Superstition 2 escrita por PW, Jamie PineTree, MV


Capítulo 11
Capítulo 09: Faceless


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo da segunda fase da fanfic.

Para quem estiver interessado em saber quem cada personagem do passado representa, aqui temos as imagens do cast completo de Superstition 2:
http://fdchroniclesproject.blogspot.com.br/2017/11/cast-superstition-2.html

Capítulo escrito por Jamie PineTree



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Um dia antes da coroação...

Os dedos nervosos de Hawley dobravam e desdobravam o papel, numa tentativa de acalmar os ânimos. Desde de que chegara ao templo, sete anos atrás, Hawley vivia apenas em orações e estudos para os desígnios do Deus Sem Face, sem qualquer contato com o que acontecia fora das paredes do templo, por isso, era de se espantar o convite vindo diretamente da realeza.

Noites atrás, ele sonhara com uma mulher de cabelos negros e ouro nos braços, gritando como uma louca para um grande salão. Depois, viu a si mesmo próximo à ela, com seus olhos azuis abertos e apontados para o céu, porém, não havia luz alguma neles.

Passou a refletir se o sonho e o convite tinham alguma relação, mas não tinha coragem para perguntar ao Alto Sacerdote sobre isso. Preferiu guardar esse segredo consigo.

Assustou-se ao escutar batidas na porta de seu quarto frio. Com as mãos juntas, Hawley levantou da cama, tentando disfarçar a expressão cansada das noites em claro, às vezes orando, às vezes chorando, mas tendo em mente o que precisava fazer em nome do Deus Sem Face.

A primeira coisa que viu ao abrir a porta, foi o emblema do negro sol estrelado cosido em seu peito, o símbolo de sua casa ancestral, Monterruna. Com poucos pelos no rosto e um cabelo castanho que chegava na altura dos ombros, o alto e corpulento emissário fez uma breve referência.

—Sabe que não precisa disso, Tion. - Hawley tentou um sorriso. - Nesse templo, eu sou uma pessoa como qualquer outra.

Tion era o criado pessoal de Hawley desde criança, algo que ele não considerava uma tarefa. Desde que podia se lembrar, Tion e Hawley tinha uma ligação especial, que ultrapassava os limites da servidão e da senhoria.

—Velhos hábitos nunca mudam. - Apesar de estar sorrindo, havia algo diferente em sua voz, que Hawley identificou facilmente pela diferença na entonação. - Trago-lhe notícias de sua casa, Hawley.

—Se é sobre a coroação, eu já sei. - Ergueu o convite para o criado. - Mas não entendo porque ele foi enviado para mim aqui e não para meu pai, em Monterruna.

Tion se aproximou sem ânimo, tocando os ombros de Hawley com suas mãos grossas. O criado se abaixou até que seus rostos ficassem na mesma altura e o verde de seus olhos encontrassem o azul do garoto.

—É por isso que eu vim. Seu pai, o Duque Higor.... Morreu há menos de uma quinzena pela febre de verão. Eu… Eu sinto muito.

Hawley soltou o ar que estava prendendo, com o cérebro quicando dentro do crânio, sem conseguir absorver a situação. Imagens de seu pai passavam por sua mente, do sorriso dele perdido no meio da barba branca, mas que sempre estava lá quando ele precisava.

—Sua mãe está devastada, como era de se esperar. - Tion continuou sem coragem. - Há dias que ela não abandona o corpo dele, chorando aos seus pés e se recusando a comer. Nem mesmo os seus irmãos, Harlaw e Harley, conseguem convencê-la a deixar o corpo.

—Preciso de um minuto, Tion. - Hawley se desprendeu do corpo do homem, indo para a janela onde gostava de rezar. Hora ou outra, ele sonhava em retornar para as terras de sua família, para seus vassalos e para a vida antiga que possuía. Mas pensar nisso fazia um gosto estranho surgir em sua boca, agora, ele sabia que essa vida não existia mais.

—O propósito de meu pai chegou. - A voz de Hawley estava distante, saindo sem força. - Eu vou… Eu vou… Rezar por ele.

Tion percebeu Hawley levando as mãos para os braços, onde costumava enterrar suas unhas sempre que acontecia algo que um pensamento lógico não pudesse lhe ajudar. De antemão, Tion segurou as mãos nervosas do garoto.

—É por isso que o convite veio para você. Sem a sua mãe, e com o seu irmão mais velho, cuidando de Monterruna, alguém precisa representar a Casa Lachlan na coroação da Princesa Evie e do Príncipe Pete.

—E esse alguém não pode ser eu. Fiz uma promessa de que...

—Continua sendo um Lachlan de Monterruna. Deve cumprir os deveres de sua casa, querendo ou não. - A expressão incisiva de Tion deixou claro que ele não tinha escolha. - A carruagem está esperando lá fora para irmos.

Deixado sozinho com seus pensamentos, Hawley respirou fundo e desceu a comprida escadaria em espiral da torre, indo em direção ao pátio central. Um grande espaço aberto, com diversos bustos sem face nas paredes voltados para a grande estátua banhado pela luz do sol no meio do pátio, o Deus Sem face. Todas as vezes que Hawley passava por ele, conseguia sentir uma vivacidade vindo do mármore, como se estátua tivesse vida própria e que compartilhava um pouco dessa sensação com seus discípulos.

Passou por outros sacerdotes, pessoas de diferentes idades, mas era pelo Alto Sacerdote quem procurava. Parou de frente para uma grande porta de carvalho maciço e através do buraco da fechadura, Hawley podia ver o Alto Sacerdote e um outro sacerdote, que ele mal conhecia além de uns breves encontros, ambos estavam de pé na frente de um garoto deitado, que parecia estar doente.

Hawley chamou por ele e explicou sobre o convite, mas não sobre o sonho.

O Alto Sacerdote era um esquelético senhor de idade, alguns diziam que ele tinha mais de 100 anos e alguns diziam que era mais do que eles poderiam contar. Hawley não acreditava, pois sabia que era fisicamente impossível tais teorias, masisso não o impedia de querer descobrir os segredos que o homem guardava.

—Seu coração está aqui, mas a sua mente está em Monterruna. - O Alto Sacerdote tocou o rosto de Hawley, como sempre fazia quando estava prestes a dizer algo importante. - Não pode continuar enquanto essa dúvida permanecer em você, criança.

—Não sou uma criança. - Com um grunhido grave reverberando pela garganta, o sacerdote concordou.

—Já é um homem feito, tem razão, mesmo que os maus hábitos ainda me façam lhe chamar de criança. - Havia um toque de desapontamento em sua voz. - Se seu destino é ir a coroação, sabe o que deves fazer. Nosso Deus nunca se engana. Lembre-se sempre que ele é um de nós...

—Ele está entre nós. Ele vai nos levar para casa. - Completou. - Eu sei. Escuto isso toda manhã.

Voltou para a grande e inexpressiva face pura de mármore branco, esperando algum outro sinal. Hawley tocou na estátua, mas em vez de sentir o calor que tanto o fazia se sentir vivo, recebeu apenas frieza em troca.

—Esse é o meu propósito, não é? - Hawley dificilmente expressava suas emoções, mas quando fez a pergunta, um semblante de tristeza tomou conta de seu rosto. - A minha morte.

O homem concordou, sem expressar qualquer emoção. Todos os sacerdotes sabem quando chega o dia de sua morte, para se encontrarem pessoalmente com o Deus em sua casa nas estrelas.

—Um dia, você ganhou uma vida que não era sua, criança. Está na hora de devolvê-la. - O Alto Sacerdote deixou a frase no ar, e antes que Hawley percebesse, desapareceu.

XXXXX

A lua estava em seu ápice quando uma explosão foi ouvida ao longe. O ressoar de espadas e gritos ainda preenchiam o ar, enquanto os sete sobreviventes permaneciam próximos ao fosso do castelo real, atordoados e confusos.

—Você está sangrando! - Constatou Michael ao reparar no homem que o ajudara a sair do fosso.

—Nada demais, foi só um arranhão. - Com uma expressão fechada, Angus cobriu o pequeno ferimento no braço com a mão esquerda. - Uma dessas vadias me acertou antes que eu chegasse no fosso, só agora percebi que estava sangrando.

—Minha família está lá dentro, Dean! Preciso ajudá-los. - Evie gritou assim que se recuperou do desmaio em terra firme.

—Assim como um bando de assassinos. Deixe que os guardas reais cumpram seu dever. - Dean falou de modo incisivo, mas ainda com a cortesia que o título dela pedia. - O que importa agora é a sua segurança.

A fala de Dean foi abafada pelo som de algo pesado caindo na água do fosso. Todos os olhares se voltaram para o alto, onde um nobre despencara das muralhas e caíra próximo ao primeiro, ambos com a garganta cortada e ainda jorrando sangue pelo corte. A seguir, outro convidado da coroação fora colocado à força entre as ameias, implorando pela vida e arrancando um grito amuado de Evie. O olhar sôfrego de Pete Hightower se encontrou com o da esposa e ela sentiu seu coração estilhaçar ao perceber o que aconteceria a seguir.

—Vida longa ao rei. - Foram as últimas palavras que Pete ouviu, antes da lâmina da dançarina cortar o seu pescoço.

—Temos de ir agora! - Dean puxou Evie, assim que o corpo de Pete caiu no fosso e a dançarina sumiu de sua vista.

Receosos, eles seguiram por uma das diversas estradas que levava ao castelo, um caminho tortuoso por causa das pedras desalinhadas e a constante sensação de que estavam sendo seguidos pelas dançarinas. Evie era quem mais tinha dificuldade para andar, por causa das diversas camadas de tecido encharcado e a histeria. Dean a auxiliava dando-lhe o braço para que ela se apoiasse.

Atrás deles, com longo cabelo castanho molhado sobre a testa, cobrindo o azul perdido de seus olhos,

Hawley seguia imerso em seus pensamentos, parecendo aéreo enquanto caminhava. Ele sabia o que deveria acontecer, sabia que deveria morrer, mas quando viu Dalia dizer a todos sobre o massacre feito pelas dançarinas, finalmente entendeu o significado do seu sonho.

Só não sabia como contaria isso à ela.

—Onde está aquele outro homem? - Michael Hazel levantou a pergunta, olhando para todas as direções. O padre seguia de modo semelhante ao garoto, até notar que o grupo ficara menor de repente. - O que está com o braço sangrando?

—Quem? - A cigana permanecia abraçada ao corpo molhado, tentando se aquecer do frio.

—Alto e de belo porte. Eu não sei o nome, mas estava aqui ao meu lado até pouco minutos atrás.

—Ele e a mulher de tranças seguiram o caminho oposto, acho que de volta para o castelo. - Devill respondeu. O cigano tinha um corte superficial na panturrilha esquerda, causado por uma flecha perdida. Stefford e Johann não tinham ferimentos, mas as simples vestes molhadas os faziam tremer de frio.

Ouviram um relinchar de cavalos se aproximar, causando uma tensão geral em todos ali. Dean se pôs na frente de Evie, enquanto os outros esperavam apreensivos, mas quando a carruagem apareceu e o nobre sol estrelado se fez a vista de todos, Hawley correu até ela.

Tion desceu aos tropeços, aparando o corpo de Hawley num abraço desesperado.

—O que houve lá dentro? Está machucado? Por Deus! - Tion demorou para desfazer o abraço, visivelmente preocupado.

—O sinal que eu esperava. - Hawley limitou-se a responder, torcendo o cabelo para tirar o excesso de água.

O criado ficou sem entender, assim como ficava na maioria das vezes em que Hawley falava. Voltou alguns passos, olhando para aqueles que acompanhavam seu pequeno senhor e assustando-se ao ver uma figura em especial.

—Princesa! Quer dizer… Vossa Majestade. - Tion fez uma reverência atrapalhada.

—Meu marido foi rei apenas por alguns segundos, então, acho que não sou mais uma rainha. - Evie lhe lançou o melhor dos olhares por cortesia, sem querer mostrar o que realmente sentia.

—Eu conheço esse símbolo. Dos Lachlan de Monterruna. - Dean se aproximou de Tion, espreitando os olhos e estudando-o com cautela.

— Seu castelo fica próximo daqui. - A voz de Evie continuava ofegante pelo frio e o medo. - Pode nos oferecer abrigo para longe desse infortúnio?

Tion mal abriu a boca e Dean logo assumiu que sim, a segurança de sua princesa era o mais importante a se pensar. A convite do costureiro, Michael embarcou também. Os ciganos perceberam que não havia lugar para eles e lentamente deram meia volta. Estavam acostumados a permanecerem nas sombras, ainda mais, quando a sobrevivência deles não era prioridade para os nobres ou clérigos.

—Espera! Você, cigana. - Hawley chamou a mulher que se distanciava junto aos irmãos. Seus olhos azuis se encontraram com a confusão e a preocupação no olhar castanho dela assim que a cigana se virou. - Não posso dar as respostas que quer, até mesmo por que eu não as tenho, mas posso ajudar a entender o que vai acontecer a seguir. Venha.

XXXXX

Assim que julgou seguro, Alya voltou ao castelo, contemplando ainda em choque o grande massacre que se sucedera. Seu olhar manteve-se sempre atento, procurando qualquer movimento ou algo que pudesse lhe indicar uma ameaça. A comerciante já passara por diversos momentos tensos em suas jornadas, porém, aprendera a ter sangue frio para contorná-los em busca do que queria.

E o que queria ainda estava no castelo.

Encontrou alguns dos homens que montavam sua guarda pessoal roubando pertences dos cadáveres, homens que juraram protegê-la dos perigos do trabalho e que recebiam bem por isso. A caçadora de recompensas não confiava inteiramente neles, pois sabia que a lealdade de alguém é mutável quando o preço do ouro fala mais alto, mas um hora ou outra, alguma negociação acabava terminando em sangue. Por isso, era útil ter espadas juramentadas como eles ao seu lado.

—Elas já foram? - Perguntou para o líder de seus guardas, um homem forte e dentes tortos. Chamado por ele mesmo de Simon Dentes-Tortos.

—Aquelas que continuam vivas, sim. - O homem chutou uma das dançarinas mortas. - Já vi essas putas antes, são bem conhecidas no leste, nas terras do extremo oriente. Se não conseguem matar alguém com a dança, matam com o veneno de acônito que colocam nas espadas.

Alya quis deixar de lado, porém percebeu que um dos nobres parecia ser o segundo tipo de caso. Endric Hightower estava caído atrás do púlpito, vivo, mas paralisado em agonia, manchando de sangue suas roupas finas através do corte de espada na barriga.

—Ora, ora… - Balançou a cabeça em sinal de negação. Não tinha nada contra o rei, mas também não tinha nada a favor. Deixou-o agonizando.

— Parece que há plebeus no pátio externo do castelo, saqueando os preparativos do banquete e levando os cavalos restantes do estábulo. - Simon Dentes-Tortos continuou. - Se quer agir, senhora, sugiro que seja agora.

Lançou um olhar paralisante para o guarda, pedindo sem palavras que se calasse.

—Deixe que eles fiquem com as migalhas. - Ajeitou a longa trança e as roupas pesadas que usava. - Viemos aqui por outro motivo.

Tentando não olhar para os corpos ainda quentes, Alya e seus homens atravessaram o salão central em direção às escadarias, descendo cada vez mais nas entranhas do castelo e utilizando archotes para iluminar o caminho. Entraram e saíram por diferentes corredores, encontrando funcionários aterrorizados e plebeus oportunistas, mas não o que buscava.

O coração de Alya palpitava freneticamente, tanto pela emoção, quanto pela grande expectativa que criara naquele castelo desde que chegara na capital.

—Deve ser por aqui… - Murmurou ela. - Em algum lugar.

Após um bom tempo de procura, Alya e seus guardas se depararam com uma imensa porta de ferro fundido, protegida por um homem de armadura esmaltada e cota de malha por baixo, que apontou sua espada para o grupo.

—Afastem-se em nome do rei. - A ameaça reverberou dentro do capacete. - Ou encontrarão seu fim.

—Ainda não sabe? - Alya sorriu em resposta ao desafio. - O seu rei está morto. Agora, se puder dá licença, vim buscar minha recompensa.

Se o guarda real esboçou alguma reação, o capacete não deixou que Alya visse. Com agilidade, ele se posicionou em posição de combate, sem medo por estar em desvantagem.Simon Dentes-Tortos avançou com a espada roubada de uma das dançarinas, levantando um golpe que teria cortado o guarda ao meio se não fosse armadura.

O espaço limitado fez Alya e outros de seus homens recuarem.

Faíscas voaram assim que as espadas gritaram uma com a outra e não demorou para que a brutalidade subjulgasse a experiência do cavaleiro, que mesmo protegido pelas placas de metal, não pode conter os avanços de Dentes-Tortos. Pego desprevenido, o guarda teve o capacete arrancado e recebeu a lâmina direto em seu olho, terminando ali sua vida.

Alya preferiu não olhar para o corpo, não sentia-se bem com isso, apenas suspirou forte por mais um que perdera a vida pela honra.

Foram necessários dois fortes homens para empurrar a porta que deveria ter diversos centímetros de espessura. As engrenagens de ferro se moveram ruidosamente para abrir-lhe caminho e Alya foi a primeira a entrar, segurando o archote para ver melhor o que continha lá dentro.

Moedas e diferentes objetos de ouro puro, dezenas de conjuntos de talheres de prata e uma quantidade incontável a primeira vista de gemas preciosas, incrustadas em vestidos e jóias. Todo o tesouro real que os Hightower acumularam em séculos de reinado, em quantidade suficiente para que um homem adulto pudesse ficar submerso em todo aquele ouro.

Por um momento, ela mal pode respirar com tamanho contentamento.

—Peguem todos os baús que encontrarem no castelo, rapazes. - Os olhos de Alya brilhavam mais do que o próprio ouro. - Vamos levar nosso prêmio embora.

XXXXX

Sem alternativa, Angus voltou para a cidade escondido pela escuridão da noite, passando por um punhado de moradores assustados e casas saqueadas. Desfazendo-se do caminho feito pela princesa e aqueles que a seguiam, o homem retornou pela estrada principal que ligava o castelo ao porto da capital, onde pode assistir a partida do navio das dançarinas.

Ao vê-las, mesmo que em menor número, Angus as amaldiçoou com todas as forças que tinha dentro de si. O ferimento em seu braço era pequeno, se comparado ao estrago maior que elas fizeram ao roubarem a vingança contra os Hightower de suas mãos.

Passando por vielas sujas e pedintes mais sujos ainda, Angus parou numa pequena construção de dois andares que ficava no fim de um beco, praticamente escondida em meio aos outros prédios. O lado externo do bordel era feio e escurecido pela ação do tempo, mas para ele, aquela construção miserável era o seu lar.

—Você está vivo! - Uma mulher o recebeu incrédula assim que passou pela porta. Ela era magra e loira, usando jóias falsas e tecidos desbotados que revelavam grande parte do corpo. - Graças ao bom Deus.

—Graças à uma cigana, na verdade. - Falou sem ânimo, observando o vazio do lugar. - Onde estão todos?

—Sua mãe, suas irmãs e as outras meninas ficaram com medo de alguma invasão e fugiram em busca de uma abrigo melhor. Devem voltar em breve.

A maioria das invasões terminavam em saques, mortes e estupros. Conhecimento esse que todos os moradores da capital real tinham, com Downey em especial. Ela mesma fora salva de ser estuprada meia centena de vezes anos antes, quando todo o reino sofreu após uma invasão de piratas. Ainda sob a alcunha de Brooke, Angus a resgatou e cuidou de suas feridas físicas e emocionais.

—Você precisa relaxar um pouco. - Downey lhe indicou um lugar para se sentar. - Aqui, tome um pouco de cerveja. Está suando como um porco.

A contragosto, Angus fez o que ela pedia. Estranhamente, sentiu que perdeu um pouco do equilíbrio ao sentar.

—Aquelas vadias loucas roubaram a minha vingança. - Angus esbravejou após entornar a caneca, sentindo o líquido espesso aquecer sua garganta. - Eu já tinha tudo planejado, toda os detalhes de como faria aquela família sofrer aquilo que eu sofri e agora… Tudo isso foi, levado pelo vento e pelas espadas delas.

Angus contou para Downey com riqueza de detalhes, tudo o que vira no castelo, desde o aviso da cigana até a morte do novo rei. Não vira Endric morrer, mas acreditava na morte do antigo amante, após a grande chacina que culminou na queda da família real.

Quando terminou o relato, a prostituta terminou de tratar sua ferida e o encarou com dúvidas no olhar claro.

—Talvez seja melhor assim, deixe que os poderosos se destruam. - Deu de ombros. - Vingança não é para pessoas como nós, Angus.

Angus ficou sem entender.

Com excessão de sua mãe e irmãs, que sentiram na pele as constantes humilhações. Downey era a única fora da família que sabia do passado do prostituto, das dívidas que contraíram pela família Hightower e a enorme sede de vingança que Angus tomara.

—Você mais do que todos sabe o quanto isso significa para mim. - A boca do prostituto se retorceu. - Como pode achar que vai ser melhor?

—A dívida de sua família morreu com os Hightower, Angus. Não consegue ver? - Se aproximou ainda mais dele, sentindo o cheiro adocicado de suor que vinha do pescoço do homem. - Você finalmente está livre.

XXXXX

Encontraram a estrada para fora da capital tumultuada, devido ao assombroso saque que se sucedeu após a partida das dançarinas. Após as apertadas ruas da capital ficarem para trás, longos campos verdes e colheitas se abriram para eles. Ao fundo, dedos negros de fumaça emergiam do castelo real em direção ao céu, onde novas estrelas surgiam a medida que a carruagem se afastava.

Os irmãos de Dalia seguiam pendurados nos alabastros da carruagem, enquanto Tion comandava as rédeas dos garranos, que ofegavam a cada trote pela quantidade de peso que puxavam.

Dentro da ricamente decorada estrutura de madeira, a Princesa Evie e Hawley seguiam calados, ouvindo Dean murmurar frases de incentivo e apoio, mas a preocupação que crescia dentro da princesa não pareciam findar.

Pensava na mãe e no irmão, na morte de Pete, na queda do reino que seria seu e em todos aqueles que morreram em seu salão. Seu dever como princesa, era cuidar de seu povo, não fugir.

Ainda mais forte em seus pensamentos, havia a mulher acusada de bruxaria, que salvara sua vida, mesmo que ela não soubesse como.

Evie ergueu a mão direita, silenciando o monólogo de Dean e tomando a palavra.

—Como sabia? - Dirigiu-se para Dalia, sentada no banco de veludo negro na sua frente. - Estava certa em acreditar em você, mas isso não a redime de dar explicações.

—Se eu pudesse, explicaria. Foi como se uma grande angústia crescesse dentro de mim, tão fria, que senti meu corpo gelar. Em minha mente, vi as dançarinas chegarem, vi seus convidados morrerem e… Vi nossas mortes acontecerem. - Dalia sentiu seus olhos se encherem de lágrimas, porém não deixou que elas caíssem. - Então, acordei e percebi que nada daquilo tinha acontecido, mas uma voz dentro de mim gritava para lhes avisar e foi o que eu fiz.

O clima dentro da carruagem pareceu ficar mais pesado, exceto para Hawley, que reunia coragem para contar aos sobreviventes aquilo que sabia.

Ao lado de Dalia estava o clérigo, que parecia tentar se controlar em estar na presença de um controverso religioso e um bando de ciganos. Escutar o relato dela apenas lhe trouxe mais inquietação, fazendo seu coração acelerar mais um pouco e o crucifixo rolar entre seus dedos. Se sua mente perdia-se em busca de orientação para como agir, sua boca permaneceu em silêncio.

XXXXX

No topo de uma colina cercada por uma pequena vila, o grande e quadrado castelo parecia um grande punho de pedra rasgando a terra verde ao redor. Era um construção três vezes menor que a fortaleza real, mas que não perdia em beleza se comparada com os Lothair ou os Hightower.

A carruagem passou pelas muralhas externas e parou próxima aos estábulos, onde os garranos resfolegavam de exaustão. O mestre dos cavalos tomou as rédeas de Tion e o criado saltou para abrir a porta.Hawley foi o primeiro a sair e contemplar o lugar que um dia já o seu lar, recebendo olhares espantados das pessoas que não esperavam o seu retorno.

O garoto se lembrou da época em que era apenas o segundo filho de um bondoso duque, sete anos atrás. Agora, ele era um homem feito, aprendiz de sacerdote e com uma responsabilidade no coração.

—Hawley? - Um rapaz vestido com um gibão preto decorado com o sol estrelado em branco e acessórios de prata apareceu no pátio. - O que faz aqui?

—Satisfações, irmão. - Hawley mal olhou para ele.

Harlaw, recém nomeado Duque de Monterruna tinha a mesma idade de Tion, mas aparentava ser mais velho por causa da barba que cultivava, numa tentativa falha de ser mais parecido com o pai.

—Você e seus demônios não são bem-vindos. - Sem querer, apontou para os  os ciganos. Harlaw era um cristão devoto e abominara a religião do irmão, preferindo jamais vê-lo novamente.

—Ele está falando da gente? - Johann perguntou para o irmão mais próximo.

—Não. Fala do Deus do garoto. - Davill respondeu em voz baixa, temendo que o nobre percebesse sua presença ali.

—Senhor, se me permite. - Tion se aproximou. - Ainda há outros convidados na carruagem.

Harlaw olhou para o criado e depois para a carruagem, vendo uma mulher ruiva dentro de um luxuoso vestido amarrotado.

—Tenho certeza que nós não seremos um incômodo. - Evie disse ao descer da carruagem. Mesmo com a face intocada pelo título que possuía, tudo o que Evie queria era gritar aos quatro ventos toda a dor que sentia, mas ela era uma princesa, precisava agir como tal. - Não é mesmo?

—Claro que não, Vossa Alteza. - Harlaw se curvou surpreso, engolindo as palavras ríspidas que queria dizer ao irmão. - Monterruna está a sua disposição.

Logo, empregados dos Lachlan surgiram para levar a princesa para dentro do castelo. Alguns se sentiam honrados com a presença dela, outros se perguntavam os motivos da ruiva estar molhada e desalinhada. Michael e Dean os seguiram.

—Não se preocupem, ficarão seguros aqui. - Hawley disse para os irmãos Leventti. - O Harlaw tem medo do que o Deus Sem Face pode fazer.

—E o que ele pode fazer? - Dalia perguntou.

—Vocês verão em breve.

XXXXX

Senhora Esperança estava ancorado no porto da capital, iluminado pela luz da lua e pelos archotes distribuídos ao longo do cais. Um navio de três mastros que Alya conseguiu pela metade do que valia com um negociador do leste, que apesar de ser abastado e confiante, não tinha o mesmo dom de persuasão que a caçadora possuía.

Fora naquele navio que conhecera belezas que poucas pessoas de baixo nascimento poderiam imaginar. Desfrutara de homens e mulheres em diversos portos, enriquecera seus bolsos e partia em busca de mais, onde quer que quisesse ir, sem nada que ameaçasse sua liberdade.

Quando o ouro dos Hightower estava nos porões do navio e as velas brancas inflaram com o vento, Alya pode finalmente parar para esquecer o castelo e as palavras da cigana. Em um último deslumbre, a mulher olhou para a fogueira no alto da torre-farol, que ficava cada vez mais pequena conforme o navio se afastava daquele reino quebrado.

Foi quando viu o leme ser virado em outra direção sem sua ordem, indo para um caminho diferente do que planejara. Apertou-se no casaco de couro fervido e rumou com passos largos pela extensão da amurada.

Encontrou Simon Dentes-Tortos na cabine, amolando a espada com uma pedra.

—O que houve? Eu não ordenei que mudassem o curso.

—Mudança de planos, minha senhora. Respondeu com uma cuspida próxima aos pés dela.

—Do que está falando? - Alya piscou os os olhos negros algumas vezes, sem entender o que se passava. - Eu dou as ordens. Vocês obedecem.

—Os rapazes e eu conversamos enquanto estava fora. - O homem levantou, evidenciando que era muito mais alto que ela.

Alya olhou para os outros homens, espalhados em semicírculo ao redor dela, procurando uma centelha de lealdade em algum. Não encontrou.

—Então porque não foram embora quando estávamos em terra? - Alya pigarreou, sentindo uma gota de suor escorrer pelo rosto. - Por que não abandonaram o navio como os ratos que são?

—Agora temos dinheiro suficiente para.viver como reis. Não precisamos e nem queremos mais seguir a suas ordens.

Dois homens trouxeram ao convés um dos baús pegos no castelo, dessa vez vazio. Alya engoliu em seco, seu corpo ficou mais rígido e sua respiração pesou dentro do peito, apesar da face continuar implacável.

—Eu jamais farei isso. - Alya suava frio, pensando no quanto se enganara com aqueles homens.

—Vai sim. - Dentes-Tortos levantou a espada e encostou a lâmina no queixo dela. - Se não quiser sentir o gosto do acônito dessa espada.

Antes que tivesse chance de falar algo, Alya foi amordaçada à força. A mulher lutou da forma que pode, destribuindo socos que deixariam marcas roxas futuramente, porém, sua força não fora o bastante para aqueles homens. Alya, murmurando xingamentos pela mordaça em sua boca.

Seu coração disparou quando foi amarrada e colocada dentro do baú, revivendo as vezes que imaginara o naufrágio que sobrevivera. Seus olhos aterrorizados imploravam, mas nenhuma de suas espadas juramentadas fez algo e ela viu a tampa do baú ser fechada sobre sua cabeça.

—O que faremos agora? - Um dos guardas perguntou, certificando-se que o baú estava bem trancado.

Simon Dentes-Tortos sorriu com malícia, apreciando a ideia que surgira em sua mente. Levantou a voz e disse:

—Joguem-na no mar.

XXXXX

Downey foi buscar o restante da família de Angus, deixando-o sozinho no bordel. O prostituto não desaprovou a ideia, sentia-se mal desde cedo e aquela seria uma boa oportunidade para descansar.

Colocou um castiçal numa mesa puída e acendeu uma longa vela, para trazer-lhe luz e espantar o frio do quarto. Não só o frio do quarto, como o que também havia em seu corpo, mesmo que estivesse suando sem motivo.

Assim como o resto de sua vida, o quarto onde Angus recebia seus clientes era disfarçado para refletir prazer ao invés de sofrimento. Nos quartos ao lado, suas irmãs viviam em situações parecidas, mesmo que sonhassem todas as noites pelo dia em que ela angústia acabaria.

Angus puxou um grande baú que ficava escondido embaixo da cama e o simples gesto lhe deixou com uma breve falta de ar. Era alguns de seus antigos vestidos, doados pelas irmã ou dados como presente por alguns de seus clientes.

Aquilo lhe trazia uma mistura confusa de sentimentos. Ele se sentia bem dentro daqueles vestidos, desejando poder usá-los para sempre se possível, mas também, lembrara-se das vezes em que fora obrigado a vender seu corpo ainda jovem, quando era tocado por homens rudes que o maltraram e o faziam agir como uma garota pequena.

Não havia prazer na dor que sentia, apesar de fingí-la muito bem, apenas o sentimento de revolta que fora crescendo no passar dos anos. Mas de todos os homens e mulheres que conhecera e se vendera, nenhum fora tão terrível quanto o rei daquelas terras.

Ver o rosto gordo e barbado de Endric Hightower lhe trazia repulsa.Sentimento esse que Angus disfarçava com um sorriso sedutor, fazendo o que fosse necessário, aquilo que o homem queria em troca de algumas moedas de ouro, contando os dias para conseguir a sua vingança.

Angus tirou as roupas úmidas que usava, jogando-as num canto do quarto e colocou o vestido, percebendo que sua pele parecia ficar cada vez mais quente a cada toque.

Abriu a janela e quando o fez, sua cabeça tonteou e sua visão ficou fora de foco por alguns instantes.

Angus se voltou novamente para a direcção oposta da janela, mas ao curvar-se bruscamente, desabou no chão. Suas pernas cederam ao peso do corpo e Angus sentiu a respiração falhar quando caiu próximo à mesa.

Tentou levar as mãos para o rosto, mas as viu se contorcerem e paralisarem como estátuas de mármore. Angus se perguntou várias vezes o que estava acontecendo, mas recebeu apenas uma queimação interna como resposta.

A rigidez do corpo fez com que a ferida no braço voltasse a se abrir, e despejasse curtos filetes de sangue para fora. O cheiro do sangue logo chegou ao prostituto, que percebeu o aroma floral que emanava do lugar onde fora atingido de raspão pela espada.

Lágrimas despontaram de ambos os olhos ao perceber que também não podia mexer o pescoço. Seu rosto ficou voltado para cima, onde podia ver que o castiçal fora derrubado com o impacto contra a mesa e a vela acesa pendia para fora do móvel.

Em direção à sua face.

XXXXX

Na área comum do castelo, Michael se encaminhava para o estábulo, onde pediria ao mestre dos cavalos para lhe aprontar uma montaria para voltar ao mosteiro na manhã seguinte. Voltar para seus irmãos de batina e contar-lhes o que houve na capital, em especial, para Khan.

Não tinha prática na montaria, pois o mundo que conhecia se limitava aos muros da igreja e das páginas de livros. Mas mesmo assim, era melhor do que voltar andando. Mesmo que não demonstrasse abertamente, Michael estava incomodado por estar num ambiente diferente do costumeiro, com pessoas que mal conhecia e que se diferenciavam tanto daquilo que ele era em essência.

Respirou o frio ar noturno e se apertou dentro do manto pesado. Quando percebeu uma penumbra se mover atrás dele, fazendo-o pegar no crucifixo.

—Também não consegue dormir? - Michael ouviu uma voz feminina dizer, mas não pode ver seu rosto.

—É você, cigana? - Durante todo o caminho das terras Hightower até ali, Michael não lhe pronunciara uma única palavra, nem mesmo, um vislumbre de seu olhar, mas antes de partir de volta para igreja, precisava lhe confessar a verdade.

—Eu tenho nome, sabia? - Os braceletes de ouro brilharam quando a luz dos o archotes refletiram neles. -  Dalia.

Mostrando estar melhor físicamente, Dalia se aproximou do clérigo. Os longos cabelos negros estavam amarrados numa trança, as roupas coloridas e molhadas foram substituídas por vestes simples.

Ao vê-la, Michael respirou fundo, buscando coragem para continuar.

—Eu tenho um amigo, que soube do incêndio à sua aldeia. Nunca vou entender o que passou na cabeça dele, mas o Kahn encontrou sobreviventes do seu povo e está cuidando deles em segredo. - Era perceptível a dureza em sua voz, como se cada palavra perdesse o significado. - Por isso eu vim falar com o rei em busca de auxílio, mesmo vocês sendo… Vocês.

Anteriormente, a face de Dalia mostrou emoção ao saber que havia sobreviventes, mas depois, sua expressão morreu com as palavras secas do clérigo.

—Passei grande parte da minha vida sendo cuspida pela igreja. Ameaçada, perseguida, tratada como um cão por aqueles que dizem fazer somente o bem. - Dalia sentiu seu sangue ferver. - Seja lá qual for o seu insulto, padre, guarde-o para você.

Michael espanou as mãos no ar, em sinal de redenção.

—O que vocês fazem, o que vocês são, vão contra tudo aquilo que acredito, mas o que eu quero dizer é que…

Devo-lhe minha vida, por isso e apenas isso, tenho uma dívida de gratidão com você, Dalia.

A mulher fora pega de surpresa, se perguntando se teria mesmo escutado aquilo. Ela esboçou um sorriso de trégua, mas quando abriu a boca para confirmar isso, sentiu o ar faltar de repente, como se todo ele fosse sugado de seus pulmões numa única só vez.

—O que houve? - Michael segurou o corpo dela por instinto, sentindo que o rosto dela parecia estar em chamas. Dalia colocou as mãos no pescoço, arranhando a própria pele e fazendo uma força descomunal para respirar.

O rosto da mulher assumiu tons desesperadores de vermelho.

Michael olhou em volta, procurando por ajuda, sem saber o que fazer com a mulher convulsionando em seus braços. Ele puxou o crucifixo para fora do manto, murmurando uma reza para ela.

Num ímpeto, Dalia puxou o pulso dele, fazendo com que ele se inclinasse e seus rostos se aproximassem.

—Se você acreditou em mim antes, por favor, acredite agora. - Falou entre respiros pesados. - Isso ainda não acabou.

XXXXX

As lembranças do dia do naufrágio foram perdidas há muito tempo, mas Alya se recordava das histórias da mulher que a achou boiando no mar. Todas as vezes, Alya se sentia enjoada ao imaginar a situação, vendo a si mesma no cesto de madeira, empurrada sem destino pelas ondas.

Agora, era como se fosse uma bebê novamente. Perdida, indefesa, sozinha e em prantos.

Após ter sido atirada ao mar aberto, o baú boiou por alguns minutos, mas conforme a maré ia batendo contra a madeira, a água salgada invadia o objeto e deixava-o cada vez mais pesado. O suor fez a mordaça escorregar de sua boca, porém mesmo que gritasse, ninguém escutaria o seus apelos.

Estava longe demais da capital.

Suas lágrimas se misturaram à água salgada, enquanto remexia-se dentro do pequeno espaço confinado, tentando em vão soltar suas mãos.

Conforme os segundos passavam vagarosamente, a água salgada continuava a entrar pelas frestas, queimando os seus olhos e fazendo com que gritasse em desespero. Sem alternativa, Alya ergueu a cabeça o máximo que pode, para sugar o pouco de ar que ainda tinha ali dentro, sentindo o baú ser tragado para baixo, até ficar totalmente submerso.

Resistiu o máximo que pode, mas sabia que aquela era uma batalha perdida. De nada se arrependia, pois conquistou o que tinha através de árduo esforço, mas ainda sim, confiar nas pessoas nas pessoas erradas, fora a faca de dois gumes que causara sua queda. E quando o último resquício de fôlego escapou de seus pulmões, Alya deixou que água invadisse o seu corpo e afundou na escuridão azul do oceano.

XXXXX

Angus prendeu a respiração e tentou ao máximo mexer o próprio corpo, que parecia não querer obedecer seus comandos. Tinha a impressão de seus membros estarem mais pesados, assim como lentamente queimavam internamente.

Apesar do corpo estar imóvel, o coração do homem batia célere assim como a sua mente.

Os olhos castanhos de Angus ficaram vidrados na vela acima de seu rosto, observando a chama que ardia. A primeira gota de cera caiu em sua bochecha, arrancando um chiado sofrido de sua garganta. Por mais força que Angus colocasse no próprio corpo, era incapaz de mover um músculo sequer e sua respiração falhava cada vez que tentava.

E não tardou para que outra gota de cera caísse em seu rosto e lhe fizesse gemer mais uma vez.

A chama pareceu ficar maior conforme os segundos se passavam, logo, outra gota de cera caiu e deslizou por sua pele até se solidificar próximo ao nariz. Angus respirou o mais firme que pode, mesmo que não sentisse o seu peito se mover, mas cada vez que puxava o ar, seus pulmões gritavam e se contorciam de imediato. Seu olhar se voltou novamente para cima, vendo outra gota cair e queimar-lhe o rosto.

A face de Angus estava paralisada numa expressão de terror, refletindo o enorme medo que sentia. Longos minutos se passaram, cada um deles aumentando a intensidade da dor que sentia.

O vento gelado que entrava pela janela redirecionava as gotas da vela que se aproximava da metade e duas gotas de cera caíram logo em seguida em seu lábio superior. Angus guinchou mais uma vez, ficando com o rosto cada vez mais vermelho e coberto por uma camada de cera branca.

Pensou novamente em Endric Hightower e desejou que estivesse onde estivesse, sentisse o mesmo que ele. E durante os segundos seguintes, ignorou a dor excruciante e imaginou o ex-amante morto aos seus pés.

Outra gota de cera deslizou por seu rosto, porém desta vez, Angus não gritou.

XXXXX

Sete anos antes…

O curandeiro já havia tentado de tudo, mas não havia mais nada em seu amplo conhecimento das ervas, que pudesse salvar a vida de Hawley Lachlan. Acamado, molhado de suor e sem forças até mesmo para manter seus olhos abertos. Definhando tanto, que era possível ver as veias e os ossos sob sua pele pálida.

O homem saiu do castelo abatido após declarar que o menino morreria em breve, causando um ataque de histeria na Senhora Rowena, que não conseguiria suportar a perda do pequeno filho, mesmo que tivesse um terceiro em sua barriga. Dias se passaram. Quinzenas inteiras foram perdidas em dor, sem qualquer sinal de esperança.

Até que a notícia dos seguidores do Deus Sem Face chegou em Monterruna. A Senhora Rowena não pensou duas vezes em renegar os deus que permitia a morte do seu filho, se para isso, outro viesse para salvá-lo. O Duque Higor se negou veemente, proibindo que as práticas das trevas corrompessem sua casa, mas os sacerdotes prometiam e entregavam os milagres da vida. E mesmo com a fé cristã gritando para que ele aceitasse o destino do filho, no fim, o amor falou mais alto e a rendição veio logo a seguir.

Dias depois, Tion recebeu os sacerdotes e os levou para o quarto do segundo herdeiro, se retirando logo em seguida. Porém a curiosidade falou mais alto, misturada ao sentimento de preocupação que criou com o garoto enfermo. Passados alguns minutos, silenciosamente Tion se agachou para espiar através do buraco da fechadura, e apesar da pouca iluminação do cômodo, conseguiu ver aquilo que o traumatizou para sempre.

Com dificuldade o homem subiu na cama, sob o olhar atento do Alto Sacerdote. Colocou suas pernas sobre o corpo magro do garoto é sentou-se sobre ele, roubando um guincho fraco de Hawley após o garoto sentir o peso lhe esmagar.

—Nossa vida, irmão, dura até que o Deus Sem Face diga que cumprimos o nosso propósito. - Disse docemente para o sacerdote. - Seu propósito com o Deus Sem Face é este, irmão.

—Ele é um de nós. Ele está entre nós. Ele vai nos levar para casa. - Lançou um olhar conformado para seu mestre.

—Pegue isto, criança. - O Alto Sacerdote colocou um punhal nas pequenas mãos de Hawley, que mal sabia o que acontecia ao seu redor. Do lado de fora, Tion observava o máximo que a fresta lhe permitia. - Uma vida por outra vida, para todo o sempre, até que o Deus Sem Face decida como ela terminará.

O sacerdote sobre Hawley se debruçou lentamente sobre o garoto, que permanecia com o punhal em mãos e apontado para cima. Em sua mente, não havia dúvida ou medo daquilo que fazia, apenas a sensação de dever cumprido com o seu Deus.

A lâmina entrou fria e direta em seu coração, banhado o garoto com seu sangue e sua vida.

Mesmo aparentando ser bastante frágil, o Alto Sacerdote teve forças o suficiente para remover o homem pesado de cima do garoto, colocando-o respeitosamente no canto do quarto.

—Abra os olhos, criança. - Limpou o sangue do rosto de Hawley, apreciando o brilho que surgia nas íris azuis do garoto. - E viva a vida que agora é sua.

XXXXX

Parado de frente para a janela de pedra do quarto frio, Hawley admirava as estrelas cintilarem sobre o céu acima de sua cabeça. Estava cansado e preocupado com a cigana esperando por ele, andares abaixo, mas olhar para as estrelas, lhe trazia a paz de espírito que precisava no momento.

—Atrapalho? - Tion surgiu à porta, com um castiçal iluminando seus rosto e seus olhos verdes.

—Sim. - Respondeu de forma aérea. - Mas pode entrar.

—A sua mãe está se arrumando para vê-lo. Harley também. - Tion parou poucos passos atrás do garoto, vislumbrando as estrelas com ele. - Mas você está muito estranho, mais do que o normal. Percebi isso quando o encontrei naquela estrada. O que está acontecendo, Hawley?

Perguntou de forma clara, senão Hawley perdia-se nas palavras.

A face de Hawley continuou impassível, como se não estivesse

—Sabia que alguns dos sacerdotes do templo estudam as estrelas? Eles me mostraram que se você olhar com atenção, pode ver elas formando figuras.

—Hawley! Não me faça perguntar outra vez. - Quando nenhum de seus senhores estava por perto, Tion não precisava agir com subserviência. - Você sabe que eu estou aqui para te ajudar.

Hawley não sentiu o a força que usara para cerrar os punhos, mas quando abriu as mãos, viu um tímido filete de sangue surgir em suas mãos. Lembrou da grande estátua sem face no templo e procurou conter o sentimento ruim que crescia, mas percebeu que não conseguiria sozinho.

—Eu ia morrer naquele castelo, Tion. Esse era o meu destino. - Disse tranquilamente.

—Não entendo o que quer dizer.

Tion segurou a mão ferida dele, confortando-o do jeito que podia. Como seu criado pessoal, ele sabia que Hawley era frágil, influenciável e perigosamente inocente, contudo, não conseguia entender como o garoto não compreendia a gravidade de suas palavras e ações.

Principalmente, por saber como a vida do garoto fora salva sete anos antes.

—Mas quando vi a cigana, lembrei do meu sonho e por isso fui atrás dela, para cumprir os ensinamentos que me deram no templo e conduzir essas pessoas ao fim da vida. Levá-las para casa. A princesa, a cigana… Todos vão morrer e é preciso que eles aceitem o seu destino.

Desconfortável com a naturalidade com que Hawley falara, Tion largou as mãos dele.

—Você estava aqui naquele dia, Tion. Nesse mesmo quarto, enquanto eu morria aos poucos. Você sabe que o Deus Sem Face pode fazer. - Sorriu inocentemente. - Eu sou um aprendiz de sacerdote. Todos nós do templo sabemos quando vamos morrer, por que é para isso que vivemos. Para o Deus da Morte.

 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Não esqueçam de comentar, as reviews são muito importantes para a continuidade do projeto.



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