Nemuru - Desperta-me escrita por Candle Light


Capítulo 1
1- (T)rain 電車


Notas iniciais do capítulo

Não deixe de deixar um comentário! :) Tentarei postar um capítulo por semana, podem me lembrar caso eu demore



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1- (T)rain 電車

O som nos meus fones era suave e melancólico. Mais um dos meus garimpos em canais de música instrumental no Youtube. Este tipo de música me faz entrar em um outro estágio, longe da realidade da minha vida, e me ajuda a pintar. Levada pelo som, minha mão se move quase sozinha, em pinceladas precisas e detalhistas. Cada mínimo detalhe da imagem conta, e a playlist que escolhi é especialmente perfeita, de forma que não sei há quanto tempo estou sentada de frente para meu cavalete, mas vagamente tenho o conhecimento de que está escuro lá fora.

 O desenho no papel para aquarela na minha frente tinha um sentimento de solidão contemplativa. Era triste, porém belo. A imagem de uma garota à  beira de uma estação de trem, num dia chuvoso. Toda a cena era cinzenta tirando seu guarda chuva azul royal e a luz vermelha da sinalização do trem. Ela olhava ao longe na direção do sentido dos trilhos, longe do observador. Usava um sobretudo cinza e sua mala pegava chuva ao seu lado.

        No fundo eu sabia que aquilo era um reflexo de mim mesma. Perdida, na beira da estação da vida sem saber que trem tomar, sem nem saber por que estou lá. E chove constantemente dentro de mim, às vezes sem nem saber a razão. Mas só dentro - essa chuva não pode sair das paredes do meu peito.

        “Mas do que você está reclamando?”, algumas pessoas viriam a me dizer. Sim, talvez eu não devesse reclamar, porém … eu não tenho como evitar sentimentos que para muitos não fazem sentido. Não tinham a ver com problemas que as pessoas geralmente enfrentam e que as deixam miseráveis, como falta de dinheiro, ou saúde, ou notas. Essas partes da minha vida felizmente eram tranquilas.

Meus pais são divorciados - não me entenda mal, mas ainda bem que são ou seria terrível. Minha mãe é uma cardiologista de renome, cirurgiã, embora adore fazer plantão em emergências porque adora casos malucos -  como o cara que atirou um rebite no próprio pé. Então agora que estou crescida ela não fica muito em casa. Meu pai é japonês e é o presidente de uma empresa de computação com sede em São Paulo, onde ele mora agora. Por sua eu tenho este nome: Nemuru. Sakagawa Nemuru. Eu até tenho orgulho do meu nome, mas ele sempre foi gatilho para piadas, ainda mais na minha escola, onde  eu cometi o erro de me apresentar da forma japonesa – o sobrenome na frente do nome. Mesmo depois de esclarecida a confusão, as pessoas passaram a me chamar de “ao contrário”, ou “Samara”, ou outras coisas que suas imaginações permitissem.

—Nemu, você não vem jantar? - minha mãe me chamou da sala.

—Vou sim! - gritei de volta, sem animação. Minha mãe era uma pessoa energética e animada, mente jovem e aberta para desafios. Não era japonesa, mas bem brasileira. Pele morena de nascença e de sol, cabelos castanhos cheios de cachos brilhantes. Era uma mulher muito bonita, me diziam. Eu tive a sorte de ser uma boa mistura entre meus pais. Meus olhos não eram tão puxados, apesar de bem amendoados e tipicamente asiáticos, e meu cabelo escuro ondulava, principalmente depois de lavado.

Pousei meu pincel, finalmente saindo de onde quer que eu estivesse (provavelmente naquela estação) e estiquei as costas, espreguiçando-me. Muitas vezes só percebia que estava toda torta e que minha coluna doía  quando eu parava de pintar.

Cheguei na sala e minha mãe estava colocando um pote de salada sobre a  mesa. Já estavam servidos bifes e arroz, além de um suco que, pelo cheiro, era maracujá.

—Qual é a ocasião, mãe? - perguntei, meio desconfiada. Ela raramente botava a mesa daquele jeito e nós comíamos a comida esquentada no microondas, bem de qualquer jeito,  .

—Nada. Só senti falta de comer numa mesa bonita. Hoje eu estou de folga, ‘? Achei que seria legal.

Dei de ombros e sentei, servindo-me. Minha mãe gostava de uma decoração moderna e clean, porém quente. O pratos que ela havia comprado eram quadrados com a borda arredondada e possuíam uma cor meio terrosa. A sala tinha uma parede laranja, e a mesa de centro era um pedaço de tronco de árvore protegido por algum tipo de verniz ou resina.

—E aí, animada com a formatura?

—Ahn… - eu não sabia a resposta direito. Me formar no ensino médio, mas não sabia se ficava feliz ou triste. Quero dizer, aquele colégio era tudo o que eu conhecia até então. Sair dele faria eu me sentir perdida, apesar de aliviada já que eu não precisaria conviver mais com algumas pessoas, ou me matar de estudar para semanas de provas intermináveis e para matérias que não me interessavam – no caso, a maior parte delas.

—Sentimentos conflitantes? - ela perguntou, com um pequeno sorriso. Concentrei-me na comida e não disse nada, o que na minha linguagem podia significar o mesmo que sim — Eu entendo. Você ficou onze anos no colégio. Sair dele será difícil. Mas a faculdade vai ser ótima pra você conhecer pessoas, outras realidades. Descobrir o que quer fazer. Aliás, você já sabe para onde vai, e o que vai fazer ?

—Não exatamente.

O resto do jantar correu quase silenciosamente. Ela comentou sobre coisas do hospital, o que eu achava interessante de fato, apesar de não ter toda uma frieza para lidar com doenças, feridas e outras situações . Além de não gostar tanto de gente. Ultimamente ela ficava tanto tempo fora de casa que quase não conversávamos muito, nos mantendo em coisas superficiais.

Meu pai era bem diferente da minha mãe. Não sei se por causa da criação japonesa, ele era mais fechado e mais difícil de lidar. Falando nele, ligou-me enquanto eu ajudava a tirar os pratos.

—Você vê se não perde os prazos de matrícula - ele disse, preocupado. Sempre fora correto até demais com prazos, horários e compromissos - Já sabe qual curso vai fazer ?

—Ahn... vou colocar Engenharia de Telecomunicações no SISU - respondi. Menti.

—Ah, ótimo, ótimo. Se for isso mesmo, seu futuro estará garantido.

Não consegui uma resposta para isso além de um “aham”. Ele me deu boa noite e desligou.

Olhei para a pintura no papel e pensei no trem que chegava à estação… e na mentira que contei para ele. É claro que ele odiaria que eu fosse o que realmente  queria porque não dá dinheiro, não dá futuro - uma artista. Ainda assim tentei mentir para mim mesma, aceitar fazer engenharia e deixar meus pais orgulhosos.

Olhando os traços e cores no papel, não sabia como pude contar aquela descarada mentira. Eu e meus pincéis sabíamos que não iria me matricular em engenharia nenhuma. Mas aquilo ficaria só entre eu e eles.

O trem estava partindo e eu decidi embarcar.


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