Nemuru - Desperta-me escrita por Candle Light


Capítulo 2
2 - Lost 失った




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Durante a escola tinha feito poucos amigos - mas bons, pelo menos eu acho. Nicole, Nicolas e Pedro eram meus melhores - e únicos - amigos. Formávamos o grupinho de diferentões e excluídos sociais. Ninguém ligava pra nós, mas estávamos pouco ligando também - e aquele era o dia da libertação total da nossa escravidão e de ter que aturar certos “alguéns”: a colação.

Estavamos com aquelas becas parados esperando anunciarem a nossa turma para entrarmos no salão da cerimônia.

—Eu ‘ nervosa - Nicole disse enquanto se agitava sem parar, saltitando nos calcanhares.

—Com o que, garota? A gente finalmente vai acabar essa fase da vida. - eu disse, prevendo nada mais que muitas horas com a bunda sentada na cadeira.

—Nemu, é o início de uma vida nova!

Me limitei a assentir e pensar realmente no que estava acontecendo. Uma nova vida. Aquela rotina tinha chegado ao fim, eu não sabia mais pra onde ir, que horas ir. Aquelas regras não existiam mais para me conter. O pensamento me fez sorrir, mas também me fez sentir terrivelmente perdida. Antes que eu pudesse me aprofundar nisso, chamaram nossa turma e entramos, todos sorridentes e animados, uns sozinhos, outros de braços dados com amigos. Nicole me agarrou no meio do caminho. Seus olhos estavam marejados.

—Mas já? - eu disse, surpresa. Nicole era um poço de sensibilidade, mas até para os padrões dela era muito cedo pra isso.

—Cala a boca. - ela replicou, tentando sorrir enquanto fotógrafos profissionais da empresa clicavam cada aluno que surgia no corredor.

Sentamo-nos, todos os alunos, no alto do palco, para ouvir todos os

discursos e esperar sermos chamados para pegar os canudos do diploma. E como eu havia esperado, foram muitas horas com a bunda na cadeira. Mas aquele tempo me fez voltar à reflexão anterior - de que eu estava irremediavelmente perdida. Como era ser um estudante universitário? Seria mais fácil e menos restritivo? As aulas seriam legais? Quantas provas teríamos? Como eu deveria me comportar?

As perguntas rodopiavam na minha cabeça e a cada uma feita, mais sem chão eu passei a me sentir. Ouvi os discursos, coisas que aconteceram durante o ano, menções de pessoas, de situações boas e más. E quando me dei conta, minha garganta tinha um nó. Eu estava indo embora. Deixando a minha segunda casa. Deixando o universo que eu conhecia.

Entrando no vácuo do desconhecido.

Quando chamaram meu nome, Nicole teve que me cutucar para que eu descesse para pegar meu diploma. Quando voltei a me sentar e contemplar aquele canudo forrado de tecido azul escuro percebi que tinha acabado aquela etapa da minha vida de fato. É engraçado como às vezes a gente não se dá conta até que as coisas estejam acontecendo debaixo do seu nariz. E era exatamente isso que acontecia naquele momento.

Os chapéus voaram no fim da cerimônia, e eu estava satisfeita e orgulhosa de ter me formado. Sim. Estava. Apesar disso havia uma parte de mim que acabara de realmente despertar, e que repetia sem parar algo que me deixava ansiosa:

E agora?

 

****

Com as férias chegando ao fim, eu e meus amigos tentávamos aproveitar o tempo antes de começarmos cada qual sua faculdade. Nicole faria arquitetura  numa faculdade particular, embora não estivesse feliz com o fato - seus pais insistiram. Nicolas ia estudar robótica, e Pedro biomedicina. Todos estavam ansiosos e animados, iriam estudar o que gostavam e adentrar uma nova fase.

Eles viram minha cara de nada, e Nicole - que sempre fora a mais descarada - perguntou:

—Nemu, você não está animada? Pensei que ia fazer o que você sempre quis.

—O problema é que eu não tenho certeza. - remexi meu milkshake - Eu amo arte. Só que meu pai está certo em dizer que não dá dinheiro. É um caminho difícil.

—Mas você resolveu aceitar isso, não é? - Pedro disse.

—Sim, mas ainda tenho medo de não dar certo. - suspirei - E se não der ele vai arrancar o meu couro e provavelmente me mandar pro Japão.

— Faça dar certo e ele não vai ter do que reclamar. - completou Nicolas.

Assenti com a cabeça. Será que eu tinha força pra enfrentar tudo e todos e seguir com as coisas que eu gosto? Queria pensar que sim, contudo não me achava boa o suficiente pra me dar bem no meio ainda. Existem tantas pessoas boas por aí -  incríveis até! Eu ainda era muito amadora.

De qualquer forma, eu tinha plantado a semente.

Veremos se ela dará frutos.

Ok, eu estava nervosa. Tentei não ficar. Tentei evitar parecer perdida. Sem sucesso. A universidade era um lugar estranho. O campus de arte aparentemente ficava num buraco entre prédios depois do dito “jardim”, um espaço onde as pessoas (gente de todo tipo, a maioria esquisita) se juntavam para comer, conversar e ficarem chapados— aparentemente. E eu estava perdida. Tinha uma penca de gente perdida, o que me deixava um pouco mais confortável. Porém odeio perguntar as coisas, simplesmente porque não sei lidar com gente, então resolvi  observar as pessoas em busca de mais um calouro perdido pra sondar.

Minha sondagem atraiu uma menina que parecia uma caloura perdida como eu. Ela começou a se aproximar. Interação humana, não sou muito boa nisso. Oh God.

“Vamos ser legais, vamos ser legais”.

—Oi, você é caloura de artes também?

—Ahn..sou sim. - respondi tentando não parecer a gótica de sempre. A garota sorriu de uma forma genuinamente aliviada. Ela tinha um belo sorriso. Um cabelo cacheadíssimo, cheio e fabuloso preso para trás com um lenço, olhos castanhos quentes e doces. Ela parecia legal.

—Qual o seu nome? - ela perguntou. Engoli em seco. “ah não”, pensei. “ Vou ser zoada aqui também”

—Ah…- pigarreei - É Nemuru.

Esperei o “que nome diferente” de sempre, mas ela apenas disse:

—Prazer, eu sou Helena!

Levantei uma sobrancelha, surpresa, porém não disse nada.  Logo conversávamos sobre materiais de pintura e desenho. Helena gostava de falar sobre qualquer coisa, e era muito loquaz. Descobri que gostava de desenho clássico com carvão e óleo sobre tela, apesar de adorar desenhar quadrinhos e mangás.

No entanto… Helena era muito diferente de mim. Enquanto ela era alegre e falante, sociável e divertida, eu ainda estava presa no meu ser tímido, fechado, profundo e contemplativo. Logo Helena se misturou com seus pares mais semelhantes e eu fiquei para trás. Normal...normal. Nada com o que eu não estivesse acostumada.

Acostumada…

Pensar naquela palavra dava um nó no meu peito.

 

Quando achamos o lugar onde passaríamos pelo trote, os veteranos nos reuniram e nos levaram a uma quadra, onde nos “apresentaríamos”. Sentei no semi-círculo junto aos outros calouros que se entreolhavam perguntando o que estava acontecendo.  De frente para nós, um grupo de veteranos esperava todo mundo sentar. À minha volta, tinham pessoas que claramente tinham acabado de sair do ensino médio. Pareciam sem saber o que fazer, algumas um tanto intimidadas, outras, talvez mais ousadas, pareciam até confortáveis e animadas. Acho que eu era muito introvertida para fazer outra coisa a não ser abraçar meus joelhos e esperar quieta o que iria acontecer.

Simplesmente teríamos que subir num banquinho e responder algumas perguntas para então começarem os jogos. Na frente de todo mundo.

Eu odiava fazer coisas na frente de todo mundo.

 

Os calouros foram um a um subindo no banco e a cada um eu torcia para que não me escolhessem, embora soubesse que minha hora chegaria - como de fato chegou.

—Qual é o seu nome caloura?

—Nemuru…

—Não entendi caloura, fala mais alto!

Pigarreei para soltar minha voz.

—Nemuru!

—Ah, melhorou. De onde você é caloura? Do Japão? - o veterano continuou.

Reprimi um suspiro. Afinal as pessoas não tinham obrigação de saber né? Ainda mais tendo o nome que eu tenho.

—Não, eu sou brasileira. Meu pai é do Japão.

—Ah, que legal!

Seguiram-se perguntas sobre minha idade, onde eu morava...Descobri que a maioria não vivia na Zona Sul como eu. Tinha gente de todo canto do Rio de Janeiro, desde gente de Botafogo como gente da Pavuna. Outras realidades. A diversidade me fascinava.

Saímos dali para um jogo de batata quente com um balão cheio de tinta, e depois uma gincana com corredores poloneses de veteranos com pistolas de água e tinta.  O resultado final foi um monte de gente coberto de tinta dos pés à cabeça. Eu estava desistindo de salvar minha blusa, e meu cabelo parecia igualmente condenado. Mas num geral, foi uma boa experiência, foi divertido. Pelo menos, minha mãe não estava em casa para ver meu estado transformado em pintura contemporânea. Acho, porém, que não conseguiria esconder minha roupa. Ops.

Entrei no meu quarto e olhei-me no espelho, coberta de milhares de manchas e respingos de tinta. Eu tinha dezenas de cores e no fundo, eu adorara. Mesmo estragando minha roupa, mesmo cagando meu cabelo e quase todos os centímetros de pele nua que existia em mim, eu gostei. Eu amava as cores e as tintas, e hoje fui bombardeada com elas. Parabéns comissão de trote, achei muito artístico. Depois de tomar banho e tirar o que conseguir de tinta de mim, resolvi pintar um “ autorretrato” neste dia. A pessoa na pintura não seria eu, mas uma garota genérica, coberta de tinta, coberta de cores, como eu ficara naquele dia.

 

Acabei descobrindo que me encaixava no ambiente do meu curso, da faculdade, das aulas - que no final das contas me atraiam muito, e eu gostava dos trabalhos e de aprender mais e mais sobre arte. Eu maravilhei-me com a história, novas técnicas e me perdia em ideias e rascunhos por horas a fio. Naqueles momentos, eu realmente me sentia muito bem.

Nos intervalos mais longos eu me sentava no jardim com uma lata de alguma bebida e rabiscava ideias diversas, enquanto observava as pessoas irem e virem. Grupos de amigos, alunos solitários estudando com a cara metida em cadernos, músicos ensaiando uma peça, casais...e cada um com estilos diversos, cabelos coloridos, raspados, tatuagens, bambolês. Tanto material para pintar, tantas ideias. E eu tinha tinha tempo pra isso tudo. E eu deveria estar feliz.

Não estava?

Sim.. e não… Olhando o espaço em volta, era tão grande. Atrás de mim um pedaço de rocha nua que fazia parte do morro, à frente ficava o murinho onde o pessoal colocava comidas para vender no estilo “pegue e pague”, e mais à frente o trailer de comida. À esquerda uma grande árvore, uma mangueira. Dali ainda podia ver o portão à direita e a cabine do segurança, o bandejão, agora fechado durante a tarde. Era de certa forma calmante ficar ali observando as pessoas, com todo aquele espaço...sem ninguém pra dividir.

Suspirei, pousando um pouco meu lápis 2B e olhando meu trabalho. Um esboço de grafite da vista do jardim de onde eu estava. As pessoas levemente borradas como se tivessem sido fotografadas em movimento.Estiquei as costas num alongamento. Desenhar encolhida naquela posição e sobre um assento de cimento não era o melhor para minha coluna.

Alguém começou a tocar uma música suave num violino ali por perto, mas eu não conseguia ver de onde estava. Sorri. Ouvir música tinha o poder de me deixar num humor melhor.Respirei fundo, sentindo a música fluir por mim, tão delicada, enquanto a brisa da tarde soprava as folhas acima, fazendo um barulho gostoso e trazendo o cheiro das frutas na árvore. Sim, bem melhor.

Até ter que falar com meu pai à noite. E ter de mentir sobre a faculdade. Eu pesquisei grades de engenharia para falar sobre, outras coisas até inventava. Minha sorte era que meu pai não ia pesquisar os cursos que a minha faculdade oferecia até onde eu o conheço, mas eu nem sabia ao certo se lá tinha  o curso de engenharia de telecomunicações.

—Está estudando para suas provas, Nemu? -  ele perguntou.

—Não pai, eu comecei a ter aulas nesta semana..

—Mas é bom começar cedo, você sabe. Não quero você repetindo matéria, você sempre foi boa aluna.

—Pode deixar, eu vou tentar.

—Você vai conseguir, nada de só tentar. Pensamento positivo sempre.

—Certo pai. - muitas coisas eu concordava mais para deixá-lo feliz ou para que o assunto acabasse logo do que por realmente estar me comprometendo.

Minha mãe não perguntava grandes coisas, e raramente ficava em casa por causa do trabalho então com ela eu achava estar segura com essa mentira. Os únicos que sabiam mesmo da minha fraude eram meus amigos. No geral, eles achavam que eu não deveria esconder essas coisas de nenhum deles. Mas no final, também não tinha coragem de dizer e assumir minha mentira.

E o pior, a primeira semana ja tinha se passado e eu nem falava direito com ninguem do meu curso.

—Por que você não vai a uma das chopadas da faculdade? Você pode se enturmar. Quem sabe pegar alguém. - Nicole me dizia sobre meu problema social. Estávamos na praia, Nicole deitada ao meu lado de barriga para baixo na canga. Ela era uma garota bonita e sociável, para ela era bem mais fácil.

Imaginei aquela multidão de gente bebendo cerveja, ficando bêbados enquanto eu continuo sóbria, e me imaginar ficando com um cara aleatório era muito esquisito pra minha cabeça. Não, aquele tipo de coisa não era minha praia. Credo. Será que eu estava tão desesperada assim?

—Não faz meu estilo - eu disse, enquanto Nicole rolava os olhos.

—Caguei. - ela disse. - Eu vou com você, vou tentar te ajudar. E nem adianta dizer que não quer.

Ai Deus. Como experiência própria, ir às festas com Nicole não fazia muito bem para minha paciência. Ela sempre ficava muito louca porque a resistência dela a álcool era um lixo, e aí ela se perdia no meio da multidão e me largava sozinha, até que eu a encontrava dormindo em algum lugar inusitado.

Se eu ia fazer isso, eu teria de me preparar psicologicamente. Uma boa dose de meditação. E talvez de calmante também.


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Notas finais do capítulo

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