The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 47
Capítulo XLVII - 05 de Março de 1873




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— E então, o que me diz? Gostou do resultado?

A resposta para aquela pergunta demorou mais que o esperado. Sarah contemplava seu próprio reflexo no espelho com um ar distante e pensativo. Os fios de seu cabelo castanho, que agora tornavam a exibir o brilho saudável de antes, estavam pelo menos um palmo mais curtos. Ainda que seu real comprimento se mantivesse camuflado boa parte do tempo graças aos penteados comportados, ela reconhecia ali uma profunda mudança, não só em sua aparência física, mas também em seu espírito. Pela primeira vez em anos, a imagem diante de si já não lhe causava estranheza. De igual modo, agora tinha ciência de que seu reinado não se pautava na vontade divina, mas em sua própria, e no do desejo entusiasmado de tornar Odarin uma nação próspera e cheia de oportunidades.

— Eu adorei — ela respondeu, com um sorriso carinhoso na direção de sua governanta. Satisfeita com seu próprio trabalho, Evangeline repousou a tesoura em sua penteadeira, tomando em mãos um pente para que pudesse elaborar um penteado recatado em sua eterna criança. — Depois, quero que separe um vestido para mim. Aquele, azul-esverdeado e com bordados orientais.

— Uma excelente escolha para combinar com o ar primaveril — a antiga criada comentou com bom humor, separando delicadamente as mechas de seu cabelo antes de prendê-las nas tranças usuais, que posteriormente iriam se transformar num coque discreto. — Vai a algum lugar?

— Tenho assuntos importantes para tratar na cidade, mas não devo demorar muito — a jovem rainha comentou distraidamente, enquanto seus dedos ocupavam-se em alisar a capa de couro do diário de sua mãe. Havia adquirido o hábito de levá-lo a todos os lugares, mantendo-o sempre ao alcance de suas mãos. Aquelas páginas amareladas proporcionavam-lhe um conforto, assim como a sensação de confiança que eram indescritíveis, e das quais se tornara quase dependente. — Escolha um chapéu simples também, eu não desejo chamar atenção.



Àquela hora, Edgar havia percorrido muitos cômodos, já sentindo-se enfastiado por não ser capaz de localizar sua esposa em lugar algum. Desde a repentina melhora de Sarah, a menina vinha se ocupando não só em convalescer de seu mal-estar, mas também buscava retomar o controle de tudo aquilo que acontecia em seu reino.

Em meio a tantas diligências, havia um assunto ao qual não podia mais adiar. Ainda que estivesse receoso de como ela poderia reagir, era necessário revelar-lhe as recentes descobertas feitas por Phillip e ele. Os fatos novos foram narrados num tom ameno, buscando minimizar quaisquer reações exageradas por parte da jovem rainha. No entanto, diferentemente do que havia imaginado, ela se limitou em crispar os lábios enquanto meneava negativamente, exibindo um semblante decepcionado, mas sem maiores alterações. “Precisamos descobrir onde esse dinheiro se encontra, e só então teremos meios para confrontar Greenwall sobre essa jogada ardil”, foi tudo que disse antes de passar para a próxima tarefa, pondo-se em estado de reflexão.

Desde então, não era incomum encontrar oficiais do exército revistando quartos de hóspedes, inspecionando paredes e móveis, atentos à onde quer que aquelas quantias vultuosas pudessem estar escondidas. Em um dado momento, foi requisitada autorização para escavar o jardim, mas Sarah proibiu terminantemente qualquer dano à área externa, alegando que medidas extremas como aquela apenas serviriam para chamar a atenção, algo que buscavam evitar a todo custo.

Em seus momentos de observação silenciosa, Edgar podia perceber uma profunda mudança em seu comportamento. Seus gestos, assim como sua fala, estavam mais contidos e sensatos, demonstrando que seus dias de isolamento lhe conferiram uma postura que muito se assemelhava a de uma monarca respeitável. Ainda assim, aquelas sensíveis mudanças em nada alteraram a personalidade generosa, assim como em sua risada infantil que por vezes despontava em meio aos diálogos. Presenciar aquela gradativa transição fazia com que se sentisse intimamente cheio de orgulho, deixando ainda mais certo das palavras que proferira dias atrás: ela deixaria um legado maior que qualquer outro monarca que a tenha precedido.

Seus pés finalmente alcançaram a entrada do Gabinete Real, e por mais que almejasse vê-la o quanto antes, estava ciente de todas as pendências oficiais que o aguardavam, de tal modo que sua busca teve de ficar para depois. Cruzando a porta com desânimo, foi com grande surpresa que vislumbrou a figura de Sarah sentada junto à sua mesa, com muitos papéis disposto em sua frente.

— Aí está você! — Exclamou com entusiasmo, conferindo-lhe não mais que um rápido olhar, antes de tornar a abaixar a cabeça. Haviam tantas requisições e ofícios apenas aguardando sua assinatura que seriam necessários vários dias antes que pudesse dar conta de tudo. Com aquilo em mente, tinha a consciência de que era preciso ser diligente sempre que houvesse algum tempo disponível. — Estive aguardando-o por um bom tempo, onde esteve até agora? Bem, não importa. Tenho de ir até a cidade, mas ainda temos tanto para fazer aqui. Posso pedir-lhe para ocupar meu lugar por apenas mais um dia?

— Claro, sem problema algum — ele comentou em meio a uma discreta risada, enquanto a observava juntar os papéis, colocando-os em pilhas ordenadas. — Não prefere que eu a acompanhe?

— Eu adoraria, mas confesso que me será muito mais útil se permanecer aqui. Além disso, creio que será algo breve — Sarah respondeu em meio a um sorriso franco. — Diga-me, já houve a designação de alguma das Famílias Fundadoras para construir e gerenciar da Companhia de Fundição?

— Recebemos muitas propostas, mas julguei que essa escolha deveria partir exclusivamente de você — Edgar pontuou de modo casual, ainda parado próximo à porta. Sua resposta gerou um olhar curioso de sua consorte, que agora caminhava em sua direção. — É um projeto seu, e não me senti confortável em tomar a frente de uma decisão tão importante. Pensei que o mais adequado seria aguardar pelo seu retorno. Fiz mal?

— Não, de maneira alguma — a menina retorquiu, em meio a um instante de reflexão. Àquela altura, já se encontrava a poucos passos de distância do jovem Avelar, que a encarava com um olhar tranquilo. — Mas estou surpresa em ver que esteve realmente acreditando em meu restabelecimento. Como podia ter tanta certeza?

— Não podia — confessou com franqueza, por um instante encolhendo os ombros num gesto de timidez. — Mas a ideia de não tê-la aqui novamente era dolorosa demais para ser sequer cogitada.

A confissão, dita de modo tão natural, levou um tom corado às bochechas de Sarah, fazendo-a desviar os olhos de seu consorte enquanto degustava do agradável som produzido por aquelas palavras. “Edgar nunca deixou de acreditar em mim, apesar de meus atos temerários e impulsivos”, ela concluiu em instantes, novamente sentindo a culpa apossar-se de seus pensamentos. No entanto, antes mesmo que aquela linha de raciocínio depreciativa pudesse criar raízes, ela percebeu seu queixo ser reerguido por uma mão delicada.

— Eu sei o que está pensando, e quero que pare imediatamente — seu consorte afirmou com o mesmo tom pacífico de antes, ainda que de maneira firme. Seu olhar estava fixo sobre a imagem da jovem, e seu semblante somente se suavizou quando ela tornou a sorrir, mesmo que de maneira fraca. — Agora vá, eu não quero interrompê-la.

Depois de depositar um beijo carinhoso em sua testa, Edgar caminhou vagarosamente na direção da pilha de papéis. Sem que ele soubesse, Sarah encarou suas costas por mais alguns instantes. Não saberia precisar quantas vezes havia perdido perdão por seus atos, mas tornava a fazê-lo todas as vezes em que se recordava do incidente vivido semanas atrás.



Sentado numa das mesas dispostas em seu extenso jardim, Robert Banville sentia a brisa fresca da primavera invadindo seus pulmões enfermos enquanto degustava dos biscoitos de canela vindos diretamente das docerias de Greenwall, na companhia de sua mãe e irmãs. Os campos esverdeados poderiam ter ótimas propriedades medicinais, mas o rapaz constantemente sentia-se saudoso das baixas temperaturas de Odarin.

— Mais uma de suas extravagâncias, ao que me parece — a matriarca comentou, ensaiando um ar severo, mas sem obter sucesso em sua tentativa. No entanto, como poderia agir com rispidez, quando tinha ciência de que qualquer dia ao lado de seu primogênito poderia ser o último? O melhor a fazer era simplesmente não aborrecê-lo. — Dois cães de uma vez só? Você está deixando-as tão mimadas que sequer poderei arranjar-lhes um bom casamento quando chegar a hora.

— Não se ocupe com tolices dessa ordem, mamãe. Pretendo deixar-lhes o bastante para que não precisem depender de mais ninguém — retrucou enquanto bebericava de seu chá, respirando fundo de tempos em tempos, tal como haviam lhe recomendado os clínicos. Com o tom de voz ligeiramente mais baixo, ele murmurou na direção de sua mãe. — Peço, inclusive, que não as obrigue a nada, e deixe que trilhem seus caminhos por conta própria.

— Como disse que eram seus nomes? — interpelou a mais velha das quatro, nem mesmo dando-se conta de que estava interrompendo uma conversa privada. Ainda que a matriarca estivesse indignada com o pedido de seu filho mais velho, optou por não tecer comentários na ocasião. Entretanto, o assunto não seria facilmente esquecido.

— Louis e Nate, meus fiéis companheiros durante o período em que estive em Greenwall — ele respondeu de imediato, em meio a um sorriso ameno. — São ótimas companhias para caminhadas e aquecem muito bem os pés nos dias de inverno. Agora, eles pertencem a vocês.

Encantadas com a amabilidade proveniente dos dois animais corpulentos de pelagem mista, típicos de sua raça, as quatro meninas ocupavam-se em acariciá-los em meio ao seu banho de sol. Robert observava a cena com todo o zelo que tinha pelas mais novas transbordando em seus olhos, e teria permanecido assim se um criado não tivesse surgido atrás de si, chamando-lhe a atenção ao limpar a garganta de maneira sugestiva.

— Lorde Banville, perdoe-me interromper sua refeição, mas devo informá-lo que temos visitas. — Inclinando-se ligeiramente para frente, o empregado abaixou o tom de voz e tentou ser o mais discreto possível. — Eu disse-lhe para esperar na mansão, mas ela insistiu em vir até aqui.

Esgueirando-se em seu assento, Robert tentou vislumbrar quem poderia atrapalhar sua manhã de tal forma, sem nem ao menos enviar-lhe uma carta com as devidas vênias antes. No entanto, seus olhos escuros logo focalizaram na imagem diminuta de Sarah, que aguardava pacientemente por sua recepção. De imediato, não só ele como também suas irmãs foram ágeis em erguer-se de onde estavam, ensaiando uma reverência polida na direção da rainha de Odarin.

— Mas que surpresa agradável vê-la aqui — Robert mencionou, com uma genuína afabilidade, enquanto aproximava-se para lhe cumprimentar com o usual beijo nas costas de sua mão. — A que devo a honra de sua ilustre visita? Gostaria de entrar para que possamos conversar com um pouco mais de privacidade?

— Não será necessário, prometo-lhe que serei breve. Mas posso aceitar uma rápida caminhada em seu jardim — a menina comentou de maneira elegante. Em instantes, o rapaz estava ao seu lado, oferecendo-lhe o braço com prontidão. — Diga-me, como tem estado sua saúde? Alguma boa notícia?

— Tão ruim quanto no dia de meu baile — o nobre respondeu, valendo-se de seu usual humor fúnebre ao elaborar o comentário impensado. A reação de Sarah foi um olhar preocupado, seguido de um silêncio tenso entre os dois, ao qual ele logo ocupou-se em desfazer. — É apenas uma brincadeira, peço que não leve minhas falas tão a sério. Tenho me sentido bem, na medida do possível, e agradeço pela delicadeza em perguntar.

— Isso é ótimo de se ouvir. Mas o intuito desta visita é outro — ela prosseguiu rapidamente, evitando pensar que em breve teria mais um velório para comparecer. — Estive avaliando as propostas das famílias fundadoras para construção e gestão da Companhia de Fundição de Minérios de Odarin, e percebi que não recebemos nada da Família Banville. Aconteceu alguma coisa?

— Eu tomei conhecimento desta iniciativa, mas mesmo tendo algumas ideias em mente, optei por me abster de enviá-las. — A informação levou um olhar curioso ao semblante de Sarah, que buscava compreender as motivações de sua companhia. — Não me pareceu sensato fazê-la perder tempo com uma leitura dessas, até porque imagino que vá nomear alguém com quem tenha mais familiaridade para administrar o que me parece um dos maiores investimentos de Odarin.

— Tem certeza disso? — a jovem rainha arguiu, num ligeiramente sugestivo que chamou a atenção do Lorde Banville, que passou a encará-la com mais intensidade.

— Bem… eu tinha, até poucos segundos atrás.

— À princípio, estive receosa em lhe propor uma função dessa magnitude, em razão do seu delicado estado de saúde. Portanto, sinta-se livre para recusá-lo, caso não se sinta apto para exercê-lo. Apenas saiba que de minha parte, adoraria poder contar com a sua experiência e sabedoria nessa empreitada. — As palavras saíram naturalmente, à despeito de seu nervosismo inicial quando adentrou naquela propriedade. No entanto, segurar com firmeza o diário de sua mãe em sua mão livre conferia-lhe uma espécie de confiança ímpar. — Então, o que me diz?

Robert manteve-se silente por um momento, ponderando o peso e as eventuais consequências daquela decisão. Permanecer em repouso era uma das recomendações que seus médicos haviam dado maior ênfase, mas ele bem sabia que não poderia manter-se ocioso por muito tempo. Não desejava terminar seus dias como um enfermo inválido, ainda mais agora, quando havia diante de si a oportunidade de contribuir com seu próprio reino de maneira tão significativa.

— Digo-lhe que é uma honra para mim poder servir à Coroa desta forma em meus últimos meses. Inclusive, eu a agradeço por tamanha consideração.

A resposta trouxe um genuíno sorriso ao rosto da jovem rainha, que foi prontamente retribuído. Algo na presença do rapaz era capaz de deixá-la encantada, sendo este o resultado de seu comportamento elegante e imponente, assim como seu olhar diferenciado sobre o mundo. Talvez porque ela mesma desejasse possuir algumas daquelas qualidades.

— Neste caso, espero vê-lo em meu castelo em breve, para que possamos debater as minúcias de nosso trabalho. Mas por ora, tenho outras questões para tratar, de modo que peço-lhe licença.

Aquela não era apenas uma escusa educada. Havia uma íntima verdade que Sarah gostava de guardar para si mesma: ela sentia-se mais segura quando estava rodeada de pessoas a quem verdadeiramente admirava. Certa disso, não poderia permanecer ali por muito mais tempo. Sua presença era requisitada em outros lugares, não havendo um único minuto a perder.



A livraria do senhor Morris era tomada por uma espécie de caos ao qual somente ele sabia administrar. Quando se tornou chefe de sua família, a espaçosa casa rapidamente se transformou numa apertada biblioteca, com estantes abarrotadas e cheias de teias de aranha, com pilhas de exemplares escorados nos cantos de parede e vidraças empoeiradas.

Detentor de uma coleção única, algumas de suas brochuras valiam verdadeiras fortunas, mas ele se recusava a vendê-las mesmo quando um preço justo lhe era oferecido. “Conhecimento é patrimônio, e não nos desfazemos de nosso patrimônio”, costumava dizer aos compradores frustrados. No entanto, sua morada era aberta ao público e qualquer um que cruzasse sua porta seria bem-vindo para consultar o que bem entendesse. Seu modo peculiar de fazer negócios intrigava os clientes e ocasionava crises nervosas em sua esposa, as quais ele costumeiramente ignorava.

— Mais chá, meu bom rapaz? — ele ofereceu, trazendo um bule fumegante em mãos quando se aproximou do filho mais novo do Conde Chevalier, possivelmente o maior frequentador de sua livraria. A despeito das pálpebras volumosas e das sobrancelhas grisalhas que caíam pesadamente sobre seus olhos como uma cortina, ele observara aquele garotinho franzino e anêmico transformar-se num homem importante, tudo graças a sua eterna fonte de conhecimento, o que lhe trazia imenso orgulho.

— Agradeço a atenção — Phillip respondeu educadamente, erguendo sua xícara sem nem mesmo tirar os olhos do volume que tinha em mãos. Mesmo depois de investir a manhã inteira em sua busca, não foi capaz de encontrar nada que lhe pudesse ser útil, e o sentimento de frustração fez com que soltasse um suspiro cansado.

— Não perturbe sua mente, logo encontrará exatamente a resposta que precisa — pontuou o livreiro em meio à uma risada afável, desferindo tapinhas encorajadores nas costas do jovem Chevalier antes de se afastar a passos lentos.

Como encontrarei respostas se nem mesmo tenho certeza daquilo que estou procurando?”, rebateu o rapaz mentalmente. A bebida morna aqueceu seu estômago, mas não foi o suficiente para preencher a prolongada sensação de vazio que o acometia há muitos dias.

Desde que deixara o castelo na manhã que antecedeu o baile, havia uma espécie de inquietação a qual não era capaz de domar. Seus estudos já não eram proveitosos dada a falta de concentração, e nem mesmo as leituras mais despretensiosas conseguiam distrair sua mente agitada. Ele estava profundamente preocupado, não só com as pendências do reino de que tinha ciência, mas também com o estado de saúde de Sarah. Embora ansiasse por notícias suas, não se sentia digno o bastante para ir até lá demandar qualquer coisa. Esse era um privilégio que já não detinha mais.

O ócio o perturbava além do que gostaria de admitir e sua única sorte era saber que aquele incômodo não era capaz de resistir aos encantos de Delia. Quando estava em sua companhia, era como se todos os problemas pudessem ser amenizados por suas palavras doces. Além disso, a prospecção de dias melhores conseguia acalmá-lo momentaneamente, mas com tantas coisas para serem resolvidas em tão pouco tempo, não era um artifício com o qual podia contar o tempo inteiro. E, de todo modo, era inadmissível que precisasse contar com sua presença para sentir-se confortável consigo mesmo. “Talvez, quando estivermos longe daqui todas as questões se transformarão em pequenos detalhes, insignificantes demais para nos preocuparmos”, era o que gostava de presumir, embora não estivesse colocando muita fé no próprio pensamento.

Deixar Odarin para trás, ao lado da camponesa ruiva, seria realmente a coisa certa a se fazer? Ou estaria ele apostando todas as suas fichas no futuro errado? Se alguém pudesse assistir seu conflito interno, perceberia de imediato o quão relutante estava em permitir que seu recém descoberto lado sentimental tomasse aquela decisão sozinho, mas sua racionalidade o traíra de maneira cruel nos últimos dias, e o rapaz já não sabia em que acreditar.

Se já não bastasse, ele podia perceber que a jovem ainda não se mostrava inteiramente à vontade com o recente envolvimento. Os gestos tímidos e o ar reticente demonstravam algum distanciamento entre os dois, decerto devido a fenda entre as duas classes sociais. O próprio rapaz não tinha certeza de como deveria se portar diante de algumas falas ou ações, levando-o a se questionar se algum dia estaria apto a corresponder as boas intenções da camponesa.

— Esses óculos lhe caíram muito bem — mencionou uma voz delicada, bastante familiar aos seus ouvidos, levando-o a erguer os olhos com um misto de espanto e vergonha. — Eu gostaria de pedir-lhe um conselho.

Ao ver sua rainha de pé, vestida em trajes discretos e elegantes, sorrindo com amabilidade em sua direção, foi impossível para Phillip evitar a sensação de insignificância. Sentia-se tão indigno de estar em sua presença quanto uma pulga, e o pensamento quase levou uma risada irônica aos seus lábios. Ele podia se recordar perfeitamente de um antigo diálogo, em que tivera a audácia de compará-la a um parasita.

— Estou longe de ser a pessoa mais recomendada para conferir-lhe conselhos — ele retrucou após alguns instantes, em meio a um murmúrio contido. Era reconfortante constatar que sua saúde estava restabelecida, mas isso em nada alterava sua responsabilidade pelos momentos de angústia que ela tivera que enfrentar.

— Não diga isso. Desconheço outra pessoa mais capaz do que você — Sarah rebateu com o ar confiante, não se deixando abalar pela postura insegura de seu amigo. Edgar havia mencionado a conversa que ambos tiveram depois do baile, de modo que já imaginava encontrá-lo distante de seu melhor humor.

— Certamente não conhece muitas pessoas — o rapaz pontuou, num tom igualmente baixo. Conhecia-a bem o bastante para saber que não desistiria tão facilmente e, estranhamente, aquilo não o perturbava como havia imaginado. Era acalentador perceber que ela parecia disposta a perdoá-lo, mesmo quando ele mesmo ainda não se sentia apto a fazê-lo.

— Por favor, Phillip, não se torture tanto por conta de um único erro. Qualquer um em seu lugar teria tirado as mesmas conclusões — a jovem rainha arguiu, num tom pacífico e compreensivo, enquanto repousava uma de suas mãos enluvadas sobre o ombro de seu antigo Secretário. O gesto fez com que ele sentisse com mais intensidade o impacto de suas palavras. — Aliás, estou enganada. Nenhuma outra pessoa teria ido tão longe, nem mesmo chegado tão próximo da verdade quanto você.

O rápido discurso o levou a abaixar o rosto novamente, absorto em suas próprias reflexões. Foram anos até que o filho mais novo do Barão Chevalier reunisse confiança o suficiente e deixasse de ser considerado um alvo fácil para a sociedade hostil em que se encontrava inserido. O ar prepotente e a fala arrogante serviam como um escudo, para blindá-lo de toda e qualquer interferência externa que pudesse lhe ser nociva. No entanto, como era comum acontecer com falsas personalidades, sua barreira de proteção era muito mais frágil do que se poderia imaginar.

Naquela ocasião, sabia exatamente que tipo de conselho ela precisava, mas tornar a pensar nos detalhes da traição de Greenwall apenas reacendia memórias que, de uma vez por todas, ele gostaria de esquecer.

— Sinto muito, não quero incomodá-lo. Apenas saiba que, apesar de todo o apoio que Edgar tem partilhado, eu ainda preciso de um Secretário Real. — Aquela última frase saiu cantada por seus lábios, e levou uma expressão de assombro ao semblante do rapaz à sua frente. — Eu não tenho a intenção de forçá-lo a nada. No entanto, gostaria que refletisse sobre minha proposta. Se ainda tiver interesse no cargo, sabe onde pode me encontrar. Caso contrário, prometo que não insistirei no assunto. Apenas saiba de que nada fará com que eu deixe de considerá-lo um precioso amigo.

Mesmo depois da jovem rainha ter retirado a mão de seu ombro e se afastado com suas passadas curtas e elegantes, Phillip ainda podia ouvir com nitidez aquelas últimas palavras, que ressoavam em sua mente de maneira convidativa.



Limpando as gotas de suor que escorriam por sua face corada, Delia parou junto a porta de sua morada por um instante, observando o ambiente ao seu redor. A sala vazia aliada as paredes sem quadros e janelas sem cortinas conferiam ao imóvel um ar impessoal, num estado de abandono recente. Foi preciso se desfazer dos poucos móveis que tinha para levantar algum dinheiro, restando tão somente as camas onde passariam os próximos dois dias, antes de finalmente deixar aquela planície gelada para trás. “Ainda que seja o melhor a ser feito, eu sentirei muita saudade daqui”, ela pensou com um ar saudoso.

Se fechasse os olhos, poderia se recordar com clareza dos muitos momentos vividos ali, como as noites que passou debruçada sobre tecidos finos, prestes a se tornarem vestidos para as mais variadas ocasiões. Ou então, das brincadeiras barulhentas idealizadas por suas crianças, tão inocentes que jamais poderiam imaginar as atrocidades das quais o mundo era capaz de perpetuar. Contagiada pelas boas memórias do passado, a camponesa permitiu que sua mente vagasse um pouco mais, até que trouxesse à tona a imagem do sorriso gentil do rapaz de tez morena que havia se dedicado a ela com tanto esmero. No entanto, logo seus olhos tornaram a se abrir e ela caminhou pelo cômodo vazio no intuito de dispersar a visão daquela personalidade afável que a acompanhara por tanto tempo.

Eu jamais fui capaz de revelar uma única palavra sobre o assunto para Marco. E mesmo que o tivesse feito, ele não compreenderia”, concluiu com uma pontada de remorso. Por vezes, podia sentir o peso da culpa de nunca ter sido inteiramente sincera. No entanto, como poderia expor seu pior pesadelo ao jovem que tornava seus dias mais leves com sua ingenuidade infantil? Como lidaria com a responsabilidade de macular uma alma tão pura e boa? Aquele era um fardo ao qual não estava disposta a carregar, motivo pelo qual se manteve tão resoluta em seu silêncio. Ambos saíram duramente feridos daquele relacionamento, mas, ao menos Delia tinha a certeza de que ele estava melhor sozinho.

Seus olhos então repousaram sobre os dois caixotes pesados que tinha trazido do andar superior, contendo todos os seus pertences restantes. Não era muito, apenas o suficiente para começar novamente num outro lugar. Por um instante, se questionou se o jovem Chevalier pretendia levar seu patrimônio consigo, que consistiam em enormes pilhas de escritos e conhecimento eternizado em brochuras. O pensamento fez com que um discreto sorriso surgisse em seu rosto. Iniciar sua vida do zero em Odarin não fora uma tarefa fácil, e estabelecer laços naquela terra dura foi mais difícil do que havia imaginado. No entanto, agora já não estava sozinha e desamparada quanto antes. Havia uma íntima sensação de conforto ao perceber que estaria muito bem acompanhada em sua nova busca pela paz e tranquilidade.

Phillip não aparenta se incomodar com os detalhes sórdidos de meu passado, pois sabe bem até onde os nobres são capazes de ir para satisfazerem desejos pessoais”, pensou com um ar de alívio. Suas personalidades eram bastante distintas e, apesar do ar reticente que por vezes imperava quando estavam juntos, havia uma crescente curiosidade que ansiava por saber mais sobre as nuances um do outro. O jovem Chevalier lhe parecia uma pessoa tão complexa que em dados momentos ela chegou a sentir como se estivesse explorando um personagem de um livro, que revelava cada vez mais de si com o folhear das páginas.

Seria eternamente grata pelas almas bondosas e gentis que sempre a cercaram. Sua mãe costumava dizer que todo gesto de amor era retribuído de igual modo. Talvez aquela fosse uma espécie de indenização divina por todas as privações que fora obrigada a enfrentar. Se realmente fosse o caso, ela aceitava aquela graça com muito gosto.

Suas divagações poderiam ter se prolongado por mais tempo, mas batidas leves em sua porta a trouxeram de volta à realidade. Avançando com passos entusiasmados, era bem possível que fosse Phillip, e só então a ruiva percebeu como seu coração estava acelerado com a mera prospecção de vê-lo novamente.

Sua visita, no entanto, não se tratava do pálido rapaz de cabelos escuros. Involuntariamente, ela se viu regredindo de maneira cambaleante, sem acreditar em seus próprios olhos. Se houvessem móveis em que pudesse se apoiar, ela o teria feito, dado o impacto daquele encontro. Em seus últimos dias em Odarin, a última pessoa que esperava ver parada em sua porta era a rainha em pessoa.

— Por favor, Delia... quero dizer, Anya. Escute, eu não lhe farei mal algum — Sarah interpelou de imediato, ao perceber a reação espantada da camponesa. Ainda que Edgar a tenha recebido de braços abertos e com todo o seu afeto, tal como sempre fizera, o mesmo não poderia ser dito das outras pessoas, que tiveram o desprazer de presenciar sua pior face. — Mas tenho um assunto da maior importância para tratar, e que lhe diz respeito. Você me permite entrar?



Depois de desfazer o penteado elaborado por Evangeline, a menina ocupava-se em pentear os fios castanhos enquanto refletia sobre os acontecimentos do dia. Dentre todos, seu encontro com Delia ainda era o que mais lhe perturbava, pois pairava em sua mente a incerta de como deveria transmitir suas intenções ao seu consorte, sem que ele se aborrecesse consigo. “Edgar será sensato o bastante para compreender minhas razões”, repetia para si mesma, enquanto deslizava a escova pelas ondulações de seu cabelo de maneira impensada.

Após alguns instantes, a escova foi deixada sobre sua penteadeira e logo seus dedos foram atraídos mais uma vez pelas páginas amareladas dos escritos de Katherine. Quantas vezes havia interrompido seus afazeres diários para reler alguma passagem de suas memórias? Já não poderia precisar, apenas sabia que foram muitas. Havia uma intensidade ímpar colocada em cada palavra. As frases eram montadas como um feitiço, capaz de prender a atenção de qualquer um. Da recordação mais banal a mais envolvente, Sarah sentia como se estivesse explorando um mundo novo todas as vezes que se aventurava ali.

— O que é isso em suas mãos? — Edgar questionou, assim que entrou no cômodo e observou que Sarah estava compenetrada demais em algo para perceber sua presença.

— É um... diário — ela respondeu com um ar de incerteza, como uma criança que é vista fazendo algo inadequado. Era bem provável que um dia viesse a partilhar com o jovem Avelar as lembranças — e também os segredos — escondidos ali. No entanto, naquele momento, gostaria de manter aquele tesouro guardado apenas para si mesma.

— Está escrevendo um? — A despeito do repentino interesse, o rapaz não via nada de excepcional no assunto. Compartilhar pensamentos era uma prática que julgava ser bastante proveitosa, ainda mais a jovem rainha, que por vezes se mostrava atribulada com sua própria consciência.

— Não — retrucou de imediato, ainda que com alguma hesitação em sua voz. Folheando-o novamente, ela pôde perceber uma grande quantidade de folhas em branco. Sua mãe tivera a vida brutalmente interrompida por um revés do destino. Sarah, por sua vez, continuava lá, a despeito da expectativa de muitos. E se o caderno amarelado não fosse apenas uma coincidência? "Sempre me questionei qual seria a sensação de poder conversar com ela. Talvez essa seja a única alternativa que me resta”, pensou com algum entusiasmo, passando a apertá-lo com força entre os dedos. — Mas talvez eu devesse começar a fazê-lo.


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Notas finais do capítulo

Olá meus amados!

Espero sinceramente que vocês estejam gostando dessa reta final. Eu particularmente estou me sentindo toda "mamãe orgulhosa" com o amadurecimento da Sarah diante de tantos obstáculos. Mas não pensem que as emoções acabam por aqui, ainda tenho alguns truques na manga para deixá-los vidrados até a última linha, hehe~

Confesso que estou simplesmente apaixonada pelo Robert, e me sinto muito mal de tê-lo criado apenas nos capítulos finais. Sem dúvidas, é um personagem que merecia ser mais explorado. Farei o possível para mostrá-lo mais algumas vezes antes de chegarmos ao último capítulo.

E quanto ao Louis e o Nate? Os nomes se referem a dois personagens de En El Medio, que é uma das melhores histórias de fantasia que já encontrei na plataforma. Se o gênero lhe agrada, não deixe de conferir essa obra única: https://fanfiction.com.br/historia/757844/En_El_Medio. Foi apenas uma singela homenagem à Cecilia Damasceno, uma das minhas leitoras mais ativas, e que está sempre me ajudando no desenvolvimento dessa história (e de muitas outras). Obrigada por todo apoio, princesa~

Nos vemos em breve, e não se esqueçam de dizer o que estão achando dos momentos finais da trama!



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