The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 9
Capítulo IX - 17 de Março de 1871




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— Agora, ouçam atentamente. — Florence proferiu em meio a um sussurro. — Não temos muita certeza quanto tempo levará até a revitalização do castelo, então devemos assumir que será antes do que imaginamos, para evitar imprevistos. É primordial que ao menos um de vocês três seja capaz de prender a atenção da princesa. Não terão dificuldades se fizerem exatamente como lhes ensinei.

— Ela não me pareceu uma pessoa muito interessante. — comentou Martin, o primogênito da Família Chevalier, enquanto tentava furtar um dos brioches postos à mesa, recebendo um tapa repreensivo de sua mãe.

— Tem razão. Ela também não é muito bonita. — retrucou Julian, o filho do meio, tendo maior destreza e agilidade que seu irmão em capturar um brioche, pondo-o à boca antes que sua mãe conseguisse impedi-lo. — Se ela tivesse o cabelo loiro talvez agradasse mais aos olhos.

— Calados, os dois! — a Baronesa exclamou após dar um cascudo na cabeça dos queixosos. — Não me interessa que não a acham interessante ou bonita, ela é uma princesa e isso basta. Até que o castelo esteja pronto, o casamento de um de vocês deverá estar marcado, entenderam?

Os dois mais velhos acenaram positivamente, pois era mais fácil concordar que tentar dissuadir a mãe de seus pensamentos. Desde que soubera que a princesa passaria algumas semanas hospedada com eles, a Baronesa passou a fazer diversos planos, todos no intuito de inserir-se dentro da Família Real. Ela ficou satisfeita com a aceitação muda, mas direcionou um olhar repreensivo para o caçula, que bebericava de sua xícara de chá sem dar-lhe a menor atenção, enquanto mantinha os olhos fixos nas páginas de um livro.

— Phillip, diga-me que ao menos ouviu alguma palavra do que disse.

— Ouvi tudo que disse, mamãe. Mas se quer saber da minha opinião, acho sua idéia detestável. Deixe que a princesa resolva seus assuntos em paz, já deve ter muitas preocupações, não precisa de nós agindo como abutres sobre ela para piorar a situação. — ele respondeu de modo contido, ainda sem erguer os olhos de seu livro.

— Eu deveria imaginar que não poderia contar com você. É egoísta demais, só pensa nesses seus livros empoeirados, não tem qualquer preocupação com o futuro da família.

— Menos, mamãe. É justamente por me preocupar com a família que estudo, pretendo ser um renomado advogado em poucos anos, sabia disso? — ele respondeu enquanto bufava levemente, já cansado das dramatizações de sua genitora.

— Poupe-nos de seus sonhos tolos. Se dependêssemos de você, morreríamos de fome. — a Baronesa praticamente cuspiu as palavras enquanto revirava os olhos. — Quietos, acho que ela vem vindo.

Os passos foram aproximando-se e logo Sarah adentrou na sala de jantar, sendo acompanhada por Evangeline que vinha logo atrás. Ela saudou a todos os presentes de modo gracioso antes de sentar e começar a servir-se. Todos os moradores daquela casa pareciam fazer questão de atrair a atenção da princesa nem que fosse por um segundo e nenhum deles poderia imaginar como ela se encontrava aborrecida com aquela situação. “Apenas gostaria de desjejuar em paz, é pedir muito?”, questionou-se enquanto seus ouvidos eram bombardeados de informações dadas pela Baronesa Chevalier.

— E onde a princesa gostaria de ir hoje? — perguntou Martin de modo sugestivo, ensaiando um sorriso charmoso que falhou miseravelmente em reproduzir. — Posso lhe fazer companhia se assim desejar.

— Não se incomode com isso, por favor. Detestaria interferir na rotina de vocês mais que o necessário. Tenho uma porção de coisas para tratar com urgência, é verdade. Mas não se preocupe, Evangeline me acompanhará em todas elas.

— Mas precisará de alguém para guiá-la na cidade. Quero dizer, Odarin tem proporções bem maiores que Hallbridge, com a qual está acostumada. Detestaria vê-la perdida pela cidade, sem qualquer proteção. — ele contestou de imediato.

— Gaspar estará conosco durante todo o tempo, você já pode sossegar seu coração quanto a isso. — Sarah cortou enquanto lhe dirigia um olhar significativo, quase repreensivo. — Além do mais, posso ter passado oito anos ausente, mas conheço bem as dimensões de meu reino. Por acaso me toma por uma princesa iletrada?

A pergunta fora proferida em tom retórico e jocoso, mas fora suficiente para calar o rapaz, que pediu desculpas antes de silenciar-se de modo envergonhado. Ele tornou o rosto para sua mãe e deu os ombros, como se dissesse “Eu tentei”, voltando sua atenção para a comida logo em seguida. O restante da refeição fora mais tranquila que seu princípio, fato este que fez a princesa agradecer mentalmente.

Todos retiraram-se da mesa e seguiram com seus respectivos afazeres, em um mudo acordo de que aquele não seria o momento ideal para arriscar qualquer aproximação com a princesa. Sarah permaneceu até ver Maria saindo da cozinha em direção à sala de jantar para recolher a louça utilizada. A empregada fora agraciada com um caloroso bom dia da jovem hóspede, que requisitou alguns minutos de sua atenção.

— Diga-me Maria, onde posso encontrar Elliot e Jacques? Tenho a maior urgência em vê-los o quanto antes. — ela comentou com empolgação, sem nem ao menos perceber que mordiscava os lábios tamanha era sua ansiedade em rever aqueles dois.

— E quem pode precisar, Alteza? A última notícia que tive foi uma carta que recebi de Marco. Ele e Elliot estavam indo deixar uma encomenda, um carregamento de qualquer coisa em Greenwall e não falaram nada sobre data de retorno. Desde que saímos do castelo, os dois não se desgrudam, é bem irritante às vezes. — a servente confessou enquanto empilhava habilidosamente a louça suja, sem dirigir os olhos à jovem sentada em sua frente.

— Ah, compreendo. — aquela informação a desanimou de imediato, sua expressão mais se assemelhava a uma massa murcha. Maria arrependeu-se de suas palavras no mesmo instante e mentalmente ela amaldiçoou a governanta por obrigá-la a mentir daquela forma. Não havia viagem alguma, mas Evangeline fora incisiva em ordenar que ela não indicasse a localização daqueles dois serventes específicos.

— Mas acredito que logo em breve devem estar de volta. Enquanto isso, por que não procura ao Anthony? Lembra-se dele, não é mesmo? Cuidava da manutenção do castelo quando você era pequena. Atualmente ele tem uma pequena oficina de reparos, conserta móveis em geral. Posso até lhe dar o endereço, a própria Baronesa já o contratou muitas vezes.

— Não é uma má ideia. — comentou Evangeline, manifestando-se pela primeira vez desde que o desjejum começara. — Estou certa de que num ofício desses, ele deve conhecer pessoas o suficiente para iniciar restauração do castelo. Se é que existem reparos para aquela velharia.

— É verdade. — Sarah respondeu, recompondo-se aos poucos. — Anthony é a pessoa perfeita para me ajudar a restabelecer o esplendor de antes. — ela comentou, tentando encorajar a si mesma.

Quando já estava com o endereço em mãos, a princesa levantou-se da mesa e saiu da sala de jantar em busca de seu condutor. Era necessário sair o quanto antes, pois havia muita coisa a ser feita no castelo e ela tinha certeza que os três meses dados por seu irmão passariam mais rápido que o usual. Pela primeira vez na vida estava cheia de afazeres por sua conta própria. Nada de aulas enfadonhas, mas coisas que realmente teriam um resultado prático quando concluídas. Internamente, ela se sentia feliz com aquilo, pois pela primeira vez na vida estava tendo controle integral sobre sua rotina. O pensamento a animou um pouco e por instante ela esqueceu-se da decepção de minutos atrás.

Quando encontraram-se sozinhas na sala de jantar, a empregada da Família Chevalier tornou os olhos para a antiga amiga, que bebericava sua xícara de chá como se nada tivesse ocorrido. Por vezes Maria se impressionava com a calma e o autocontrole de Evangeline, certamente duas características invejáveis, mas que nem sempre ela as utilizava para o bem.

— Não me agrada a ideia de ter de mentir para ela, a Senhorita Sarah sempre foi tão gentil e generosa conosco. — Maria confessou à Evangeline em um sussurro.

— Não fique, é para o bem dela. — a governanta respondeu de modo seco, dando um último gole em sua xícara de chá. — Foram necessários muitos anos de aulas de etiqueta para transformá-la na dama que ela é hoje. É desnecessário ter o inconveniente filho do jardineiro pondo-a a perder.

— Mas eles são amigos desde crianças, praticamente cresceram juntos. — Maria argumentou, ainda sentindo-se angustiada pela expressão que vislumbrou no rosto da princesa. — Não se sente mal separando-os desse modo?

— Nem um pouco! — Evangeline respondeu com descaso, sem demonstrar qualquer emoção. — Quanto mais longe eu puder mantê-los um do outro, melhor.

Maria torceu os lábios, inconformada com aquelas palavras ríspidas. No entanto, bem sabia que de nada adiantaria protestar com ela, Evangeline sempre fora demasiadamente dura com a educação da menina e não seria àquela altura da vida em que começaria a mudar. Recolhendo o restante da louça, ela seguiu em direção à cozinha. "Me perdoe princesa, gostaria de ajudá-la mais. Espero, do fundo do meu coração, que o acaso tome conta de tudo aquilo que eu não puder fazer por você", ela pensou enquanto arregaçava as mangas de seu vestido, pondo-se a lavar os pratos.



— Anthony é um amor, você não concorda? — Sarah comentou alegremente enquanto caminhava de modo lento. — Além de prometer que voltaria a trabalhar para nós, prometeu arranjar muitos outros empregados para revitalizar

— É um servente prestativo e adequado, não mais que isso. — Evangeline respondeu sem muito interesse no assunto. Jamais seria capaz de compreender o fascínio da princesa pelos reles mortais da plebe.

Percebendo que sua governanta não estava em seus melhores dias, com o humor mais azedo que o de costume, Sarah recolheu-se em silêncio, passando a dedicar toda sua atenção aos detalhes em seu redor. A capital de Odarin era bastante tumultuada, por todos os lados havia comércios e estalagens. Os bistrôs e tabernas ficavam quase sempre ocultos em becos e sem um guia era certo que se perderiam. Para seu espanto, Evangeline parecia conhecer a cidade como a palma da mão, o que era um fato estranho, já que estavam sempre juntas, trancadas dentro do castelo. Dado o mau humor do dia, ela resolveu deixar os questionamentos para outro momento.

— Já é quase meio dia. — informou a governanta após espiar seu relógio de bolso. — Devemos retornar à casa dos Chevalier, pois logo o almoço estará servido e não queremos fazê-los esperar.

— Não estou com fome. Aliás, me tira o apetite lembrar que tenho que compartilhar todas as refeições com a Baronesa. Ela é insuportável, fala tanto que não ouço meus próprios pensamentos.

— Infelizmente sou obrigada a concordar com você, ela não passa de uma abelhuda. — Evangeline respondeu de modo cansado, espantando a jovem por concordar com seus pensamentos. — Mas estão sendo demasiadamente generosos conosco. Devemos retribuir à altura.

— Podemos dizer que estamos muito atarefadas e decidimos almoçar na cidade para poupar tempo. Gaspar pode deixar este recado sem qualquer demora. — a jovem arriscou, mesmo sabendo que receberia uma represália por aquilo.

— Ficou louca? É seu segundo dia aqui e já voltar a fazer traquinagens como uma criança levada? Estou começando a achar que o ar desse lugar é que lhe faz ter essas idéias. — Evangeline proferiu de modo impaciente, iniciando seu sermão sobre boas maneiras e pontualidade.

Sarah emudeceu e aproveitou o momento de distração da governanta. Tão logo cruzaram a rua, a jovem dobrou à direita de modo silencioso, enquanto Evangeline seguia em frente, falando sozinha, sem dar conta de sua falta. Ela não teria mais que alguns segundos de vantagem e tinha de usá-los sabiamente. Cobrindo o rosto com o capuz e erguendo a saia de seu vestido, ela se pôs a correr como fazia quando criança, da mesma forma quando precisava fugir das aulas intermináveis de História, Geografia e Sociologia.

Ela correu por longos quarteirões, recebendo alguns olhares atravessados dos transeuntes. Nada disso a incomodou, ninguém poderia reconhecê-la de todo modo. Não após passar sua infância reclusa e então muitos anos afastada daquele povo. A falta de costume em realizar aquelas travessuras havia deixado-lhe levemente enferrujada e rapidamente ela se cansou, precisando parar junto à um poço d'água. Ela gostaria de respirar profundamente para recuperar o fôlego mais rápido, mas o espartilho aliado ao apertado vestido cumpriam com seu papel de deixá-la sempre com um ar cansado e arfante.

“Evangeline deve estar uma fera comigo, me procurando em toda parte. É melhor voltar antes que ela tenha um ataque”, a princesa pensou em meio a um riso. Apoiando-se na beirada do poço, ela olhou ao seu redor, parecendo estar no pátio externo de algum armazém. O local estava cheio de caixotes de madeira e ao longe ela pôde ver dois rapazes carregando-os de um lado para o outro do terreno.

— Senhorita, eu não me apoiaria nesse poço se fosse você. — alertou um deles, o mais baixo e moreno, com os cabelos negros levemente ondulados. O aviso fez Sarah erguer uma sobrancelha em descrença. — Falo sério, esse treco é meio velho.

— O que é um “treco"? — ela perguntou levemente confusa, pois jamais havia ouvido aquele termo em qualquer livro ou discurso.

— Qualquer coisa pode ser um treco. Ele mesmo inventou a palavra. — o outro respondeu sem ao menos lhe direcionar o olhar. Era ao menos um palmo mais alto que o moreno, estava levemente bronzeado do sol, mas os fios loiros e lisos denunciavam que aquele não era seu tom de pele original. O segundo rapaz quase lhe parecia familiar. Quase.

— Ah, entendo. — ela respondeu, começando a fazer força nos tablados de madeira que revestiam o poço. — Bom, posso afirmar que ele não me parece tão frágil assim.

O som que seguiu aquelas palavras correspondia às tábuas de madeira mofada que se chocaram com a água do fundo do poço. Mal terminou de proferi-las e a beirada em que estava apoiada cedeu para dentro de modo abrupto. Segurando-se na beirada do poço que não havia cedido, Sarah olhou para baixo e desesperou-se ainda mais ao ver apenas a escuridão.

Ela passou a gritar por socorro e por um breve tempo que parecia uma eternidade, ela se questionava o que estava para ceder primeiro: a madeira mofada a qual estava agarrada ou seus braços frágeis, desacostumados ao peso do próprio corpo.

Segurava-se com força, mas o som da madeira se partindo lhe aterrorizou de tal modo que seus pedidos de socorro acabaram por ficar presos em sua garganta, tamanho era seu pânico naquela situação. Seus braços finos tremiam pelo esforço excessivo e as lascas de madeira machucavam suas mãos. Sem mais forças para resistir contra aquilo que parecia inevitável, Sarah fechou os olhos com força, antecipando sua queda tão logo suas mãos soltaram a beirada do poço.

No entanto, diferentemente do que estava imaginando, a sensação de queda e o choque contra a água parada ao fundo do reservatório não ocorreu. Ao invés de cair, ela sentiu o corpo ser erguido e somente ao abrir os olhos se deu conta de que um dos rapazes, o mais alto deles, a puxava para fora do buraco, segurando seus punhos com força. De modo a ajudá-lo, ela apoiou os pés na parede do poço e escalou até conseguir sair daquele ambiente escuro e fechado.

Ela apoiou ambos os pés sobre a madeira que revestia a borda, mas imediatamente o rapaz tomou-lhe pela cintura e a pôs no chão.

— Você está bem? — ele questionou enquanto a encarava diretamente nos olhos, recebendo um menear positivo de cabeça como resposta.

Por um momento a princesa sentia-se hipnotizada, incapaz de desviar daqueles olhos castanhos, genuinamente preocupados com seu bem estar. Quando se deu conta de que havia se instaurado um silêncio constrangedor, ela desviou o olhar para o chão, só então percebendo que as mãos do jovem continuavam repousadas sobre sua cintura. No mesmo instante em que ela constatou aquilo, ele as retirou de modo atrapalhado, aparentando estar levemente constrangido com aquela situação.

Um assobio longo chamou a atenção dos dois, que se viraram simultaneamente para ver do que se tratava. O rapaz de cabelo escuro encontrava-se do outro lado do poço, debruçado sobre a beirada, tentando enxergar o fundo.

— Ia ser uma queda e tanto, senhorita. — ele constatou, sem desviar os olhos da escuridão. — Eu avisei que esse treco era velho.

— Se você sabe que o revestimento do poço é antigo, faça o favor de sair daí. — o loiro o repreendeu com certa impaciência. — Sabe que por mim você morre lá embaixo.

— Admita amigo, você não sobreviveria cinco minutos longe minha companhia. — o moreno se gabou em meio a uma risada divertida. O apontamento fez seu companheiro revirar os olhos, em descontentamento.

— Só nos seus sonhos, Marco.

O moreno riu longamente, até escutar seu nome sendo chamado ao longe, provavelmente uma tarefa que precisaria realizar ao seu supervisor. Sem sequer se despedir dos dois, ele correu para dentro do armazém, deixando-os sozinhos, fazendo com que o silêncio voltasse a reinar. Ainda sem obter qualquer resposta da moça, o loiro passou a mão nos cabelos de modo desconcertado, logo em seguida afastando-se dela para voltar ao seu serviço.

Sarah não tinha a intenção de parecer mal agradecida, esnobe ou nada do gênero. Ela encontrava-se levemente constrangida pela forma como havia reagido diante de seu salvador e antes que pudesse demonstrar sua gratidão, fora interrompida pelo diálogo dos dois serviçais. Aquela conversa havia sido como um estalo em sua cabeça.

— É melhor você ir moça. — o rapaz afirmou sem tornar-lhe o rosto, muito concentrado naquilo que fazia. — Aqui não é local para uma jovem dama como você.

— Talvez. Mas será que existe espaço para uma princesa fujona? — Sarah perguntou de modo levemente incerto, encolhendo levemente os ombros ao fazê-lo. Que ela faria se ele não a reconhecesse?

O rapaz tentava empilhar um largo caixote de madeira sobre uma pilha alta e ao ouvir aquelas palavras parecia ter perdido o equilíbrio por um segundo. Ainda segurando o caixote, ele teve de dar um passo para trás no intuito de recuperar o equilíbrio, antes de repousá-lo onde pretendia. Feito isto, ele virou parcialmente o rosto, encarando-a de soslaio, um tanto incerto daquilo que ouvira. Revistando-a da cabeça aos pés, chegou a achar que sua mente estava a lhe pregar peças. Não estava, no final das contas.

— Já faz muito tempo… — ele disse enquanto apoiava a testa sobre uma das caixas de madeira, encarando o chão enquanto falava, num tom de voz tão baixo mais parecia um monólogo. Felizmente, Sarah estava toda ouvidos e entendeu perfeitamente as palavras do amigo de longa data.

— Eu sei disso. Mas agora estou de volta e não pretendo sair daqui tão cedo. — ela respondeu com muita convicção, internamente emocionada de ver que ele também não a havia esquecido. Aquele medo do esquecimento que havia lhe atormentado por tantos anos finalmente parecia se esvair, ainda que aos poucos.

— É bom ouvir isso. — ele respondeu em meio a um sorriso contido, agora passando a encará-la diretamente, enquanto apoiava as costas numa pilha próxima e cruzava os braços.

Não estava certo de como deveria agir. Por muito tempo ele havia se questionado se aquela princesa irritadiça e mimada algum dia retornaria. Com o passar dos anos, ele deixou de se questionar. Estava certo que já não habitava os pensamentos da menina, nem mesmo como uma vaga lembrança. Agora, constatando o quanto havia se enganado, Elliot parecia não saber ao certo como agir.

Antigamente o relacionamento dos dois era algo natural, não havia maiores pensamentos sobre hierarquia, nível de educação ou dinheiro. “Àquela época não passávamos de duas crianças. Agora as coisas são diferentes, ela se tornou uma princesa. Sequer deveria estar falando comigo”. Enquanto tentava buscar palavras que pudessem estar à altura da pessoa em sua frente, ele levou uma mão ao rosto, esfregando a sobrancelha com o polegar, um maneirismo adquirido a alguns anos.

O gesto fez Sarah desmanchar o sorriso bobo que trazia em seu rosto. Ao erguer o braço, a jovem conseguiu identificar um arranhão próximo ao pulso. Não era nada demais, mas a região encontrava-se bastante avermelhada, com pequenas gotículas de sangue se acumulando pela extensão do ferimento.

Aproximando-se a passos apressados, ela informou que aquele ferimento precisa ser tratado, ou ao menos coberto com algo. Apesar do rapaz contra argumentar de que não passava de um arranhão qualquer, Sarah não quis ouvir. Puxando-o pelo braço, ela o levou até uma pilha baixa de caixotes onde pudessem sentar e tirando um lenço do bolso, cobriu o machucado com ele. Após algumas tentativas de finalizar o curativo, o resultado fora um nó meio torto e um tanto frouxo, mas ao menos era o suficiente para evitar que o rapaz magoasse a região caso viesse a esbarrar em qualquer coisa.

— Obrigado. — Elliot respondeu levemente envergonhado. Para seu alívio, quando ergueu os olhos, a princesa lhe encarava com um sorriso tenro no rosto. Muita coisa havia mudado, ele sabia, mas algo lhe dizia que nem tudo estava diferente de antes. — Seja bem vinda de volta.

Sarah abriu a boca para responder, mas teve sua fala interrompida pelas badaladas do relógio da catedral, ao longe. Ambos permaneceram em silêncio, e quando a jovem contou treze badaladas firmes e precisas ela teve certeza de uma coisa: Evangeline iria lhe matar quando a encontrasse.

— Meu Deus, não reparei no tempo, já é tão tarde! — ela disse de modo apressado, erguendo-se de onde estava e andando em círculos por um momento, pensando no que iria dizer, que desculpa poderia empregar. — Me desculpe Elliot, mas tenho que ir imediatamente!

Estava prestes a sair andando quando sentiu seu pulso preso por uma mão larga e forte. Desta vez ela não precisou olhar para saber do que se tratava. Ele a segurava, ainda sentado sobre os caixotes, com uma expressão de pura apreensão.

— Você acabou de chegar e quer sair correndo assim? Diga ao menos que nos veremos novamente. — ele proferiu de imediato, sequer medindo o peso de suas palavras.

— É claro que sim! — Sarah respondeu sem pensar duas vezes. O questionamento lhe parecera estúpido e não merecia mais que um segundo de seus pensamentos para dá-lo a devida resposta. — Temos muito tempo a ser recuperado! Mas por ora, realmente preciso ir.

Ela puxou o próprio braço, tentando desvencilhar-se daquele aperto. Elliot havia afrouxado a mão, mas não soltado totalmente. Com isso, o braço da princesa escorregou por entre seus dedos, até que a pequenina mão dela estivesse escondida dentro da sua. Assim que percebeu aquilo, ele a libertou, permitindo que ela corresse para longe, desaparecendo pelo mesmo caminho que havia vindo.

De imediato, uma antiga sensação de angústia tomou-lhe de conta, deixando-o sem saber ao certo o que se passava. Enquanto divagava, Marco retornou de dentro do armazém e reparou de imediato no curativo (ou naquilo que longinquamente se assemelhava a um).

— Foi ela quem fez? — o moreno questionou enquanto apontava para o braço do amigo. — Ficou péssimo, aposto que Delia faria um melhor do que esse de olhos fechados.

— Marco, por que você não sobe até a torre mais alta da igreja e se joga? — Elliot perguntou do mesmo modo impaciente e irritadiço de antes.

— Porque nenhum coveiro aguentaria seu choro intermitente. — Marco respondeu em meio a uma risada. — Anda, vamos. Delia fará um curativo decente para você em questão de segundos em troca de um beijo.

Como resposta para aquela afronta, o moreno recebeu um empurrão forte em seu ombro, que quase o havia feito perder o equilíbrio e dar de cara no chão. Quase.



Sarah passou o restante do dia à procura de sua governanta. Não era uma tarefa nada fácil. Ela odiava admitir aquilo, mas Martin estava certo quando disse que Odarin era muito maior que Hallbridge. Quando estava hospedada na casa da Família Avelar, algumas vezes ela acabou por se perder de Beatrice durante um dia de compras. Apesar disso, o centro comercial de Hallbridge era tão pequeno (assim como todo o resto) que em poucos minutos estavam reunidas novamente.

Após horas caminhando, ela finalmente sentou-se a beirada de uma fonte, exausta. O dia escurecia rapidamente e o tempo tornava-se mais frio a cada minuto. Suas pernas tremiam de cansaço e tudo que ela gostaria naquele momento era de um banho morno e as cobertas de sua cama. Estava prestes a desistir quando sentiu seu braço ser agarrado com força de modo súbito. Exaltada, ela olhou para o lado e finalmente vislumbrou a imagem de sua governanta, que não parecia nenhum pouco feliz àquela altura.

— Tem noção de como estava preocupada com você? Estou lhe procurando a horas. Horas Sarah, tem noção do que isto significa? — Evangeline ralhou de imediato.

— Eu sei, me perdoe. Devo ter me distraído com o mostruário de alguma loja e acabamos por nos perder. Mil desculpas por isso. - a jovem mentiu, pois não gostaria de imaginar que tipo de coisa Evangeline seria capaz de fazer se soubesse com quem ela esteve parte da tarde.

— Desculpas não irão amenizar o transtorno que me fez passar! — apesar das desculpas aparentemente sinceras, Evangeline encontrava-se irredutível em seu sermão. — Já pensou se alguém da Família Chevalier descobre do seu sumiço? Mandam uma carta para seu irmão num instante. Você não quer voltar para Hallbridge, quer?

— De modo algum, prometo que não ocorrerá novamente!

— É o que veremos. Tive de pedir que Gaspar informasse aos Chevalier que comeríamos aqui. Espero que não tenham desconfiado de nada. — a governanta comentou enquanto levava a princesa até onde ela havia deixado a carruagem.

Em poucos minutos puderam se encontrar com Gaspar, que estava bastante aliviado de ver a princesa novamente, sã e salva. Evangeline adentrou na cabina primeiro, sendo seguida por Sarah. Logo que o veículo começou a se movimentar, passaram ao lado de uma praça. A princesa estava sentada ao lado da janela e observando o exterior, rapidamente ela pôde reconhecer Elliot, graças ao curativo em seu antebraço. Mas ele não estava sozinho, descia a rua caminhando rapidamente ao lado de uma moça.

Ela tinha uma estatura semelhante a de Sarah. Os cabelos ruivos desciam pelas costas até a altura da cintura, muito brilhosos, com não mais que umas discretas ondulações em seu comprimento. Se estivessem somente caminhando juntos, provavelmente a cena teria lhe passado despercebida. No entanto, a jovem segurava o braço de Elliot com muita intimidade.

Embora este fato tenha lhe passado despercebido, a princesa emburrou-se de imediato com a cena.


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