The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 8
Capítulo VIII - 16 de Março de 1871




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A estrada de terra tremia debaixo dos cascos dos cavalos dado o peso da carruagem. A condução balançava levemente de um lado para o outro. Não faltavam mais que alguns minutos de viagem para chegarem ao destino final. De um lado, Evangeline tentava concentrar-se no livro que  levava consigo, mas o trepidar a distraia constantemente. Do lado oposto, uma dama com pouco mais de dezoito anos de idade estava absorta em pensamentos enquanto encarava o caminho pela janela da carruagem. Portava um sorriso que cruzava todo o seu rosto, absolutamente maravilhada com todo o ambiente a sua volta.

— Não fique tão empolgada. — Evangeline comentou de modo emburrado, incapaz de compartilhar a felicidade da jovem.

— Não seja tão azeda. — a jovem respondeu em meio a uma risada curta, sem afetar-se pelo mau humor habitual da governanta.

Mais uns poucos momentos se passaram até que a cabina parasse de chacoalhar. O condutor desceu e seguiu apressado para destrancar a porta da carruagem. Sabia da empolgação quase incontrolável da senhorita a quem acompanhava. Sarah praticamente saltou para fora da cabina e encarava a edificação à sua frente com um misto de felicidade e nostalgia.

— Eu mal posso acreditar nisso. — ela disse enquanto levava as mãos à boca, impressionada. — Estamos em casa, finalmente!

— Precisa redefinir seu conceito de “casa”. — Evangeline desceu atrás de si, encarando a construção de modo enojado. —  Este castelo foi completamente tomado pela vegetação.

— O que você esperava, minha cara? Oito anos não são oitos dias. — Sarah mencionou enquanto erguia levemente a saia de seu vestido, pondo-se a subir a larga escadaria que levava aos portões de sua antiga casa.

— Perdoem-me a interrupção, mas as senhoritas não prefeririam que eu as acompanhasse? — o condutor questionou, temeroso que as duas entrassem sozinhas no castelo, que jazia abandonado a muitos anos. Sabe-se lá quem ou o que poderia estar oculto dentro daquelas paredes de pedra. Definitivamente não era um local adequado para duas damas, mas ele estava ali tão somente para cumprir ordens.

— Eu não tenho medo de insetos ou de ratinhos que possam ter se apossado da velha cozinha. Estamos bem Gaspar, você pode esperar aqui fora. — a jovem dama disse em um tom gentil, muito similar àquele utilizado por Beatrice.

Evangeline sorriu consigo mesma, meneando a cabeça positivamente em aprovação à resposta de Sarah. Os modos da princesa haviam melhorado de modo significativo ao longo dos anos, principalmente após o casamento de Allen com Beatrice. Sua fala estava mais polida e o temperamento mais maleável, embora seu espírito infantil ainda resistisse firmemente a passagem do tempo.

A governanta subiu os degraus de modo lento, sem muita vontade de adentrar naquele castelo abandonado. Não havia exagerado quando dissera que a vegetação havia reinado de modo livre nos últimos oito anos. As paredes altas de pedra não pareciam mais ser sustentadas pelas colunas, mas sim pelas trepadeiras que avançavam de modo feroz em direção ao céu, em busca de qualquer resquício de Sol. A grama estava demasiadamente alta, cobrindo os primeiros degraus da escadaria, subindo no sentido do Hall Principal. Tudo que via remetia-lhe ao descuido e ao esquecimento. Ela não reconheceria em voz alta, mas se aquela propriedade tivesse consciência própria, era certo que sentia falta do velho jardineiro estúpido.

Atingindo as antigas portas de carvalho, ela encontrou Sarah lutando contra as dobradiças enferrujadas, que não pareciam inclinadas a funcionar após tanto tempo adormecidas e sem movimento. Depois de um longo esforço, um ranger acompanhou o movimento forçoso dos portões se abrindo. A princesa não precisou de mais que uma brecha para escorregar para dentro da antiga casa, obrigando Evangeline a correr atrás dela caso não quisesse perdê-la de vista.

Caminhando à passos lentos, Sarah olhava para todos os lados, boquiaberta. Era como voltar a ter dez anos de idade instantaneamente. Tudo estava exatamente como havia deixado no dia da fuga. Bom, quase tudo. Poeira e teias de aranha se acumulavam em todos os cantos, enquanto que algumas paredes encontravam-se mofadas pela ausência de limpeza e ar fresco. O Hall Principal costumava ostentar diversas expressões de arte, como quadros e esculturas que guardavam a árvore genealógica da Família Miglidori. Agora o chão estava tomado por resquícios de esculturas de gesso, ao passo que das pinturas restavam apenas as molduras vazias.

A princesa prosseguiu caminhando, explorando os corredores que formavam o cenário de sua infância. Passou em frente a suíte principal, antigo quarto de seus pais. Fora ali que Rei Henrique passou seus dias antes de morrer de uma doença desconhecida que afetava-lhe o estômago e o fígado. Também fora ali que sua mãe falecera pouco depois de seu nascimento. Naquele momento, preferiu não abrir a porta.

Seguindo pelo caminho à direita, a jovem chegou a um local demasiadamente nostálgico, embora não muito prazeroso, ao menos para sua versão infantil. A biblioteca havia perdido boa parte dos livros, fato evidenciado pelas numeradas estantes que encontravam-se parcialmente vazias. Era impossível precisar se haviam sido saqueados ou queimados. Felizmente as cadeiras, mesas e vasos ainda estavam lá. Até mesmo um velho relógio cuco permanecia na parede, embora ela duvidasse que voltaria a ver o passarinho que costumava cantar para o entardecer do dia, indicando o término do horário de estudos. Quantos dias não havia passado ali, aguardando o passarinho que findaria seu fardo de estudar assuntos que jamais lhe despertaram interesse? Adentrando mais no cômodo, Sarah observou um embrulho atrás de uma das largas estantes. Tinha o formato retangular e estava protegido por uma capa branca (atualmente amarelada pelo tempo). Tentando ignorar a poeira que havia se acumulado ali, ela retirou a capa, mal conseguindo conter seu grito de felicidade.

— Evangeline, corra aqui! — a jovem gritou, portando um sorriso ainda mais largo que o anterior, quando ainda estava na carruagem. — Olhe o que encontrei. Por todos esses anos me perguntei se estaria a salvo. Os rebeldes não o encontraram!

— A poeira entrou pelos seus ouvidos e está afetando sua cabeça? Do que diabos está falando menina? — Evangeline respondeu de modo irritadiço, finalmente encontrando-a escondida na biblioteca, ajoelhada junto ao chão.

— Você não percebeu quando passamos pelos corredores? Todos os artefatos, quadros e esculturas que guardavam a genealogia da Família Miglidori foram destruídos, não restou nada. No entanto, papai ordenou que Augusto retirasse o quadro da mamãe em nosso último dia aqui. Os rebeldes não o encontraram, pois esteve o tempo todo aqui, na biblioteca. — Sarah explicou de modo eufórico, erguendo a mencionada pintura em direção à governanta. — Olhe Evangeline, está um pouco empoeirado, é verdade, mas ainda assim intacto!

— Você tem razão… — a loira comentou, enquanto abaixava-se para examinar melhor o retrato de sua amada milady. A imagem fielmente reproduzida levou um sorriso saudoso aos seus lábios. “Sinto tanto sua falta que meu peito chega a doer, milady”, ela pensou , até ouvir um som diferente que despertou-lhe de seus devaneios.

— Quem está aí? — Sarah questionou de modo inquisitivo e autoritário. Havia aprendido a utilizar aquele tom de voz com Allen e embora nunca tenha dito nada, Evangeline detestava aquela entonação, por diversos motivos. — Me chamo Sarah Miglidori, princesa do reino de Odarin e ordeno que apareça imediatamente!

As duas tentavam enxergar os fundos da biblioteca, mas estava demasiadamente escuro por conta das janelas fechadas. O som de antes foi se aproximando de ambas, tornando-se mais audível, porém não mais fácil de decifrar qual seria sua origem. “Será que alguém tomou posse do castelo após encontrá-lo abandonado? Não pode ser!”, pensava a princesa, levemente receosa do que o que estava por vir. A figura que emitia os sons logo se mostrou, divergindo bastante daquilo que as duas damas haviam imaginado.

— Um cervo?! — elas exclamaram juntas, enquanto observavam o mamífero encará-las com curiosidade. Seus chifres exuberantes não esbarravam nas estantes por muito pouco e nenhuma das duas gostaria de imaginar o que ele poderia se capaz de fazer com aquele belo e polido par.

Ergueram-se lentamente, Sarah segurando a pintura em seus braços de modo protetor, como se sua vida dependesse disso. Evangeline seguiu até a porta, evitando movimentos bruscos e qualquer som indesejado. Após girar a maçaneta, o cervo fez menção de mover-se em direção às duas, que apenas saíram correndo em direção aos portões o mais rápido que conseguiram. Tão logo cruzaram as velhas portas de carvalho, a princesa desatou a rir, sendo repreendida por um olhar duro de sua governanta, que não via qualquer graça naquela situação.

— Esqueça Sarah, este local está absolutamente inabitável! — ela exclamou enquanto arfava fortemente, tentando recuperar o fôlego perdido.

— Vamos Evangeline, não está tão ruim assim. — Sarah tentou convencê-la em meio a uma gargalhada. — Uma boa poda nessa vegetação e uma limpeza deixará o castelo como novo. Não é tão difícil, nós podemos resolver isso.

— Desculpe, você disse “nós”? — Evangeline exclamou, incrédula quanto ao que acabara de ouvir. — Não devotei uma vida inteira aos estudos para terminar limpando corredores de um castelo decadente. E você muito menos!

— Foi apenas um modo de dizer. — Sarah bufou diante da reprimenda desnecessária. — É claro que não vamos limpá-lo nós mesmas, levaríamos mais oito anos até acabar com a revitalização. Vamos atrás dos outros, tenho certeza de que irão nos ajudar.

— Mas que outros são esses a quem você se refere? — a governanta questionou enquanto cruzava os braços, nenhum pouco inclinada em ajudar a princesa naquela ideia estapafúrdia.

— Todos que trabalhavam aqui antes, oras. Não me diga que esqueceu da cozinheira Martha, de Maria, do velho Earnshaw. Já pensou que poderíamos até mesmo encontrar Jacques e Elliot novamente? — a fala saiu de modo automático, e só a mera menção dos dois últimos nomes fez seu coração palpitar. Foram longos e parcialmente solitários o anos passados em Hallbridge e ela sentira tanta falta deles que seu peito chegava a doer nos piores dias.

— Não seja ridícula, eles todos devem ter se mudado de Odarin há muito tempo. Ou acha mesmo que ficariam esperando o dia em que a Família Miglidori retornaria para assumir o trono? Alguns já devem até mesmo ter falecido.

— Evangeline, não diga esse tipo de coisa! — a jovem ralhou com sua companheira de modo severo, não lhe agradava sequer de prospectar aquela possibilidade.

— Poupe-me de seus devaneios infantis. — a governanta respondeu de modo duro, enquanto dirigia-se a cabine novamente, sendo prontamente seguida pela mais nova.

— Eles devem estar na cidade em algum lugar. Sei que estão lá e não descansarei até encontrá-los! — a princesa proferiu de modo resoluto.

Depois de muito insistir junto ao seu irmão, parece que finalmente receberam autorização para retornar. No entanto, não fazia muito sentindo se não houvesse um local apropriado que servisse de palco para o retorno da Família Real. Assim, estava ela incubida de revitalizar o castelo dentro de um prazo de três meses. O tempo era curto para muito afazeres, mas ela não iria repousar até completar sua tarefa.

Assim, quando tudo estivesse pronto, escreveria ao seu irmão Allen para que retornasse para casa. Um novo reinado se iniciaria exatamente onde o último fora interrompido, este era seu objetivo atual e ela não estava nenhum pouco inclinada a desistir ou desanimar de sua mais nova fantasia.

— Preciso dizer que não estou nem um pouco empolgada com esta perspectiva. — Evangeline bufou enquanto cruzava os braços novamente, observando o cenário ao lado de fora mover-se a medida que a carruagem ganhava velocidade. — Vai ficar abraçada a este quadro o restante do dia? — ela questionou de modo irritadiço.

— Sim, principalmente se isso incomodar-lhe um pouco mais! — Sarah respondeu com um sorriso zombeteiro e infantil.



Não tardou para que chegassem à casa onde ficariam hospedadas durante a recuperação do castelo de Odarin. Quando soube dos planos dos dois últimos herdeiros da Família Miglidori, o Barão Chevalier fez questão de apoiar aquela iniciativa e, de modo a endossar a aliança que tinha com a Família Real, acolheria a princesa em sua mansão pelo tempo em que fosse necessário. Não era todo dia que surgia uma oportunidade daquelas de agradar ao futuro Rei. Além do mais, seria uma ótima oportunidade de entrosar ao menos um de seus três filhos homens. “Uma jovem como a Princesa Sarah deve se sentir muito solitária. Ela há de ser interessar por ao menos um de meus filhos”, pensava a Baronesa enquanto se dirigia a entrada da mansão em que vivia, observando a carruagem se aproximar até parar bem diante da porta de entrada.

Logo que Sarah desceu da cabina, Friederich Chevalier tratou de beija as costas da mão da princesa, ao passo que Florence Chevalier ensaiou sua melhor reverência. Para Evangeline restaram apenas respeitosos acenos com a cabeça, os quais ela devolveu o gesto com a mesma polidez usual.

— É uma honra poder recebê-la em nossa mansão, Vossa Alteza. — o Barão comentou enquanto abria a porta para que as damas entrassem.

— Fico bastante lisonjeada em saber que ainda existem famílias leais à nós, mesmo que passado tantos anos. — ela comentou com a voz mansa e um sorriso contido. Em sua cabeça, a jovem brincava de “fazer de conta”, imaginando estar encenando as falas de Beatrice. Sempre que utilizava este recurso, as palavras saiam de modo gracioso e natural. Agindo como ela mesma, jamais conseguiria obter tal resultado.

Os empregados do Barão encarregaram-se de retirar as malas, sendo instruídos por Evangeline a tomarem extrema cautela com a pintura de Katherine. Já dentro da casa, a princesa observava todos os detalhes do ambiente. Era um contrassenso, enquanto a casa da Família Avelar em Hallbridge era imensa por forma, ainda que mais simples por dentro, a casa da Família Chevalier não era tão extensa, porém de um requinte inimaginável. A Baronesa Florence insistiu em apresentar os três filhos, alegando que iria trazê-los até  ali num instante, mas Sarah declinou a gentileza, alegando que ela poderia fazê-lo durante o jantar.

Sem maiores diálogos, Sarah informou que seguiria imediatamente para o quarto, pois gostaria de repousar em razão da longa viagem que fizera. Após pedir que lhe levassem um jarro de água fresca, ela fechou a porta de seu aposento, finalmente respirando aliviada. Seriam logos dias aqueles que ficaria hospedada ali. Podia prever todo tipo de assédio, numa tentativa desesperada de agradar a ela e, consequentemente, seu irmão Allen. “Felizmente passarei a maior parte de meus dias fora de casa. Terei de aturá-los apenas durante as refeições”, pensou naquilo como um consolo. Um toque leve sobre a porta lembrou-lhe do pedido que havia feito. Concedendo permissão para que entrassem, ela observou a jovem empregada entrar cabisbaixa pedindo licença enquanto deixava a jarra sobre a cabeceira.

— Precisa de mais alguma coisa, Alteza? — a empregada questionou ainda cabisbaixa, quase como se temesse encará-la.

— Não, isso é tudo. — a princesa respondeu meio incerta, estranhando a reação daquela jovem. Aquele caminhar apressado e o modo afobado de fazer as coisas lhe parecia estranhamente familiar. Quando a empregada estava prestes a se retirar, Sarah recordou-se algo que estava muito bem guardado nos recantos de sua memória. — Espere! Volte aqui um instante.

— Há algo em que lhe possa ser útil? — a servente questionou, tornando o rosto para a janela, ainda evitando encará-la de frente.

— Há sim. — Sarah respondeu de modo decidido, sem desviar os olhos curiosos. — Responda-me, por que está a me evitar desta forma Maria?

— Oh princesa, perdoe minha indelicadeza. Jamais imaginei que pudesse se lembrar de mim, era tão pequena, não passava de uma criança e agora já tornou-se uma verdadeira dama! — Maria levou ambas as mãos ao rosto, respondendo com um misto de surpresa e felicidade, finalmente passando a encará-la nos olhos.

— Nunca poderia esquecer das pessoas que compuseram toda  minha infância. Não houve um dia sequer em que não tenha me perguntado se estava tudo bem com cada de um de vocês. — Sarah respondeu alegremente, segurando as mãos da empregada que exaltou-se com o gesto atípico. — Conte-me Maria, o que aconteceu daquele dia em diante? Por muitos anos esse questionamento habitou meus pensamentos e agora necessito de uma resposta.

— Tantas coisas aconteceram, precisaria de dias para narrar todo o ocorrido. Mas não quero aborrecê-la com meus relatos. Em linhas gerais, a população estava bastante desolada com a crise econômica e com os boatos de que uma nova taxa estava prestes a ser implementada, não foi difícil para o Exército Real convencê-los de que, caso se unissem, destituir o Rei Henrique do poder seria demasiadamente fácil, ainda mais nas condições em que ele se encontrava. Enquanto você e Evangeline fugiam, o nosso senhor faleceu e todo o plano foi por água abaixo, já que o controle de Odarin foi imediatamente para as mãos de Allen, que estava fora do alcance do Exército.

— Que horror! Eu jamais soube de todos esses detalhes.

— Sem mais membros da Família Real para habitar no castelo de Odarin, pouco a pouco fomos deixando nossas casa no vilarejo para trás e tivemos de vir para a cidade em busca de trabalho. Alguns foram ainda mais ousados e tentaram a sorte em reinos vizinhos. A busca foi difícil, as condições eram péssimas, mas que poderíamos fazer? Ninguém sabia precisar o retorno da Família Real, e a comida findou muito mais rápido do que o que esperávamos. Em menos de três meses, todos deixaram o castelo para trás. Todos, menos o velho Earnshaw.

— O que quer dizer com isso? Earnshaw permaneceu no castelo todo esse tempo?

— A medida que as pessoas partiam, ele enfurecia-se com cada uma delas. Achava que não poderíamos abandonar nossas casas, que tivemos de trabalhar tanto para conquistar. Ele recusou-se a abandonar a vila. Recusou-se a abandonar sua casa, seus cavalos, e principalmente o castelo. Acabou afastando-se com todos nós.  Os únicos que ainda se relacionam com ele são Jacques e Elliot, até onde sei.

— Jacques e Elliot ainda estão aqui? — a jovem perguntou com entusiasmo.

— Sim, é claro. Elliot e Marco vivem arriscando trabalhos temporários. Às vezes transportam cargas, às vezes trabalham em algumas fazendas próximas daqui. São como tampa e panela, aqueles dois. — Maria mencionou em meio a um riso discreto, recordando-se dos dois meninos que vira crescer.

— Diga-me Maria, onde posso encontrá-los? Não falo somente de Jacques e Elliot, mas todos que trabalhavam no castelo para minha família. Depois de muitos anos estamos finalmente prontos para retornar ao nosso lar e o castelo de Odarin não seria o mesmo sem vocês, que sempre foram fiéis e árduos no desempenho de suas funções. A casa da vila também retornará para a posse de cada um de vocês.

Maria não pode evitar de levar as mãos a boca, os olhos marejados, brilhando de felicidade. O que antes parecia um sonho distante estava prestes a se tornar realidade. Não era apenas pelo fato de ter uma casa para chamar de sua, não sendo mais obrigada a viver sob abusivos aluguéis. A casa na vila, ainda que pequena e humilde, foi seu lar por toda a infância, adolescência e início da vida adulta.

— Não pode imaginar como estou feliz em saber disso. Farei o que puder para ajudar-lhe nesta tarefa. Infelizmente receio que alguns cargos já não poderão ser assumidos pelos antigos titulares.

— Imaginei que algo assim fosse acontecer. Bom, não há nada que possamos fazer quanto a isto, não é mesmo? — Sarah respondeu com um meio sorriso, dando os ombros. — Diga-me querida, como passa sua mãe? Não imagina como senti falta das comidas que Martha costumava preparar, sempre as melhores.

— Bom Alteza, era exatamente disso que estava falando. Mamãe está relativamente saudável, fisicamente ao menos. Porém a alguns anos atrás ela desenvolveu alguma doença mental e já não é mais capaz de recordar-se das coisas. Esquece nomes, lugares, coisas que fez ou disse. Certamente a Família Real não há de querer uma cozinheira incapaz de precisar quantas vezes colocou sal na comida, não concorda? -Maria confessou de modo triste, enquanto mordia o canto do lábio.

Atualmente sua vida e a de seu irmão caçula Marco resumia-se em trabalhar para pagar o aluguel exorbitante e sustentar a mãe que já não era mais capaz de contribuir economicamente, resultando em um alto custo para uma família de três pessoas. Sarah ficou de coração partido diante do relato, pois imaginar uma pessoa viva e ativa como Martha naquele estado senil era realmente lamentável.

— Eu gostaria de vê-la. — Sarah disse de modo resoluto, após alguns segundos de silêncio.

— Princesa, não se dê ao trabalho. Duvido muito que ela seja capaz de recordar-se de você.

— Maria, eu preciso vê-la. Agora mais do que nunca. — a princesa retrucou de modo autoritário enquanto levantava-se da cama e seguia em direção a porta. — Ande, siga-me! Não saberei chegar até sua casa sozinha.



— Tem certeza de que quer fazer isto? Evangeline irá arrancar minha cabeça se descobrir que a trouxe aqui desprovida de qualquer proteção! — Maria comentou de modo nervoso, enquanto tentava acertar o buraco da fechadura de sua casa.

— Certos assuntos dispensam comentários. Se você não disser nada, não haverá qualquer problema. Vamos, ande logo com isso! — a jovem disse com impaciência.

Já faziam muitos anos desde a revolução e mesmo que a princesa tivesse mudado bastante fisicamente, era impossível não ficar receosa ao caminhar pelas ruas lotadas de Odarin. Era impossível precisar quando algum opositor radical apareceria e a Família Miglidori já não contava mais com a proteção da Guarda Real. Durante todo o trajeto até a morada de Maria, Sarah permaneceu oculta por uma capa com capuz, fazendo questão de deixar seu rosto bem coberto.

Finalmente chegando ao local almejado, ela não pôde evitar de sentir-se mal com o que via. A habitação da empregada sequer poderia ser considerada uma casa, pois não passava de um pequeno sobrado sobre um comércio de vestidos, muito mal conservado. O prédio não tinha qualquer estrutura que favorecesse o aquecimento e estando Odarin localizada próxima à algumas montanhas geladas, ela se questionava como a pequena família era capaz de sobreviver aos rigorosos invernos que acometiam aquela terra.

— Mamãe, estou em casa! — Maria anunciou logo que cruzou a porta.

O lado de dentro não era muito melhor que o lado de fora. A casa era demasiadamente simples, não havendo nada que servisse de decoração afora os poucos móveis indispensáveis para a vida. Imediatamente uma sensação de vazio acometeu a jovem princesa, mas ela preferiu não expressar seus pensamentos. Não gostaria sequer de imaginar a dificuldade que era para a empregada e seu irmão manterem aquelas paredes de pé para abrigar a mãe doente.

Maria a guiou até o quarto que ela dividia com sua mãe. O outro era reservado para Marco. Parando diante da porta, a servente suspirou fundo enquanto segurava o trinco.

— Tem certeza de que quer fazer isto? É muito provável que ela não seja mais capaz de se recordar de você. Ela sequer lembra de Marco na maioria das vezes.

— Ela vai lembrar, não tenho a menor dúvida. — Sarah disse com muita certeza, embora internamente estivesse cheia de dúvidas. Não saberia o que dizer se Martha não pudesse recordar dela. Era certo que não conseguiria conter as lágrimas.

Resoluta, Maria finalmente abriu a porta revelando mais um cômodo simplório, com duas camas de solteiro ocupando a maior parte do espaço, um armário de madeira demasiadamente gasto e uma cadeira de balanço posicionada de frente para a janela. Balançando-se num ritmo lento, uma senhora observava os transeuntes da rua com uma expressão impassível.

— Olá mamãe, como está se sentindo hoje? — Maria perguntou sem realmente esperar por uma resposta. Desde que havia começado a perder a memória, Martha evitava diálogos para não ter de admitir que esquecia de certos acontecimentos. — Olhe, eu trouxe visitas comigo hoje.

A senhora tomada pelos cabelos grisalhos proferiu um grunhido baixo, sem desviar seus olhos da vidraça empoeirada. Sarah aproximou-se vagarosamente, buscando não fazer alarde para não assustá-la. Tocou-lhe o ombro no intuito de chamar sua atenção. A antiga cozinheira dirigiu-lhe um olhar meio intrigado, como se estivesse fazendo esforço para tentar reconhecer aquela jovem dama diante de si. A princesa caminhou até colocar-se de frente para Martha, que lhe acompanhava com o olhar sem proferir uma única palavra.

— Como você está, Martha? — Sarah perguntou com a voz mais doce que conseguiu empregar. Era uma das poucas vezes em que conseguia entoá-la sem que tivesse de assumir algum personagem. Aquilo se devida exclusivamente à sua preocupação genuína com a senhora que estava sentada diante de si. — Lembra-se de mim?

A cozinheira a encarava com curiosidade, ainda silente. A sensação de familiaridade a invadia, mas quanto mais se esforçava mais difícil se tornava chegar a um nome. No entanto, a jovem dama não desistiu. Ao invés de tentar impor qualquer informação, Sarah ajoelhou-se aos pés da senhora à sua frente, tomando suas mãos calejadas e cheias de queimaduras já cicatrizadas entre as suas. Encarando a mais velha com uma ternura, ela arriscou um diálogo.

— Sinto tanta falta de seus biscoitos, Martha. Jamais encontrei qualquer guloseima semelhante às suas.

Maria observava aquela cena de coração partido. Sabia como a jovem princesa gostava da antiga cozinheira. Também era de seu conhecimento a reciprocidade daquele sentimento. Agora já não bastasse a longa passagem de tempo, mas também a memória enfraquecida de Martha, era demais para o coração da empregada. Estava prestes a interromper aquele monólogo quando o cômodo fora cortado por uma voz imponente.

— Se quiser comer biscoitos terá de esperar até depois do jantar! — a voz de Martha preencheu um ambiente, com o sotaque interiorano que lhe era característico. — Não quero ninguém na minha cozinha reclamando da sua falta de apetite à mesa, ouviu Senhorita Sarah?

A jovem dama mal pôde segurar o sorriso. Atrás da cadeira de balanço, Maria ria enquanto uma singela lágrima de felicidade escorria por seu rosto. Ainda que aquela tivesse sido uma resposta automática, um lapso de memórias do passado, ela não poderia deixar de se alegrar. O mesmo valia para a princesa, que estava mais do que satisfeita em saber que apesar da doença ter consumido muitas de suas lembranças, não apagara por completo a existência da menina teimosa que furtava biscoitos da cozinha, pouco antes do jantar.

As duas conversaram por breves momentos, mas ao perceber que estava próximo do pôr do sol, Sarah levantou-se para retornar à casa da Família Chevalier. Não sem antes prometer muitas visitas à velha cozinheira, exigindo uma degustação de seus antigos biscoitos.



— O que está esperando Maria? Apresse-se, tenho que retornar à casa do Barão Chevalier antes que escureça. Irão acabar reparando minha ausência. — a jovem ralhou numa tentativa de apressar a empregada que parecia hipnotizada em frente à vitrine de a loja localizada debaixo do sobrado que chamava de casa .

— Perdoe-me princesa. Não consigo deixar de ficar encantada com os vestidos dessa loja sempre que passo por aqui. — Maria confessou levemente envergonhada. Estava a passar por uma tola. Nem que trabalhasse a vida inteira conseguiria dinheiro para custear ao menos uma das peças dispostas na vitrine.

— São muito bonitos, realmente. — a princesa fora obrigada a reconhecer, após se aproximar da vidraça. — Saberia dizer quem é a dona deste comércio?

— Provavelmente alguma viúva que decidiu investir no ramo, embora não saiba precisar quem seja. Mas conheço a moça que o costura. É muito talentosa e simpática. Se chama Delia, creio eu. — ela mencionou tentando forçar a memória para certificar-se daquela informação. — Agora que mencionei isso, acabo de me recordar de seu rosto. Ela é parecida com você, princesa.

— É mesmo? — a jovem questionou com curiosidade. — Neste caso, espero poder conhecê-la muito em breve.


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