The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 46
Capítulo XLVI - 01 de Março de 1873




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Encarando o teto escuro do cômodo em que se encontrava, Edgar não era capaz de enxergar nem mesmo um palmo depois de seu nariz. A dor latejante de seu ombro fizera com que ele caísse desacordado sobre uma cama de hóspedes qualquer, num repouso irrequieto, ainda que sem sonhos. Mesmo depois de desperto, o Duque se manteve imóvel, portando um ar reflexivo enquanto sentia a escuridão apossar-se do ambiente, fazendo com que se sentisse ligeiramente protegido enquanto estivesse oculto nas sombras. Tinha consciência de que não poderia ficar ali para sempre. As obrigações do lado de fora aguardavam seu retorno, ao passo que ele aguardava o retorno de Sarah.

As janelas sombrias indicavam uma hora avançada, embora não soubesse precisar se tratava-se do início da noite ou o término da madrugada. Ao invés dessas ponderações fúteis, sua mente ocupava-se em refletir sobre a confissão de seu irmão. "Ele estava sempre dizendo que tinha outros planos para você", podia ouvir a fala sendo repetida na voz do mais novo. Uma risada sem humor eventualmente escapou por seus lábios, ao perceber a dimensão de sua própria ingenuidade. “Você nunca teve a intenção de fazê-la se casar com Gilbert. Tudo que precisava era de minha oferta voluntária, certo de que eu jamais aceitaria qualquer imposição nesse sentido”.

Como um súbito impulso, o rapaz ergueu-se da cama, logo se arrependendo do gesto. A dor quase imperceptível fez-se presente mais uma vez, levando-o a ralhar mentalmente consigo mesmo pela imprudência. Segurando o ombro com força, de modo a amenizar a dor, Edgar se moveu de maneira comedida até porta.

Os elegantes castiçais com velas acesas forneciam uma precária iluminação ao longo do saguão, apenas o suficiente para que as entradas dos cômodos e os móveis decorativos pudessem ser identificados. Foi preciso algum esforço mental até que ele se recordasse o caminho até seu quarto. No entanto, uma ideia melhor lhe veio em mente.

Fazia muitos dias desde a última vez que vira sua consorte. Quando sua febre delirante finalmente cedeu, Evangeline achou que sua presença pudesse trazer alguma paz ao espírito desassossegado de Sarah. A realidade se mostrou muito distante de sua imaginação, e a menina assumiu um ar tão aflito e consternado ao vê-lo que ambos optaram por deixá-la sozinha novamente, uma vez que seu estado de letargia haveria de ao menos proteger seus nervos de uma nova crise.

Eu não havia percebido como sinto sua falta, mesmo em nossos momentos conflituosos”, ele constatou com um meio sorriso bobo. Não pretendia demorar, queria apenas se certificar de que estava tudo bem. Além do mais, ela haveria de estar dormindo àquela hora. O pensamento fez com que se pusesse a caminhar em direção ao quarto onde a jovem rainha encontrava-se instalada.



— Que querem dizer com isso? — Evangeline bradou com impaciência, ainda sentindo o velho coração palpitar com intensidade, trazendo-lhe a sensação de cansaço. — Como têm a audácia de vir até aqui para me dizer que a rainha não está em seus aposentos? Onde mais ela poderia estar?

— Estávamos de vigia quando a cozinheira surgiu para trazer-lhe a ceia, e só quando abrimos a porta percebemos que ela já não estava mais lá — comentou um dos guardas, de maneira acanhada.

— Não escutamos nenhum barulho suspeito que nos levasse a crer que ela tivesse saído — arguiu o outro, tentando mostrar-se calmo, quando na realidade estava demasiadamente receoso. Um único fio de cabelo da rainha fora do lugar seria o suficiente para responsabilizá-los por algo. Não gostaria de imaginar o que seria feito naquela situação.

— Ora, não me venham com essa. São dois irresponsáveis, isso sim! Não a teriam visto mesmo que tivesse dançado por longos minutos na frente de vocês — retrucou a governanta, percebendo que as palpitações em seu peito tornarem-se mais fortes. “Acalme-se, respire fundo, ou então não durará até o amanhecer do dia”, pensou enquanto tentava regular a respiração acelerava gradativamente. — Revistem o castelo, todos os seus cômodos, sem exceção. E sejam discretos, não quero alarmar o restante dos guardas e criados a não ser que seja realmente necessário.

Os dois sentinelas assentiram positivamente antes de se afastar, cada um levando consigo lanternas à óleo. Escorando-se num móvel, a governanta passou a massagear as têmporas, tentando não se desesperar enquanto buscava uma resposta racional para aquele desaparecimento repentino. Esforçava-se para não pensar na sequência de rainhas que Odarin havia perdido de maneira trágica, mas as memórias dos funerais de Katherine e Beatrice estavam cada vez mais vivas em sua mente.

Passos arrastados ecoaram ao fim do corredor, chamando a atenção da antiga criada, que vislumbrou a figura de Edgar aproximando-se de modo vagaroso. Desde que fora expulsa do Gabinete Real, seu encontros se tornaram menos frequentes, havendo entre eles a troca de poucas palavras polidas. Apesar da luz fraca proveniente das velas esparsas que não lhe permitiam uma análise mais detalhada, julgava perceber em seu semblante um ar mais comedido, talvez menos austero.

— Que incomum vê-lo acordado a essa hora — ela pontuou, espiando seu relógio de bolso e constatando que passava pouco mais das duas horas da manhã. Tentava ao máximo transparecer calma, de tal maneira que o Duque não pudesse desconfiar de sua real aflição. — Aconteceu alguma coisa?

— Acabo de acordar, na realidade — o rapaz respondeu, aparentando estar alheio em seus próprios pensamentos. Atentando-se melhor àquela pergunta, era igualmente estranho que a governanta também estivesse de pé na ocasião. Ainda assim, ele optou por não fazer questionamentos. — Estou pensando em ver como Sarah está. Tenho sido descuidado, já faz bastante tempo desde a última vez que a visitei.

— Não acho que essa seja uma boa ideia — Evangeline interpelou de imediato. Rezava para que a ansiedade não estivesse tão evidente em seu rosto como estava na palma de suas mãos, que suavam em abundância. — Estou certa de que se lembra como ela reagiu da última vez.

— Eu apenas quero vê-la, está bem? — Ainda que tentasse manter sob controle o tom autoritário, sua meta pessoal tornava-se um desafio todas as vezes que encontrava-se com a governanta, que agia com um protecionismo exacerbado, tratando sua consorte como se ainda fosse uma criança incapaz. — Certamente deve estar dormindo, nem mesmo irá perceber que estive lá.

Sem saber o que poderia fazer para impedir as ações do jovem Avelar, a antiga criada mordeu o lábio inferior enquanto o observava afastar-se com o mesmo caminhar lento de antes. Ele parecia fraco e cansado. Talvez estivesse com fome.

— Espere um instante — ela afirmou com euforia, impedindo-o de seguir na direção do quarto vazio. O chamado interrompeu os passos de Edgar, que se limitou em tornar parcialmente o rosto para trás. — Disse que acordou agora há pouco. Imagino que esteja faminto. Por que não vamos até a cozinha, onde posso preparar algo para que possa cear? Depois disso, podemos ver como Sarah está.

O Duque ponderou por alguns instantes antes de responder. Ele tinha alguma urgência em rever a menina, ainda que fosse apenas por alguns breves minutos e durante o seu sono. Ainda assim, não poderia negar que sentia seu estômago protestar já havia algum tempo. Talvez não fosse uma má ideia acompanhá-la até a cozinha por um momento.

Concordando com um ligeiro menear, ele permitiu que a governanta tomasse a dianteira e o guiasse na direção da sala de jantar.



Mesmo que o sol ainda não tivesse dado indícios de surgir junto ao horizonte, os serventes já se encontravam acordados, avançando na direção do castelo. Uns despendiam mais energia e entusiasmo em sua caminhada, entretidos demais em seus diálogos para reparar no longo percurso que precedia o início de suas atividades diárias. Em contrapartida, alguns outros buscavam ao máximo poupar a si mesmos, movendo-se em silêncio enquanto encaravam os próprios pés.

Como de costume, Jacques identificava-se com o segundo grupo de criados, optando por caminhar com certa letargia, ainda sentindo os olhos pesados depois de uma noite mal dormida. Durante anos não ousara adentrar na morada dos monarcas, e a recente experiência o havia perturbado mais do que poderia imaginar. Invadido por uma enxurrada de memórias, todas vividas ao lado da antiga rainha, fez com que aflorasse em seu peito um sentimento de frustração por não escutar sua risada infantil ecoando pelos corredores extensos. De sua amada, tudo que lhe restava eram as lembranças agridoces, muitas das quais se encontravam eternizadas em seu antigo diário.

Conseguia se recordar com riqueza de detalhes do dia em que esgueirou-se pelos passagens vazias até seu quarto, no intuito de apossar-se do caderno envelhecido que Katherine sempre mantinha em mãos. Não havia quase ninguém a quem precisasse despistar, pois todos os serventes e moradores estavam demasiadamente ocupados com a cerimônia de seu enterro.

Embora não se sentisse qualquer do orgulho pelo delito cometido, o rapaz repetia a si mesmo que aquele não era apenas um mero capricho, mas sim da urgente necessidade de manter consigo qualquer coisa que pudesse ratificar a existência daquele relacionamento. Por vezes se viu duvidando da própria realidade, descrente quanto à morte de Katherine. “Eu estarei sempre aqui”, ainda podia ouvi-la dizer com sua voz arrastada e sedutora. A recordação o fazia sentir-se traído diante da promessa não cumprida.

— Eu irei até os estábulos primeiro — Elliot anunciou em voz alta, chamando a atenção de seu pai que, como de costume, encontrava-se perdido em meio a tantos pensamentos distantes. — Nos encontramos depois para finalizar o trabalho com a horta.

Assentindo, o jardineiro o observou afastar-se ao lado de Marco. Eram bons meninos, e sentia-se grato por tê-los por perto. O tratador de cavalos, em específico, havia conferido um novo significado à sua vida, sendo ele uma de suas motivações diárias para erguer-se de sua cama todas as manhãs. Sem ele, era bem provável que seus dias seriam gastos de modo impassível ao presente e indiferente ao futuro. A conclusão o levava ao riso diversas vezes, sendo irônico perceber como os acontecimentos de uma vida pareciam estar sempre concatenados, um complementando o outro, num círculo perfeito.

Sem refletir, seus pés o conduziram até o armazém onde suas ferramentas tinham o devido descanso. A porteira entreaberta chamou sua atenção, levando-o a crer que algum outro criado pudesse ter estado lá antes dele. Com um empurrão, os primeiros raios de luz precária invadiam seu interior, revelando a imagem da jovem rainha junto ao chão, próxima aos fundos do recinto. Seus pés, assim como a barra de suas vestes estavam sujas de terra, ao passo que os fios castanhos usualmente presos em penteados comportados apresentavam-se como um emaranhado de nós.

— Sarah, o que você está…

— Por que nunca me contou nada? — a menina proferiu de imediato, sem se incomodar em interrompê-lo. A fala exasperada rompeu sua garganta seca e externou-se com rouquidão. Parecia ter se desacostumado a falar no tempo em que permanecera silente. — Por que não me disse antes que eu era sua filha?

O questionamento fez com que Jacques sentisse seus músculos travarem e sua mente tornar-se branca por um instante. Compelido em seu ímpeto de correr até onde a menina se encontrava, o silêncio reinou até que ele pudesse recobrar o controle de suas pernas.  Seus olhos serenos não se desviaram em momento algum, e o jardineiro rapidamente chegou à conclusão que os anos gastos no anonimato o deixaram despreparado para aquele confronto direto. Não havia uma resposta ensaiada para aquela pergunta, e ver-se debaixo do olhar dolorido da menina fazia com que se sentisse tão pequeno quanto um grão de pólen.

— Para forçá-la a uma vida de privações? — Jacques retrucou, portando um ar indiferente quando, na realidade, sentia-se em pânico. As razões para aquela omissão lhe pareciam tão óbvias que era difícil exprimir sua motivação em palavras. — Não sou tão egoísta assim.

— Não acha que eu merecia saber disso? — Sarah rebateu com veemência. Sentada contra a parede, com as pernas encolhidas, a jovem rainha não passava de uma criança acuada, tomada pelo sentimento de injustiça. — Consegue imaginar o quanto me custou desconhecer a minha família e minha verdadeira origem? Sabe quantas vezes me senti deslocada em meio a tanta riqueza, como uma intrusa em minha própria pele?

— Não — ele pontuou, após um segundo de reflexão. De nada lhe adiantava fingir ou esconder a verdade agora, quando ele mesmo percorrera os passos necessários até seu quarto, deixando um vaso de camélias e o diário de Katherine sobre sua penteadeira propositadamente. — Mas posso presumir o quanto foi gasto com a sua educação, assim como nos benefícios que sempre estiveram à sua disposição, e que somente a nobreza poderia lhe proporcionar.

— Vestidos caros, joias, títulos de nobreza, jantares e bailes exuberantes, sabe que essas coisas jamais me proporcionaram nada além de sofrimento. — Havia um quê de inconformidade em sua fala, e ela teria erguido seu tom de voz ou adotado uma postura de desagrado se houvesse energia suficiente para tanto. — Acha mesmo que dou algum valor a essas coisas?

— Deveria dar. São coisas que ninguém no mundo pode tirar de você. — Por um breve instante, ela mal pôde acreditar nas palavras que estava ouvindo. Ouvi-lo falar em benefícios materiais, a pessoa a quem sempre ouviu pregar o desprendimento e a humildade, causava-lhe uma enorme estranheza aos ouvidos, deixando-a relutante em prosseguir com aquele diálogo. No entanto, uma voz tímida, mas insistente, em seu íntimo dizia-lhe para escutá-lo com mais atenção, de modo que pudesse compreender a real conotação daquela fala. — Nenhum pai no mundo anseia por criar seus filhos em condições precárias. Não pode me julgar por tentar conferir-lhe algo melhor do que eu mesmo poderia proporcionar.

Resignada, a menina abaixou a cabeça, apoiando sua testa no topo dos joelhos flexionados. Só então Jacques conseguiu mover-se novamente, avançando os passos necessários para chegar até onde ela estava. Apoiando as costas contra os fundos do armazém, seu corpo escorreu pela parede até sentar-se ao seu lado, em silêncio, aguardando pelo que viria a seguir. Podia sentir nela uma enorme necessidade de ser ouvida, e isso era algo que efetivamente poderia fazer.

— As pessoas estão sempre curvando a cabeça em minha direção, beijando minhas mãos enquanto dizem: “Deus salve a Rainha”. Mas tudo que sou, aquilo que sempre julguei ser, não passou de uma grande fraude. Eu não sou ninguém.

As palavras saíram murmuradas, mas o jardineiro pôde percebê-las com clareza. Tinha consciência do quão dispendiosa aquela realidade poderia ser. Uma criança sem pais era como uma árvore sem raízes. Não haviam referências em quem se apoiar, e com isso, vinha a insegurança e o medo. Olhando-a de soslaio, surgiu o ímpeto de afagar-lhe as costas num gesto de encorajamento, ao qual ele conteve a tempo. Sem saber ao certo como deveria se portar diante dela, o mais sabido era permanecer inerte, aguardando sua autorização para atender o que lhe fosse pedido, mesmo que isso significasse deixar o castelo e toda sua vida pretérita para trás.

— Tudo faz sentido agora. A indiferença de Henrique, o ódio de Allen, minha falta de aptidão em conduzir esse reino. Eu não nasci para isso, nada aqui me pertence — foi o que concluiu após longos minutos de reflexão. As peças começavam a se encaixar diante de seus olhos, e cada momento sentia-se ainda mais enojada de si mesma. Ela jamais deveria ter posto seus pés naquele castelo, para começar.

— Pelo contrário, Sarah, não há nenhuma outra pessoa capaz de fazer a diferença. — A fala tranquila, mas proferida com veemência fez com que a menina erguesse seus olhos do chão, passando a encará-lo diretamente. Jacques a fitava com uma firmeza singular, o que a deixou desconcertada por um instante. — Quantos séculos mais a plebe terá de esperar por um governante que passe a olhar para as suas dores diárias? Talvez o povo não sobreviva até esse dia e, a nós, não reste alternativa senão aceitar essa realidade. Mas você pode fazer algo por eles. É inteligente, está mais preparada para o cargo do que imagina e, se já não fosse o suficiente, as pessoas acreditam em você.

Aquelas palavras tiveram um forte impacto no íntimo da jovem rainha, que sentiu uma energia renovadora brotar em seu peito, logo espalhando-se pelo restante do corpo. Meses atrás, ela ouvira Phillip dizer a mesma coisa em seu primeiro dia como Secretário Real. Foram muitos anos de estudos teóricos, e ainda que a realidade se mostrasse um tanto distante daquilo que fora tratado em suas lições, ela tinha alguém ao seu lado que estava mais do que disposto a apoiá-la. “Como pude duvidar da integridade de Edgar de maneira tão arbitrária?”, ela pensou em meio a uma pontada de remorso. Mesmo após a tentativa de machucá-lo fatalmente, num gesto de loucura, ainda assim ele continuava ao seu lado, com uma lealdade ímpar. “Eu não posso desistir assim, ainda há muito a ser feito”, concluiu após repensar em toda a sua trajetória até ali.

— Não deveria ter saído de seu quarto dessa maneira — Jacques pontuou, ao perceber uma mudança positiva em seu rosto lívido. — Evangeline deve estar enlouquecida atrás de você.

— Ela sabia disso tudo? — Sarah questionou, demonstrando um ar incrédulo ao recordar-se da imagem de sua governanta. Era uma possibilidade a qual não havia vislumbrado até aquele momento, mas que faria toda a diferença se fosse considerar as demais revelações dispostas no diário de sua mãe.

— Por que acha que ela sempre relutou em sair do seu lado, ainda que por um instante sequer? — O jardineiro retrucou enquanto dava com os ombros, surpreso pela menina não ter chegado até aquela conclusão antes. — Tinha tanto receio de que Allen pudesse tentar algo, que por vezes precisou se mostrar mais inflexível e dura que o necessário, de modo a mantê-la segura. Dificilmente encontrará outra pessoa tão fiel quanto ela em sua vida. Havia zelo e dedicação mesmo em seus excessos, tenho certeza que sabe disso.

— Mas eu não compreendo. — Sua mente já estava cansada de pensar em todos os pormenores que aquela revelação acarretava. Além disso, sentia-se exausta e isso dificultava a velocidade com a qual conseguia assimilar tantas informações inéditas. — Por que Allen tentaria me fazer algum mal? Ele também sabia?

— Astuto como era, certamente deve ter descoberto em algum momento. Caso contrário ele… não, esqueça. Eu prefiro não falar sobre isso. — A mudança repentina de comportamento chamou a atenção da jovem, mas depois de vislumbrar no rosto de Jacques uma expressão dolorida, optou por não elaborar mais perguntas. Ainda havia muito a ser esclarecido, mas não tinha a necessidade de fazê-lo em um único momento. Eles dois teriam ainda muito tempo pela frente. — Você deveria retornar agora. Todos devem estar preocupados com a sua ausência.

Meneando obedientemente, Sarah colocou-se de pé e quase retornou ao chão em sua tentativa, sendo prontamente amparada pelo jardineiro. Ela o agradeceu com um sorriso tímido, e ambos puseram-se a caminhar juntos em direção à área externa.

Ele a teria carregado no colo, tal como faria com uma criança pequena, mas nem mesmo os costumes ou sua consciência o permitiriam tamanha ousadia. Caminhando logo atrás dela, segurando-a em seus antebraços, foi a maneira encontrada pelos dois de caminharem em meio a um silêncio reconfortante até a entrada da escadaria principal, onde dois guardas correram para ampará-la.

Com o devido auxílio, seus pés fracos e cambaleantes a levarem para dentro do castelo. No entanto, seus olhos insistiam em buscar aquela figura que costumeiramente ficava para trás, vivendo seus dias em função do jardim que contornavam sua morada. Só então ela compreendeu a imagem e as intenções de Jacques. Cercar aquelas paredes altas com flores das mais variadas espécies era a sua maneira não só de fazer-se presente e alegrar seu dia, mas também sua forma de envolvê-la com um ar protetor, mesmo que indiretamente.



Invadindo o cômodo, Evangeline nem mesmo atentou para a maneira brusca como batia as portas contra a parede ou como o som de seus sapatos ecoava sobre o assoalho de madeira. Nenhuma daquelas minúcias lhe apetecia, pois sua única preocupação naquele momento era certificar-se de que sua menina estava sã e salvo. Enquanto aguardava nervosamente pelo fim da refeição do Duque, a governanta fora informada que sua rainha havia reaparecido, sendo devidamente levada aos seus aposentos. A notícia foi o bastante que ela empregasse uma escusa qualquer ao jovem Avelar, rapidamente deixado para trás na sala de jantar com sua ceia.

— Não me dê um susto como esse novamente, meu coração já não é capaz de suportar! — Ela disparou enquanto a abraçava com força, logo passando a segurar seu rosto entre as palmas trêmulas de suas mãos, certificando-se de que não havia nenhum machucado para ser tratado. — Por um momento, cheguei a pensar que você pudesse ter seguido os mesmos passos de Beatrice…

Sentada numa cadeira disposta no centro do quarto, Sarah se limitou a sorrir fracamente diante daquelas palavras apreensivas. Jacques tinha razão quando comentou a respeito da dedicação e zelo de sua governanta. Mesmo com seus excessos, ela jamais poderia alegar que não se sentia imensamente amada pela senhora que a acompanhava desde o seu nascimento.

A criada logo pôde constatar o estado deplorável dos pés e vestes da menina, sendo bastante diligente ao buscar do outro lado do cômodo um vestido limpo, assim como uma jarra d'água para que pudesse lavá-la. Somente ao aproximar-se novamente foi que pôde perceber o objeto que a rainha trazia firmemente preso entre seus dedos. Ela reconheceria aquele antigo caderno com capa de couro ainda que se passassem cinquenta anos. E vê-lo ali, depois de tanto tempo desaparecido, só podia significar uma coisa: ela sabia.

Percebendo onde o olhar de Evangeline encontrava-se repousado fez com que ela abraçasse àquelas páginas encadernadas com força. Por um momento, houve um justo receio de que a mais velha pudesse tomar o diário de suas mãos, levando para longe as memórias recém adquiridas de sua mãe.

— Você sempre soube de tudo, Evangeline… e ainda assim nunca me disse nada, mesmo acompanhando todo o meu sofrimento — Sarah mencionou, havendo uma pontada de mágoa em sua voz rouca.

— Minha menina, você não seria capaz de imaginar o fardo que é sustentar todas essas mentiras — confessou, enquanto ajoelhava-se junto ao chão, limpando seus pés com uma toalha umedecida. — Acha mesmo que nunca percebi seu conflito interno, ou que não via a dúvida estampada em seus olhos? Mesmo que me custasse vê-la sofrer dessa maneira, era necessário manter esse cenário para protegê-la. Que acha que os nobres fariam se soubessem sua verdadeira origem?

— Você poderia ter-me feito essa revelação, de qualquer maneira — ela rebateu com inconformidade, ainda que não houvessem outros argumentos que pudesse apresentar.

— Diga-me, que bem lhe faria saber disso? Henrique foi mais do que benevolente em permitir sua permanência aqui conosco, ainda que estivesse ciente da ausência de sangue nobre ou linhagem tradicional. Lhe conferiu todas as regalias e privilégios que somente uma princesa poderia ter — ela pontuou, o que fez a menina torcer os lábios com insatisfação. Ainda assim, sua governanta prosseguiu. — Ouça com atenção: nosso falecido monarca e sua mãe tinham um relacionamento complicado e pouco agradável. Por sorte, justo como era, ele jamais lhe imputou qualquer culpa, e esse era um fato que Allen jamais conseguiu aceitar. Por que acha que eu nunca a abandonava por um instante sequer?

— Se tudo que me diz é realmente verdade, por qual razão Allen se mostrava tão generoso comigo? — Sarah questionou, sentido sua cabeça dar voltas diante de tantos fatos novos a serem ponderados. “Generoso, ao menos enquanto eu não passava de uma criança tola”, ela adicionou mentalmente.

— Seus defeitos jamais obstaram suas reais intenções. Apesar de tudo, era um rapaz de intelecto admirável, e não tardou até concluir que lhe era muito mais vantajoso mantê-la viva do que realizar um mero capricho pessoal — Evangeline esclareceu, chegando a sentir calafrios enquanto o fazia. Ao mesmo tempo, empenhava-se agora em trocar o vestido sujo de sua eterna criança, que logo haveria de querer algo para comer. — Depois de conquistar seu amor e admiração, obrigá-la a sacrificar sua felicidade como se estivesse lhe fazendo um favor era demasiadamente fácil. Allen muito se assemelhava a sua mãe nesse aspecto manipulador.

A menina tinha ainda mais perguntas a fazer naquela ocasião, mas o som de passos vindos ao longo no corredor foi responsável por silenciar as duas. Em instantes, o som do trinco de seus aposentos  chamou-lhe a atenção e, logo, a figura combalida de seu consorte ingressou no cômodo.

Sem aguardar um único segundo sequer, Sarah reuniu o restante de suas forças para atirar-se nos braços de Edgar, finalmente sentindo todo o peso da culpa que vinha transportando em seu coração desabar de uma única vez, resultando num choro alto e angustiado.

De imediato, sua reação foi envolvê-la num abraço protetor, mal conseguindo crer na maneira intensa com a qual fora recepcionado. O gesto destoava completamente da reação de repulsa de dias atrás, sendo o suficiente para acalentar o coração preocupado e saudoso do rapaz.

Tê-la encolhida junto ao seu peito o fazia recordar-se de sua promessa dias após o casamento. Era seu dever zelar pelo bem estar da jovem rainha, uma responsabilidade que aceitava com orgulho. Sabiam estar presos a um sistema cheio de regras e imposições, o que apenas majorava a importância de sua função e o fazia sentir-se útil não só àquela família, mas também àquela nação.

— Sarah, está tudo bem — sussurrou da maneira carinhosa, enquanto passava a afagar seus fios castanhos, àquela altura severamente emaranhados. O jovem Avelar podia sentir suas vestes tornaram-se úmidas diante do choro da menina, mas não deu atenção a isso. Ele, melhor que qualquer outro, era capaz de compreender a sensação angustiante que ela tivera de enfrentar. A dúvida em si próprio, a sensação de perder o controle de seus gestos e falas, o arrependimento e a melancolia dos momentos posteriores, todos esses aspectos compunham a imagem de um obstáculo difícil de ser transposto. Felizmente, o pesadelo havia chegado ao fim. — Eu não quero nem imaginar o tipo de asneira que se passou nessa sua mente inquieta. Apenas fique ciente de que está tudo bem agora.

As palavras doces, proferidas num tom baixo e compreensivo apenas intensificaram as lágrimas de sua companheira. Ainda não conseguia acreditar que tivera a audácia de erguer suas mãos no intuito de machucá-lo. “Independentemente das evidências que me foram apresentadas, eu jamais deveria ter duvidado de você. Conheço sua essência mais que qualquer outra pessoa, e me sinto culpada por não ter considerado isso antes de meu julgamento precário”. Ainda que aquelas palavras estivessem bastante nítidas em sua mente, todas as suas tentativas de dizê-lo restaram frustradas, estando seu corpo empenhado em livrar-se de todas as mágoas que vinham servindo como grilhões presos aos seus tornozelos. Os soluços aflitos por vezes tomaram-lhe o ar, fazendo com que se sentisse cansada e sem forças.

— Me desculpe, Edgar. Imagino que já esteja farto de minhas escusas, mas eu gostaria que...

— Não se preocupe com isso — ele pontuou, interrompendo sua fala entrecortada pelo choro enquanto depositava um beijo carinhoso no topo de sua cabeça. — Eu mesmo gostaria de me matar em algumas ocasiões, não é um bom motivo para se sentir especial.

A frase fora dita num tom bem humorado, na expectativa de que o ar jocoso pudesse aliviar as dores da jovem rainha. Os soluços logo cessaram, assim como os eventuais espasmos por eles causados. Por outro lado, seus olhos ainda não haviam transbordado todas as tristezas e decepções que pretendiam, fazendo-a permanecer exatamente onde estava. Ainda o segurava com força, temerosa de que algum momento seu consorte pudesse se dissipar entre seus dedos, enquanto buscava internalizar suas palavras de encorajamento.

— Eu estou muito feliz de tê-la de volta — ele sussurrou, em meio a um sorriso tímido, embora genuíno.

Já não lhe restavam mais dúvidas e, sentindo-se um passo mais próxima de sua sanidade novamente, ela pôde afastar-se de seu torso por um instante, apenas para encará-lo em seus olhos e dizer-lhe com sinceridade e um enorme alívio em sua alma:

— Eu estou feliz de ter voltado.


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