedaço de tecido vermelho, mas não era forte o suficiente para o que veio a seguir.

Os dois machados do emblema desceram velozmente na direção do homem, fatiando o ar. Assim como o topo do crânio de Dean.

O primeiro machado empurrou sua cabeça para frente, a lâmina afiada atravessando o couro cabeludo, e o metal batendo no chão em um som oco e molhado. O segundo machado o empalou direto na nuca, saindo na parte frontal da garganta. Jatos de sangue esguicharam no tecido, banhando suas vestes, enquanto seu corpo escorregava devagar.

Sentada no chão, a expressão horrorizada de Evie acompanhou o olhar fixo de seu fiel companheiro sobre ela. Dean era a última pessoa que restara na vida da ruiva, a garantia de que tudo ficaria bem no final. Mais um para seus pesadelos, a princesa de Lothair havia perdido tudo naquela noite.

— Alteza! Alteza! — Dalia chamava, mas Evie não conseguiu mexer um dedo. Só conseguia chorar naquele momento.

Decidida, a cigana levantou a nobre mulher, contra sua vontade, e juntas, atravessaram a passagem escura rumo ao desconhecido.

X-X-X-X-X

Aos tropeços, Dalia e Evie chegaram ao lado de fora do castelo. Resfolegavam como se tivessem corrido por quilômetro. O rosto da princesa estava vermelho como um tomate e seus olhos assumiram a mesma cor, depois de ter visto de perto o acidente violento que culminara na morte de seu alfaiate.

Dalia mal se importava com as poças de água ou com a suave chuva que agora caía. O campo estava tomado pela escuridão, embora a lua começasse a aparecer timidamente atrás das nuvens carregadas. A cigana olhava para todos os lados, em busca dos irmãos e focos de luzes laranjas chamaram sua atenção além dos estábulos.

Caught in the middle of your web

Now your hands are red

Every word you said feels hollow

Uma clareira e diversas pessoas em um semicírculo, todos guardas do Duque, segurando suas tochas e cuspindo em uníssono frases de incentivo ao ódio. Dalia sentiu um mal estar logo que observou o tumulto e largou Evie. A ruiva a seguiu, sem saber o que esperar daquela movimentação, até uma cena curiosa fazê-la parar.

Atritou os braços, a camisola grudando na pele. Seus olhos inquietos percorreram os estábulos, onde a princesa encontrou Michael, o clérigo, tentando montar em um cavalo que estava amarrado por uma corda em uma roda. Ele tinha dificuldade por causa da batina e do manto, de modo que a mulher decidiu se aproximar.

Evie perguntou:

— O que está fazendo?

— Fugindo. — Michael limitou-se a dizer. Não queria que sua fuga durasse mais tempo do que planejara.

— E o que te faz achar que vai conseguir passar pelos portões? — Então, Evie percebeu que o tornozelo do homem estava sangrando. — Você está-

— Eles vão ficar ocupados por um tempo. — Michael interrompeu. Tentou subir no equino pela segunda vez e olhou por cima dos ombros, nervoso. Evie olhou na mesma direção. — Onde está a cigana? Ela não vai gostar nada do que está acontecendo ali-

Ouviu-se um grito.

All of the promises you've made

Are dead and washed away

Your smoke and mirrors won't change what I know

Dalia… Evie ignorou a tentativa de fuga do clérigo e andou apressadamente até ela. A cigana começou a correr na direção da clareira, passando por inúmeras artilharias de batalha, entre elas uma enorme catapulta. A princesa não entendia o motivo da cigana estar correndo rumo aos guardas, e quando percebeu, seu coração pulsou mais rápido.

Os outros ciganos estavam ajoelhados em frente ao semicírculo. Todos de joelhos, mãos atadas para trás, cabeças inclinadas para frente. A semelhança com a posição em que Dean morrera causou uma onda de puro horror no corpo da ruiva. Evie viu as lágrimas secas na expressão aterrorizada de um deles. O outro percebeu Dalia chegando.

— Fuja, irmã, fuja! — Berrou Davill.

Dalia parou no mesmo instante, os cabelos frenéticos na frente do rosto e as vestes completamente sujas. A maioria dos guardas se virou para ela. O coração da cigana estava prestes a ser se despedaçar, ela sentia.

— Nós te amamos, Dalia, mas agora você precisa ser mais forte do que nunca foi. FUJA PARA LONGE! — Johann pediu, os lábios embabados em suor e sangue seco.

I know your secrets

I know your lies

I see the darkness

Living inside

Duque Harlaw apareceu atrás dos ciganos, segurando uma espada. Em seguida, ele a ergueu e ordenou:

— POR HAWLEY, MEU IRMÃO… E POR MONTERRUNA! CORTEM-LHE AS CABEÇAS!

Os olhos de Dalia se arregalaram e ela se moveu bruscamente, mas foi interceptada por Evie, que segurou em seus ombros.

— Não podemos continuar aqui, eles vão vir atrás de você também!

Dalia acompanhou seus irmãos fecharem os olhos devagar para não verem seus momentos finais. E então, as três espadas dos três guardas desceram contra suas cabeças simultaneamente. Três golpes rápidos e sangrentos, e as cabeças dos ciganos rolaram ao mesmo tempo pela terra úmida em um som grotesco, Stefford ainda de olhos abertos.

A risada do Duque foi a última coisa que Dalia ouviu, antes de seus sentidos ficaram completamente afetados. Seus ouvidos, sua visão, seus membros inevitavelmente paralisados.

— O que está fazendo, Dalia? Vamos embora! — Evie lhe deu um solavanco, mas a mulher não respondia aos seus gestos.

Repentinamente algo zuniu próximo ao ouvido da princesa e uma flecha cortou o ar, passando perto das cabeças da dupla.

— Estão atirando contra nós!

There's no where to run to

No where to hide

Cause I know your secrets

I know your lies

Dalia despertou dos sentidos, sentindo a adrenalina voltar a queimar seu corpo. Seu peito ainda doía muito, a memória dos irmãos ficaria para sempre acesa em sua cabeça. Eles não mereciam tamanha crueldade. Atrás da ruiva, ela viu quando uma das flechas acertou um saco de sementes, que furou. Logo, as duas começaram a correr na direção contrária aos cavaleiros do Duque e voltando a ter o clérigo no campo de visão.

— As flechas… — A aldeã comentou. — Elas estão me dizendo algo.

— O quê? — Evie não ouviu por conta do ataque e do relincho dos cavalos.

— Ali! — Dalia apontou para os estábulos. — O padre! Ele é o próximo!

Lost in the monster you've become

Now you're on the run

Living life behind the shadows

Evie franziu o cenho a primeiro momento, mas juntou as peças do jogo de tabuleiro que precisava para entender o que estava acontecendo. Concluiu que Dalia já tinha feito o mesmo. Era a maldição obscura citada por Hawley na mesa de jantar. Eles possuíam uma dívida com a morte e ela veio buscar cada um deles. Os outros dois, o belo homem e a mulher de tranças que deixaram para trás, no caminho, já deveriam estar mortos. Assim como Dean… Mas e Hawley?

A princesa correu o mais rápido que pode a tempo de ver Michael levantar e levar um coice do cavalo com força no meio do peito. O clérigo foi lançado para trás, caindo de costas na pá de madeira da catapulta. A artilharia rangeu com o impacto e as cordas estalaram.

Michael não conseguia levantar, talvez tivesse quebrado alguma costela.

Até que outro estalo, semelhante ao que ouviu na torre do sino naquela noite, chamou sua atenção. Rangendo os dentes, ele olhou para frente e viu um arqueiro empunhar seu arco e flecha na direção da arma de combate.

— Michael sai daí! — Berrou Evie, vindo correndo até ele.

A princesa correu até alcançá-lo e saltou contra a catapulta. O arqueiro disparou a flecha e Evie puxou o clérigo com toda sua força, retirando-o da pá da artilharia de madeira. A flecha chegou até a corda, cortando-a. O dispositivo foi ativado e a pá lançou-se para cima em um zunido alto. Sem o clérigo nela.

Evie e Michael caíram na terra molhada.

Crossed with a target on your head

Now you've made your bed

Nothing left to say now

— Vamos embora, por favor… — Evie cedeu a mais lágrimas naquela noite.

Os dois olhou para trás e viram os guardas do Duque de Monterruna se aproximando e voltaram correndo para Dalia. A cigana estava caída próxima de um cavalo, com uma flecha atravessando seu ombro. O clérigo se aproximou, mas Evie não deixou que ele tocasse no ferimento.

— Não há como tirá-la, vamos ter que levá-la assim. — A princesa afirmou, tentando levantar a cigana com cuidado.

— A carruagem! — Michael lembrou e correu até o transporte, parado atrás dos estábulos. — Traga a cigana, é nossa hora de partir.

Os três embarcaram na carruagem com certa dificuldade. Dalia não poderia se mexer bruscamente, enquanto permanecia com a cabeça deitada no ombro da princesa, dentro do transporte. Mesmo com medo de tomar as rédeas dos cavalos, Michael sabia que era a única e última chance que tinham de escapar das garras do duque. De modo que, comandou os garranos até fora da propriedade. Os portões estavam desprotegido, todos os homens de Harlaw estavam agora, no encalço dos três.

I know your secrets

I know your lies

I see the darkness

Living inside

O caminho até o mosteiro seria longo, mas eles já haviam chegado até ali. E não seria agora, que desistiriam. Evie estava entorpecida, Dalia estava quebrada e Michael pensava em uma maneira de resolver essa situação através de seu Deus.

Após horas percorrendo uma estrada solitária, longe de Monterruna e dos subordinados da Casa Lachlan, sem sinal de mais chuva, o grupo se deparou com um cavaleiro que bloqueando o caminho, que agora, aproximava seu cavalo negro das janelas da carruagem. O coração de Evie apertou, vendo uma Dalia debilitada deitada em seu ombro. Eles não teriam como se defender de um ataque de ladrões.

There's no where to run to

No where to hide

Cause I know your secrets

Yeah I know your secrets

I know your secrets

I know your lies

Contrariando sua preocupação, a ruiva de cabelos sujos e úmidos deparou-se com um rosto familiar. A pessoa montada no cavalo abriu um sorriso sincero e reconfortante, os olhos brilhando.

— Eu quase não a reconheci, princesa. — Disse o homem de cabelos longos.

— Jerry? — Os olhos azuis-cinzentos da princesa se arregalaram em um misto de surpresa e alívio. — Achei que estivesse morto.

— Não sabe minha felicidade ao vê-la sã e salva daquela tragédia… Vocês têm uma mulher ferida gravemente. — Ele notou. — Ela precisa de cuidados imediatos!

— O reverendo está nos levando até o mosteiro, lá ela poderá receber os cuidados adequados.

— Se me permite, posso acompanhá-los, fazendo a escolta da carruagem. Afinal, a princesa não pode ficar sem proteção. — Proferiu Jerry. Independente do que houve anteriormente para encontrá-los naquele estado, ele não deixaria que nada mais acontecesse àquelas pessoas.

— Seria muita gentileza sua, depois de tudo o que aconteceu. — A ruiva respondeu, referindo-se ao ataque sofrido pelos Hightower. Acenou positivamente, concordando.

Jerry também havia perdido tudo, assim como Evie. E os dois tinham uma perda ainda mais forte em comum: Pete Hightower.

— Jerry Hightower? — Dalia balbuciou, percebendo a presença do homem. — O nobre?

— Prazer em conhecê-la também, senhorita.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Não esqueçam de comentar, as reviews são muito importantes para a continuidade do projeto.



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